Ética do cuidado e política: contribuições do legado de Maria de Lourdes Pintasilgo

Carlos Roberto Castro-Silva Sobre o autor

RESUMO

A proposta deste texto tem a função de trazer contribuições da ética do cuidado para práticas da Atenção Básica em Saúde a partir do legado de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930- 2004), Primeira Ministra de Portugal, de julho de 1979 a janeiro de 1980. Por meio do registro narrativo, trazem-se aspectos da trajetória de vida dessa política por meio do testemunho de uma importante parceira de luta, acrescido de aportes teórico-documentais, os quais fazem parte do acervo da Fundação Cuidar o Futuro, a qual buscava a melhoria sustentada da qualidade de vida e defesa de direitos básicos. A parlamentar teve expressiva participação política em Fóruns Europeus e das Organizações das Nações Unidas propondo ações que combatessem a desigualdade social e a opressão das mulheres. Inspirada na ética feminista, compreendia o cuidado como a pedra de toque de suas ações. Valorizava as experiências singulares das pessoas e comunidades como principal parâmetro de fortalecimento da participação social e efetividade dos direitos humanos. Por fim, expressava uma forma de fazer política em que o compromisso ético e o respeito consigo mesma, com o outro e com o meio ambiente balizavam seu modo de estar no mundo.

PALAVRAS-CHAVE
Empatia; Ética; Atenção Primária à Saúde; Afeto; Psicologia social

Introdução

O presente texto tem o objetivo de apresentar reflexões sobre a ética do cuidado, destacando algumas incursões teórico-conceituais que contribuam para a construção de políticas públicas sociais, especialmente na área da saúde. O desencadeador destas reflexões foi o desenvolvimento de uma pesquisa sobre a ética do cuidado e práticas na Atenção Básica em Saúde, denominado: 'Ética do cuidado e construção de direitos: acolhimento psicossocial em práticas da saúde da família em situações de exclusão social'.

Em muitos anos de trabalho em ensino, pesquisa e extensão em uma universidade pública, relacionados com as práticas da Estratégia Saúde da Família (ESF), a questão da produção do cuidado tem-se mostrado um balizador importante da qualidade dos vínculos estabelecidos no território entre os diferentes atores sociais envolvidos, especialmente entre profissionais de saúde entre si, desses com a comunidade e com lideranças comunitárias e os usuários do serviço.

