RESUMO
Este ensaio aborda o tratamento dado pelo judiciário fluminense às demandas de saúde que ingressaram, em sede de plantão judicial noturno, nos meses de janeiro e julho, do ano de 2017, considerando que a judicialização da saúde se trata de um fenômeno que tem aumentado estatisticamente e que o plantão judiciário se tronou uma porta de acesso facilitado aos que buscam tutelas de urgência. No âmbito processual civil, abordam-se os prazos e as multas impostas, bem como os pedidos requeridos. Em especial, analisam-se as tutelas de urgência, trazendo informações sobre a tutela antecipada em caráter antecedente, assim como a necessidade de fundamentação precisa por parte do magistrado e o papel da autonomia mé-dica. A metodologia utilizada foi hipotético-dedutiva, em análise qualitativa, por meio da re-visão doutrinária, jurisprudencial e legislativa. Os resultados evidenciam índices elevados de judicialização em questões de saúde pública e privada.
PALAVRAS-CHAVE
Plantão; Justiça social; Judicialização da saúde; Direitos humanos
ABSTRACT
This essay addresses the treatment given by the Rio de Janeiro Judiciary to the health demands that were filed at the judicial nocturnal duty, in January and July, 2017, con-sidering that the judicialization of health is a phenomenon that has increased statistically, and that the judicial duty has become a way of easy access for those seeking emergency relief. In civil procedural matters, the deadlines and fines imposed, as well as the requests requested are addressed. In particular, we analyze the urgency decisions, bringing information about the anticipated protection in advance, as well as the need for precise justification on the part of the magistrates and the role of medical autonomy. The methodology used was hypothetical-deductive, in qualitative analysis, through doctrinal, jurisprudential and legislative review. The results show high levels of judicialization in public and private health demands.
KEYWORDS
After-hours care; Social justice; Health's judicialization; Human rights
Noções introdutórias
Em 2004, com o advento da Emenda Constitucional nº 4511 Brasil. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União. 31 Dez 2004. [acesso em 2019 jan 19]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... , conhecida como 'A Reforma do Poder Judiciário', estabeleceu-se que:
a atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, com juízes em plantão permanente.
Na intenção de ampliar e garantir o acesso à justiça, foi prevista a existência do plantão judicial, garantindo uma prestação jurisdicional ininterrupta, incluindo o período noturno.
Feita uma análise mais concentrada a respeito das decisões proferidas, em sede do plantão judiciário noturno, foi percebido o enorme contingente de demandas cujo objeto jurídico em discussão englobava questões de saúde, na amostra específica do Judiciário fluminense.
O plantão se tornou tão conhecido para resolução de questões de saúde que hoje é chamado pelos corredores do fórum de 'plantão médico do Judiciário'.
As demandas envolvendo pedidos de saúde só aumentam ano a ano, e ainda é desprezível o apoio técnico nas decisões judiciais. Contudo, na tentativa de amenizar o fenômeno da judicialização e agilizar os procedimentos processuais, entrou em vigor, em abril de 2017, um novo Código de Processo Civil (CPC), com alternativas ao litígio, estímulo à composição e diminuição do número de recursos.
O advento do CPC também destinou especial atenção para o instituto jurídico da tutela provisória, como mecanismo de garantia de direitos reclamados em caráter de urgência. Esse construto jurídico tem alta aplicabilidade nas ações envolvendo a saúde, principalmente naquelas propostas em sede de plantão judiciário noturno.
Neste espeque, a tutela provisória se apresenta como um dos objetos do presente estudo, bem como a judicialização, o ativismo judicial, as indenizações em processos envolvendo pedidos fundamentados no direito à saúde e algumas tentativas de solução para o problema.
Diante de uma visão de crise nas questões públicas, o plantão noturno do Judiciário fluminense se tornou um meio de acesso à justiça muito procurado pela população em busca de solução rápida para suas demandas e pedidos envolvendo temas de saúde. Todavia, a atuação do magistrado plantonista não escapa de eventuais excessos nos deferimentos das tutelas.
