A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma

The dispute between models for the countryside: notes on the agrarian issue in Brazil in search of a new paradigm

Gustavo Souto Noronha Maria Lúcia de Oliveira Falcón Sobre os autores

RESUMO

O texto procura apresentar a discussão da questão agrária brasileira na perspectiva do conflito entre dois modelos para o campo: um voltado para o agronegócio e outro voltado para a agricultura familiar, reforma agrária e comunidades tradicionais. O presente artigo pretende visitar essa disputa, atualizá-la no contexto do golpe de Estado de 2016 e apresentar possíveis alternativas para o campo no Brasil em busca de novos paradigmas.

PALAVRAS-CHAVE
Agricultura; Desenvolvimento regional; Planejamento social; Agroindústria; Agricultura sustentável

ABSTRACT

The text seeks to present the discussion of the Brazilian agrarian issue from the perspective of the conflict between two models for the countryside, one focused on the agribusiness, and one another focusing on family farming, agrarian reform, and traditional communities. The present article intends to visit such dispute, to update it in the context of the coup d’etat of 2016, and to present possible alternatives to the countryside in Brazil in search of new paradigms.

KEYWORDS
Agriculture; Regional development; Social planning; Agribusiness; Sustainable agriculture

Apresentação

A questão agrária talvez seja um dos debates de importância civilizatória mais emblemáticos e acalorados do Brasil; uma discussão natural para o quinto país em extensão territorial do mundo com enorme área agriculturável. O cerne da controvérsia é uma disputa territorial entre dois modelos: o primeiro ligado ao agronegócio patronal, que, apesar de atender parte do mercado interno, está inserido no mercado internacional de commodities; o segundo, com foco na agricultura familiar, reforma agrária e comunidades tradicionais, apresenta um maior vínculo com a produção de alimentos para o mercado interno e a subsistência.

O presente ensaio pretende visitar essa disputa, atualizá-la no contexto do golpe de 2016 e apresentar possíveis alternativas para o campo no Brasil. A primeira seção apresenta o caráter perene da discussão da reforma agrária no País. A segunda parte apresenta a disputa territorial entre os modelos agrícolas. Depois, procuramos apresentar a conformação social e econômica da agricultura brasileira e seus conflitos agrários nos anos de 2010 a 2020. A seguir, discutimos alguns aspectos econômicos sobre o tamanho da propriedade rural e a reforma agrária. Na sequência, entramos no debate do golpe de 2016 e a destruição das políticas agrárias. Por fim, procuramos na conclusão sugerir experiências a serem estudadas para a construção de um novo paradigma.

A reforma agrária perene

A discussão sobre a reforma agrária no Brasil começou no século XIX, com José Bonifácio de Andrada e Silva, e nunca saiu do debate nacional, tendo sido abordada por Joaquim Nabuco, Ignácio Rangel, Caio Prado Júnior, entre outros autores clássicos do pensamento brasileiro que sempre apontaram a necessidade da democratização da propriedade da terra como uma etapa necessária ao desenvolvimento brasileiro. O presidente João Goulart, pouco antes de ser derrubado, fez um discurso avassalador em defesa de reforma agrária. A ditadura trouxe o Estatuto da Terra11 Brasil. Estatuto da terra. Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964. [acesso em 2018 out 31]. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104451/estatuto-da-terra-lei-4504-64.
https://presrepublica.jusbrasil.com.br/l...
, a redemocratização dos planos nacionais de reforma agrária. Entretanto, historicamente pouco se alterou o índice de Gini da Terra no Brasil.

O Brasil é o país da reforma agrária perene. Ao contrário de outros países onde se realizou uma reformulação completa da estrutura fundiária, nosso país segue chamando de reforma agrária uma política que precariamente fiscaliza a função social da propriedade da terra.

Discutir a função social da propriedade é primordial para relativizar o direito absoluto sobre a propriedade. Entretanto, Caio Prado Júnior44 Prado Junior, C. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense; 2000. já nos alertava que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam ficando na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetuaria este cenário.

A fiscalização do cumprimento da função social sob os aspectos da produtividade, ambiental e trabalhista é um dever constitucional do estado, mas não pode ser entendida como reforma agrária. Reforma agrária tem começo, meio e fim.

Há, contudo, os que entendem que mesmo a reforma agrária tendo sido uma etapa necessária no desenvolvimento de nações hoje consideradas desenvolvidas, o Brasil teria perdido esse bonde da história.

De pouco adianta a essas pessoas argumentos sobre a eficiência maior da agricultura familiar, sobre a produção de alimentos que é garantida por esse modo de produção, de qualquer efeito multiplicador dessa política sobre a economia, enfim, qualquer defesa mais enfática da necessidade de uma reforma agrária.