A atenção para os vínculos acontece devido ao privilegiamento de um olhar para a realidade por meio da lente da intersubjetividade, ou seja, para aquelas características psicossociais que delineiam os modos de sociabilidade e práticas em saúde. A referência da psicologia sócio-histórica tem contribuído para a compreensão da subjetividade construída a partir da interação dos sujeitos com seu meio social11 Bock AMB, Gonçalves MGM, Furtado O, editores. Psicologia sócio histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez; 2007., além do aprofundamento da discussão de processos de politização das práticas em saúde, principalmente sobre a apreensão das relações de poder no território, e as formas de mobilização comunitária, consequentemente, no enfrentamento das sequelas da exclusão social22 Sawaia BB. Transformação social: um objeto pertinente à psicologia social? Psicol Soc [internet]. 2014 [acesso 2019 maio 18]; 26(esp2):4-17. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000600002.
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-33 Martín-Baró I. Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais. Rio de Janeiro: Vozes; 2017., especialmente nesses territórios da Baixada Santista em que os índices de vulnerabilidade social são altíssimos, expressos pelo aumento da violência de todos os tipos e da pobreza extrema44 Silva CRC, Mendes R, Moraes RCP, et al. Participação social e a potência do agente comunitário de saúde. Psicol Soc [internet]. 2014 [acesso em 2019 maio 18]; 26 (esp2):112-23. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000600012.
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,55 Anhas DM, Rosa KRM, Silva CRC. Afetividade e Práxis Transformadora na Pesquisa Qualitativa. Psicol Soc [internet]. 2018; [acesso em 2019 maio 18]; 30: e173315. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30173315.
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As atividades que realizamos nesses territórios têm como foco as práticas do Agente Comunitário de Saúde (ACS) devido a sua inserção na comunidade, propiciando o desenvolvimento de pesquisas e ações de ensino e extensão que tivessem como foco a comunidade, suas necessidades e, então, adequações aos serviços ofertados pela ESF66 Mendes R, Frutuoso MFP, Silva CRC. Integralidade como processo intersubjetivo de construção de práticas em território de exclusão social. Saúde debate [internet]. 2017 [acesso em 2019 maio 18]; 41(114):707-7. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201711403.
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7 Frutuoso MFP, Mendes R, Rosa KRM, et al. Gestão local de saúde em território de vulnerabilidade: motivações e racionalidades. Saúde debate [internet]. 2015 [acesso em 2019 maio 18]; 39(105):337-49. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420151050002003.
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-88 Samudio JLP, Brant LC, Martins AC F, et al. Agentes comunitários de saúde na atenção primária no Brasil: multiplicidade de atividades e fragilização da formação. Trab Educ Saúde [internet]. 2017 [acesso em 2019 maio 18]; 15(3):745-70. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00075.
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Nessa linha, o viés de gênero tem sido muito evidente, pois a grande maioria são mulheres moradoras na mesma localidade em que trabalham, visto que é uma prerrogativa para se atuar na função de ACS99 Brasil. Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.436, de 21de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [internet]. Brasília, DF: República Federativa do Brasil; 2017 [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html.
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. O exercício dessa atividade profissional vem ao encontro, muitas vezes, da busca de conciliação entre os afazeres como dona de casa e obtenção de renda para a família, aliás, muitas delas arrimo de família e exemplos de emancipação para outras mulheres da comunidade1010 Silva CRC, Mendes R, Moraes RCP, et al. Participação social e a potência do agente comunitário de saúde. Psicol Soc [internet]. 2014 [acesso em 2019 maio 18]; 26(esp2):112-23. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000600012.
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,1111 Barbosa RHS, Menezes CAF, David HMS, et al. Gênero e trabalho em saúde: um olhar crítico sobre o trabalho de agentes comunitárias/os de Saúde. Interface (Botucatu) [internet]. 2012 [acesso em 2019 maio 18]; 16(42):751-65. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832012000300013.
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. Em função disso, consideramos que os questionamentos sobre as práticas desse profissional de saúde podem ser mais bem compreendidos pela dimensão ético-política, ou seja, pela atitude diante de si e do outro, no contexto de produção de acolhimento e escuta qualificada.

Nesse sentido, a referência da ética do cuidado tem-se mostrado um esteio profícuo, na medida em que coloca o cuidado como centro das políticas públicas para o enfrentamento da saúde como uma mercadoria1212 Boff L. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes; 2012.,1313 Pintasilgo ML. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Porto: Afrontamento; 2011.. Além disso, a ética do cuidado, em sua vertente feminista, amplia o escopo para além do cuidado como uma característica eminentemente feminina, a qual fragiliza seu caráter político1414 Zirbel I. Uma teoria político-feminista do cuidado [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação e, Filosofia; 2016. 324 p. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167820.
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O contorno para esta complexa discussão sobre a ética do cuidado tem sua base em diferentes vertentes, destacando as perspectivas filosóficas de Leonardo Boff1212 Boff L. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes; 2012.,1515 Boff L. Saber Cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes; 2014. e a ética feminista em sua busca de articulação entre cuidado e justiça1616 Keller J, Kittay EF. Feminist Ethics of Care. In: Garry A, Serene J, Khader AS, editores. The Routledge Companion to Feminist Philosophy. Abingdon: Routledge; 2017. p. 540-55.,1717 Kuhnen TA. O princípio universalizável do cuidado: superando limites de gênero na teoria moral [tese]. [Florianópolis]: Universidade Federal de Santa Catarina; 2015. 383 p. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/132604.
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. Entretanto, o principal referencial veio com as propostas políticas de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004) (MLP), foco deste texto. A descoberta do pensamento dessa política, primeira ministra portuguesa mulher de julho de 1979 a janeiro de 1980, possibilitou encaminhamentos instigantes para a discussão sobre a politização do cuidado em práticas de saúde.

Assim, este texto tem a principal função de apresentar e divulgar aspectos da vida e obra de MLP e suscitar suas contribuições para a construção de políticas públicas sociais, especificamente para a área de saúde pública, calcadas na ética do cuidado.

