As ações judiciais contra a Vigilância Sanitária: pode-se falar de 'judicialização'?

Aliana Ferreira de Souza Simões Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza Sobre os autores

RESUMO

O estudo tem por objetivo analisar as ações ajuizadas contra um serviço de Vigilância Sanitária municipal, à luz do fenômeno da judicialização da saúde. Trata-se de um estudo de caso que teve como fonte documental os processos judiciais relativos à Vigilância Sanitária do município de Salvador, no período de 2000 a 2017. Foram analisadas 50 ações, sendo que 90% tiveram a forma de mandados de segurança, 28% referiram a presença de débitos tributários como principal objeto de discussão e 72% pleitearam a concessão do alvará de saúde, que foi concedido na maioria das decisões. Evidenciou-se que o interesse econômico particular perpassa as motivações, os argumentos e a fundamentação dos autores, assim como a fundamentação das decisões e sentenças. Os resultados indicam que não se pode falar de 'judicialização da Visa', no sentido de que o Poder Judiciário estaria assumindo algum protagonismo na definição das ações de Vigilância Sanitária. Ademais, indicam que é necessário reestruturar o modelo de atenção da Vigilância Sanitária, a fim de proporcionar alternativas administrativas para a resolução de conflitos.

PALAVRAS-CHAVE
Vigilância Sanitária; Decisões judiciais; Judicialização da saúde; Direito à saúde

Introdução

As ações da Vigilância Sanitária (Visa) envolvem relações de natureza jurídico-política, econômica e médico-sanitária historicamente construídas. Sua atuação é uma atividade típica do Estado, pertencente à Administração Pública e indelegável a entidades privadas, com poder de polícia, de caráter preventivo, que tem a finalidade de assegurar a supremacia do interesse público e social sobre o particular11 Cunha Júnior D. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. Salvador: JusPodvim; 2010.,22 Di Pietro MSZ. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas; 2010..

A Visa, como componente do Sistema Único de Saúde (SUS), é compreendida como um conjunto de práticas sanitárias e saberes capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde decorrentes do processo de produção-circulação-consumo de bens e serviços, que, direta ou indiretamente, relacionem-se com a saúde, denotando, assim, sua abrangência e sua natureza essencialmente de prevenção e com atividade regulatória ao atuar no controle desses riscos33 Brasil. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.

4 Souza GS. Trabalho em vigilância sanitária: o controle sanitário da produção de medicamentos no Brasil [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2007. 217 p.
-55 Dallari SG. Vigilância sanitária: responsabilidade pública na proteção e promoção da saúde. In: Costa EA, organizador. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EDUFBA; 2008. p. 45-52..

Nessa perspectiva, a vigilância busca, a partir da elaboração de normativas, o estabelecimento de regras para o exercício de uma prática sanitária focada na avaliação, no gerenciamento e na comunicação dos riscos reais e potenciais, em sua diversidade de objetos, ancorados na ética da responsabilidade das práticas da Visa, que são fundamentadas nos princípios e nas diretrizes do sistema de saúde instituídos através dos artigos 196, 198 e 200 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)66 Costa EA. O trabalhador de vigilância sanitária e a construção de uma nova vigilância: fiscal ou profissional de saúde? In: Costa EA, organizador. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EDUFBA; 2008. p. 77-90.

7 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Casa Civil; 1988.
-88 Garrafa VA ética da responsabilidade e equidade nas práticas da vigilância sanitária. In: Costa EA, organizador. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EDUFBA; 2008. p. 53-60..

A vigilância busca, ainda, a ampliação de sua atuação para promoção da saúde, melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e pleno exercício de cidadania, com vistas à garantia do direito à saúde ao intensificar as ações sobre os determinantes sociais em sua prática, superando o modelo centrado no atendimento da demanda espontânea, originada do segmento produtivo ou de denúncias e emergências sanitárias, constituído, fundamentalmente, por interesses econômicos e políticos particulares que se sobrepõem, na maioria das vezes, aos interesses e necessidades da maioria da população99 Paim JS. Modelos assistenciais: reformulando o pensamento e incorporando a proteção e a promoção da saúde. In: Costa EA, organizador. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EDUFBA; 2008. p. 61-76.

10 Teixeira CF, Costa EA. Vigilância da saúde e vigilância sanitária: concepções, estratégias e práticas. In: Costa EA, organizador. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EDUFBA; 2008. p. 149-164.
-1111 Lucena RCB. O compromisso da Visa com a garantia do direito à saúde: expressões no Plano Nacional de Saúde. Rev Dir Sanit. 2014; 14(3):95-111..