Assim sendo, a presente análise trata dos aspectos procedimentais e legais envolvendo os pedidos de acesso à saúde, bem como perfaz uma quantificação de dados advindos da realidade judiciária, colhidos em um período compreendido entre os meses de janeiro e junho de 2017 e utilizando como amostra os processos distribuídos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) somente em sede de plantão noturno.
O plantão judicial noturno sob o prisma quantitativo dos dados colhidos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
No intuito de mapear dados da judicialização da saúde na realidade fluminense, foram colhidas e analisadas informações de 500 processos com pedidos de saúde distribuídos no TJRJ durante o horário de plantão noturno; para o alcance do número de 500 decisões, foram acompanhadas as decisões referentes aos meses de janeiro e de junho de 2017.
A amostra escolhida abordou a diferença relativa ao tipo de demandas propostas em um intervalo de seis meses, verificando as demandas que foram propostas no mês de janeiro, após, verificaram-se as demandas que foram propostas no mês de junho do mesmo ano de 2017, no intuito de possibilitar uma análise sobre possíveis diferenças entre os pedidos de tutelas de urgência e as decisões de deferimento.
Nos meses de janeiro e junho, o plantão judiciário noturno recebeu um total de 937 demandas, dessas, 500 versavam sobre pedidos envolvendo o direito de acesso à saúde, no espectro público, ou na seara privada da saúde suplementar. As demais demandas trataram de questões criminais, muitas envolvendo violência doméstica e familiar, autorizações para cremação/enterros e lavraturas de certidões de óbitos, como também algumas demandas cíveis e familiares, envolvendo, por exemplo, energia elétrica e busca e apreensão de menores e autorizações de viagem. Desse modo, o gráfico 1 ilustra que as questões de saúde representam mais da metade das discussões em sede de plantão noturno no TJRJ, totalizando 53% das ações propostas somente nos meses de janeiro e junho do ano de 2017. Tal dado tem o condão de ilustrar o tamanho da judicialização das questões envolvendo a saúde no cenário do plantão noturno do Judiciário Estadual Fluminense.
Tutelas e pedidos quantificados no plantão judicial noturno
Do total de 500 processos fundados em pedidos de saúde, a maioria foi de propositura da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que se fez presente durante o plantão com o total de 319 demandas; as demais 181 demandas foram ajuizadas por advogados particulares. Verificou-se somente 12 pedidos de tutela provisória de urgência em caráter antecedente, todas propostas por advogados, ou seja, nenhum pedido de tutela provisória em caráter antecedente foi feito pelos Defensores Públicos.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Insper encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a respeito da judicialização da saúde no Brasil se apurou que:
Os casos que são representados pela defensoria pública, em que a parte é enquadrada como hipossuficiente e que versem sobre o tema de saúde pública também estão associados, como seria de se esperar, a uma maior probabilidade de sucesso por parte do demandante22 Brasil. Lei nº 13.105 de 2015 [internet]. Código de Processo Civil. [acesso em 2018 nov 13]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At... (134).
Outros dados, conforme o gráfico 2, foram levantados em relação às atividades e procedimentos complementares realizados concomitantemente à análise dos pedidos principais em saúde durante o plantão judiciário noturno do TJRJ. Assim sendo, do total de 500 de pedidos em saúde, somente 18 pedidos de tutela foram indeferidos, bem como 349 pedidos de indenizações por danos morais foram realizados conjuntamente com os pedidos de saúde.
Número de ações por propositor em matéria de saúde no plantão noturno do TJRJ (janeiro e junho de 2017) e o número de pedidos de tutela provisória de urgência em caráter antecedente
Do total de 500 pedidos em matéria de saúde, somente em 2 processos houve requerimento prévio de parecer técnico do e-NatJus, e em cinco processos houve juntada de tentativa de solução prévia na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde.
