RESUMO
Um dos grandes desafios na saúde mental encontra-se na dificuldade de acesso dos usuários à vida produtiva. O presente estudo descritivo busca relatar as atividades desenvolvidas por residentes de saúde mental em um grupo educativo no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (Caps AD III) da cidade de João Pessoa, PB. Recorreu-se a uma metodologia qualitativa ancorada no paradigma da Educação Popular para promover o diálogo e a reflexão crítica acerca da categoria trabalho e de questões como políticas públicas, direitos sociais e educação. Conclui-se que o grupo contribuiu para ampliar as condições de acesso dos usuários ao trabalho, resultando na implantação do projeto Brasil Alfabetizado e de um projeto de geração de renda.
PALAVRAS-CHAVE
Saúde mental; Trabalho; Políticas públicas
ABSTRACT
One of the great challenges in mental health is in the difficulty of access of users' to productive life. The present descriptive study seeks to report the activities developed by mental health residents in an educational group in the Psychosocial Care Center Alcohol and Drugs III (Caps AD III) in the city of João Pessoa, PB. It was used a qualitative methodology anchored in the Popular Education paradigm to promote dialogue and critical reflection about the work category and issues such as public policies, social rights and education. It is concluded that the group contributed to broaden the access conditions of users to work, resulting in the implementation of the Literate Brazil project and a project to generate income.
KEYWORDS
Mental health; Job; Public policy
Introdução
O tratamento de pessoas que usam drogas foi baseado, ao longo da história, na lógica da criminalização e da punição, e a forma de intervenção, na maioria das vezes, esteve pautada no isolamento e na segregação, que se davam através de internações em instituições manicomiais que tinham como fim único a abstinência. A atenção à saúde dos usuários de drogas não era prioridade, e, devido à falta de investimento do Estado em políticas públicas para esse segmento, o cuidado ficava a cargo de instituições particulares que funcionavam sem fiscalização, reproduzindo, muitas vezes, situações de violação aos direitos humanos dos usuários11 Alves VS. Modelo de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial - CAPS ad [tese]. [Bahia]: Universidade Federal da Bahia; 2009. 365 p..
Somente quando a política sobre drogas no Brasil reconhece a questão das drogas como um problema de saúde pública e a redução de danos como uma estratégia potente no cuidado das pessoas que fazem esse uso, tem-se a possibilidade de uma atenção garantida de forma integral. Os movimentos de contra-hegemonia, como as reformas sanitária e psiquiátrica, vão ganhando espaço a partir da luta dos trabalhadores e militantes da área da saúde mental. Esses movimentos lutavam não só pela superação desse modelo de internação asilar, mas, também, pela expansão da rede substitutiva, que funcionasse no território a partir da atenção em rede, articulando serviços de saúde, sociais e da comunidade22 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. Essas mudanças possibilitaram o desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) em substituição aos hospitais psiquiátricos.
A Raps foi instituída pela Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, com a finalidade de criar, ampliar e articular pontos de atenção à saúde de pessoas em sofrimento mental e que fazem uso de drogas, prioritariamente, para grupos considerados mais vulneráveis, como crianças, adolescentes, pessoas em situação de rua e populações indígenas33 Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências, Diário Oficial da União. 29 Jun 2011..
Entre esses dispositivos, estão os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que oferecem atendimento às pessoas em sofrimento mental, inclusive decorrente do uso de drogas, e atendem de acordo com a área de abrangência, realizando acompanhamento clínico, psiquiátrico e reinserção social pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços comunitários e familiares44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília, DF: MS; 2004..