Métodos

MLP deixou um legado expressivo de suas ideias e propostas políticas, o qual pode ser encontrado nos acervos da Fundação Cuidar o Futuro, instituição fundada por ela própria em 20011313 Pintasilgo ML. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Porto: Afrontamento; 2011.,1818 Fundação Cuidar o Futuro [internet]. Lisboa: Cuidar o Futuro; 2019 [acesso 2019 maio 18]. Disponível em: https://fundacaocuidarofuturo.pt/fundacao/.
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. Segundo MLP,

A Fundação Cuidar o Futuro nasce, por um lado da lógica dos meus empenhamentos públicos e, por outro, da dinâmica do movimento internacional do Graal a que pertenço1818 Fundação Cuidar o Futuro [internet]. Lisboa: Cuidar o Futuro; 2019 [acesso 2019 maio 18]. Disponível em: https://fundacaocuidarofuturo.pt/fundacao/.
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Entretanto, o fio condutor para conhecermos um pouco da vida e obra de MLP, além de textos escritos por ela e seus comentadores/interpretes, foi o relato de uma pessoa muito próxima a ela, a Dra. Margarida Santos (MS), atualmente presidente da Fundação Cuidar o Futuro, que a conheceu desde os estudos universitários e a acompanhou na maior parte de sua trajetória de vida. A proposta de entrevistar MS era de compreender os ideais e ações políticas de MLP por meio de aspectos de sua trajetória de vida cotidiana, mais do que elencar seus feitos registrados em documentos e textos acadêmicos e/ou jornalísticos.

Nesse sentido, aconteceram três encontros com MS na sede da Fundação, marcados por muita simpatia e disponibilidade por parte dela, os quais foram registrados em diários de campo visando à produção de uma narrativa sobre tal vivência de MS com MLP. Essas notas tomaram forma de um texto que foi posteriormente devolvido e revisado por comentários dela própria, gerando a versão final desta narrativa1919 Capozzolo AA, Casetto SJ, Imbrizi JM, et al. Narrativas na formação comum de profissionais de saúde. Trab Educ Saúde [internet]. 2014 [acesso em 2019 maio 18]; 12(2):443-56. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1981-77462014000200013.
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,2020 Muylaert C, Sarubbi Jr V, Gallo P, et al. Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. REEUSP [internet]. 2014 [acesso em 2019 maio 18]; 48(esp2):184-9. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/reeusp/article/view/103125.
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A construção de um mosaico de afetos e itinerários

A descoberta de MLP e de seu legado se deu a partir de um estágio de pesquisa no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa sob a mentoria da Professora Maria Luisa Ribeiro Ferreira, pela qual foi possível obter aportes iniciais sobre a ética do cuidado, principalmente pela vertente feminista2121 Ferreira MLR. A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa. Lisboa: Fundação Calouste; 1997..

Estudiosa de Espinosa, a Professora aborda a ética do cuidado por meio da valorização dos afetos como dimensão importante para o trabalho da própria razão. O pensamento de Espinosa nos ajuda a compreender o papel dos desejos no impulso de vida dos sujeitos e de seu papel para a constituição da razão. A ideia não é de estabelecer uma relação mecanicista entre razão e afeto, mas de entender que o desejo, como coloca Ferreira2121 Ferreira MLR. A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa. Lisboa: Fundação Calouste; 1997.(453),

reflete tudo o que acontece ao indivíduo. É ele que permite o relacionamento com as coisas, pois no seu expansionismo apela para elas. É o desejo que fundamenta a sociabilidade.

Segundo Carrilho2222 Carrilho MMR. A fundamentação filosófica das noções de cuidado e de responsabilidade no pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo [tese]. Évora (PT): Universidade de Évora; 2015. 458 p. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/62470382.pdf.
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, o desejo para MLP ensejava

[...] dotar cada pessoa da capacidade de sentir o desejo como uma possibilidade. No fundo, tentou fazer acreditar que a mudança só vale a pena se for para alcançar o que se deseja e para cumprir aquilo que se promete, na palavra proferida2222 Carrilho MMR. A fundamentação filosófica das noções de cuidado e de responsabilidade no pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo [tese]. Évora (PT): Universidade de Évora; 2015. 458 p. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/62470382.pdf.
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(119).