Os dados levantados na pesquisa sobre o plantão foram ao encontro da pesquisa encomendada pelo CNJ e divulgada em abril de 2019 na III Jornada de Saúde na qual restou apurado que o TJRJ somente cita o NAT em 2,7% das decisões, em que pese o núcleo ter sido instalado em 201233 Conselho Nacional de Justiça. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa. Judiciali-zação da Saúde no Brasil: Perfil das Demandas, Causas e Propostas de Solução [internet]. Brasília, DF: INSPER; 2019. [acesso em 2018 nov 13]. Disponível em: https://static.poder360.com.br › relatorio-judicializacao-saude-Insper-CNJ.
https://static.poder360.com.br › relator... .
Além disso, somente em dois processos houve parecer prévio do Ministério Público antes de ser analisado o pedido de antecipação de tutela, que ocorreram quando era pedido alvará para autorização de transfusão de sangue em criança sem consentimento dos pais (testemunhas de Jeová) e quando havia um pedido de transferência (feito pelo próprio plano de saúde) de um idoso para outro hospital sem o consentimento dos familiares.
Dessa forma, verificou-se que o Ministério Público não foi ouvido antes das tutelas de saúde nem mesmo quando há menores ou quando há o descumprimento da tutela pelos órgãos públicos em sede de plantão noturno, e não foi encontrada justificativa para ausência de oitiva do Ministério Público em nenhuma decisão analisada.
Contudo, foi ao Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe a defesa da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.127, caput, CF), que a Constituição Federal determinou como função institucional a fiscalização do Sistema Único de Saúde (SUS), nos termos do art. 129, II, da CF/8844 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... .
Dessa forma, a caracterização das ações e serviços de saúde como sendo de 'relevância pública' (art. 197 da CF) teve como finalidade precípua identificar o Ministério Público como o seu órgão fiscalizador principal55 Mapelli Júnior R. Judicialização da saúde: regime jurídico do sus e intervenção na admi-nistração pública. São Paulo: Atheneu; 2017..
Verificou-se ainda que, em janeiro de 2017, foram propostas 197 demandas de saúde no plantão noturno, já em junho de 2017, esse número aumentou para 303 demandas, caracterizando um aumento de 65% no número de ações propostas somente no intervalo de 6 meses.
Demonstra-se que somente 18 pedidos de tutelas de urgência foram negados dentro do universo de 500 demandas analisadas, um percentual de 3,6%. Desses, 11 pedidos foram negados com fundamentação na ausência de urgência ou na ausência do perigo de dano – 1 referente a um pedido de prótese, 2 referentes a pedidos de medicamentos, 4 referentes a internações, 1 referente a pedido de cirurgia, 2 referentes a transferências de hospitais, 1 referente a exame de biópsia; 7 dos pedidos negados tiveram como fundamentação a ausência de probabilidade do direito, 5 pedidos de internações e 2 pedidos de home care. Observou-se que, dos pedidos negados, 1 foi negado usando o parecer prévio do NatJus, em funcionamento no plantão.
Dos 500 pedidos de saúde, 145 foram pedidos para internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), 10 foram para internação em UTI neonatal/pediátrica, 89 foram de internações genéricas, 19 foram para internações coronarianas, 19 pedidos de cateterismo, 15 pedidos de internação com neurologia, 15 de cirurgia geral, 12 pedidos de medicamentos, 10 pedidos de tomografia, 10 pedidos de próteses, 9 pedidos de tratamento oncológico, 8 pedidos de antibioticoterapia, 7 pedidos de materiais cirúrgicos, 5 pedidos de marcapassos, 5 pedidos de hematologia, 5 pedidos de hemodiálise, 5 pedidos de home care, 4 pedidos de neurologia pediátrica, 4 de cirurgia vascular, 3 de internação psiquiátrica, 3 de angioplastia, 3 de cirurgias endovascular, 3 de cirurgias para correção de fratura de fêmur, 2 de cirurgias cardíacas, 2 de cirurgias pediátricas, 2 de cesarianas, 2 de pedidos de pulsão lombar, 1 de tratamento urinário, 1 de vitrectomia, 1 de cirurgia ortopédica, 1 de pet scan, 1 de reabilitação, 1 de arteriografia, 1 de cirurgia oncológica, 1 de stents, 1 de pedido de transfusão de sangue, 3 de pedidos de entrega de prontuário médico com laudo, 1 de pedido de tratamento reumatológico.