Um dos pontos levantados por essas pessoas é que não há público para essa reforma agrária e que haveria necessidade, no máximo, de atuar pontualmente nos conflitos existentes e assentar as cerca de 120 mil famílias acampadas no País. Isso é uma falácia. Os dados do Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017 mostram uma demanda muito maior, como pode ser observado na tabela 1 abaixo:

Tabela 1
Demanda potencial da reforma agrária - (Produtores sem área e minifúndios)

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964) estabelece como objetivo da reforma agrária eliminar o latifúndio e o minifúndio. No Brasil, uma área inferior a um módulo fiscal é considerada um minifúndio, a legislação brasileira também prevê a fração mínima de parcelamento a área mínima que um imóvel pode ter. Tanto o módulo fiscal quanto a fração mínima de parcelamento são definidos por município, os menores valores para essas medidas no País são, respectivamente, cinco e dois hectares. A tabela 1 acima mostra que a demanda existente por reforma agrária, considerando apenas as áreas abaixo da menor fração mínima de parcelamento e os produtores sem área, apresenta um público potencial a ser atendido pela democratização do acesso à terra no Brasil seria de mais de 1,15 milhão de famílias. Se incluirmos todos os minifúndios na conta, áreas abaixo de cinco hectares, teríamos mais 817.425 microproprietários, ou seja, a demanda por reforma agrária poderia ser considerada algo como um pouco menos de 2 milhões de família.

A disputa territorial entre os modelos agrícolas

Mencionamos antes que vivemos uma crise alimentar e que ela também é resultante do atual padrão de consumo. O melhor exemplo disso é que, com o esgotamento das reservas de combustíveis fósseis, tem-se colocado como alternativa a produção de agrocombustíveis. Na prática, os agrocombustíveis competem pelas terras férteis com a produção de alimentos. A discussão do modelo de exploração ideal das terras é vital para a discussão de como alimentaremos os 7 bilhões de habitantes do planeta. Ainda assim, nossa sociedade prefere a lógica do automóvel individual à do transporte coletivo eficiente.

Temos de um lado o agronegócio das monoculturas, do deserto verde, do uso intensivo dos agrotóxicos e da manipulação genética de impactos, no mínimo, incertos. O que temos no Brasil é que as áreas voltadas para alimentos de consumo interno da população brasileira estão a perder espaço para culturas de exportação ou que produzem insumos não alimentícios para outras indústrias. O gráfico 2 abaixo, elaborado a partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE com dados entre 2002 e 2016, compara a série histórica de áreas plantadas dos dois produtos mais elementares da dieta do brasileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas e quantidade produzida da soja (voltada ao mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada tanto para a produção do açúcar, boa parte exportada, como para a produção do etanol, o álcool combustível).

Gráfico 1
Concentração de terras no Brasil

Gráfico 2
Área plantada ou destinada à colheita (arroz, feijão, cana-de-açúcar e soja), em hectares

Em números, tínhamos, em 2002, uma área plantada de 3.171.955 hectares de arroz, 4.321.809 hectares de feijão, 5.206.656 hectares de cana-de-açúcar e 16.376.035 hectares de soja. Em 2016, os hectares plantados eram 2.004.643 de arroz, 2.946.801 de feijão, 10.245.102 de cana-de-açúcar e 33.309.865 hectares de soja. Uma diminuição da área plantada dos produtos da dieta básica do brasileiro em um período que a população saltou de mais de 176 milhões para cerca de 202 milhões de pessoas. Isto evidencia um modelo de desenvolvimento adotado pelo País.

O argumento subsequente seria de que a diminuição da área plantada seria compensada por um aumento da produtividade. Independentemente de qualquer melhoria na produtividade, o gráfico 1 deixa claro que a quantidade produzida dos alimentos básicos da dieta do brasileiro tem diminuído (no caso do feijão) ou se mantido estável (no caso do arroz) mesmo diante do crescimento populacional, ao contrário da cana-de-açúcar e da soja. Em números, saímos de 10.445.986 toneladas de arroz, 3.064.228 de feijão, 364.389.416 de cana-de-açúcar e 42.107.618 de soja em 2002 para 10.622.189 toneladas de arroz, 2.615.832 de feijão, 768.678.382 de cana-de-açúcar e 96.296.714 de soja em 2016.

É importante destacar que, de acordo com o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, cerca de 4,3 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar ocupam somente 24,3% da área agricultável e produzem 70% dos alimentos consumidos no País e emprega 74,4% dos trabalhadores rurais, além de ser responsável por mais de 38% da receita bruta da agropecuária brasileira22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006: resultados Preliminares. [acesso em 2013 maio 14]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br.
http://www.ibge.gov.br...
. A relação entre a proporção da produção de alimentos oriundos da agricultura familiar e a de sua participação na receita da agropecuária ajuda a inferir que os preços dos alimentos podem baixar diante de uma mudança no paradigma produtivo do meio rural. Ademais, o desperdício de alimento na cadeia produtiva do agronegócio é 10 vezes maior que na cadeia produtiva do modo produção campesino. Desse modo, não está errado afirmar que a produção orgânica e sustentável vem da agricultura familiar. É mais fácil garantir uma produção livre de veneno com o agricultor familiar que no agronegócio. Ou seja, é preciso discutir uma reorganização da produção de alimentos do País em um paradigma agroecológico.