Nos primeiros encontros com a Professora Maria Luisa, tive a satisfação de conhecer Maria Fernanda Henriques, professora da Universidade de Évora e estudiosa do feminismo. Esta trouxe outras referências sobre MLP, especialmente pelo seu envolvimento com a Fundação Cuidar o Futuro e o Graal. Esta última instituição de cunho católico nasce com a proposta de defender os direitos das mulheres.

Além disso, a professora Maria Fernanda organizou um número especial da revista 'Ex aequo'2323 Dossier: Maria de Lourdes Pintasilgo, cinco anos depois. Ecos de Palavras dadas. Ex aequo [internet]. 2010 [acesso em 2019 maio 18]; 21:5-185. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0874-556020100001&lng=pt&nrm=iso.
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sobre MLP em que aborda diferentes aspectos de sua vida e obra. Logo na apresentação desse número da revista, ela disse sobre MLP:

MLP instaurou com sua intervenção de mulher e cidadã. Elas são por isso palavras fundadoras de um modo de habitar a vida e de protagonizar a história, através de uma intencionalidade profunda de quem sabe perceber uma herança, mas simultaneamente quer reconhecê-la pela recriação2323 Dossier: Maria de Lourdes Pintasilgo, cinco anos depois. Ecos de Palavras dadas. Ex aequo [internet]. 2010 [acesso em 2019 maio 18]; 21:5-185. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0874-556020100001&lng=pt&nrm=iso.
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O cuidado, como pedra de toque das práticas de MLP, foi resultado de mudanças e aprimoramentos de seu pensamento, pois, na década de 1960, defendia o amor como base para compreender a natureza das relações humanas. A questão do cuidado se fortalece como uma vertente mais recente de seu pensamento nos anos 1980. Catalisa um repertório em que a ética feminista fornece a argumentação necessária para fundamentar a capacidade de cuidar como um atributo universal, tal qual a necessidade de todos em cuidar e ser cuidado1313 Pintasilgo ML. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Porto: Afrontamento; 2011.,2222 Carrilho MMR. A fundamentação filosófica das noções de cuidado e de responsabilidade no pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo [tese]. Évora (PT): Universidade de Évora; 2015. 458 p. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/62470382.pdf.
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Nesse sentido, Ramos2424 Ramos MIS. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2013 [acesso em 2019 maio 18]; 27:152-5. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602013000100012&lng=pt&nrm=iso.
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destaca que um dos eixos de atuação de MLP se referia a mulheres, igualdade e democracia paritária. Esse eixo representa um ponto de partida profícuo para MLP na medida em que, ao mesmo tempo que valoriza uma cultura feminina, inclusive sem querer se igualar ao modelo masculino, traz, nessa discussão, a importância do cuidado inspirado num modelo feminino.

Nessa linha, amplia a forma do agir humano, independentemente da questão de gênero. Em consequência, forja novas formas de se fazer política e de governabilidade.

Logo no início de seu relato sobre a trajetória de vida de MLP, MS destacou dois fatores norteadores de suas práticas: um se refere à luta pelos direitos das mulheres; e outro, à luta contra a desigualdade social. Por sua vez, essa referência feminista foi rememorada inicialmente pelos impasses vividos por MLP como engenheira química, formada em 1953 pelo Instituto Superior Técnico, lugar onde tinha um convívio predominantemente com homens.

MLP trabalhava numa indústria como engenheira, lugar distante de Lisboa e que exigia que ficasse naquele lugar. Situação comum se não fosse pelo fato de que era a única mulher em meio a tantos homens. Além desta coragem e disposição MLP quando chegava à fábrica cumprimentava primeiro os operários e depois seus colegas e chefias, gerando certos conflitos e/ou constrangimentos com estes últimos. (Trecho da narrativa de MS).

