Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência

Regina Lucia Passos Fernando Salgueiro Passos Telles Maria Helena Barros de Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O ensaio teve como objetivo analisar dois parâmetros que sustentam a violência no Brasil: ser mulher e com deficiência. Discute-se a forma de como a deficiência potencializa a invisibilidade social das mulheres. O referencial teórico está nos campos da violência de gênero e da deficiência, nos conceitos de feminicídio, no campo de deficiências e seus modelos e da acessibilidade atitudinal e invisibilidade. A discussão, em revisão de literatura de caráter interdisciplinar, desenvolve-se sob os conceitos de invisibilidade sociojurídica e de discriminação. Os diplomas normativos sobre o tema e sobre a realidade são analisados nas seguintes perspectivas: invisibilidade sociojurídica, intangibilidade na saúde pública, ausência e exclusão. Conclui-se que a violência contra a mulher com deficiência é mais invisibilizada no âmbito sociojurídico, considerando que tanto o gênero quanto a deficiência a potencializam e criam a necessidade de políticas públicas para debelar grave violação aos direitos humanos.

PALAVRAS-CHAVE
Avaliação da deficiência; Violência de gênero; Direitos humanos

Introdução

Diariamente, enfrentamos diferentes situações que envolvem os temas de gênero, de deficiência, de violências; mas, de fato, os seres sociais, nós, seres humanos, muitas vezes não (con)vivemos ou percebemos as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência, o que materializa uma distância do entendimento do que sejam esses conceitos.

Por vezes, as dificuldades são potencializadas, pois envolvem fatores múltiplos em um mesmo caso, a exemplo do fenômeno mundial de violência de gênero incidindo sobre vítima com deficiência.

A violência contra a mulher é um problema grave, atual, complexo, de múltiplas faces e, segundo Sassaki11 Sassaki RK. Violência contra mulheres com deficiência. Centro para Estudos de Políticas sobre Mulheres [internet]. 2011. Relatório. [acesso em 2019 mar 3]. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/violencia_mulheres_deficiencia.pdf
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, de escala mundial. Comporta atos abusivos e trata-se de evento sofrido por determinados seres humanos, em razão do gênero feminino. Incluem mutilação genital, abuso físico, emocional e sexual, incesto, aborto forçado, crimes de honra, violência relacionada com o dote, matrimônio forçado, tráfico humano, prostituição forçada e violência obstétrica, entre outros, sendo que alguns são tratados como tortura pela Organização das Nações Unidas (ONU)22 Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [internet]. Nova York: ONU; 1948 [acesso em 2019 abr 15]. Disponível em: www.ampid.org.br>ampid>Docs_PD.
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Por ocorreram, muitas vezes, em ambiente familiar, não são denunciados, ou a vítima não encontra meios de sair do círculo vicioso da violência de gênero que independe de classe social, credo, raça ou grau de instrução mais elevado33 Acosta DF, Gomes VL, Barlem EL. Perfil das ocorrências policiais de violência contra a mulher. Rio Grande: Brasil. 2013. Acta Paul. Enferm. 2013; 26(6):547-553..

Historicamente, as mulheres vêm sofrendo discriminação e marginalização no Brasil e no mundo. No caso das mulheres com deficiência, o panorama é de maior gravidade. A cultura da naturalização da violência contra a mulher e a invisibilização do problema são partes essenciais da própria violência e, em alguns locais, ocorrem verdadeiras pandemias de mortes de mulheres; e, especificamente, no Brasil de hoje (cerca de 71% dos feminicídios e das tentativas têm parceiro como suspeito)44 Carazzai EH, Canofre F, Barbon J, et al. 71% dos feminicídios e das tentativas têm parceiro como suspeito. Folha Mulher [internet]. 2019 mar 8 [acesso em 2019 abr 15]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/71-dos-feminicidios-e-das-tentativas-tem-parceiro-como-suspeito.shtml.
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. Tais crimes foram denominados de feminicídio, passando a significar a morte de mulher por razões de condição do sexo feminino.