As tutelas de urgência deferidas pelos magistrados tiveram como fundamentação, além do direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição da República, o laudo médico que informava urgência do tratamento; e, na grande maioria, quando se tratava de pedidos de UTI, o risco de morte, somente dois tinham como pedido a própria entrega do laudo médico, e 1 pedia a manutenção de plano de saúde como tutela de urgência.
O intervalo de tempo para o cumprimento da tutelas deferidas variou de imediatamente (50 tutelas) ao prazo máximo de 72 horas (1 tutela), havendo ainda o deferimento do prazo de 20 min (2 tutelas); 1 hora (88 tutelas); 2 horas (33 tutelas); 3 horas (9 tutelas); 4 horas (4 tutelas); 5 horas (9 tutelas); 6 horas (30 tutelas); 8 horas (19 tutelas); 24 horas (136 tutelas); 48h (4 tutelas) e ainda 97 tutelas com mais de um prazo estabelecido na mesma decisão.
Com relação às multas impostas, os valores variaram de R$ 500,00 (8 tutelas) a R$ 10.000,00 (31 tutelas), prevalecendo o valor de R$ 1.000,00 (141 tutelas), seguido do valor de R$ 2.000,00 (79 tutelas); R$ 5.000,00 (76 tutelas); salário-mínimo (2 tutelas); R$ 3.000,00 (1 tutela) e R$7.000,00 (1 tutela); em 130 tutelas houve mais de uma multa imposta para o mesmo pedido.
Houve ainda 14 tutelas cujo descumprimento acarretaria a prisão ou condução a sede policial do responsável pelo descumprimento, esse tipo de sanção foi mais comum nos casos em que houve informação de descumprimento anterior.
O problema das internações privadas às custas dos entes públicos
Na pesquisa, verificou-se o deferimento 112 vezes de buscas por leitos privados ou manutenção em leitos privados à custa do SUS. Logicamente, as consequências do deferimento de internações privadas à custa do Poder Público representam um contexto quase impossível de ser apurado, não se podendo afirmar que alguém tenha morrido por ter havido a reserva de vaga para um jurisdicionado do plantão, contudo, uma das consequências é de fácil constatação, qual seja, o aumento de despesa não prevista para o SUS, destinada de modo individual.
A decisão judicial que determina a verificação de vagas para internação privada à custa dos entes públicos acontece como forma de poder geral de cautela, pois há verdadeira reiteração das tutelas de urgência, já anteriormente deferidas em plantões anteriores, mas não cumpridas no prazo estabelecido.
Dos 112 casos, somente dois pedidos foram indeferidos, sob o argumento de falta de provas dos descumprimentos, todas as demais (110) foram deferidas, em violação ao estabelecido no art. 1, § 5º da Resolução nº 33/2014 do TJRJ66 Rio de Janeiro. Resolução TJ/OE/RJ nº 33 de 3 de novembro de 2014 [internet]. Consoli-da as normas sobre a prestação jurisdicional ininterrupta, por meio de plantão judiciário permanente, e estabelece regras transitórias para possibilitar obras emergenciais na sede do plantão. Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro. 4 Nov 2014. [acesso em 2018 nov 15]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-33-2014-tjrj.pdf.
: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao... e da resolução 71/2009 do CNJ77 Brasil. Resolução nº 71, de 31 de março de 2009 [internet]. Dispõe sobre regime de plantão judiciário em primeiro e segundo graus de jurisdição. Diário da Justiça. 1 Abr 2009. [acesso em 2018 nov 13]. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/24999.
https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.... que vedam reiteração de pedidos em sede de plantão.
A determinação de internação em hospitais privados indicados pela parte autora ou de conhecimento dos oficiais de justiça lotados no plantão judiciário ganhou tamanha repercussão nacional e gerou tamanho aumento dos custos para o SUS, que o Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se a imposição de pagamento pelo Poder Público de preço arbitrado pela unidade hospitalar privada, para ressarcir serviços de saúde prestados por força de decisão judicial, viola o regime de contratação da rede complementar de saúde pública (art.199, parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal)44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... , atribuindo à matéria característica de repercussão geral no Recurso Extraordinário (RE 666094) ainda sem julgamento definitivo.