Essa desenvoltura acompanhou a trajetória de MLP em outros espaços de poder, predominantemente masculinos. Em 1975, por meio do Decreto-Lei nº 47/75, de 1 de fevereiro, implementa como ministra dos Assuntos Sociais a Comissão da Condição Feminina, segundo relato de MLP2525 De Souza MR. Cronologia da vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2004 [acesso em 2019 maio 18]; 12:45-57. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-11-maria-r.-souza.pdf.
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Quando fui ministra dos Assuntos Sociais, há mais de vinte anos [...] decidi intervir em todos os assuntos. Mesmo naqueles que não me diziam diretamente respeito e que eram, acentuadamente, do domínio masculino, como a Justiça, a Defesa, a Descolonização, os negócios Estrangeiros. Para muitas pessoas isto foi visto como querendo eu abarcar mais do que cabia. Na realidade, o que eu queria, e consegui, foi falar das coisas que os homens falavam para depois eles me escutarem naquilo que tinha a dizer: a necessidade da introdução da pensão social, a necessidade de um salário mínimo, a extensão da cobertura da saúde aos rurais, etc.2525 De Souza MR. Cronologia da vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2004 [acesso em 2019 maio 18]; 12:45-57. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-11-maria-r.-souza.pdf.
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Na década de 1990, MLP presidiu a Comissão Independente sobre a População e a Qualidade de Vida (ICPQL), sob a égide das Nações Unidas, tendo como principal objetivo desenvolver uma nova visão sobre questões internacionais das populações a partir do referencial dos direitos humanos e condições socioeconômicas. Em 1998, o ICPQL publicou o relatório 'Cuidar o Futuro', no qual expressou preocupações da relação entre preservação do meio ambiente e melhoria de condições de vida das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Questionamentos ainda atuais, referentes ao desenvolvimento sustentável relacionado com a erradicação da pobreza2626 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável [internet]. 2015. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf.
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O pioneirismo deste trabalho vê-se refletido nas preocupações que estão na base da Resolução da Organização das Nações Unidas: Transformar o nosso mundo: Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável, em vigor desde 1 de janeiro de 20162626 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável [internet]. 2015. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf.
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Rego2727 Rêgo MC. Um pensamento novo. Ex aequo [internet]. 2005 [acesso em 2019 maio 18]; 12:139-48. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-19-maria-do-ceu-rego.pdf.
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destaca com muito apreço e certo saudosismo o protagonismo de MLP no Comitê Internacional de Peritos para discutir mudanças estruturais na Europa, na perspectiva do papel da mulher. Havia a expectativa de problematização dos direitos humanos quanto à forma como beneficiam as pessoas, especialmente as mulheres, ou seja, buscava-se rearticular os direitos civis, sociais e políticos e econômicos, sendo que estas acepções estão associadas a transformações do mundo do trabalho.

Os obstáculos para as inovações propostas nessa linha referem-se às injustiças e diferenciações entre os gêneros masculino e feminino, inclusive quanto às diferenças de remuneração, também quanto aos papéis sociais de ambos. Esse relatório do Comitê de Peritos, de 1991 aponta a perversidade da aprovação de tempo parcial de trabalho para a mulher, pois muitas faziam tal opção para tentar conciliar com as funções dos cuidados com a família e casa, gerando mais sobrecarga. Ainda se refere à necessidade de uma discussão sobre os projetos de vida de famílias. Rego2727 Rêgo MC. Um pensamento novo. Ex aequo [internet]. 2005 [acesso em 2019 maio 18]; 12:139-48. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-19-maria-do-ceu-rego.pdf.
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lembra da expressão de MLP do direito fundamental ao cuidado: o cuidar é a base da ação social, pois visa atenção às necessidades concretas de indivíduos e grupos.

Segundo MS, sua amiga nunca se deixou intimidar pelos diferentes tipos de opressão, principalmente pelo fato de ocupar cargos tradicionalmente ocupados por homens: é importante notar a ênfase dada por MS para a principal estratégia que MLP utilizou para obter os subsídios para o desenvolvimento de seus projetos, ou seja, de consultar diretamente as pessoas nos locais em que viviam por meio do que denominou de audições públicas. A proposta de audições públicas foi descrita no documento referente ao projeto denominado: Ouvir o presente, cuidar o futuro: homenagear Maria de Lourdes Pintasilgo; evento de comemorações dos 40 anos da institucionalização da Comissão da Condição Feminina – atualmente Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Gênero. Segundo o relato de MS, as audições aconteciam da seguinte forma:

é importante destacar aspectos de sua metodologia de trabalho. MS disse claramente que na coordenação desta 'Comissão Independente sobre qualidade de vida', MLP organizou um grupo composto igualmente por homens e mulheres, incluindo outros tipos de representações, como de países do Norte e do Sul, buscando um grupo mais igualitário. Além disso, ela preferiu consultar as pessoas diretamente ao invés de se basear somente em relatórios prévios, pois queria ouvir as pessoas diretamente que vivenciavam situações relacionadas à exclusão social. (Trecho de narrativa de MS).