Por fim, é importante retomar a questão colocada por Caio Prado Junior44 Prado Junior, C. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense; 2000. e anteriormente citada de que as piores terras ficam na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetua este cenário. Ou seja, mais uma vez retomamos a necessidade, por um outro viés, de discutir uma limitação ao tamanho máximo da propriedade rural.

Conformação social e econômica da agricultura brasileira e seus conflitos agrários nos anos 2010 a 2020

O cerne da controvérsia é a disputa política e econômica entre dois modelos, que se materializa também e primeiramente na disputa pela terra. O primeiro modelo está definido pelo agronegócio patronal, que atende parte do mercado interno por meio de cadeias agroindustriais, mas principalmente está inserido no mercado internacional de commodities, sustentando a acumulação de cadeias agroindustriais estrangeiras. O segundo modelo tem por moldura a agricultura familiar, assentamentos da reforma agrária e comunidades tradicionais e está fortemente vinculado à produção de alimentos para o mercado interno, além da subsistência familiar.

Mesmo assim, o potencial do Brasil rural é tão grande que ao mesmo tempo em que se tornava uma das maiores economias industriais do mundo, o país estruturava uma importante base agropecuária e terminaria o século XX como um dos principais produtores agrícolas mundiais, exportando alimentos para muitos outros países. Ao lado de uma agropecuária de base patronal - que se expandiu e modernizou, avançando na direção do centro-oeste -, se desenvolveu uma agropecuária organizada em bases familiares, que predomina em três porções distintas do amplo território nacional: a região sul, o nordeste (com destaque para a região semiárida) e a região amazônica. A primeira estrutura se destaca pelos seus níveis de produtividade elevados e tem o mercado mundial como destino de seus excedentes. A segunda, mais diversificada e voltada para o mercado interno, se diferencia pela sua capacidade de gerar ocupação para milhões de produtores e suas famílias. Ambas reafirmam as potencialidades do Brasil rural77 Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais Brasileiros: implicações no marco jurídico e nas políticas públicas. Brasília, DF: IICA; 2017. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 22).(33).

No entanto, como a realidade sempre é mais complexa que os modelos teóricos, além dos espaços de conflito, existem espaços de integração e convivência entre os dois modelos, com resultados benignos e malignos em diferentes gradações. Dois estudos seminais detectaram essa complexidade e apontaram os mercados de disputa e os mercados de integração em que os modelos operam. Trata-se do Atlas do Espaço Rural, elaborado pela Diretoria de Geociências do IBGE, publicado em 2011 com dados de anos variados; e da Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais Brasileiros, publicado pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) em 2017.

No Atlas encontramos um conjunto de 33 tipos de territórios rurais de povoamento em todo o Brasil, mas o que sobressai da análise que formula essa tipologia são elementos inovadores. O IBGE coteja os tradicionais indicadores agrários e agrícolas - número e tamanho dos estabelecimentos, a propriedade da terra, valor e volume da produção etc. - com indicadores sociais obtidos por meio do acesso a bens civilizatórios (ou direitos sociais) como educação, acesso à justiça e acesso a políticas públicas, tecnologia e informação. Mais além, coloca no mapa os fluxos desses sistemas produtivos e identifica a Rede de Cidades que assiste e materializa os mercados nas diversas escalas logísticas, do regional até a exportação. Finalmente, afirma que não é mais possível, em nenhum dos dois modelos e suas variantes territoriais, separar a economia do rural e a do urbano. As rendas e receitas que estão mantendo o sistema produtivo ‘rodando’, seja no agronegócio, seja na agricultura familiar, há muito já são geradas em atividades integradas e simultâneas aos indivíduos e empresas.

Com efeito, o debate atual em torno das relações entre o rural e o urbano e da introdução da abordagem das dinâmicas territoriais implica na compreensão de novas ramificações temáticas que giram em torno das articulações territoriais e interdependências do rural com o urbano, na medida em que empiricamente o campo apresenta cada vez mais injunções com a cidade e suas funções, alterando a estrutura e a dinâmica de suas relações. A análise do espaço rural brasileiro acompanhada pelas informações geográficas elaboradas pelo IBGE contempla, portanto, não só o setor agropecuário estrito senso, como a geografia da rede urbana local e da regional, pois é nesse espaço que muitos produtores rurais encontrarão fontes de renda e emprego complementares, vitais para a preservação da própria atividade agrícola88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do espaço rural brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE; 2011.(11).