A pedra angular do problema da violência de gênero reside na ideologia genérica patriarcal, tendo o sexo e a violência como preceitos55 Caputi J, Russel DEH. Femicide: sexist terrorism against women. In: Femicidio: la política de matar mujeres. Nova York: Twayne; 1990.. O Estado participa da problemática ao reforçar o domínio patriarcal quando se apoia em grupos hegemônicos. A intersecção entre gênero e deficiência ainda é um tema em construção para as ciências sociais e políticas públicas66 Mello AG, Nuernberg AH. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Estudos Feministas. 2012; 2(3):635-655..

Para conceituar 'deficiência', são integrados os fatores corporais, as barreiras estruturais da sociedade e os fatores específicos da alteridade física como diferença individual, demandando da sociedade a incorporação inclusiva de diferentes estilos de vida. É um conceito em evolução e reconhecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 200977 Brasil. Decreto nº 6.949, de 25 de Agosto de 2009 [internet]. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União. 26 Ago 2009 [acesso em 2018 set 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm.
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Até a década de 1970, a deficiência era definida no mundo todo apenas pelo modelo biológico e era entendida como um problema individual, um estigma, uma desvantagem natural e, até mesmo, uma anormalidade. O sociólogo inglês Paul Hunt influenciou a criação de um marco, a partir do qual foi mudada a compreensão sobre a deficiência, para além do modelo biológico. Foi criada a Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação (Union of the Physically Impaired Against Segregation – Upias), que procurou superar o modelo biológico de explicação da deficiência e se constituiu no marco teórico do Modelo Social de Deficiência.

Assim, a deficiência passou a ser considerada uma experiência de opressão e imposição social. Na perspectiva feminina, foram enfrentados desafios vários, entre os quais, as necessárias mudanças de paradigmas quanto às desigualdades sofridas pela deficiência e pela discriminação de gênero.

Mulheres com deficiência, além de terem menos acesso à proteção contra a violência sexual e outras ofensas, com frequência, são menos capazes de se defender. Os agressores, comumente, são provedores, cuidadores ou pessoas de quem elas dependem para ajuda física ou financeira. O receio de denunciar é grande, inclusive porque há uma tendência de que suas denúncias não venham a ter crédito e, também, por não haver acessibilidade atitudinal suficiente para que o Estado tome conhecimento desses fatos.

Outro problema que agrava a situação da mulher com deficiência e vítima de violência é a atenção de saúde pública incipiente, seja pela falta de políticas e agendas que se voltem para elas, seja por omissão e baixa cobertura de procedimentos de socorro.

É importante demonstrar a invisibilidade sociojurídica nas formas de violência sexual e de outras ofensas contra a mulher com deficiência e indicar, especificamente, sobre os fatores que aumentam esta invisibilidade sociojurídica e a possibilidade de existir um projeto de justiça que minimize as extremas desigualdades.

A violência contra a mulher com deficiência e a invisibilidade sociojurídica

Alguns diplomas legais, nacionais e internacionais, tratam da violência de gênero e, em alguns poucos, sobre as vítimas com deficiência, como alguns poucos estudos estatísticos realizados para a melhor compreensão dos fenômenos estudados.

A enunciação da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã88 Gouze M. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã [internet]. Universidade de São Paulo. [acesso em 2019 abr 15]. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html.
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, de 1791, por Olympe de Gouge, ao lado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão99 França. Declaração Francesa de Direitos do Homem [internet]. [acesso em 2019 fev 5]. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf.
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, de 1789, durante a Revolução Francesa, é considerada o marco inicial da luta pelos direitos da mulher na modernidade, após a qual movimentos feministas, sindicalistas e sufragistas empunharam diversas bandeiras por igualdade de direitos entre os gêneros.

Conforme o Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios)1010 Organização das Nações Unidas. Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios) [internet]. Brasília, DF: ONU: 2014 [acesso em 2019 fev 5]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/05/protocolo_feminicidio_publicacao.pdf.
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, as marcas culturais são a noção de masculinidade associada à dominação, a rigidez dos papéis de gênero, a ideia de propriedade masculina, a aprovação da violência como um mecanismo para resolver conflitos cotidianos, o consentimento social ao castigo físico contra mulheres, a idealização do amor romântico, o menosprezo das qualificações das mulheres.