A relação da Visa com as empresas prestadoras de serviços ou produtoras de bens de interesse da saúde é permeada, muitas vezes, por tensões e conflitos, pois o interesse público de proteção da saúde deve prevalecer sobre o interesse particular, mesmo que as ações desenvolvidas pela Visa para a proteção da saúde repercutam em perdas econômicas de particulares. No entanto, pode ser observado que, às vezes, o interesse econômico privado se sobrepõe ao interesse sanitário coletivo, manietando as atividades da Visa e, assim, potencializando os riscos à saúde da população1212 Aith F, Minhoto LD, Costa EA. Poder de polícia e vigilância sanitária no estado democrático de direito. In: Costa EA, organizador. Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA; 2009. p. 37-60..

Enfim, esses conflitos, como bem lembra Sá1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p., podem ser intensos, dadas as magnitudes potenciais dos ganhos econômicos e dos riscos para a saúde. Esses conflitos, quando não resolvidos pelos agentes diretamente envolvidos ou na ausência de mecanismos para a sua gestão eficaz, podem ser levados ao Poder Judiciário.

O recurso ao Judiciário para a discussão dos conflitos político-sociais pode ser definido como judicialização. Essa discussão no campo do direito confere ao Judiciário a centralidade no processo de resolução de conflitos políticos e sociais, podendo ser utilizado como um instrumento para a formação de políticas públicas para a garantia de direitos1414 Asensi FP. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na saúde. Physis. 2010; 20(1):33-55.. Pode-se perceber nessa definição uma dupla dimensão: a judicialização como o ingresso em juízo de determinada causa, indicando certa preferência do autor por esse tipo de via, e a judicialização como protagonismo do Poder Judiciário no âmbito das relações sociais e políticas1515 Teixeira C, Silveira P, organizadores. Glossário de Análise Política em Saúde. Salvador: EDUFBA; 2016. 222 p..

A questão que se coloca, então, é: em que medida o caráter dessas ações judiciais tem feito do Poder Judiciário um protagonista da Visa, permitindo que se fale de judicialização da Visa?

Diante disso, o estudo teve como objetivo analisar as ações ajuizadas contra a Visa do município de Salvador, no período de 2000 a 2017. Essa análise incluiu: (a) a descrição da atividade desenvolvida pelo autor, o objeto de litígio e pedido do autor; (b) a apreciação das motivações que impulsionaram os autores a ajuizarem ações contra a Visa do município de Salvador, no período; e (c) a discussão sobre a influência do Poder Judiciário no desenvolvimento das atividades de vigilância.

Métodos

Trata-se de estudo de caso cujas unidades de análise foram as ações judiciais ingressadas contra a Visa do Município de Salvador, no período de 2000 a 2017. Os dados foram coletados de fontes primárias, ou seja, das ações judiciais disponíveis, em inteiro teor, no sítio do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, pela consulta eletrônica, constituindo-se como uma consulta pública.

As palavras-chave utilizadas para a busca foram: vigilância sanitária, secretaria de saúde, vigilância, saúde, Salvador, combinadas, tanto para o campo específico da primeira instância como da segunda instância. Os processos que ainda não tinham passado pelo processo de digitalização pelo Tribunal de Justiça, no período da coleta de dados, foram cedidos pela Procuradoria Geral do Município de Salvador.

As informações foram coletadas no período de outubro de 2017 a janeiro de 2018 por meio de um roteiro para coleta de dados construído a partir de outro instrumento já validado1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p.. Os processos judiciais foram analisados de acordo com as categorias: caracterização dos autores e do processo, do pedido e da decisão, da manifestação da defesa e do julgamento.

O software Microsoft Office Excel foi utilizado para a construção do banco de dados e sua posterior tabulação, com elaboração de gráficos e tabelas através da distribuição de frequências simples e relativas.

Por tratar-se de uma pesquisa de análise documental, a execução dos procedimentos de coleta de dados foi iniciada após a autorização formal da Secretaria de Saúde do Município de Salvador e da Procuradoria Geral do Município de Salvador.

Vale mencionar que a pesquisa se limitou aos processos judiciais, não sendo possível estimar o que representam em termos de proporções de ações desenvolvidas como concessões de alvarás ou do número de estabelecimentos sujeitos a essas ações, pois essas informações não são disponibilizadas.

Caracterização das ações judiciais contra a Vigilância Sanitária

Com a análise das ações judiciais, observa-se que 90% tiveram a forma de mandados de segurança e que prevaleceram empresas de médio e grande porte como proponentes das ações. Em 62% das ações ajuizadas, as atividades desenvolvidas pelos autores estão classificadas como serviço de saúde. Desses serviços, 48,4% são de optometria, 22,6% de clínicas e 19,3% de drogarias. Entre os serviços de interesse à saúde, o comércio varejista de alimentos (21%), seguido do comércio atacadista de produtos médico-hospitalares e medicamentos (15,8%) e do segmento de hotelaria (10,5%) foram os mais prevalentes.