Contudo, apesar das mudanças de paradigma, pensar a inserção dos usuários no trabalho ainda se configura como um desafio para a reforma psiquiátrica, pois no modo de produção capitalista e em um cenário de ofensiva neoliberal, onde há aumento do desemprego, da competitividade, da retirada de direitos sociais e da precarização do trabalho, as pessoas em sofrimento mental e que fazem uso abusivo de drogas, muitas vezes, não conseguem acessar o mercado de trabalho, principalmente o mercado formal, por apresentarem algumas limitações ou por serem vítimas de estigmas e/ou preconceitos. Sendo assim, é preconizado pela Raps o componente da reabilitação psicossocial, que visa à inserção dos usuários no trabalho a partir das iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários - cooperativas sociais, objetivando alcançar melhores níveis de qualidade de vida e condições mais concretas de cidadania, contratualidade e inclusão social33 Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências, Diário Oficial da União. 29 Jun 2011..
Nesse sentido, o presente estudo busca relatar a experiência do grupo educativo Reabilitação Psicossocial, desenvolvido no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (Caps AD III) da cidade de João Pessoa - Paraíba, durante estágio no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental (Resmen), vinculado ao Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com o intuito de compartilhar com os trabalhadores, gestores, usuários, familiares e demais interessados na temática. Assim, considera-se estar contribuindo de forma direta e/ou indireta para futuros planejamentos de ações e medidas relacionadas a projetos de inserção do usuário de drogas no trabalho.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo, do tipo relato de experiência, onde se buscou descrever as atividades desenvolvidas no grupo educativo Reabilitação Psicossocial, realizado no período de estágio de outubro a dezembro de 2016, no cenário de prática Caps AD III do município de João Pessoa (PB).
O Caps AD III atende a população adulta acima de 18 anos, de ambos os sexos, que faz uso abusivo de múltiplas drogas e que apresenta ou não algum tipo de comorbidade de transtorno mental. Por ser um Caps do tipo III, funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, podendo os usuários chegar ao serviço por demanda espontânea, sozinhos ou acompanhados por familiares, ou, ainda, referenciados por outros pontos da rede dos cinco distritos sanitários existentes. As modalidades de atendimento são a atenção dia e o leito de atenção 24 horas, onde o usuário pode permanecer no acolhimento noturno por um período de até 14 dias intercalados para desintoxicação em nível ambulatorial.
O grupo educativo nos Caps tem como objetivo principal promover educação em saúde a partir de diferentes temas. Dessa forma, o grupo educativo denominado Reabilitação Psicossocial objetivou refletir sobre a categoria trabalho, sobre o processo de estigma associado ao usuário de drogas e relacionado à sua inserção no mercado de trabalho, bem como, sobre questões concernentes às políticas públicas, direitos sociais e educação.
Desde o primeiro momento de sua idealização, foi uma preocupação comum dos facilitadores do grupo que o processo educativo a ser realizado se desse numa perspectiva dialógica, a fim de possibilitar a elaboração comum do conhecimento, concebendo todos os sujeitos como construtores de sua própria formação. Procurou-se estabelecer um ambiente onde a educação fosse compartilhada, a partir da troca de saberes e experiências, onde residentes, profissionais e usuários do Caps AD III estivessem reunidos em uma relação interpessoal horizontal no mesmo espaço, de modo a legitimar e valorizar o saber de cada um. Diante disso, as atividades desenvolvidas com o grupo foram pautadas no paradigma educativo da educação popular, pois esta:
[...] mostra-se como um dispositivo de crítica social e das situações vivenciadas por indivíduos, grupos e movimentos, permitindo a visão de fragmentos que estavam invisíveis e ideologias naturalizadas como realidades favorecendo a liberação de pensamentos e de atos ativos de mudança social55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de Educação Popular e Saúde. Brasília, DF: MS; 2007.(15).
Com base nesse conceito, pretende-se a partir das práticas educativas em saúde, ampliar as perspectivas dos programas e serviços de saúde para além do foco da doença, visando também à capacidade de reflexão dos sujeitos sobre a sociedade66 Carvalho SR. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de promoção à saúde. Cad. de S. Púb. Rio de Janeiro. 2004 jul-ago; 20(4):1088-1095.. Freire apresenta a educação como instrumento de libertação dos seres humanos e da sociedade e com grande potencial para mudança77 Freire P. Educação e Mudança. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra; 1979.,88 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987..