A predisposição de MLP em estar junto e de ouvir o outro é notória. Essa atitude nos traz elementos ricos sobre processos de participação social enquanto uma ferramenta de construção de cidadania, pautada como parâmetro de modos de socialização e convivência cidadã2727 Rêgo MC. Um pensamento novo. Ex aequo [internet]. 2005 [acesso em 2019 maio 18]; 12:139-48. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-19-maria-do-ceu-rego.pdf.
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Nesse sentido, o relato de MS, assim como de outras pessoas, revelou a preocupação de MLP em manter os vínculos com as pessoas apesar das atribulações da vida pública. Ela se esforçava em estar presente na vida de pessoas próximas, principalmente em momentos mais difíceis. Relatou, emocionada, o companheirismo de MLP em alguns desses momentos.

MLP tinha este propósito de se manter junto das pessoas que amava e que precisavam dela, ou melhor dizendo, de quem era parceira. MS expressou isto com a palavra fidelidade, ou seja, apesar de compromissos da vida pública e muitos deles de projeção internacional não impediam que ela continuasse próxima às pessoas de seu convívio. MS fala com orgulho que MLP foi ao enterro de sua mãe numa cidade pequena do interior de Portugal e foi ao enterro de seu pai. Lembra-se também com clareza do período em que ajudou MLP a cuidar de sua mãe que havia sofrido um AVC. Elas se revezavam, com a colaboração de outras pessoas neste cuidado à enferma. (Trecho da narrativa de MS).

Segundo da Rocha-Cunha2828 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Secretaria Nacional de Assistência Social, Departamento de Proteção Social Básica. Concepção de convivência e fortalecimento de vínculos [internet]. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social; 2017 [acesso em 2019 maio 18]. 77 p. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/concepcao_fortalecimento_vinculos.pdf.
http://www.mds.gov.br/webarquivos/public...
, a ideia de política defendida por MLP está associada com a questão do bem-estar das pessoas, inclusive com vistas ao cuidado com as novas gerações. A política mostra-se como um campo de enfrentamentos de desafios que abarcam discussões profundas, destacando essa ideia de mudança do mundo da vida. Há uma perspectiva mais arrojada de mudanças que abarcam os sentidos e significados que regem o modo de vida das pessoas.

Notamos que há uma vivência de esvaziamento da política na era pós-moderna em que os protagonistas da política, inclusive de organizações sociais, vêm na esteira de uma crise da legitimidade do Estado, expressa pela política representativa, pela qual as pessoas não se sentem mais representadas3030 Gohn MG. Movimentos sociais na contemporaneidade. Rev Bras Educ [internet]. 2011 [acesso em 2019 maio 18]; 16(47):333-61. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782011000200005.
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. Há também uma exacerbação de um capitalismo financeiro em que as pessoas se tornam objetos de um mecanismo perverso de desvalorização da vida. Rocha-Cunha fala de uma angústia gerada em uma rotina enlouquecida2929 Rocha-Cunha S. Dilemas & problemas do político numa era de vencedores: duas derivas (in)tempestivas a propósito de alguns pensamentos de Maria de Lurdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2005 [acesso em 2019 maio 18]; 12:127-38. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-18-silverio-cunha.pdf.
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. Ao parafrasear H. Arendt, o homem é lançado para si mesmo como em um solilóquio que o isola de suas conquistas enquanto gênero humano, resultando no acirramento de um sentimento de impotência2929 Rocha-Cunha S. Dilemas & problemas do político numa era de vencedores: duas derivas (in)tempestivas a propósito de alguns pensamentos de Maria de Lurdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2005 [acesso em 2019 maio 18]; 12:127-38. Disponível em: https://exaequo.apem-estudos.org/files/2017-11/artigo-18-silverio-cunha.pdf.
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,3030 Gohn MG. Movimentos sociais na contemporaneidade. Rev Bras Educ [internet]. 2011 [acesso em 2019 maio 18]; 16(47):333-61. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782011000200005.
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A promoção de bons encontros possibilita o fortalecimento da participação social, e a fragilização desta está associada à predominância de afetos tristes, segundo o referencial espinosano3131 Ferreira MLR, editor. As teias que as mulheres tecem. Lisboa: Colibri; 2003.; isso na medida em que os espaços dos movimentos sociais devem ser lugares de cultivo de amizade e troca de experiências entre as pessoas3131 Ferreira MLR, editor. As teias que as mulheres tecem. Lisboa: Colibri; 2003., pois, o movimento social, visto como um lugar de busca de justiça, implica que as pessoas se preocupem umas com as outras. A ausência de afeto estaria na base da indiferença entre as pessoas com relação à dor. A viragem para o humano tem no afeto sua base, visto que mudar a vida significa valorizar a compaixão e cumplicidade entre os homens. Esse afeto suscita imediatamente uma ação transformadora, uma vez que, ao dar voz e ouvir o outro, abrem-se novos caminhos1515 Boff L. Saber Cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes; 2014.,3232 Sawaia B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 14. ed. São Paulo: Vozes; 2014.