Os pedidos de internações privadas aos custos do Poder Público ganharam tamanha extensão que, dos casos analisados, 23 pessoas ingressaram diretamente nos hospitais privados sem a prévia autorização judicial, e somente após a internação buscaram o Poder Judiciários para pedir transferência para o hospital público ou a dispensa do pagamento do hospital privado, alegando ausência de recursos, solicitando que os custos fossem arcados pelo SUS, mesmo sem qualquer convênio prévio, sendo que tal requerimento foi deferido em 22 pedidos e somente sendo negado uma vez com a seguinte fundamentação, in verbis: 'tanto é evidente a inexistência do direito pretendido – de assistência médica gratuita em hospital particular – que a pretensão fundamental apresentada é a transferência da autora para um hospital da rede pública'88 Rio de Janeiro. Decisão judicial TJRJ nº 0014857-53.2017.8.19.0001. Diário de Justiça do Rio de Janeiro. 5 Set. 2019..
A determinação para a manutenção de internação privada à custa dos entes públicos também aconteceu em todos os casos nos quais a parte requerente figurava como beneficiária de plano ambulatorial (por exemplo, Memorial Saúde, Notredame, Medical), pois nesses planos, a parte possuía somente o direito ao tratamento na modalidade ambulatorial e emergencial, porém ingressaram no Judiciário em busca de internações prolongadas e leitos em UTI nos hospitais do próprio plano ou em outro local, até que o ente público efetuasse a transferência para algum hospital público.
Todos os pedidos (19) foram deferidos sob a fundamentação de que a entidade privada estaria obrigada a fornecer os serviços sem cobrar do paciente ou de seus familiares, ficando o pagamento sob a responsabilidade dos entes públicos.
A questão das internações em Unidade de Terapia Intensiva
A UTI é um setor hospitalar de alta complexidade, em que se agregam recursos humanos e materiais para realizar suporte avançado de vida em situações críticas e no qual o objetivo é reverter os quadros clínicos graves e propiciar o restabelecimento da condição de saúde do paciente em estado considerado crítico99 Tiesenhausen HAVV, Ribeiro MLB. Exposição de motivos da Resolução CFM nº 2.156/2016 [internet]. Brasília, DF: CMF; 2016. [acesso em 2019 fev 12]. Disponível em: Disponível em: http://arquivos.cremesc.org.br/publicacao/revista_127/html/files/assets/common/downloads/page0017.pdf.
http://arquivos.cremesc.org.br/publicaca... .
Com o intuito de melhor análise sobre o uso de critérios discricionários no deferimento das tutelas de urgência, foi elencado o pedido de internações em leito de UTI, uma vez que se trata do pedido de maior incidência e, provavelmente, o de maior urgência dentro do universo da saúde.
As tutelas de urgência deferidas pelos magistrados tiveram como fundamentação, além do direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição da República44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... , o laudo médico que informava urgência do tratamento e, na grande maioria, quando se tratava de pedidos de UTI, o risco de morte.
Na pesquisa realizada sobre o plantão, observou-se que as tutelas para internação em UTI tiveram tempo variado para cumprimento de imediatamente a 24h, sem a exposição do motivo da escolha entre um prazo ou outro.
Assim, com relação ao pedido de internação em UTI, não foi possível verificar um critério estabelecido para o deferimento de um prazo ou outro, já que em nenhuma decisão houve a fundamentação sobre o motivo para ter determinado o prazo ou justificou-se o critério utilizado para escolha do prazo, apenas foi possível observar (mesmo sem justificativa do magistrado) que, quando se tratava de crianças, o prazo para cumprimento foi menor do que o estabelecido para os adultos ou idosos.
A conclusão acima foi bem demonstrada, pois quando no mesmo dia houve pedidos de internações em UTI para adultos e para crianças, o mesmo magistrado deferiu o prazo de 6 horas para adultos e idosos e de 3 horas para crianças; o padrão se repetiu em pelos menos 5 dias analisados.