A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (Cedaw)1111 Organizações das Nações Unidas. VI Relatório Nacional Brasileiro à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEDAW [internet]. Brasília, DF: 2005. [acesso em 2019 abr 15]. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/assuntos/acoes-internacionais/Articulacao/articulacao-internacional/vi-relatorio-cedaw-versao-completa-revisada-portugues-18-04-2005.doc.
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, celebrada pela ONU, inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos22 Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [internet]. Nova York: ONU; 1948 [acesso em 2019 abr 15]. Disponível em: www.ampid.org.br>ampid>Docs_PD.
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, define discriminação contra a mulher como exclusão baseada no sexo para anular o gozo dos seus direitos humanos e liberdades.

Passo também importante dessa caminhada foi a adoção, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 1994, ratificada pelo Brasil, em 1995, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará1212 Brasil. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996 [internet]. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Diário Oficial da União. 2 Ago 1996 [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm.
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A década de 1990 ainda produziu dois diplomas internacionais significativos para o combate à violação dos direitos da mulher: o primeiro deles, de 1994, trata-se da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher1313 Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher - Pequim, 1995 [internet]. [acesso em 2019 abr 19]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf.
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. O segundo diploma, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim1313 Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher - Pequim, 1995 [internet]. [acesso em 2019 abr 19]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf.
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, de 1995, é o documento político no qual os governos se comprometem a implementar uma plataforma de ação.

Entre o final da década de 1990 e os anos iniciais do século XXI, vieram os decretos visando à redução dos índices de violência contra mulher: o Decreto nº 1.973/19961212 Brasil. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996 [internet]. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Diário Oficial da União. 2 Ago 1996 [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm.
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, que promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994; e o Decreto nº 7.958/20131414 Brasil. Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013 [internet]. Estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 14 Mar 2013. [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D7958.htm.
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, que estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

O Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios)1010 Organização das Nações Unidas. Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios) [internet]. Brasília, DF: ONU: 2014 [acesso em 2019 fev 5]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/05/protocolo_feminicidio_publicacao.pdf.
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tem relevância ao analisar as relações de possessividade como motivadoras desses crimes como reflexo de uma cultura de ódio e discriminação contra as mulheres e um sinal do fracasso do sistema de justiça penal em punir aqueles que cometem esses crimes.

Entretanto, a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha (LMP)1515 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 [internet]. Lei Maria da Penha. [acesso em 2019 mar 15]. Diário Oficial da União. 8 Ago 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2006/lei/11340.htm.
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, é, verdadeiramente, o marco que reforçou a abordagem feminista de criminalização e tratamento multidisciplinar para o enfrentamento da violência doméstica, que trouxe significativos reflexos para as políticas públicas desenvolvidas desde então.

Outro passo relevante nessa trajetória foi a criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), de casas-abrigo, de centros de referência, da Central Ligue 180. São redes de apoio que se têm mostrado fundamentais, não só para proteção imediata da mulher ante a ofensa sofrida, bem como para a possibilidade de a mulher ressignificar a si mesma em busca de novas condições de vida. Aliás, o Projeto Violeta, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), também muito tem contribuído para o atendimento das vítimas, principalmente pela sua capacidade de itinerância, em uma forma diferenciada de atendimento à vítima. Nos últimos dias, foi criada a 'Patrulha Maria da Penha, guardiões da vida', pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), como iniciativa capitaneada pelo TJRJ e pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Recentemente, outra alteração acrescentou dispositivo ao art. 12 da LMP1515 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 [internet]. Lei Maria da Penha. [acesso em 2019 mar 15]. Diário Oficial da União. 8 Ago 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2006/lei/11340.htm.
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, por meio da Lei nº 13.8361616 Brasil. Lei nº 13.836, de 4 de junho de 2019 [internet]. Acréscimo a Lei Maria da Penha para tornar obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou familiar. Diário Oficial da União [acesso em 2019 jun 8]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13836.htm.
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, de 04 de junho de 2019, tornando obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou familiar.

É preciso falar sobre os direitos humanos enquanto conquistas civilizatórias e as graves violações a eles, com as desigualdades perpetradas contra as pessoas com deficiência. Elas vivem, através dos tempos e em todo o mundo, verdadeira 'Epopéia Ignorada'.

É possível admitir que a preocupação com a pessoa com deficiência, especialmente quando se tratar de uma mulher com deficiência, é reflexo da proteção de direitos humanos. Soam como os direitos autoevidentes, mencionados na Declaração de Independência dos Estados Unidos e na Declaração Francesa de Direitos do Homem. Entretanto, a autoevidência, por si só, exige base conceitual para deixar claro quais direitos estão sendo referidos e protegidos.