A integração econômica rural-urbano leva os serviços financeiros, tecnologia, comunicações, transporte, entre muitos outros, para o cotidiano rural e traz o padrão de consume das atividades rurais para o mundo urbano. Forma e conforma, assim, uma nova cultura da ruralidade, em que tanto a exclusão social rural - os sem terra - quanto a exclusão urbana - os sem teto - são o outro lado da moeda do avanço do capitalismo no conjunto da economia e da sociedade, quando não encontra barreiras políticas para a concentração da riqueza e da propriedade.

Três cartogramas explicam bem esse fenômeno socioeconômico, sendo o Cartograma 1 ilustrativo de como as mercadorias percorrem o espaço definindo regiões e construindo cadeias produtivas agroindustriais, seja para o mercado interno, seja para exportação (figura 1). O Cartograma 2 mostra como os municípios brasileiros geram renda por meio da integração dos setores primário (agricultura), secundário (indústria) e terciário (serviços) (figura 2). O Cartograma 3 mostra a ocorrência de atividades simultâneas à agricultura que geram renda para o produtor fora do estabelecimento rural, sendo já essa uma característica do rural em quase todo o País (figura 3).

Figura 1
Dimensões do espaço regional sob a ótica dos fluxos produtivos agroindustriais

Figura 2
Origem da renda municipal segundo setor econômico

Figura 3
Atividades remuneradas fora do estabelecimento rural

Com efeito, a expansão da fronteira agrícola do território brasileiro nas últimas décadas tem significado um adensamento técnico-informacional e normativo com a participação decisiva de grandes empresas ligadas ao agronegócio. A distribuição de tais densidades de fluxos, no entanto, é seletiva, uma vez que apenas algumas áreas e pontos do Território Nacional se inserem de forma mais completa nas redes, cadeias e complexos agroindustriais delineados a partir da ‘organização em rede’ da agropecuária nacional, emergente nos anos de 1990 do século passado. Assim sendo, a agropecuária brasileira passa a ser cada vez mais, e, sistematicamente, pautada por lógicas antes comuns apenas aos outros setores da economia e o imperativo da competitividade apodera-se da produção e da logística de distribuição em todas as suas etapas, ressaltando aí os mecanismos financeiros, econômicos e, principalmente, os inúmeros avanços tecnológicos que permitiram aos agentes hegemônicos articularem-se e estruturarem-se para atender tanto ao mercado interno quanto ao mercado externo88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do espaço rural brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE; 2011.(11).

Finalmente, do estudo do IICA, no qual também é formulada uma tipologia de territórios rurais com 26 tipos, chega-se à conclusão que parte significativa (37%) da população brasileira vive essencialmente uma experiência de ruralidade. O que é exatamente essa condição?

A contribuição principal que advém do debate conceitual é a que nega o rural como sinônimo apenas de espaço da produção agropecuária. Contestando esta visão economicista, o estudo assumiu uma leitura de corte sociocultural do rural, a exemplo do que se faz em muitos países e do que prevalece em vários estudos recentes. Seguindo esta orientação, a tipologia parte da visão de que: ‘A ruralidade diz respeito a uma forma pela qual se organiza a vida social’77 Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais Brasileiros: implicações no marco jurídico e nas políticas públicas. Brasília, DF: IICA; 2017. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 22).( 34).

Com base nas análises dos dados e nas conclusões desses estudos, apresentamos um desenho das relações sociais entre os atores que performam na nova ruralidade brasileira, definindo as arenas onde as disputas e integrações podem acontecer. Milton Santos99 Santos M. A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp; 2006. teorizou sobre esses novos atores que surgem com a maior densidade informacional e técnica dos espaços rurais que se integram nas redes de produção capitalista. São alçados a autoridades locais o agrônomo, o veterinário, o gerente do banco, entre tantas outras personagens da socioeconomia do Brasil no século XXI.

O sistema unificado da ruralidade bipolar do agronegócio e da agricultura familiar amalgama em cada território os diferentes atores e suas relações formais e informais, e aponta conflitos bem como pontos de integração nos seguintes subsistemas: a) nas organizações públicas dos três níveis federativos; b) no acesso ao mercado financeiro e à educação financeira; c) no acesso à tecnologia, assistência e aos insumos; d) na comercialização em diferentes escalas (bolsa de mercadorias internacional, contratos agroindustriais, feiras regionais e locais, cooperativas); e) no acesso à terra.

As personagens são permanentes visíveis ou permanentes invisíveis. Aqui o critério de visibilidade se baseia em registros formais de trocas sociais, políticas e econômicas. Geralmente as relações entre as permanentes visíveis são predominantemente formais, enquanto as relações entre as visíveis e invisíveis são predominantemente informais. São permanentes visíveis em uma formação produtiva territorial o gerente do banco, o agrônomo/veterinário/zootecnista/técnico agrícola/etc., o pequeno produtor e sua família (com terra), o trabalhador rural, o trabalhador rural sem-terra, o empresário-proprietário da terra, o médio produtor rural, o juiz/oficial de cartório/ defensoria e promotor, o padre/pastor/liderança religiosa, o prefeito/vereadores/deputados/políticos de outra escala federativa.