Retirada a hipótese de menor prazo para cumprimento da tutela nos casos de crianças no polo ativo, nenhuma outra justificativa pôde ser percebida para haver variação de prazo para cumprimento das tutelas, concluindo que tal critério é estipulado discricionariamente.
Segundo Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), o número ideal de leitos de UTI para cada grupo de 10 mil habitantes deve ser de 1 a 3 unidades, recomenda-se que o número de leitos de UTI em um hospital seja proporcional ao número total de leitos da instituição e ao perfil de atendimento.
Um fato que se destaca, a partir da análise dos números do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), é a má distribuição dos leitos públicos e privados e o fato de apenas 505 dos 5.570 municípios brasileiros possuírem UTI. Além disso, dos 27 estados, em 19 a razão de leitos de UTI por habitante na rede pública é inferior ao preconizado pelo próprio Ministério da Saúde. Isso ocorre no estado do Rio de Janeiro.
Contudo, em sendo o número de leitos ainda insuficiente, merece destaque a falta de critérios adequados de triagem para admissão na UTI. É muito comum a admissão na UTI de pacientes em condições muito graves e com baixa perspectiva de benefícios, submetidos, muitas vezes, a intervenções de suporte a diferentes disfunções orgânicas, inúteis ou obstinadas, que podem contribuir para prolongar o processo de morte natural e, algumas vezes, com maior sofrimento dos pacientes.
Por outro lado, pacientes estáveis, necessitando apenas de monitoração, poderiam se beneficiar com o internamento em uma unidade de cuidados intermediários (semi-intensiva), aliviando a sobrecarga das UTI.
A necessidade de internação em UTI de pacientes pode variar e, muitas vezes, suplantar a disponibilidade de leitos, sendo necessário, nesses casos, estabelecer prioridades. As prioridades devem ser baseadas em critérios clínicos, científicos e éticos, visando à beneficência, a não maleficência e a justiça, preservando, sempre que possível, a autonomia do paciente.
A pesquisa demostrou ausência de critérios não somente para determinar uma internação, mas também quanto ao prazo para cumprimento e quanto à multa imposta, havendo imposição de multa de R$ 500,00 a R$ 10.000,00 para internação em UTI, sem qualquer fundamentação sobre o motivo da escolha do valor por qualquer dos magistrados.
Pacientes graves, mesmo sendo tratados em UTI, ainda apresentam altas taxas de mortalidade e complicações, a depender das características de cada paciente, do tipo e da gravidade da doença.
Pacientes com doenças incuráveis e em fase terminal usualmente não se beneficiam do tratamento em UTI e podem ser tratados com dignidade em outras unidades de internação (enfermaria, apartamentos, unidades intermediárias e unidades de cuidados paliativos).
O art. 41 do Código de Ética Médica, Resolução CFM nº 1.931/091010 Conselho Federal de Medicina. Código de ética Médica [internet]. Brasília, DF: CFM; 2009. [acesso em 2019 fev 12]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf.
https://portal.cfm.org.br/images/stories... , que diz em seu parágrafo único in verbis:
Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal1010 Conselho Federal de Medicina. Código de ética Médica [internet]. Brasília, DF: CFM; 2009. [acesso em 2019 fev 12]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf.
https://portal.cfm.org.br/images/stories... .
Os pedidos para internação em leito de UTI foram os de maior incidência entre os pesquisados, ultrapassando a metade dos pedidos que ingressaram no plantão. Por isso, a ocupação dos leitos de UTI somente deve ser dada para casos essenciais e necessita ser utilizada com racionalidade, o que é complexo e um grande desafio para médicos e juízes, motivo pelo qual há necessidade de obediência aos critérios técnicos para admissão estabelecidos na Resolução do CFM nº 2.156/20161111 Conselho Federal de Medicina. Resolução do CFM nº 2.156 de 17 de novembro de 2016. [internet]. Conselho define critérios para melhorar fluxo de atendimento médico em UTIs. Diário Oficial da União. 18 Nov 2016. [acesso em 2019 mar 17]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26557:2016-11-17-13-28-46&catid=3.
https://portal.cfm.org.br/index.php?opti... não só pelos médicos prescritores dos pedidos, mas também pelos juízes que determinam a internação.