33 Ortega F. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras; 2002.
-3434 Técnico Lisboa. Prémio Maria de Lourdes Pintasilgo 2017 [internet]. Lisboa: Técnico Lisboa; 2017. [acesso em 2019 maio 18]. Disponível em: https://tecnico.ulisboa.pt/pt/noticias/campus-e-comunidade/premio-maria-de-lourdes-pintasilgo-2017/.
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MLP, desde os 14 anos de idade, segundo MS, quando estudava no Liceu, envolvia-se com grupos de estudantes; e na universidade, também com o grêmio de estudantes. Em 1956, participou da Juventude Universitária Católica e foi vice-presidente da Fundação do Graal Internacional de 1963 a 1968. MLP enfrentou vários entraves com alas mais conservadoras da igreja, todavia é uma entidade que mantém uma identidade própria.

Na perspectiva de defesa dos direitos humanos, MLP, segundo Ramos2424 Ramos MIS. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2013 [acesso em 2019 maio 18]; 27:152-5. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602013000100012&lng=pt&nrm=iso.
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, indagava sobre a pertinência entre o que está previsto em lei e as possibilidades de sua concretização. Ela percebia a questão dos direitos humanos como uma referência muitas vezes abstrata para as pessoas, ou seja, que refletia pouco na vida cotidiana das pessoas, especialmente daqueles que sofrem com o preconceito e discriminação.

Nessa discussão, a questão do poder tornou-se um eixo importante para a concretização de direitos, principalmente no que se refere ao poder sobre as coisas e as pessoas, inaugurando, nessa perspectiva, a relação do homem com a natureza. Além disso, a questão do meio ambiente entra na perspectiva de uma cidadania comprometida, que também implica deveres, recorrendo à noção de responsabilidade de Hans Jonas3535 Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Lisboa M, Montes LB. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-RJ; 2006..

Nessa linha, a qualidade de vida era um tema importante para MLP e trazia junto reflexões e críticas a um modo de vida neoliberal que suscitava o individualismo e a mercantilização da vida. Segundo Ramos2424 Ramos MIS. Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ex aequo [internet]. 2013 [acesso em 2019 maio 18]; 27:152-5. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602013000100012&lng=pt&nrm=iso.
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, havia uma preocupação sobre a importância da ciência e tecnologia enquanto uma forma de mediação das relações humanas e dos valores ético-morais. A mediação pela técnica traria uma diferença entre saber e 'saber fazer', inclusive haveria necessidade de uma alfabetização científica e tecnológica.

Essas questões nos remetem à importância que dava para a responsabilidade das pessoas pelo mundo que estão criando e deixando para as novas gerações. Segundo MLP, essa responsabilidade paradoxalmente nos dirigiria à liberdade. Na ética da responsabilidade, estaria a raiz da liberdade. MLP criticava o excesso de tecnologização de nossa sociedade moderna que, associada ao modelo neoliberal, torna as pessoas mais individualistas e pouco preocupadas com outro e com o meio ambiente. Baseada em Hans Jonas3535 Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Lisboa M, Montes LB. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-RJ; 2006., ela defendia a corresponsabilização estabelecendo uma relação de mão dupla em que as pessoas devem se preocupar com o legado que deixam para as novas gerações.