São permanentes invisíveis os intermediários da comercialização, os transportadores, os prepostos da ilegalidade (agiota, madeireiro, servidor público corrupto, crime organizado etc.), lideranças locais empresariais e de produtores familiares, lideranças religiosas, advogados, cabos eleitorais e lideranças políticas, entre outros.

As figuras visualizam as relações sociais da tipologia de (con)formação socioeconômica da ruralidade brasileira atual. À esquerda, tem-se o modelo hegemônico do agronegócio, já absorvido pelas cadeias globais de valor e coordenados pelos critérios do sistema financeiro, por meio do qual acessa a tecnologia, a hegemonia cultural e política local, regional e nacional. Por ele são instrumentalizados racionalmente os demais atores do sistema produtivo

Ao centro, tem-se o modelo hegemônico da agricultura familiar em que a coordenação é feita por meio de agentes públicos, com mediação do sistema financeiro para acesso a todos os inputs do sistema produtivo: terra, tecnologia, equipamentos, comunicação etc. Interessante que essa coordenação estatal é a base desse modelo mesmo nos países capitalistas mais desenvolvidos. Sem essa coordenação, a probabilidade de destruição dos sistemas produtivos é extremamente alta.

Finalmente, à direita, propomos uma construção nova, com mediação comercial-financeira e autocoordenação dos produtores rurais. Nossa fonte de inspiração é o modelo PPPC1010 Machado S. O capital comunitário e a PPC: a participação pública, privada e comunitária na construção da economia local. [dissertação]. Rio Branco: Universidade Federal; 2010. - Parceira Público-Privada Comunitária - testado em vários sistemas produtivos no Acre, destacando-se o empreendimento agroindustrial de pescado e rações. Nesse caminho, o Estado apoia e fomenta a cooperativa dos agricultores familiares que se torna sócia de um empreendedor privado com experiência agroindustrial/comercial, integrando a produção e a apropriação dos lucros, aportando tecnologia de produção e de comercialização. A permanência do apoio até a primeira sucessão geracional da agricultura familiar é a chave do sucesso desse modelo, permitindo a elevação do conhecimento técnico (filhos de agricultores) sem perda do conhecimento tácito (dos agricultores e assentados).

Figura 4
Modelos de tipologia da ruralidade brasileira

Esse modelo associa e evolui as políticas de promoção aos sistemas e arranjos produtivos locais, corrige aos poucos a injustiça cognitiva e eleva a produtividade da agricultura brasileira. É também um caminho novo de promoção da agricultura orgânica e sustentável, com desenvolvimento de inovações tecnológicas nos sistemas integrados da ruralidade no século XXI. Mais detalhes desse ciclo de novas políticas públicas para a agricultura familiar estão tratados no livro da RedeSist sobre 20 anos de experiências com arranjos produtivos locais, em que Falcón, Lastres, Cassiolato e Andreatta1111 Falcón ML, Lastres HMM, Cassiolato JE, et al. Por uma política industrial e de inovação baseada em APLs da agricultura familiar. In: Matos MP, Cassiolato JE, Lastres HMM, et al., organizadores. Arranjos Produtivos locais: referencial, experiências e políticas em 20 anos da RedeSist. Rio de Janeiro: E-Papers, 2017. p. 161-192. formulam alternativas para uma política industrial e de inovação baseada em APLs da agroindústria familiar.

Aspectos econômicos sobre o tamanho da propriedade rural e a reforma agrária

Diversos estudos econômicos sobre economias de escala na agricultura demonstram que a grande propriedade possui custos crescentes de escala1212 Binswanger HP. A Microeconomic Approach to Induced Innovation in Economic Journal. 1974; 84(336):940-58.

13 Binswanger HP, Rosenzweig MR. Behavioral and Material Determinants of Production Relations in Agriculture in Journal of Development Studies. 1986; 22(3):503-39.

14 Binswanger HP, Mcintire J. Behavioral and Material Determinants of Production Relations in Land Abundant Tropical Agriculture in Economic Development and Cultural Change. 1987; 36(1):73-99.

15 Binswanger HP, Elgin M. What are the prospects for land reform. In: Maunder A, Valdés A. Agriculture and Governments in an Interdependent World. Proceedings of the Twentieth International Conference of Agricultural Economists, August 24-31. Dartmouth: Aldershot; 1988.

16 Binswanger HP, Deininger K, Feder, G. Power, Distortions, Revolt and Reform in Agricultural Land Relations. In: Behrman, J, Srinivasan, TN. Handbook of Development Economics. Volume III. Amsterdam: Elsevier; 1995.

17 Binswanger HP, Deininger K. Explaining Agricultural and Agrarian Policies in Developing Countries in Journal of Economic Literature. 1997; 35:1958-2005.