Demandas de saúde suplementar em números
Na atualidade, muitas são as discussões judiciais envolvendo os planos de saúde suplementar, como demonstram os dados coletados durante o plantão judicial noturno do TJRJ, no qual é possível perceber que as grandes empresas de saúde suplementar figuram no rol das demandas. Assim sendo: das 500 demandas, 114 foram oferecidas em face de planos e seguradoras de saúde, sendo 27 contra as Unimeds (vista como mesmo grupo econômico em todas as demandas); 16 contra a Memorial Saúde; 16 contra a Sulamérica; 12 contra a Golden Cross; 10 contra a Amil; 9 contra a Bradesco; 8 contra a Assim; 7 contra a Geap, 2 contra a Cassi; 2 contra a Notredame; 1 contra a Pame-Plena; 1 contra a Dix, 1 Contra a Itaú Seguros Saúde; 1 contra a Medical, 1 contra a Postal Saúde e 1 contra a Samig (gráfico 4).
Atividades e procedimentos completares nos pedidos de saúde no plantão judicial noturno do TJRJ - janeiro e junho de 2017
Principais demandados em saúde suplementar, durante o plantão judiciário noturno, do TJRJ, entre janeiro e junho de 2017
Com relação aos planos de saúde, verificou-se que, no plantão judiciário, são deferidos tratamentos fora do rol estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tais como: tratamentos experimentais fora da rede credenciada; determinação de insumos e próteses fora de procedimentos cirúrgicos; foi determinado o fornecimento de medicamentos; deferiu-se crioblação tumoral e pet scan. Esses são exemplos de procedimentos que foram deferidos fora do rol estabelecido, mas que tiveram como fundamentação um laudo médico atestando a necessidade do procedimento.
Dessa forma, conclui-se que o laudo médico é determinante para obtenção de uma tutela de saúde, pois, havendo indicação médica, os magistrados ignoram a existência do rol da agência reguladora, visto que sequer mencionam a sua existência nas decisões de concessão de tutelas de urgência analisadas. Portanto, a opinião do médico assistente do paciente é suficiente para formar a convicção do magistrado.
Assim, verifica-se que a segurança jurídica dos contratos e da regulação da ANS não é plenamente satisfatória para todos os usuários, que, por vezes, necessitam ter acesso a procedimentos e medicamentos não previstos no contrato ou no rol da ANS. Todavia, a solução encontrada pela via do Poder Judiciário com decisões individuais que beneficiam apenas um usuário e sinalizam aos demais que eles também poderão se valer dessa alternativa para ter acesso àquilo que originariamente não teriam é uma forma anômala de regulação com sério impacto jurídico e econômico, em especial para os próprios usuários dos planos de saúde1212 Carlini A. A judicilização da saúde privada no Brasil: reflexões a partir da segurança jurí-dica e do protagonismo judicial. In: Rêgo W. Segurança Jurídica e Protagonismo Judicial: desafios em tempos de incertezas. Rio de Janeiro: GZ; 2017. p. 33-53..
Considerações finais
Diante de uma crise econômica que assola o Brasil e o estado do Rio de Janeiro desde 2014, cada vez mais surgem, ações judiciais a serem apreciadas, demandando dos juízes, uma compreensão rápida e adequada do direito aplicável e dos recursos disponíveis para aumentar a eficácia na solução dos conflitos que versam sobre o direito à saúde.
Nesse sentido, faz-se necessário o aprimoramento do conhecimento do direito sanitário para melhorar o desempenho da justiça na resolução de litígios em saúde. Necessária também é a utilização da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) pela população antes de ingressar no Poder Judiciário, pois a solução do problema de saúde pode ser obtida rapidamente por via de conciliação ou de outros métodos em articulação com secretarias estaduais e municipais de saúde que organizam setores específicos para lidar com os problemas, especialmente os mais simples, porém, como restou demonstrado (gráfico 3), somente cinco processos possuíam informação de tentativa de conciliação prévia na CRLS.