Vale destacar que 46% das atividades desenvolvidas pelas empresas de médio e grande porte - as que mais ingressaram com ações contra a Visa de Salvador - se enquadram em atividades de alto risco sanitário, de acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC nº 153/2017)1616 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n° 153, de 26 de abril de 2017. Dispõe sobre a Classificação do Grau de Risco para as atividades econômicas sujeitas à vigilância sanitária, para fins de licenciamento, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 26 Abr 2017.. São estabelecimentos que, em decorrência do exercício de sua atividade econômica, possuem potencial para causar danos aos indivíduos e ao meio ambiente.

Segundo Bastos1717 Bastos AA. Vigilância Sanitária de farmácias em Salvador-Bahia [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2006. 159 p., até 1998, a Visa municipal desenvolvia atividades exclusivamente de baixa complexidade. A partir dessa data, outras atividades ficaram sujeitas ao monitoramento da Visa de Salvador, tais como o controle sanitário do transporte e do comércio de produtos - saneantes, cosméticos, higiene pessoal, medicamentos -, óticas e serviços de saúde que não desenvolvessem procedimentos invasivos. Em 1999, com a publicação da Lei nº 5.504/1999, foi instituído o Código Municipal de Saúde que disciplina as ações e contém informações relativas ao monitoramento dos serviços que estão sujeitos ao controle da Visa1818 Salvador. Lei nº 5.504, de 01 de março de 1999. Institui o Código Municipal de Saúde. Diário Oficial do Município de Salvador. 1 Mar 1999..

A partir da análise dos dados coletados, pode-se inferir que o processo de descentralização das ações do sistema de Visa influenciou o objeto das demandas pleiteadas no Judiciário. Com efeito, até o ano de 2006, as ações tinham como objetos pleitos advindos do setor de drogarias e outros segmentos de baixa complexidade, como clube, restaurante, supermercado e clínica médica sem procedimentos invasivos.

A partir de 2006, a Visa municipal amplia seu leque de atuação para atividades inseridas na média e alta complexidade e de alta densidade tecnológica pactuadas com a Visa estadual por meio de Termo de Ajuste e Metas (TAM)1919 Leal COBS. Análise situacional da vigilância sanitária em Salvador [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2007. 152 p.. Nesse momento, surgem as ações advindas de setores de média ou alta complexidade, como clínicas, laboratórios, serviços de imunização, comércios atacadistas, lavanderia hospitalar, entre outros.

Esse processo de descentralização deflagra a necessidade de estruturação dos serviços de Visa no que tange à sua capacidade organizativa e de funcionamento, de gestão e de alocação de recursos financeiros2020 Maragon MS, Scatena JHG, Costa EA. Vigilância sanitária: estratégias para sua descentralização em Mato Grosso, 1996-2005. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15(supl.3):3587-3601.. Para Cohen, Moura e Tomazelli2121 Cohen MM, Moura MLO, Tomazelli JG. Descentralização das ações de Vigilância Sanitária. Rev Bras Epidemiol. 2004; 7(3):290-301., atrelada à descentralização, há o incremento na oferta de serviços, a reorganização do modelo de atenção ou, ainda, a revisão das formas da relação público-privado.

Com efeito, o processo de descentralização das ações de Visa põe sob a responsabilidade do município um número maior de empresas de maior complexidade tecnológica, exigindo que a vigilância municipal modifique suas rotinas operacionais e organizacionais para atender às novas demandas.

Até 2010, a maioria absoluta das ações (58,3%) tinha como objeto de litígio questionamentos referentes a condutas adotadas pela Visa, enquanto, no período de 2012 a 2015, a maior parte (34,5%) apresentava como reclamação principal a exigência da quitação de débitos tributários municipais para a concessão de alvarás. Já os anos de 2016 e 2017 apresentaram, em 87,5% das ações, questionamentos de profissionais de optometria. Do total de ações, em todo o período (2000-2017), 28% tiveram como principal demanda a questão dos débitos tributários.

Com relação ao pedido do autor, 72% das ações pleiteavam a concessão do alvará de saúde, 24% a suspensão ou a anulação de atos praticados pela Administração Pública e 4% solicitavam o andamento e a conclusão dos processos de licenciamento sanitário (gráfico 1).

Gráfico 1
Pedido do autor nas ações instauradas contra a Vigilância Sanitária do município de Salvador, no período de 2000 a 2017. (n=50)

A Administração Pública, no exercício de sua função, pratica atos administrativos que produzem efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei. Na Visa, a licença é o ato administrativo unilateral e vinculado concedido àqueles que atendam aos requisitos legais inerentes ao exercício de uma atividade sujeita à fiscalização da Visa. Essa licença é concedida por meio de um instrumento, o Alvará22 Di Pietro MSZ. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas; 2010..

Para a Visa, o alvará de saúde é um documento que formaliza que o estabelecimento possui licença sanitária para o exercício da atividade econômica. Essa licença é solicitada em negociações de empresas para contratação de planos de saúde, para firmar convênio com o SUS; é um requisito para a participação em processos licitatórios e necessária para aquisição de alguns medicamentos e produtos de saúde, entre outros.