Sen1717 Sen A. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras; 2011. apresenta a ideia de participação dos indivíduos quando possuem condições de realizar alguma coisa para que as liberdades entendidas como relevantes não sejam violadas. O autor se refere a uma exigência ética universal e considera que, na aplicação em um caso real, pode haver argumentos ambíguos, o que não irá, necessariamente, descartar a força do argumento para a realização de um ato. Exemplo: caso Catherine Genovese, de Nova York, em 1964. A mulher foi agredida até morrer; e os vizinhos, mesmo ouvindo seus gritos, nada fizeram para interferir e fazer cessar a agressão. A liberdade de Catherine em não ser agredida foi violada, bem como o dever das mais de 30 pessoas que assistiram às agressões e não a ajudaram foi violado.

Recentemente, o Brasil vivenciou situação semelhante, quando uma mulher de classe média foi brutalmente agredida em um condomínio da Barra da Tijuca. De acordo com os dados da investigação, somente após cinco horas de violência os vizinhos chamaram a polícia. Foi cometido um crime de feminicídio brutal, perante representantes da cultura social da cegueira voluntária.

Uma boa razão para compreender os direitos das mulheres com deficiência como direitos humanos e a necessidade de sua proteção por toda a sociedade é a dupla vulnerabilidade das mulheres com deficiência, como mulher e como pessoa com deficiência. Essas duas vulnerabilidades passarão a ser abordadas.

No que concerne às pessoas com deficiência, essas são de há muito excluídas, já foram condenadas à morte, consideradas malditas, um fardo para muitos, peso morto para a sociedade, ou seja, quase pessoas, como expresso por Vitor Hugo em 'O corcunda de Notre Dame', por meio do personagem Quasímodo – um quase pessoa –, alvo de deboche. Que, sem lugar na sociedade, restava-lhe a exclusão.

Desde as culturas mais antigas, já se iniciava a saga melancólica das pessoas com deficiência, conforme relata Otto Marques:

A sobrevivência das pessoas com deficiências aqui no Brasil e em boa parte do mundo, na grande maioria dos casos, tem sido uma verdadeira epopeia. Essa epopeia [...] – uma verdadeira saga melancólica – assim como o foi em todas as culturas pelos muitos séculos da existência do homem. Ignorada, não por desconhecimento acidental ou por falta de informações, mas por não se desejar dela tomar conhecimento1818 Silva OM. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e hoje. São Paulo: Cedas 1987.(99).

A exemplo dos hebreus, egípcios e gregos: Noé, conforme descrito pelo 'O livro de Enoque', seria Albino e quase foi rejeitado por seu pai; Moisés possuía dificuldades no falar com clareza, e o Faraó Akhenaton, 1º Rei monoteísta do Egito, que era epilético e que, durante as crises, para evitar ser visto, possuía no palácio um coral só de homens cegos ao seu dispor; e, ainda, entre os maiores poetas gregos, Homero, que, pelos relatos, era cego.

Alguns dos Filósofos mais renomados chegaram a alimentar a ideia do extermínio das pessoas com deficiência, inclusive as crianças. Ao filosofar, Platão afirmou: “e no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-os morrer de fome”1919 Platão. A República. São Paulo: Lebook; 2019.(48).

A Bíblia2020 Biblia. Evangelho de João 5.1-15. In: Biblia. Sagrada Bíblia Católica: Antigo e Novo Testamentos. São Paulo: Sociedade Bíblica de Aparecida, 2008. p. 204-205. também relata diversos milagres de cura por Jesus, como exemplo: a cura do paralítico de Betesda, descrito no evangelho de João 5.1-15. Os ideais cristãos trouxeram ao mundo uma forma caridosa de enxergar a deficiência. Contudo, as pessoas com deficiência não querem caridade, querem exercer plenamente as oportunidades iguais.

A deficiência, além de doenças ou lesões no corpo, ocorre pelas desigualdades impostas pelo ambiente a um corpo com impedimentos, uma desvantagem natural que deve ser reparada para voltar à normalidade, ou ser, tão somente, parte da diversidade humana, segundo Diniz2121 Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense; 2007.. No modelo biomédico, ou o corpo muda, ou será indesejado pela sociedade. No modelo social, entende-se que a opressão ao corpo não precisa ser a regra, dependendo do que se compreenderá por normalidade e como se reage aos diferentes corpos.