Participaram do grupo duas residentes (serviço social e psicologia), dois profissionais do serviço (psicologia e arteterapia) e os usuários. O perfil dos usuários era heterogêneo, sendo composto, em sua maioria, por homens com idade entre 18 e 65 anos; a escolaridade variou de analfabeto à ensino superior completo; e as condições socioeconômicas eram diversas. O requisito adotado para a inclusão dos usuários no grupo foi apenas o desejo de participar, sendo o espaço aberto e livre à sua permanência, de tal forma que, ao longo dos encontros, o número de participantes oscilava, com uma média de 10 a 12 pessoas por encontro.
Por meio da vivência no cotidiano do serviço, foi possível perceber que muitos dos usuários assistidos estão em situação de vulnerabilidade social, incluindo o desemprego. Em conversa com eles, surgiu a proposta de dar início a um grupo, para que fossem discutidas questões referentes à categoria trabalho. A proposta foi levada para a equipe do serviço em reunião técnica, onde foi relatada a proposta de implantação do grupo. Após haver concordância, foram pactuados os dias e horários para a realização do grupo, que ocorria uma vez por semana, às quartas-feiras, com duração de 90 minutos, totalizando 7 encontros.
Durante o desenvolvimento das atividades do grupo, a equipe de facilitadores reuniu-se uma vez por semana, de outubro a dezembro de 2016, para planejar e avaliar os resultados. Nesses encontros, foram realizados estudos através de leituras e discussões de textos referentes a saúde mental, direitos trabalhistas e economia solidária, escolha de material de audiovisual sobre economia solidária, além de contatos com agentes da rede intersetorial que pudessem contribuir e realizar parcerias, visando à ampliação do acesso dos usuários ao trabalho. Importante destacar a participação dos usuários no planejamento das atividades, pois estas eram construídas a partir das demandas de todos(as) que, voluntariamente, estavam presentes.
Resultados e discussão
Durante os encontros, foram discutidos os seguintes temas:
Conceito de trabalho: o que é trabalho, qual o lugar do trabalho na minha vida?
Relação entre saúde, trabalho e uso de drogas;
Direitos trabalhistas;
Trabalho no contexto do capital;
Economia solidária e geração de renda;
Alfabetização e formação para o trabalho.
O primeiro encontro teve como objetivo a construção de um conceito coletivo do que o grupo entendia por 'trabalho'. Debateu-se qual a importância e de que forma o trabalho estava presente na vida dos sujeitos. Na visão dos participantes, o trabalho está associado a 'dignidade e confiança'; 'possibilidade de prover o sustento e o consumo'; e a 'algo que faz parte da vida'. Para eles, o fato de estarem trabalhando faz com que se sintam produtivos, além de ser um fator positivo no aumento da autonomia e da autoestima e na melhoria das relações familiares.
Marx99 Marx K. O capital: crítica da economia política. Rio de janeiro: Civilização Brasileira; 2003. nos ajuda a entender essa função do trabalho, dizendo que este é considerado como fundante e constitutivo do ser social, por ser não apenas uma atividade de transformação da natureza praticada pelos homens, mas por ser responsável também pela construção dos homens em sociedade.
Sabe-se que à medida que a sociedade se transforma, as formas de produção e reprodução da vida social também sofrem modificações. Novos processos de trabalho surgem principalmente na sociedade do capital, que tem no trabalho a única fonte de lucro, pois vincula-se “a questão do valor como constitutivo da riqueza social”1010 Netto JP, Braz M. Economia Política: uma introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Cortez; 2007.(48).
Porém, mesmo no modo de produção capitalista, onde o trabalho aparece com características distintas, ele continua sendo imprescindível e necessário para a existência do homem enquanto ser social, além de permitir o acesso à vida produtiva1111 Antunes R. Excurso sobre a centralidade do trabalho. In: Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 4. ed. São Paulo: Boitempo; 2007..