No município de Salvador, de acordo com o artigo 218 da Lei Municipal no 5.504/1999, a licença sanitária é concretizada com a emissão do Alvará de Saúde, que possui validade de um ano. Dessa forma, todos os estabelecimentos sujeitos à fiscalização da Visa devem passar pelo processo de licenciamento, anualmente. Ademais, o rito processual do processo administrativo sanitário municipal é disciplinado pela referida lei nos artigos 220 ao 2641818 Salvador. Lei nº 5.504, de 01 de março de 1999. Institui o Código Municipal de Saúde. Diário Oficial do Município de Salvador. 1 Mar 1999..

Esse grande volume de demandas relacionadas à concessão de alvará indica que a Administração Pública não está conseguindo atender a uma das atribuições básicas de sua competência. Note-se que essas demandas não mencionam quaisquer elementos relacionados às questões sanitárias dos serviços. Pelo contrário, apresentam, sobretudo, elementos relacionados aos débitos tributários. A alta frequência dessa situação pode valorizar em demasia a licença sanitária, em detrimento do real papel da Visa, o controle sanitário.

Entre os processos analisados, 64% das ações obtiveram resultados em decisão liminar, sendo prevalentes, em 75% das causas, resultados favoráveis ao autor. Dos resultados favoráveis ao autor, 75% foram para obtenção de alvarás sanitários, que foram concedidos liminarmente. Tais dados ratificam a supervalorização da licença sanitária e a emissão do documento, em detrimento do monitoramento das atividades desenvolvidas pelos estabelecimentos (tabela 1).

Tabela 1
Características processuais das ações ajuizadas contra a Vigilância Sanitária do município de Salvador, no período de 2000 a 2017

Uns poucos magistrados destacaram, em suas decisões, a necessidade de observância das condições sanitárias do estabelecimento, preservando a autonomia do órgão de Visa em exercer a sua atribuição. Salientam que, caso todos os requisitos legais tenham sido cumpridos, não haja impedimentos para o licenciamento sanitário. No entanto, o que prevaleceu foram decisões determinando a emissão imediata do alvará de saúde.

Posto isto, defiro a liminar pleiteada, determinando que o Subcoordenador de Vigilância Sanitária, renove, provisoriamente, o alvará de saúde da empresa [...], no prazo de 48 (quarenta e oito) horas [...]. (Ação judicial 18).

Isto posto, CONCEDO A LIMINAR para determinar que as impetradas, em 24hrs, concedam o Alvará de Localização e Funcionamento, bem como o Alvará Sanitário em favor das impetrantes [...]. (Ação judicial 29).

Em contrapartida, no julgamento em sentença, em 42,8% das causas, o pedido do autor foi julgado improcedente, em alguns casos, revogando-se as liminares. Os julgados procedentes foram em torno de 35,8%, concedendo os pedidos realizados pelos autores. Esses achados assemelham-se aos de Sá1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p., que apresenta, em 51,35% das ações, sentenças favoráveis à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, em 33,6% das sentenças, resultados favoráveis ao autor.

Processos extintos foram da ordem de 21,4%, decorrentes de resolução da demanda pleiteada por meios externos ao judicial, da perda do objeto de litígio ou de não atendimento aos requisitos processuais exigidos pelo tipo de ação ingressada. Esse valor apresenta-se superior ao encontrado por Sá1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p., que foi de 11%.

Com relação ao momento da decisão e do julgamento, em 52% dos casos, a decisão ocorreu após a contestação da Visa, em que esta apresenta argumentos e fundamentos que podem subsidiar a decisão do juiz. Esse valor não se apresenta significativo, pois grande percentual das ações (44%) foi decidido antes mesmo de a Administração Pública apresentar sua contestação, e, em 4%, não houve contestação da Visa. Logo, percebe-se o elevado percentual de decisões sem essa peça processual, não oportunizando, previamente, que a autoridade coatora preste as devidas informações para, posteriormente, haver a apreciação do pedido. Os resultados demonstram que 63,6% das ações que tiveram liminares favoráveis ao autor, com decisão antes da manifestação da Visa, foram julgadas improcedentes nas sentenças.

Evidencia-se que, em algumas situações, os autores omitiram informações, como a existência de notificação por parte da Visa a respeito de inspeção realizada no local, apresentando apenas elementos relacionados aos débitos tributários, com o possível intuito de obter vantagens indevidas no processo. Essa atitude deve ser refutada por caracterizar-se como litigância de má-fé, e seus proponentes devem ser responsabilizados.

Ao analisar a tramitação dos processos, constata-se que apenas 56% possuem sentença. Muitas ações (28% do total de 50) recebem resultados em caráter liminar. O mais importante a destacar é que, das decisões ainda não julgadas quanto ao mérito, 78,6% tiveram liminares desfavoráveis à Visa, com a maioria determinando a emissão do alvará de saúde.