O mesmo lugar social em que essa assimetria nas relações de gênero habita dá origem ao que Santos2222 Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev. Crítica de Ciênc. Soc. 2002; 63:237-280. nomeia como razão metonímica, segundo a qual há apenas uma lógica que governa tanto o comportamento do todo como o de cada uma de suas partes. Há, pois, uma homogeneidade entre o todo e as partes e estas não têm existência fora da relação com a totalidade.

Apenas na atualidade, o conceito de deficiência começa a ser discutido e revisto. Tem-se como um conceito 'guarda-chuva'. Deve ser contrariada a tradicional forma de pensar polarizadamente o diferente, não por sua imanência, mas pela relação de oposição em face da alteridade, que classifica a pessoa pelo que ela não é. Esse modo de pensar tem lugar no mero paradigma biomédico.

O modelo social vem, assim, empreender a possibilidade de ressignificar o entendimento de diferença associado à exclusão, introduzindo a perspectiva de diversidade que pressupõe inclusão, conforme Diniz2121 Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense; 2007.. Dessa forma, explica a autora que, deficiência passou a ser um conceito político, e todo um conjunto de ações passou a ser discutido com vistas a ressignificar a pessoa com deficiência e seu contexto.

O tema da violência sexual e outros abusos contra a mulher com deficiência perpassa por vários conhecimentos. Desde o conceito de deficiência e seus desdobramentos até a violência de gênero e sua cultura retroalimentadora de toda sorte de abusos para com a pessoa vulnerável.

As maldades e ofensas cometidas contra tais mulheres são inenarráveis. Por vezes, são privadas de alimentação, higiene e até de seus instrumentos de auxílio, como bengalas e muletas. São submetidas às volúpias sexuais de seus próprios cuidadores. Não raro, ainda são obrigadas a agradecer, pois, afinal de contas, 'estão lhe prestando um favor' em ter interesse sexual pela sua pessoa.

Muitas vítimas sequer percebem que estão sendo constantemente abusadas, achando que a violência e a desumanização fazem parte da sua própria condição, fruto da própria deficiência.

Em relação à violência geral, é ela característica das relações assimétricas, de gênero ou não e se institui, primeiramente, como violência simbólica, definida

pelas relações de poder que se formam entre indivíduos (e/ou instituições), que se situam em sistemas/estruturas de poder que se tornam instrumentos para ajudar a assegurar que uma classe domine outra2323 Silva Oliveira, MD, Mendes AM. A representação do poder feminino no romance Rainha Ginga, de Agualusa. Cad. Seminal Digital. 2017; 23(27):1806-9142.(13).

Quando negada a cumplicidade por parte do dominado, em uma relação de submissão, a violência simbólica dá lugar a outras formas de violência. Em se tratando de relações de gênero, manifesta-se como violência física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, obstétrica, entre outras.

Todavia, a situação da mulher com deficiência ainda é praticamente invisível nas normas existentes, e também defasadas quanto às prevenções e instrumentais capazes de acolher a vítima. Para Pasinato2424 Pasinato W. "Feminicídios" e as mortes de mulheres no Brasil. In: Corrêa M, Beleli I. PAGU. Campinas: Unicamp; 2011., o problema mais grave reside no fato de as mulheres com deficiência, no Brasil, ainda enfrentarem deficit em termos do reconhecimento social do seu direito à justiça. Em grande medida, essa lacuna se deve ao fato de que o próprio conceito e a precisa caracterização de pessoa com deficiência ainda se encontram em processo de construção. A perspectiva é cruel, na visão de Prates2525 Prates D. Acessibilidade Atitudinal. Rio de Janeiro: Gramma; 2015.(1), pois “suas vozes são sempre silenciadas, anuladas pelo peso das múltiplas opressões que sofrem”.

Além disso, falta a devida 'sonoridade' entre as próprias mulheres sem deficiência, pela cultura da 'seletividade', mesmo entre iguais.