Com relação ao aumento da autonomia e da autoestima concorda-se com Bisneto1212 Bisneto JA. Serviço social e saúde mental: uma análise institucional. 3. ed. São Paulo: Cortez; 2011. ao afirmar que são as relações sociais de trabalho e moradia que podem proporcionar aos sujeitos autonomia social de fato, pois elas possibilitam melhoria da capacidade de contratualidade, poder de negociação e o estabelecimento de vínculos satisfatórios nas relações sociais.
Ao final do encontro, produziram-se cartazes com frases e desenhos a partir do que foi discutido, sendo estes, ao término, fixados nas paredes do Caps AD. Nos cartazes, havia desenhos relacionados a profissões, como jardineiro, e frases que diziam: 'trabalho é dignidade e confiança em primeiro lugar'; 'possibilita o sustento e o nosso consumo'; 'o trabalho faz parte da vida e sem o trabalho o ser humano não vive'; 'quem não trabalha não tem ocupação'; 'trabalho é respeito e moral'.
No segundo encontro, refletiu-se sobre a relação entre o uso de drogas e o trabalho. Oportunizou-se a escuta, a fim de que os participantes pudessem compartilhar suas experiências. Foi possível notar a dificuldade que eles vivenciam para conseguir conciliar as relações de trabalho com o tratamento no Caps, o preconceito ainda existente com as pessoas que fazem uso de drogas e a 'não credibilidade' mesmo com aqueles que não estão em uso.
Sobre o preconceito relacionado ao uso de drogas, Petuco aponta que ainda há em nossa sociedade a construção de imagens negativas dos usuários a partir de uma
[...] visão catastrófica, descolada da realidade epidemiológica, que articula práticas de estigmatização e criminalização de populações já vulneráveis a uma retórica sanitária, em um cenário mundial em que políticas assistenciais cedem espaço à repressão [...]1313 Petuco DRS. Entre imagens e palavras: o discurso de uma campanha de prevenção ao crack. [dissertação]. [João Pessoa]: Universidade Federal da Paraíba; 2011. 131 p.(24).
Assim, percebe-se que os usuários de drogas sofrem constantemente com os efeitos negativos do processo de estigmatização. Consequências como perda da autoestima, restrição das interações sociais e perspectivas limitadas de recuperação influenciam negativamente o tratamento. Além disso, as informações deturpadas transmitidas pela mídia somadas à falta de conhecimento, fazem com que os usuários de drogas sejam temidos e vistos como incapazes de se recuperar. Sofrem com desconfiança, estereótipos negativos, preconceitos e discriminação1414 Ronzani TM, Noto AR, Silveira PS. Reduzindo o estigma entre usuários de drogas: guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2014. 24 p.. Tais aspectos, de certa forma, influenciam, também, as relações de trabalho.
A partir das falas dos participantes do grupo, evidencia-se a relação da situação de vulnerabilidade social com o uso abusivo de drogas. Para Silveira1515 Silveira DX. Política atual de álcool e outras drogas e perspectivas. In Conselho Federal de Psicologia, organizador. Drogas, Direitos Humanos e Laço Social. Brasília, DF: CFP; 2013. p. 73-82., o uso abusivo das drogas, na maioria das vezes, dá-se como uma consequência da ausência de políticas públicas, como falta de acesso à saúde, moradia, educação, cidadania. Para o autor, o que acontece atualmente é a inversão de um discurso, atribuindo a situação de miséria social à presença da droga, como se a droga fosse a causa, o que não é verdade, ao contrário, a droga é consequência. São pessoas privadas de seus direitos mais básicos e que, portanto, estão muito vulneráveis à entrada da droga, ou seja, pessoas que não têm outras possibilidades de prazer na vida.