A fundamentação utilizada nas decisões e sentenças teve predomínio da CF de 1988, com referências aos princípios da Administração Pública e artigos que asseguram direitos e garantias fundamentais relacionados à atividade econômica. Essa fundamentação evidencia a relevância dada às questões econômicas individuais em detrimento da discussão do interesse público - os quesitos sanitários dos estabelecimentos. Prevalece a liberdade do exercício da atividade e do livre comércio para que as empresas não sejam acometidas por prejuízos financeiros. Todavia, não são, na grande maioria, feitas ressalvas à prática dessas atividades em consonância com as exigências sanitárias para o adequado funcionamento dos estabelecimentos.

Essas decisões e sentenças podem estar sendo influenciadas pelo modelo tradicional de atuação da Visa, caracterizado por práticas sanitárias centradas no atendimento da demanda espontânea - licenciamento de estabelecimentos -, em detrimento do gerenciamento de riscos. Para Araújo2222 Araújo DG, Melo MB, Brant L, et al. Os desafios da implantação do Plano Diretor de Vigilância Sanitária em um contexto municipal. Saúde Soc. 2013; 22(4):1154-1166., esse modelo é marcado por características burocráticas e fiscalizatórias, atuação com rigidez, centralizadora e sem priorização de riscos, reduzindo suas práticas ao poder de polícia. Com efeito, essa conformação compromete a eficácia das ações de proteção da saúde, contribuindo para a ineficiência dos serviços de Visa.

Nesse modelo tradicional, as práticas são focadas no produto ou serviço, desarticuladas, descontextualizadas e individualizadas. Refletem a fragilidade do planejamento e da organização das práticas, além de não considerarem como relevante para o seu direcionamento, além do contexto econômico, o contexto social e cultural em que o objeto está inserido, nem os sujeitos envolvidos no processo.

Assim, pode-se inferir que predomina no Judiciário a compreensão de que a relação estabelecida entre as empresas e a Visa é predominantemente uma relação mercantilista. Esse posicionamento coloca em um plano inferior de discussão as particularidades e a complexidade da prática sanitária para a redução de riscos e danos à saúde da população e ao meio ambiente.

As normativas específicas da Visa são pouco utilizadas pelo Poder Judiciário. Tanto o Tribunal de Justiça da Bahia como os demais tribunais se amparam em legislações mais gerais e abrangentes na fundamentação dos julgamentos e buscam a valorização do livre exercício da atividade econômica e da livre concorrência.

Em algumas sentenças, não foram discorridas pelos magistrados as razões que fundamentaram o seu julgamento. Há a narração do histórico do debate processual e a apresentação do posicionamento adotado referenciando a decisão e o parecer opinativo do Ministério Público, que já constavam nos autos do processo, para ratificar seu entendimento.

No entanto, cumpre ao juiz motivar sua decisão, sendo necessário expor os fundamentos de fato e de direito que geraram sua convicção, para a construção das bases lógicas das partes decisórias das sentenças. Apesar de dissenso entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e a do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Theodoro Júnior2323 Theodoro Junior H. Curso de Direito Processual Civil. 59. ed. Rio de Janeiro: Forense; 2018. acorda com a orientação do STJ, por considerar ser mais condizente com os requisitos do processo constitucional justo, ao fazer a ressalva de que cabe ao julgador fazer o enquadramento do pleito nas normas legais aplicáveis, mesmo que seja para afastar o cabimento do seu uso no caso específico, versando com transparência a sua motivação e a sua decisão.

Um percentual de 16% das demandas estava sem decisão ou julgamento. Esse valor é superior, em quase quatro vezes, ao apresentado por Sá1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p., que foi da proporção de 3,9% das ações propostas. Esses dados podem significar que o autor abandonou a causa ou que o juiz ainda não reuniu condições necessárias para a emissão de seu julgamento, ou podem, ainda, evidenciar morosidade no Poder Judiciário.

O recurso a instância superior foi pouco utilizado nas ações, estando presente apenas em 34% delas. Da totalidade de recursos, 64,7% foram instaurados na segunda instância e apenas 17,6% progrediram para o nível federal.

Motivações dos autores das ações judiciais

As motivações dos autores podem ser elencadas em três categorias: aspectos da prática sanitária - relacionados à discordância do autor com relação aos atos praticados ou às condutas adotadas pela Visa; aspectos organizacionais - atrelados à morosidade da Administração Pública em atender ao pedido de licenciamento do estabelecimento; e aspectos administrativos ou burocráticos - relacionados à recusa ou negativa de protocolar pedido de licenciamento por ausência de documentos, ausência de mecanismo formal e instituído para resolução de conflitos ou divergências no âmbito administrativo e pela omissão da Visa quanto às tentativas de esclarecimentos sobre andamento dos processos de licenciamento, bem como de condutas adotadas (quadro 1).