Na trilha dos direitos internacionais e compromissos assumidos pelo nosso país, foi promulgada a Lei nº 13.1462626 Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 [internet]. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União. 7 Jul 2015 [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http//www.planalto.gov.br/ccivil_03/ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.
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, de 6 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência, em sequência à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O Estatuto considera a mulher com deficiência especialmente vulnerável, e obriga o SUS a desenvolver ações destinadas à prevenção de deficiências por causas evitáveis, por meio da nutrição da mulher, e assegura os serviços de saúde incluindo o mesmo cuidado à mulher transexual com deficiência física.

A ONU fiscaliza o cumprimento da Convenção Internacional pelo Brasil, e o relatório destaca que não há atendimento acessível para as mulheres surdas e com deficiência e que há ausência de estratégia para garantir o empoderamento das mulheres com deficiência. Recomenda que haja consulta às mulheres com deficiência e suas organizações representativas para o cumprimento integral, lembrando o lema das pessoas com deficiência: 'Nada sobre nós, sem nós'.

Na perspectiva sociojurídica, a mulher com deficiência, vitimada por violência de gênero, vive uma situação que tange à invisibilidade. Na LMP, somente é mencionada em relação ao agravamento da pena imputada ao agressor; e no crime de feminicídio, apenas como causa de aumento de pena e classificação do crime como hediondo.

A falta de jurisprudência e de decisões judiciais reiteradas sobre o tema caracterizam, sobremaneira, a invisibilidade. Encontrou-se apenas um julgado do VI Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – que, posteriormente, deu origem a recurso na Oitava Câmara Criminal, apelação nº 0018240-96.2014.8.19.02102727 Rio de Janeiro. Apelação 0018240-96.2014.8.19.0210. Apelação da decisão judicial interposto pela Defesa. Violência doméstica. Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. 8 Ago 2014.(23) e, que, mesmo assim, exemplificou o fenômeno da culpabilização da vítima, e não do opressor, já que a pessoa agredida declarou “que as lesões apresentadas foram oriundas de queda da cadeira de rodas”.

A banalização da violência e a culpabilização da mulher geram sensação de impunidade, e é até aceitável o crime pela sociedade, que entende a violência como uma 'provocação da vítima', que 'não cumpriu com o seu papel social', expondo-se ao risco. A mudança da cultura do estupro e da violência, portanto, são fundamentais para o enfrentamento dessas questões; tendo-se que exercitar, constantemente, a contracultura da violência de gênero e o empoderamento da pessoa humana, ressaltando-se, sobretudo, a importância de ações afirmativas, inclusão verdadeira e acessibilidade, principalmente a atitudinal.

No campo da saúde, a própria forma como o paradigma biomédico lança seu olhar sobre a pessoa com deficiência já condiciona uma perspectiva excludente. Considerando a notória influência que o discurso biomédico exerce, é fácil entender esse olhar sobre a pessoa com deficiência, baseado na ótica da exclusão. Observe-se, nesse sentido, a significativa ausência de menção à pessoa com deficiência, mesmo em documentos voltados para especial atenção à questão de gênero, como é o caso de Implementação da atenção em saúde às violências sexuais contra as mulheres em duas capitais brasileiras segundo Cavalcanti et al.2828 Cavalcanti LF, Moreira GAR, Vieira LJES, et al. Implementação da atenção em saúde às violências sexuais contra as mulheres em duas capitais brasileiras. Saúde debate. 2015; 39(107):1079-1091..

Um exemplo claro das consequências dessa abordagem do modelo biomédico é a realidade da violência obstétrica praticada contra mulheres com deficiência, denunciada no estudo de Terra e Matos2929 Terra AMEM, Matos ACH. Violência obstétrica contra a gestante com deficiência. Pensar. 2019; 24(1):1-13.(17), que destaca “como o modelo médico de deficiência contribuiu para a adoção, pela codificação civil de 1916 e 2002, de um modelo abstrato de incapacidade”, e que este modelo negou “o exercício de parcela de autonomia em relação a atos que teriam plenas condições de exercer livremente, produzindo um regime excludente”.