Assim, a melhora no desempenho geral dos casos de judicialização da saúde depende do conhecimento mínimo por parte da população e do próprio Poder Judiciário das entidades responsáveis pelo fornecimento e serviços de saúde, pela forma com que se organizam e de suas possibilidades.
As questões de saúde que são trazidas ao Poder Judiciário frequentemente envolvem narrativas sensíveis de uma pessoa em busca da preservação da vida. Por essa razão, é de se esperar que magistrados possam ser afetados no momento de decidir, pressionados pela urgência e relevância da demanda judicial a ser decidida.
A alta sensibilidade social e emocional das demandas de saúde pode levar o magistrado a tomar decisões precipitadas e que não representam a melhor solução do conflito necessariamente, o que pode vir a caracterizar uma situação-problema. Esse impacto pode resultar em concessão de tutelas provisórias quando não é necessária ou quando sequer é recomendável para a própria saúde do demandante, como nos casos em que se determinou internação em UTI fora do protocolo estabelecido na Resolução do CFM nº 2.149/2016.
Certamente, muitas das demandas em saúde são urgentes; e é dever do Estado atendê-las em tempo hábil, devendo o Poder Judiciário intervir com tutelas de urgência quando observada uma omissão. No entanto, não são todas as ações judiciais que demandam uma resposta assim, e tomar uma medida dessa natureza desnecessariamente pode inclusive comprometer a eficiência das ações. Os magistrados devem ser capazes de identificar quais ações demandam uma tutela de urgência e concedê-las quando for necessário.
Essa capacidade pressupõe um respaldo técnico, por exemplo, ao avaliar uma ação cujo requerimento pleiteado versa a respeito do fornecimento de determinado medicamento para o tratamento de uma doença crônica, o qual não é necessariamente urgente, ou que demandas por cirurgias eletivas podem ser decididas em tempo mais elástico por exemplo. Por essa razão, é importante que o magistrado adquira competências e habilidades para compreender a gravidade da demanda que lhe é submetida e saiba ponderar, bem como consultar os instrumentos a que tem acesso, como os Núcleo de Avaliação de Tecnologia em Saúde (Nats).
Os juízes precisam desenvolver a capacidade de conhecer e consultar a legislação e demais instrumentos a sua disposição, além de questionar aos médicos prescritores sobre o cumprimento das Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), para decidir de forma precisa, e devem estar preparados para lidar com situações difíceis, que muitas vezes envolvem a vida de uma pessoa, mas ainda assim deve ser capaz de emitir a melhor resposta, não só para o indivíduo, mas também para o sistema público.
Assim, quando o caso envolver questões de saúde, exige-se que, além da visão estabelecida no art. 196 da Constituição Federal de que “ a saúde é direito de todos e dever do Estado”44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2019 jan 15]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... , o juiz possua uma visão macro do sistema de saúde, no qual em nenhuma hipótese admite-se a saúde como direito individual absoluto e ainda mais em desacordo com as diretrizes do SUS ou do rol estabelecido pela ANS para a saúde suplementar, portanto, todo magistrado ao decidir sobre saúde deve ter conhecimento das leis que regulam o SUS, bem como da Lei nº 9.656 e das resoluções da ANS.
O conceito de saúde estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como completo bem-estar físico, mental e social é uma realidade impossível de ser verificada pelos brasileiros, uma vez que o País sofre com desigualdade social e desordem pública em todos os níveis de governo, o que afeta a qualidade de vida de qualquer cidadão.
Assim sendo, não cabe ao judiciário o papel de salvador da pátria e muito menos o de herói de um homem só, já que não podem os juízes no afã de fazer justiça no caso individual praticar ativismo a ponto de desestruturar procedimentos administrativos instituídos de acordo com a lei para regular o sistema de saúde, seja na esfera pública, seja na saúde suplementar.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Jun 2020 - Data do Fascículo
Dez 2019
Histórico
- Recebido
11 Set 2019 - Aceito
8 Nov 2019