Quadro 1
Motivações dos autores, por categoria, presentes nas ações judiciais contra a Vigilância Sanitária do município de Salvador, no período de 2000 a 2017

Das 50 ações analisadas, a motivação mais prevalente foi relacionada à prática sanitária adotada pela Administração Pública, com 32 citações. Posteriormente, com valor muito próximo, motivações atreladas aos aspectos administrativos e burocráticos do serviço, tendo sido citadas 27 vezes. E, por último, motivações de cunho organizacional, citadas apenas seis vezes pelos autores.

O quantitativo de motivações relacionadas às questões administrativas e burocráticas é elevado, quase igualado ao valor encontrado para motivações atreladas ao desenvolvimento da prática sanitária. Esses achados demonstram que há falhas na organização administrativa do sistema de Visa municipal, bem como há excesso ou impertinência de exigências formais. Isso retrata que o processo de trabalho da Visa tem características cartoriais, sendo centralizador, burocrático e verticalizado, focado em uma atuação sustentada por abordagem fiscalizatória, com ênfase em inspeção, que se desdobra em redução de suas práticas ao poder de polícia e em supervalorização de documentos em detrimento do controle dos riscos sanitários2222 Araújo DG, Melo MB, Brant L, et al. Os desafios da implantação do Plano Diretor de Vigilância Sanitária em um contexto municipal. Saúde Soc. 2013; 22(4):1154-1166.,2424 Cohen MM. Dilemas do processo de gestão descentralizada da vigilância sanitária no Estado do Rio de Janeiro. Physis. 2009; 19(3):867-901..

As falhas na organização administrativa descritas nas petições iniciais apontam o serviço de atendimento ao público como o de maior fragilidade no sistema, que reflete as lacunas existentes no planejamento e na gestão da vigilância municipal. É possível identificar condutas arbitrárias e ilegais, como a recusa de protocolar pedidos, requerimentos e, consequentemente, a emissão de alvará sanitário, vinculando tais ações à apresentação de documentos, como explicitado nos trechos abaixo, extraídos dos processos:

Todavia, a mencionada Subcoordenação negou-se inclusive a receber tal requerimento, [...], impedida inclusive de peticionar perante o citado órgão, a Impetrante viu-se obrigada a endereçar-lhe telegrama. (Ação judicial 12).

Eis que chegou o momento da Impetrante renovar o seu Alvará de Saúde e ela não conseguiu, sequer, protocolizar o seu pedido, visto que a autoridade coatora só admite receber tal pleito instruído da Certidão de Débitos Tributários Municipais da pessoa interessada, emitida pela Sefaz. (Ação judicial 18).

A exigência da apresentação da Certidão Negativa de Débitos (CND), de acordo com a Visa municipal, é fundamentada no art. 323 da Lei Municipal nº 7.186/2006, que institui o Código Tributário e de Rendas do Município de Salvador2525 Salvador. Lei nº 7186, de 27 de dezembro de 2006. Institui o Código Tributário e de Rendas do Município do Salvador. Diário Oficial do Município de Salvador. 27 Dez 2006., e no art. 34 da Lei Municipal nº 8.421/2013, que acrescenta dispositivos ao Código Tributário municipal2626 Salvador. Lei nº 8421, de 15 de julho de 2013. Altera, acrescenta e revoga dispositivos da lei nº 7.186, de 27 de dezembro de 2006, que instituiu o Código Tributário e de Rendas do Município de Salvador, e dá outras providências. Diário Oficial do Município de Salvador. 15 Jul 2013.. No entanto, os autores das ações alegam que essa exigência viola princípios constitucionais, como o da razoabilidade, o da proporcionalidade e o da liberdade de exercício de profissão, oficio ou atividade econômica.

Essas alegações se coadunam com a jurisprudência de tribunais superiores que possuem o entendimento de que a cobrança de tributos deve ser promovida através de meio próprio, sem impedir direta ou indiretamente a atividade profissional do contribuinte, sem uso de meios coercitivos por via transversa para a execução dos débitos. Essa regulamentação municipal evidencia a prioridade dada à arrecadação de tributos pelos Poderes Executivo e Legislativo de Salvador.

Influência do Poder Judiciário no desenvolvimento das atividades de Vigilância Sanitária

Com a análise dos resultados, observa-se que todos os pedidos que solicitavam a concessão do alvará sem a exigência da apresentação da CND foram concedidos. Apesar de a alegação na inicial relacionar-se à dificuldade em protocolar requerimento para o processo de licenciamento sem o referido documento, o pedido continha a solicitação da concessão do alvará, suprimindo as demais etapas do processo.

Em umas poucas decisões, os magistrados determinaram a continuidade do processo de licenciamento mesmo sem a apresentação da CND. Não foi concedido de imediato o alvará, o juiz apenas não vinculou a CND ao andamento do processo. Em outras decisões, houve a determinação para emissão do alvará desde que a ausência da CND fosse o único óbice e que os demais requisitos técnico-sanitários fossem atendidos. Esses posicionamentos dos magistrados, embora contrariem a norma administrativa adotada pela Visa de Salvador de exigir a CND, demonstram o respeito à autonomia do Poder Executivo no que concerne às normas sanitárias stricto sensu.