Outro fator que contribui para a violação de Direitos dessas mulheres nos sistemas de saúde é o despreparo dos profissionais para realizarem seu trabalho. Segundo Sassaki11 Sassaki RK. Violência contra mulheres com deficiência. Centro para Estudos de Políticas sobre Mulheres [internet]. 2011. Relatório. [acesso em 2019 mar 3]. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/violencia_mulheres_deficiencia.pdf
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/...
, não é dada a atenção adequada à sexualidade das mulheres com deficiência, vítimas de violência, que não contam, sequer, com a devida cobertura dos procedimentos de socorro e tratamento, sobretudo os preventivos às doenças transmissíveis, como o HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana).

Em suma, embora a violência sexual e outras ofensas sejam graves problemas de saúde pública, inclusive assim estabelecido pela Organização Mundial da Saúde e devidamente regulamentada no Brasil, a exemplo da Lei nº 10.778/20033030 Brasil. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003 [internet]. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União. 25 de Nov 2003. [acesso em 2018 mar 16]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.778.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
(estabeleceu a notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher), a vulnerabilidade das mulheres com deficiência, vítimas, ainda permanece acentuada, pela ausência ou incipiência de cuidados adequados. Os desafios estão a exigir mudanças concretas para a efetivação da cidadania dessas mulheres.

Caminhos – visibilidade, acessibilidade e presença inclusiva

Diante da cultura da violência de gênero e da exclusão das pessoas com deficiência, destacam-se duas formas de transformar mentalidades e culturas: educando e informando. Um dos caminhos a percorrer é o da equidade educativa (aceitação da diversidade), proposta na Declaração de Lisboa3131 Lisboa. Declaração de Lisboa sobre Equidade Educativa [internet]. [acesso em 2018 jan 9]. Disponível em: http://isec2015lisbon-pt.weebly.com/declaracao-de-lisboa-sobre-equidade-educativa.html.
http://isec2015lisbon-pt.weebly.com/decl...
, para modificar o olhar das novas gerações acerca da diversidade, como agentes dessa renovação.

Por esse viés, Silva e Nembri3232 Silva A, Nembri AG. Ouvindo o silêncio: surdez, linguagem e educação. 4. ed. Porto Alegre: Mediação; 2018.(53) analisam essa transformação no contexto da educação para pessoas com surdez, como é o caso do próprio autor, que afirma:

[...] pela abordagem, pela filosofia, pelo método em vigor em alguns centros de referência e excelência no ensino de surdos no Brasil, o surdo adquire naturalmente a língua de sinais, diz o que pensa em sua língua dominante sem ser admoestado por isso e, na sequência, aprende a língua da maioria de sua sociedade.

Também nessa perspectiva, Maio e Gurgel abordam3333 Maio IG, Gurgel MA. Violência contra a pessoa com deficiência é o avesso dos Direitos Consagrados nas Leis e na Convenção da ONU [internet]. Brasília, DF: AMPID; 2009. [acesso em 2019 abr 4]. Disponível em: http://www.ampid.org.br/v1/wp-content/uploads/2018/04/Viol%C3%AAncia-contra-a-Pessoa-com-Defici%C3%AAncia-%C3%A9-o-Avesso-dos-Direitos-Consagrados-nas-Leis-e-na-Conven%C3%A7%C3%A3o-da-ONU.pdf.
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que as ações devem ser conjuntas com propostas de ampliar canais de denúncia com planos de enfrentamento nos diversos níveis estatais e fortalecimento dos conselhos de direitos, com destinação de verbas e construção de centros integrados de proteção e apoio.

Além de adequada coleta de dados, outros agentes sociais têm papel relevante na divulgação de informações, como a imprensa, que,

[...] possui um papel estratégico na formação da opinião e na pressão por políticas públicas e pode contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate sobre a forma mais extrema de violência de gênero: o feminicídio3434 Instituto Patrícia Galvão. Dossiê Feminicídio [internet]. [acesso em 2019 jul 5]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/.
https://dossies.agenciapatriciagalvao.or...
.

Além disso, organizações civis, sindicatos, associações, como a exemplo do Espaço Cidadania e seus Parceiros pela Inclusão, que promovem eventos e lançam publicações como o livreto 'Inclusão é Atitude! Qual é a Sua?', que, de forma simples e ilustrativa, aborda a acessibilidade do ponto de vista da inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Um aspecto essencial para a garantia dos direitos da mulher com deficiência diz respeito à acessibilidade para realização de denúncia e para solicitação de cuidado, que precisa ser largamente ampliada, como indica Sassaki11 Sassaki RK. Violência contra mulheres com deficiência. Centro para Estudos de Políticas sobre Mulheres [internet]. 2011. Relatório. [acesso em 2019 mar 3]. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/violencia_mulheres_deficiencia.pdf
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/...
.