De forma a dar continuidade às discussões dos grupos anteriores, o terceiro encontro versou sobre direitos trabalhistas e o trabalho na atual conjuntura política e econômica, o que viabilizou a captação de questões acerca da 'dificuldade de se inserir no mercado de trabalho formal'; da 'falta de incentivo do governo com o seu povo'; e da 'necessidade de entrar no mercado de trabalho de outra forma'. Segundo os participantes, questões como idade avançada, baixo nível de escolaridade, e a falta de formação profissional, além da questão do uso de drogas, deixam-lhes impossibilitados e/ou em desvantagem de concorrer a vagas de trabalho no mercado formal.
Para Rodrigues e Pinho1616 Rodrigues KL, Pinho LP. Limites e desafios para inclusão social pelo trabalho na saúde mental. In: Razzouk D, Aranha MGL, Cordeiro Q, organizadores. Saúde Mental e trabalho. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015. p. 215-226., o não lugar vivido pelos 'ditos loucos' e usuários de drogas no trabalho se configura como mais um elemento da exclusão do processo produtivo de amplos setores e segmentos sociais marginalizados, que não encontram, na economia capitalista, espaço de expressão e de identificação de existência.
Kinoshita1717 Kinoshita RT. Política atual de álcool e outras drogas e perspectivas. In: Conselho Federal de Psicologia, organizador. Drogas, direitos humanos e laço social. Brasília, DF: CFP; 2013. p. 53-60. afirma que as pessoas que passam por períodos longos de abuso de álcool ou de drogas dificilmente sustentam o ritmo de mercado competitivo. No cenário atual, há um desemprego estrutural que paulatinamente diminui a oferta de vagas, e quem tem qualquer desvantagem, terá baixa empregabilidade.
Tais discursos demonstram a dificuldade do acesso ao mercado de trabalho formal, seja por falta de investimento em políticas públicas de apoio e fomento, seja pela não adaptação dessas pessoas ao mundo do trabalho sob o sociometabolismo do capital, voltado à formação e à acumulação1616 Rodrigues KL, Pinho LP. Limites e desafios para inclusão social pelo trabalho na saúde mental. In: Razzouk D, Aranha MGL, Cordeiro Q, organizadores. Saúde Mental e trabalho. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015. p. 215-226..
Bisneto1212 Bisneto JA. Serviço social e saúde mental: uma análise institucional. 3. ed. São Paulo: Cortez; 2011. resgata a necessidade de pensar a inclusão social do usuário não nesse tipo de mercado de trabalho alienado, reabilitando-o apenas para que se adapte a uma sociedade que exclui, ao invés de incluir, mas, sim, de pensar de maneira conjunta (usuários e profissionais) condições e estratégias que o possibilitem conquistar, de fato, uma autonomia com relação às estruturas sociais, em que ele consiga produzir sob condições que respeitem seu tempo e suas singularidades.
Conclui-se o referido encontro com a construção de um painel sobre economia solidária a partir da fala e do entendimento do grupo, ou seja, o que essa palavra representava para eles, com base em suas visões de mundo e seus conhecimentos prévios.
Nos dois encontros seguintes, buscou-se conhecer mais sobre economia solidária e a sua relação com a saúde mental. Foi exibido o vídeo intitulado 'Economia solidária', produzido pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária, com o objetivo de aprofundar o debate e esclarecer as dúvidas daqueles que ainda não conheciam essa proposta de economia. Nesse momento, houve a participação de um integrante da Incubes (Incubadora de Empreendimentos Solidários), da UFPB, que abordou o trabalho desenvolvido pela incubadora no que se refere ao apoio e à assessoria de grupos e de empreendimentos econômicos solidários. As discussões levantaram questões como a dificuldade de se inserir no mercado de trabalho formal e a visualização da economia solidária como 'um meio alternativo de tirar o sustento'.