Em outras situações, foi relatado que a recusa ou a negativa do pedido foram expressas apenas de forma verbal, sem formalização do ato administrativo, o que sugere que o órgão está ciente da fragilidade do fundamento legal de sua recusa ou negativa.

Ocorre que, as autoridades sanitárias municipais vêm negando o requerimento acima citado, sem manifestação formal, sob a alegação VERBAL de que a concessão do alvará estaria pendente de AUTORIZAÇÃO DO CONSELHO REGIONAL DE [...]. (Ação judicial 36).

[...] foram aproximadamente 05 meses do mais completo silêncio, sem qualquer reposta, nem positiva nem negativa [...] o Impetrado não concede, mas também não indefere, permanecendo inerte e indiferente, apesar das diversas provocações que recebeu, por meio de insistente cobrança da Impetrante [...]. (Ação judicial 32).

Essas condutas contrariam os princípios constitucionais da Administração Pública, que são necessários para o adequado funcionamento do órgão perante o segmento regulado. Esse modo de agir da Visa pode interferir na condição econômica da empresa e fragilizar a sua própria atuação.

Apesar das motivações referentes aos aspectos organizacionais serem bem menos frequentes, não deixam de ser relevantes. Sem dúvida, a morosidade no andamento dos processos de licenciamento, vinculada à recusa ou à dificuldade em formalizar um requerimento junto ao órgão, pode trazer prejuízos tanto à atividade econômica como ao controle de riscos sanitários.

Observa-se que a morosidade está relacionada à própria (des)estruturação do processo de trabalho da Visa, em particular, no que se refere à tramitação dos processos de licenciamento, quer por quesitos de inércia, sem apresentação de nenhuma justificativa para aquela lacuna de tempo sem qualquer fiscalização, quer por repetidas inspeções ao local que não resultam em um posicionamento acerca do licenciamento.

Requereu junto ao órgão municipal de Vigilância Sanitária, ligado à Secretaria Municipal de Saúde do Município de Salvador - Estado da Bahia, há doze meses, NOVO ALVARÁ SANITÁRIO DE LICENÇA [...]. (Ação judicial 36).

[...] houve nova visita em 22/01/2014 (7a. INSPEÇÃO) decorrido mais de um ano desde o protocolo de pedido de renovação do alvará. Que, por mais incrível que pareça, resultou em nova prorrogação de prazo, por mais 15 dias, [...] encontrando-se em processo de renovação de alvará há mais de um ano e meio. (Ação judicial 32).

Em todas essas situações, sobressai a sujeição do segmento regulado à Visa, que, ao atuar com morosidade, pode causar danos às relações econômicas. Essa conduta contraria o direito e a garantia fundamental de que sejam asseguradas a todos a razoável duração do processo e a celeridade na tramitação77 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Casa Civil; 1988.,2727 Lima YOR, Costa EA. O processo administrativo no âmbito da vigilância sanitária. In: Costa EA, organizador. Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA; 2009. p. 196-219..

Com relação aos aspectos da prática sanitária, apenas 12 (37,5%) das motivações estão relacionadas a atos praticados pela Visa - interdição de equipamentos e do estabelecimento e da apreensão de produtos. A maioria está atrelada à conduta de indeferimento adotada com relação ao serviço de optometria e aos que possuem responsável técnico com formação divergente do que está disposto na Lei Municipal nº 5.504/1999.

Há que se ressaltar que as motivações dos autores proponentes das ações foram embasadas, de forma geral, em princípios, direitos e garantias estabelecidos na CF de 1988, em defesa do direito ao trabalho, à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica.

Além disso, é possível constatar que houve uso muito frequente de jurisprudências de tribunais estaduais e federais para fundamentação das petições. Também houve muita citação de doutrinas, por vezes extensas, em detrimento de discussões acerca de legislação específica ao objeto e de legislação sanitária. Essa realidade evidencia o distanciamento do segmento regulado das especificidades do sistema de Visa.

As súmulas, mesmo pouco utilizadas, compreendem discussões referentes à inadmissibilidade de atos coercitivos da Administração Pública como mecanismo para a cobrança de tributos. Esses dados corroboram os de Sá1313 Sá MCDNP. Controle judicial da política pública de vigilância sanitária: a proteção no Judiciário [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública; 2010. 258 p., ao constatar que os principais motivos que direcionam a busca do Judiciário para dirimir os conflitos e litígios referentes à atuação da Visa estão diretamente vinculados às questões econômicas.

Em suma, a maioria das ações teve como requerentes empresas com atividades classificadas como serviços de saúde. O pedido mais prevalente referiu-se à concessão do alvará de saúde, que foi concedido na maioria das decisões liminares. Em contraponto, nas sentenças, quase metade das ações foi julgada improcedente, com revogação da liminar. Percentual significativo de ações foi extinto em decorrência de resolução da demanda pela via administrativa, da perda do objeto de litígio ou de não cumprimento dos requisitos processuais.