O papel do sistema judiciário é o de garantir a acessibilidade, prioritariamente acessibilidade atitudinal, dimensão que irá incentivar o surgimento das demais dimensões – arquitetônica, comunicacional, metodológica, instrumental e programática, pois, se a acessibilidade for (ou tiver sido) projetada sob os princípios do desenho universal, beneficiará todas as pessoas, tenham ou não qualquer tipo de deficiência Sassaki11 Sassaki RK. Violência contra mulheres com deficiência. Centro para Estudos de Políticas sobre Mulheres [internet]. 2011. Relatório. [acesso em 2019 mar 3]. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/violencia_mulheres_deficiencia.pdf
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/...
, certo que todos somos, potencialmente, pessoas com deficiência.

Essa linha de ação, se posta em prática, poderá efetivar a existência de um sistema sociojurídico comprometido, que contribuirá para que o País se aproxime das metas propostas no diploma internacional “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”3535 Organização das Nações Unidas. Agenda 2030: Transformando Nosso Mundo para o Desenvolvimento Sustentável [internet]. [acesso em 2019 jul 8]. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/.
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(muito embora não haja uma linha sequer na Agenda que contemple a mulher com deficiência nas metas e objetivos de igualdade entre os gêneros do capítulo 5).

Considerações finais

Como já observado no início deste texto, há maior invisibilidade sociojurídica das formas de violência sexual e de outras ofensas contra a mulher com deficiência. As vozes devem se levantar para denunciar essa invisibilidade e reivindicar acessibilidade atitudinal, com inclusão.

A revisão de conceitos como o de deficiência, transpondo a questão de um modelo biomédico tradicional para o modelo social, permite entender a pessoa com deficiência em uma nova perspectiva, não mais como uma incapaz, alienada ou disfuncional, mas como mais um elemento no conjunto de uma sociedade plural.

Tais caminhos transcendem o simples fazer cumprir as leis e punir gravames, pois implicam contribuir para que as redes de atenção atendam a todos os atores sociais envolvidos, acolhendo vítimas, com mais e melhores políticas públicas.

Levando-se em consideração que existem lacunas éticas que impedem o exercício pleno da cidadania das mulheres com deficiência, principalmente quando são vítimas de violência, e, por ser a autora profissional da área jurídica há, pelo menos, três décadas, tendo experimentado múltiplas visões sobre o Sistema de Justiça, algumas sugestões urgem.

Há de se aprimorar a legislação existente, bem como a elaboração de outras normas que venham a conceder suporte àquelas que não possuam as características de efetividade e autoaplicabilidade. Todo sistema judicial e social, seja na esfera policial, do Ministério Público, outros órgãos de atenção e repressão à violência, órgãos de assistência social e da saúde pública, bem como e, principalmente, o Poder Judiciário, devem implementar medidas autoeducativas, mudar seus protocolos para a devida inclusão em seus projetos, sejam preventivos ou repressivos. Criando, outrossim, prioridades nos atendimentos, que deverão ser totalmente acessíveis a essas mulheres hipervulneráveis.

Para plena visibilidade e maior atenção ao tema, é necessário que os procedimentos e processos sejam categorizados e catalogados; seja assegurado atendimento com acessibilidade, por meio de agentes capacitados, a exemplo de intérpretes de libras para atender às vítimas com deficiência auditiva; haja encaminhamento das vítimas que precisem ser retiradas do lar para moradias assistidas e, para aquelas que não dispõem de recursos suficientes, seja criado um auxílio financeiro, ainda que transitoriamente; além de políticas públicas disponibilizadas para auxiliar a rotina dessas mulheres e de seus cuidadores.

A visibilidade em trabalhos acadêmicos, dentro das leis, na sociedade e nas políticas públicas, é o início da visibilidade dessas mulheres com deficiência, o que se buscou como objetivo com o presente artigo, a fim de apresentar análise inicial do que vem ocorrendo no Brasil com um segmento na sociedade raramente mencionado em decisões judiciais ou no diálogo entre os direitos humanos e a saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2019
  • Aceito
    20 Out 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br