Rodrigues e Pinho1616 Rodrigues KL, Pinho LP. Limites e desafios para inclusão social pelo trabalho na saúde mental. In: Razzouk D, Aranha MGL, Cordeiro Q, organizadores. Saúde Mental e trabalho. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015. p. 215-226. referem-se à economia solidária como uma 'nova economia'. Singer1818 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental e economia solidária: inclusão social pelo trabalho. Brasília, DF: MS; 2005. aponta a economia solidária como a resposta organizada à exclusão pelo mercado, por parte dos que não querem uma sociedade movida pela competição. Para este autor, essa é, acima de tudo, uma opção ética, política e ideológica, que se torna prática quando aqueles que são excluídos se unem e constroem empreendimentos produtivos, redes de trocas, instituições financeiras, escolas, entidades representativas, apontando, assim, para uma sociedade marcada pela solidariedade, da qual ninguém é excluído contra a vontade.
Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Estadual do Ceará, onde foi realizada uma revisão sistemática da literatura em artigos nacionais da base de dados Bireme (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde), durante o período de 2005 a 2015, sobre a temática da inclusão social no empreendedorismo solidário, observou a existência de práticas laborais de inclusão social nos Caps com fortes características autogestionárias e com possibilidade de gerar renda a partir da confecção de trabalhos artesanais1919 Pacheco MEAG, Bezerra SS, Cavalcante S, et al. Saúde mental e inclusão social: um estudo de revisão sistemática da literatura. Cad. Bra. De S. M. Florianópolis; 2016. p. 43-54.. Contudo, percebe-se, a partir das falas dos participantes, um não reconhecimento de atividades desenvolvidas no Caps a partir dessa proposta. Para eles, falta incentivo e apoio institucional com o intuito de desenvolver projetos que possibilitem gerar alguma fonte de renda para ajudar no sustento.
No que se refere às políticas existentes, o diálogo entre a saúde mental e a economia solidária começa a surgir no ano de 2004, quando o Ministério da Saúde e o Ministério do Trabalho e Emprego, a partir da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), colocam em pauta o fomento de políticas públicas que possam garantir o protagonismo dos projetos de inclusão social pelo trabalho, publicando, posteriormente, editais de apoio e financiamento de oficinas e projetos de geração de renda e empreendimentos solidários, incluindo o público da saúde mental1616 Rodrigues KL, Pinho LP. Limites e desafios para inclusão social pelo trabalho na saúde mental. In: Razzouk D, Aranha MGL, Cordeiro Q, organizadores. Saúde Mental e trabalho. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015. p. 215-226..
O Ministério da Saúde, através da Portaria nº 132, de 26 de janeiro de 2012, institui incentivo financeiro de custeio para desenvolvimento do componente reabilitação psicossocial da Raps nos valores de R$ 15.000, R$ 30.000 e R$ 50.000, porém esses recursos são direcionados às prefeituras e não diretamente às oficinas e aos projetos de trabalho, “o que às vezes, pelas dificuldades burocráticas ou divergências em sua aplicação não chega de acordo com o plano ou chega depois de muito tempo”1616 Rodrigues KL, Pinho LP. Limites e desafios para inclusão social pelo trabalho na saúde mental. In: Razzouk D, Aranha MGL, Cordeiro Q, organizadores. Saúde Mental e trabalho. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2015. p. 215-226.(221).
Como resultado desses dois encontros, foi proposto dar início a um projeto de uma horta de plantas medicinais no espaço do Caps AD III, em paralelo ao grupo educativo. Cabe ressaltar que durante o desenvolvimento dos encontros do grupo educativo, alguns usuários, residentes e profissionais participantes estavam frequentando um curso de geração de renda e permacultura, facilitado pelo Centro de Práticas Integrativas e Comunitárias Equilíbrio do Ser, dispositivo do município de João Pessoa que oferece terapias holísticas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que contribuiu para a proposição do referido projeto.
As demandas seguintes trazidas pelos usuários foram o debate sobre a importância da escolarização e da profissionalização para o acesso ao mercado de trabalho, de tal forma que esse foi o tema do sexto encontro.