18 Boussard JM. Économie de l'Agriculture. Paris: Economica; 1987.
-1919 Britton DK, Hill B. Size and Efficiency in Farming. London: Saxon House; 1975.. Custos de gerenciamento, logística e mão de obra, a imprevisibilidade meteorológica, a volatilidade dos preços internacionais, além do descolamento entre o tempo de trabalho e o tempo de produção são alguns fatores que nos permitem afirmar que o setor agrícola não possui características de uma atividade capitalista no senso comum.

Ademais, todas as nações cujo padrão de desenvolvimento é idealizado pela grande maioria da sociedade brasileira passaram por um processo, quase sempre radical, de democratização do acesso à terra. Leite e Ávila2020 Leite SP, Ávila RV. Reforma agrária e desenvolvimento na América Latina: rompendo com o reducionismo das abordagens economicistas in RER. 2007; 45(3):777-805.(800), a partir de uma revisão de autores com perspectivas teóricas distintas, confrontam a “dimensão residual e compensatória na qual o pensamento conservador, na melhor das hipóteses, confinou o tema do acesso à terra”.

Veiga2121 Veiga JE. O que é reforma agrária? 14. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense; 1994. argumenta pela necessidade de realizar uma ruptura sociopolítica para destravar o desenvolvimento econômico. Ele entende que algumas novas lideranças do setor empresarial brasileiro estariam dispostas a reconhecer que sem distribuição da riqueza não haveria como o País avançar, teríamos então a possibilidade de rediscutir as políticas para a agricultura familiar e, consequentemente, o tema da reforma agrária. Essa ideia está presente nas teses de Rostow2222 Rostow WW. Etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não comunista. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978. quando discorre sobre as pré-condições para o arranco e menciona a necessidade uma ruptura com as elites tradicionais.

A reforma agrária também pode ser um meio bastante eficaz de erradicação da pobreza2323 Noronha GS. Reforma agrária como estratégia de erradicação da pobreza. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2013.. Todavia, a problemática da pobreza rural não pode ser reduzida a uma mera questão social, até porque o modo de intervenção feito a partir dessa visão não enfrenta as causas estruturais do problema. É preciso discutir, em última instância, o modelo produtivo.

Outro aspecto econômico relevante é o viés de combate à inflação de uma política de reforma agrária. As causas de um processo inflacionário podem ser diversas: aquecimento da economia; choques de oferta; conflito distributivo entre capital e trabalho; ou resultado das projeções dos agentes.

Sem aprofundar as demais causas inflacionárias, uma parte relevante da inflação recente tem relação com problemas na oferta de alimentos. A demanda por alimentos é quase inelástica, desse modo, a variação nos preços desse mercado explica-se, em parte, por um problema de oferta insuficiente, mas também pela vinculação de determinados produtos aos mercados internacionais de commodities. Logo, um primeiro passo é buscar desvincular os preços dos alimentos dos mercados externo e interno.

Nesse sentido, é importante lembrar que a grande propriedade produz principalmente para o mercado externo, não afeta sobremaneira a curva de oferta interna de alimentos. O consumo interno desses itens também não afeta seu preço, mas, sim, as variações no mercado internacional. A agricultura familiar, como já demonstrado, é responsável pela maior parte do alimento na mesa do brasileiro. Desse modo, para reduzir a inflação, particularmente quando uma de suas causas é um choque de oferta de alimentos, é preciso ampliar o número de agricultores familiares.

O golpe de 2016 e a destruição das políticas agrárias

O golpe de 2016 trouxe entre suas medidas mais duras a Emenda Constitucional nº 95 que impôs o congelamento em valores reais das despesas governamentais. Uma medida de ajuste fiscal permanente e que desconsidera os ciclos econômicos. Os impactos dessa emenda à Constituição são de tal ordem que desmontam todas as políticas agrárias do Brasil2424 Noronha GS. A questão agrária, a Emenda Constitucional nº 95 e possíveis alternativas. In: Rossi P, Dweck E, Oliveira ALM, organizadores. Economia para poucos - Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária; 2018..

O governo Temer é um governo dos setores mais atrasados do campo brasileiro, atrasado e sem nenhum compromisso com a soberania e com o desenvolvimento nacional. A estrondosa vitória dos novos coronéis da República Velha apareceu aos poucos na agenda governista. Em julho de 2016, Michel Temer assumiu diversos compromissos com a Frente Parlamentar da Agropecuária, o nome oficial da bancada ruralista. Entre os acordos, foi acertada a revisão de diversas políticas públicas, como licenciamento ambiental, a demarcação de terras indígenas e a regulação da compra de terras por estrangeiros. No início de 2018, anunciou-se ‘regras’ para o trabalho escravo, fazendo o País deixar de ser referência mundial no combate a esta prática.