O modelo de trabalho da Visa, pautado no tradicionalismo, e a descentralização das ações do sistema de Visa atuaram como determinantes dos aspectos da prática sanitária, dos aspectos organizacionais e dos aspectos administrativos ou burocráticos que determinaram, por sua vez, as motivações diretas das ações. O modo como é estruturado o trabalho da Visa, com dificuldades operacionais, provoca morosidade na tramitação dos processos de licenciamento. Na prática, existem processos que tramitam há mais de três anos, sem sua conclusão. E, em alguns casos, pedidos de licenciamento que tramitam há cinco anos ou mais sem finalização.

O interesse econômico particular foi o elemento que mais influenciou as motivações, direcionando as alegações e fundamentações apresentadas pelos autores das ações. Observa-se que a razão da busca do Judiciário para dirimir os conflitos está relacionada à garantia de que não haja danos e prejuízos à atividade econômica do estabelecimento, mesmo que, para isso, requisitos técnicos sanitários sejam negligenciados.

Pode-se verificar que os aspectos referentes ao interesse econômico particular conduzem, inclusive, os julgamentos dos magistrados, que fazem prevalecer os direitos de atividade econômica em detrimento das condições sanitárias de funcionamento dos estabelecimentos. Assim, esse interesse perpassa toda a relação processual, desde a motivação do ingresso das ações aos julgamentos prolatados pelos juízes, induzindo a Visa a considerar mais a atividade econômica do que a segurança sanitária.

Prevalece, com efeito, a busca da efetivação do direito ao livre exercício da atividade econômica, subordinando tudo e todos aos interesses econômicos. Em decorrência disso, percebe-se, por um lado, que há uma fragilização da relação estabelecida entre a Visa e as empresas prestadoras de serviços ou produtoras de bens de interesse à saúde, e, por outro lado, a própria estruturação da vigilância municipal já permite que haja esmorecimento dessa relação, fomentado por sentimentos de descrédito e de desconfiança, que só é potencializado com os resultados das ações judiciais.

Nesse sentido, ainda que as decisões judiciais devam ser e estejam sendo cumpridas pela Secretaria Municipal da Saúde e, portanto, de algum modo, influenciando o desenvolvimento de atividades da Visa, não se pode dizer que se trata de uma influência determinante do modo de atuar da Visa, seja contribuindo para seu aprimoramento, seja comprometendo uma rotina previamente (pretensamente) bem estruturada.

Considerações finais

Os resultados demonstram que há muitas fragilidades no modo de trabalho da Visa municipal, que reproduz um sistema de Visa permeado por características tradicionais: cartorial, centralizador, burocrático, verticalizado e fiscalizador/inspetor. Desse modo, a Visa não consegue executar suas atribuições de forma eficiente, impulsionando a busca do Poder Judiciário para que as demandas sejam atendidas. Ressalta-se a necessidade de tramitação dos processos de forma célere e dinâmica, para que não haja ônus indevido ao administrado e, em contrapartida, à população e ao meio ambiente.

Os achados evidenciam, também, que o interesse econômico particular perpassa as motivações, os argumentos e a fundamentação dos autores, assim como a fundamentação das decisões e sentenças. E as decisões judiciais, em regra, favorecem o interesse econômico particular em detrimento do interesse sanitário público.

Enfim, a análise do caso demonstra que as ações ajuizadas a Visa de Salvador decorreram, em grande medida, das falhas de atuação do próprio órgão executivo, mesmo que as motivações dos autores e as decisões dos magistrados tenham se apoiado, sobretudo, nos interesses econômicos particulares.

Neste sentido, não se pode falar de influência do Poder Judiciário no desenvolvimento das atividades de Visa no sentido de 'judicialização da Visa', entendida como o protagonismo do Poder Judiciário na condução de uma política que deveria ter como responsável principal o Poder Executivo. A Prefeitura de Salvador, por meio de sua secretaria da saúde, mantém o papel de protagonista das ações de Visa, apesar de todas as falhas.

Em consequência, fica patente a necessidade de reconhecimento das limitações do trabalho da Visa pelos gestores e técnicos do sistema de vigilância municipal, para que haja uma avaliação sobre o processo de trabalho e sobre o monitoramento do risco sanitário que, aliada às tecnologias de planejamento e comunicação social, poderá subsidiar uma reestruturação do modelo de atenção em Visa com reorganização de suas práticas. Ao passo que se avança o processo de descentralização das ações, essa organização inadequada do sistema pode propulsionar que novas demandas sejam judicializadas.

No âmbito organizacional e administrativo, cabe à Visa municipal a formalização de alternativas administrativas, sem se afastar do gerenciamento de riscos, para a resolução dos conflitos, entre os quais, a instauração devida de processos administrativos sanitários, em observância aos princípios da Administração Pública.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
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