Para contribuir para esse debate, contou-se com a presença do coordenador do projeto Escola Zé Pião, que oferece, há 25 anos, programas de alfabetização e educação continuada para operários da construção civil, uma parceria da UFPB com o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário (Sintricom).
A partir da temática discutida, foi possível refletir sobre qual o lugar e o papel da educação na vida de cada um, bem como entender que a necessidade de saber ler e escrever vai além do acesso ao mercado de trabalho, pois possibilita a autonomia, a valorização e a autoestima dos sujeitos, além de ampliar o conhecimento acerca dos direitos e deveres e a 'visão de mundo'.
Para Duarte e Barboza2020 Duarte ACS, Barboza RJ. Paulo Freire: o papel da educação como forma de emancipação do indivíduo. Revista Científica Eletrônica de Pedagogia [internet]. 2007 jan. [acesso 2018 mar 5]. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/137420909/Paulo-Freire-A-Educacao-Forma-de-Emancipacao-Do-Individuo.
https://pt.scribd.com/document/137420909... , em um contexto de neoliberalismo, esse tipo de sociedade exclui, por conta do capital, a maioria da população no que diz respeito ao processo de alfabetização, levando a marginalização. Assim, trilham-se os interesses da sociedade dominante, ou seja, as pessoas com um poder aquisitivo elevado, ou com uma grande influência político-econômica, infiltram seus pensamentos caracterizando-os como verdades, como dogmas que devem ser seguidos.
Nesse sentido, a educação deve possibilitar a alfabetização, as capacidades de aprendizagem, o raciocínio crítico, a criatividade e a ação, no que diz respeito à transformação social. Também é a única forma de as classes dominadas ascenderem socialmente ou assumirem uma postura mais crítica frente à realidade2121 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Diretoria de Políticas de Educação de Jovens e Adultos. Princípios, Diretrizes, Estratégias e Ações de apoio ao Programa Brasil Alfabetizado: elementos para a formação de coordenadores de turmas e de alfabetizadores. Brasília, DF: MEC; 2011..
Como resultado do encontro, obteve-se o interesse de alguns membros do grupo em iniciar e/ou retomar os estudos, principalmente devido ao seu baixo nível de escolarização. Dessa forma, foi proposto como encaminhamento a procura, na rede de educação do munícipio, de programas que trabalhassem com a alfabetização de jovens e adultos.
Após articulação com a Secretaria Municipal de Educação, foi viabilizada a abertura de uma turma do projeto Brasil Alfabetizado com os usuários do Caps AD III, a ser realizado em algum dispositivo localizado no território próximo ao serviço. O projeto Brasil Alfabetizado se caracteriza por ser um programa do MEC voltado para alfabetização e elevação da escolaridade de jovens, adultos e idosos em situação de vulnerabilidade social2020 Duarte ACS, Barboza RJ. Paulo Freire: o papel da educação como forma de emancipação do indivíduo. Revista Científica Eletrônica de Pedagogia [internet]. 2007 jan. [acesso 2018 mar 5]. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/137420909/Paulo-Freire-A-Educacao-Forma-de-Emancipacao-Do-Individuo.
https://pt.scribd.com/document/137420909... .
A dinâmica de aprendizagem do projeto que prioriza condições que facilitam a permanência dos alunos, despertou a atenção dos usuários por estar mais próxima das suas rotinas de vida.
O encerramento da participação das residentes no grupo educativo se deu no sétimo encontro, onde foi realizada uma dinâmica de sensibilização sobre o conhecimento construído no coletivo, o 'dar e receber'. A proposta da dinâmica era de despertar no grupo a ideia de que é possível potencializar o cuidado de si e do outro, melhorar as condições de vulnerabilidade sociais e econômicas e construir projetos de vida a partir da integração com o coletivo, da solidariedade, do respeito com a natureza e da valorização dos nossos saberes e habilidades.