O processo de aquisição de terras por estrangeiros é regulado pela Lei nº 5.709/1971 que, reforçado por parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) de 2010, impõe limites ao que os não nacionais podem adquirir. O argumento do ministro da Fazenda para a liberação das restrições se deve a um suposto aumento nos investimentos: “O Brasil precisa de crescimento e de investimento. O agronegócio foi a área que mais cresceu em janeiro. Temos que investir, gerar mais emprego”2525 Oliveira E, Fariello D. Governo quer autorizar compra de terras por estrangeiros para culturas perenes [internet]. O Globo. 2017 fev 17 [acesso em 2017 fev 19]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/governo-quer-autorizar-compra-de-terras-por-estrangeiros-para-culturas-perenes-20940450.
https://oglobo.globo.com/economia/govern...
. Se é uma área que já vem crescendo, segundo as palavras do próprio ministro, não parece ser uma área que precise de investimentos estrangeiros.

A bancada ruralista também arrancou a Medida Provisória (MP) nº 759/2016, convertida na Lei nº 13.465/2017, que afeta não apenas o campo, mas também o processo de regularização fundiária urbana. Essa medida é um reflexo da inflexão que o governo Temer promove na forma de atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mudando sua prioridade para a titulação (uma política importante, mas que não é reforma agrária) das áreas reformadas em detrimento da obtenção de novas áreas. Diversas entidades lançaram uma Carta ao Brasil2626 Carta ao Brasil. Medida Provisória nº 759/2016: a desconstrução da regularização fundiária no brasil. 2017 [acesso em 2017 out 22]. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1dPHipNy_aJxGkjwk2PiRGXu_8mklCO5BGTw9J1W8Les/edit.
https://docs.google.com/document/d/1dPHi...
apontando os riscos e retrocessos do novo marco legal. Destes, destacamos: a privatização em massa, e na surdina, do patrimônio da União; a anistia a desmatadores e grileiros na Amazônia; a ameaça à Política Nacional de Reforma Agrária; e a financeirização da terra urbana e rural.

Em última instância, a medida regulariza o assalto às terras públicas, o grilo e reconcentração ilegal de áreas reformadas, neste último caso sem sequer ter dado às famílias assentadas a estrutura, crédito e assistência técnica mínimos para que pudessem alcançar sua independência.

Em busca de alternativas

A construção de uma alternativa passa necessariamente pela revisão da Emenda Constitucional nº 95 e de alguns aspectos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para permitir a retomada da capacidade intervenção do Estado na economia sem ameaças de impeachment, uma vez que as pedaladas que justificaram o afastamento de Dilma foram por violações a dispositivos da LRF. Entretanto, há regras específicas para o financiamento de uma efetiva política agrária no Brasil. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) assegura o financiamento da reforma agrária por meio da criação do Fundo Nacional da Reforma Agrária que garantia, entre outros recursos, a destinação específica de 3% da receita tributária da União. Esse dispositivo acabou alterado pelo Decreto-Lei nº 2.431/1988 que criou o Fundo Nacional da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Funmirad), destinado a fornecer os meios necessários para o financiamento da reforma agrária e dos órgãos incumbidos da sua execução. Entre as fontes de financiamento do Funmirad estavam o Fundo de Investimento Social (Finsocial) administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cujos recursos não chegam ao Incra.

Ademais, o Decreto-Lei nº 1.146, de 1970, garante ao Incra receitas vinculadas que, de acordo com exposições públicas da presidência da autarquia antes do impeachment, apresentada como a contribuição social da agroindústria, superavam o valor de R$ 1,2 bilhão, recursos estes que nos últimos anos não foi destinado para as atividades fins do Incra. Uma atualização dos valores da Taxa de Serviços Cadastrais, de que trata o art. 5º do Decreto-Lei nº 57, de 18 de novembro de 1966, com as alterações do art. 2º da Lei nº 6.746, de 10 de dezembro de 1979, e do Decreto-Lei nº 1.989, de 28 de dezembro de 1982, pode garantir um incremento de R$ 500 milhões ao orçamento do Incra.

Outra forma de incrementar o orçamento da reforma agrária seria uma eventual parceria do Incra com a Receita Federal na fiscalização do Imposto Territorial Rural que poderia elevar a arrecadação deste tributo, de acordo com o Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários, de cerca de R$ 850 milhões para cerca de R$ 8,3 bilhões. Se 10% destes recursos fossem destinados ao Incra, já haveria um aumento orçamentário de mais de R$ 800 milhões2727 Sindicatos dos Peritos Federais Agrários. Apresentação do SindPFA à direção do Incra em 26/06/2015. [acesso em 2017 out 21]. Disponível em: https://pt.slideshare.net/SindPFA/apresentao-sindpfa-direo-do-incra-em-2662015.
https://pt.slideshare.net/SindPFA/aprese...
.