Foi realizada uma avaliação final do grupo educativo pelos participantes, em que concluíram que ele contribuiu de forma significativa para a ampliação das condições de acesso ao trabalho. Com relação à escolha da metodologia de trabalho no grupo, concordou-se que ela colaborou, através de sua dinâmica, para a captação das demandas oriundas dos participantes do grupo, além de ter possibilitado a elaboração de uma práxis que permitiu a ampla compreensão do problema e a adoção de uma postura crítica ante a realidade. Foi reforçado, assim, o compromisso político com os princípios do SUS, da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial.
No que diz respeito à avaliação do percurso das atividades desempenhadas, alguns relatos reforçaram a importância de todo o processo, uma vez que, possibilitou a apreensão de temas relevantes ao processo de reabilitação psicossocial dos usuários do Caps AD III no tocante à inserção no trabalho.
Conclusões
Foi possível perceber, através da experiência relatada, que os participantes identificam fatores positivos relacionados ao trabalho, tais quais: a melhoria da autonomia e da autoestima; trabalho como meio produtor de vínculos sociais; fortalecimento dos vínculos familiares; e meio de prover condições reais de sustento e consumo.
Diante da participação dos usuários, perceberam-se, também, questões que eles consideram que dificultam o acesso ao trabalho, tais como: o baixo nível de escolaridade; a falta de profissionalização; os agravos decorrentes do uso abusivo de drogas; o preconceito e o estigma associados historicamente às drogas; ausência e fragilidades de políticas públicas voltadas para esse propósito. Fatores que predispõem possíveis barreiras sociais, culturais, políticas e econômicas, para se efetivar, de fato, a inserção.
Acredita-se que as dificuldades supracitadas podem estar relacionadas com a atual conjuntura política e econômica de retrocesso sob a égide da ideologia neoliberal, onde a tendência geral tem sido a de restrição e desmonte de direitos, transformando as políticas sociais em compensação nestes períodos de crise, prevalecendo o trinômio: privatização, focalização e descentralização. Além disso, tem-se assistido na saúde mental o avanço de ideias consideradas manicomiais, tanto no âmbito da política quanto da assistência, podendo refletir direta e/ou indiretamente nas dificuldades relatadas.
Com relação ao apoio e ao financiamento de políticas públicas para inclusão no trabalho, conclui-se que apesar das melhorias sutis, pois há na legislação em saúde mental o incentivo para a realização de oficinas de geração de renda e trabalho nos Caps, com a inclusão dos usuários nesses editais de financiamento via Ministério da Saúde e Ministério do Trabalho e Emprego, existem ainda, algumas questões limitadoras, como o fato de tais iniciativas não ocorrerem de forma permanente e consistente, garantidas pelo Estado enquanto políticas públicas, com apoio e fomento que possibilitem o direito ao trabalho associado e autogerido, e que, superem o estágio de oficinas terapêuticas no interior dos serviços.
Tais aspectos suscitam a necessidade de que o trabalho deixe der ser visto apenas como uma atividade terapêutica (prescrita, orientada e protegida) ou como simples forma de ocupação do tempo ocioso ou de controle institucional. Faz-se imprescindível que se torne uma ferramenta de promoção de cidadania, autonomia e de emancipação social.
Por fim, conclui-se que as atividades desenvolvidas pelo grupo contribuíram de forma significativa para ampliar as condições de acesso dos usuários ao trabalho, tendo como fruto a implantação do projeto Brasil Alfabetizado e o projeto de geração de renda da horta medicinal.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Alves VS. Modelo de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no contexto do centro de atenção psicossocial - CAPS ad [tese]. [Bahia]: Universidade Federal da Bahia; 2009. 365 p.
- 2Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.
- 3Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências, Diário Oficial da União. 29 Jun 2011.
- 4Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília, DF: MS; 2004.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Dez 2018
Histórico
- Recebido
14 Set 2017 - Aceito
18 Fev 2018