A transformação do Funmirad, um fundo contábil, em um Fundo Nacional de Desenvolvimento Agrário (FNDA) como um fundo especial contábil de natureza financeira, vinculado ao Incra, pode garantir ainda uma relativa autonomia da autarquia em relação ao orçamento da União livrando-a dos constrangimentos impostos pela Emenda Constitucional nº 95 e dos sucessivos ajustes fiscais que todos os últimos governos fizeram. Esse fundo poderia ser turbinado pelo uso das áreas preservadas em assentamentos no mercado de cotas de reserva ambiental e crédito de carbono.

Um paradigma para o futuro

É preciso buscar outros paradigmas sociais que não os dos EUA ou da Europa. Kerala, província indiana com população semelhante à do Brasil e com forte influência do Partido Comunista Indiano na construção de suas políticas públicas, apresenta os melhores indicadores sociais da Índia, mesmo sem uma economia robusta. Alguns números apresentados: 95% de taxa de alfabetização (61% no resto da Índia); expectativa de vida de 75/78 anos (63 na Índia); um índice de 12 a 14 de mortalidade infantil a cada mil nascidos vivos (58 no restante do País)2828 Gandhi A, Kumar C, Saha P, et al. India Human Development Report 2011. Nova Delhi: Oxford University Press; 2011..

Ainda na Índia, temos o modelo de agricultura sustentável gerida pela comunidade em Andhra Pradesh em que 300 mil fazendeiros fizeram uma opção alternativa à revolução verde. Ali foi desenvolvida uma plataforma que combinava métodos cientificamente comprovados, conhecimentos autóctones e sabedoria tradicional.

Os objetivos iniciais da agricultura sustentável gerida pela comunidade eram proporcionar alimentos saudáveis, colheitas saudáveis, solo saudável e vida saudável. As práticas de manejo sem pesticidas e conservação do solo foram introduzidas por meio de Escolas de Campo para Agricultores (FFS), onde os próprios fazendeiros podiam tomar suas próprias decisões sobre as abordagens à gestão. As instituições locais foram a chave para o sucesso da transição. Elas abrangiam grupos de autoajuda, federações municipais de fazendeiros (reunindo todos os fazendeiros praticantes da agricultura sustentável, cada domicílio sendo representado por um homem e uma mulher), e a federação distrital de fazendeiros. O primeiro investimento foi na formação da instituição. Então, quando a plataforma ficou pronta, foi provido apoio para a criação de capacidade produtiva. Não havia subsídios aos insumos. Na CMSA, todos os insumos são internalizados, de modo que o custo do cultivo é reduzido drasticamente. O grosso da produção é destinado a assegurar primeiro a alimentação local. O excedente da produção é vendido a mercados próximos e a nichos de mercado com preço elevado, como produtos isentos de pesticidas. Todos os elementos essenciais, como administração de programas e ampliações, são liderados pelas comunidades2929 Hilmi, A. Transição na cultura agrícola - Uma lógica distinta. Oslo: The More and Better Network, 2012. [acesso em 2014 jul 5]. Disponível em: http://ag-transition.org/pdf/Transicao-na-cultura-agricola_pt.pdf.
http://ag-transition.org/pdf/Transicao-n...
(39).

Outro exemplo importante de transição que merece ser mencionado é o caso de Cuba. Quando do colapso soviético, o País tinha 57% de sua demanda de alimentos atendida pelo exterior com 30% de suas terras agriculturáveis dedicadas exclusivamente à cana-de-açúcar. Cuba não possuía soberania alimentar e era completamente dependente do comércio exterior. O País montou um sistema baseado em cooperativas de créditos e serviços e promoveu uma mudança radical na forma de abordar a agricultura com um papel fundamental da agroecologia nesta transição, o resultado foi

o maior crescimento percentual per capita na produção de alimentos em toda a América Latina e Caribe, com um crescimento anual de 4,2% de 1996 a 20052929 Hilmi, A. Transição na cultura agrícola - Uma lógica distinta. Oslo: The More and Better Network, 2012. [acesso em 2014 jul 5]. Disponível em: http://ag-transition.org/pdf/Transicao-na-cultura-agricola_pt.pdf.
http://ag-transition.org/pdf/Transicao-n...
(38).

Essas mudanças já têm uma inciativa lançada em 2012 pelo governo brasileiro, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), com a edição do Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012, desenvolvida a partir do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). Embora busque construir estratégias para uma transição agroecológica com uma metodologia participativa, é mais uma política pública comprometida com os constrangimentos impostos pelo desmonte do Estado a partir da Emenda Constitucional nº 95.

Por fim, a inovação tecnológica, chegando agora com a indústria 4.0 e intensificando a produção da agricultura, além da mudança de valores e consumo nos centros urbanos, criará desafios diferentes para o agronegócio e para a agricultura familiar. Acesso ao conhecimento técnico é o maior desafio para os pequenos produtores; e a produção sustentável é o maior desafio para o agro. Nada indica que o governo do golpe tem políticas para enfrentar esses desafios. A agricultura brasileira está sob alto risco no médio prazo.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2018
  • Aceito
    31 Out 2018
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