No relato de MS, ao mesmo tempo que MLP se revelava uma figura extraordinária, determinada e segura de seus ideais, também se evidenciavam momentos de maior fragilidade em que precisou se resguardar. Especialmente quando atuante na Secretaria do Movimento Internacional do Graal, de 1964 a 1969, (era naquele momento vice-presidente) em Paris, retornou para Portugal para cuidar de sua saúde. Nesses momentos, MLP gostava de visitar os arredores de Lisboa apreciando a natureza, especialmente as florestas de pinheiros, e de fazer crochê.

O bordado, segundo MS, também era uma forma de MLP se energizar para suas lutas. MS conta que, em uma homenagem à nossa personagem na cidade de Fafe, houve uma exposição de seus objetos pessoais. Nela, expuseram seus bordados que, para MS, representavam muito de sua personalidade devido à concentração, firmeza e precisão que tal atividade exigia. Essa metáfora pode revelar uma intimidade, que, ao mesmo tempo humaniza, quanto à necessidade do cuidado de si, e, concomitantemente, fortalece os princípios de uma trama para um compromisso ético-político com o bem-estar coletivo.

MS relatou as habilidades de MLP quanto a fazer o ponto cruz. Esta atividade que a ajudava a relaxar, ilustrava seu vigor nas atividades que desenvolvia,pois, o resultado deste bordado exigia muita precisão e vigor nas amarrações. Desta forma, ambos os lados, aquele que fica à mostra aos outros devia estar tão bem feito quanto o lado contrário, onde os pontos eram amarrados. (Trecho de narrativa de MS).

Essa lembrança de MS a respeito do bordado suscita uma imagem rica de uma atividade típica do universo feminino, ao mesmo tempo que reforça uma característica humana importante para o exercício do cuidado atento e sensível. Além disso, essa atividade do bordado revela a exigência da feitura de amarrações firmes e precisas para a produção de uma trama forte.

Nesse sentido, damo-nos a liberdade de parafrasear a proposta de Ferreira3131 Ferreira MLR, editor. As teias que as mulheres tecem. Lisboa: Colibri; 2003. quando em seu texto 'As teias de afetos' menciona Espinosa a propósito da situação das mulheres na política. Para Espinosa, a ética, sendo a urdidura para a compreensão da constituição da substância primeira, propiciaria a compreensão dos modos de existência dos seres. Como coloca a autora: “Decifrar a teia infinita dos modos é uma tarefa árdua. Consegue-o quem penetrou na plenitude da substância”3131 Ferreira MLR, editor. As teias que as mulheres tecem. Lisboa: Colibri; 2003.(194). Para concluir, deixando uma imagem da máxima que pautou as práticas de MLP, evocamos a fala de Ferreira sobre essa articulação entre Espinosa e a condição feminina:

As ligações que as mulheres estabelecem não dispensam o protagonismo dos seres humanos concretos, a inter-ação pessoal, a dominante afetiva. É precisamente esta rede de afetos que iremos destacar, mostrando que ela corresponde, tal como em Espinosa, a procura de sentido. E por isso valoriza o singular, no que ele tem de insubstituível. É pelo processamento de relações afetivas que a trama do mundo ganha inelegibilidade e justificação3131 Ferreira MLR, editor. As teias que as mulheres tecem. Lisboa: Colibri; 2003.(167).

Considerações finais

A perspectiva de práticas na atenção básica, especialmente na ESF, nos coloca de maneira mais intensa nas vivências cotidianas das pessoas. Inclusive em territórios marcados pela exclusão social, a questão da saúde se mostra muito mais complexa, pois as determinações sociais suscitam uma compreensão mais ampla sobre a saúde e sua relação com o modo de vida das pessoas.

Compreender melhor os significados e sentidos do cuidado nos fornece pistas para a problematização de uma atitude profissional pautada pelo acolhimento e escuta sensível. Dessa forma, para além de uma normativa, de orientações técnicas, consideramos que a dimensão ético-política enseja a problematização do cuidado, na medida em que, ao contextualizar sócio-historicamente as ações em saúde, as desnaturaliza.

Por esse ângulo, consideramos pertinente valorizar e divulgar as propostas de política pública referenciadas no pensamento e trajetória de vida de MLP. A ex-primeira ministra de Portugal construiu um legado importante baseado em ações que combatessem a desigualdade social, levantando a bandeira dos direitos humanos, especificamente em defesa das mulheres. Mais do que a luta por direitos iguais, tinha a visão de que o universo feminino pudesse trazer novas respostas para questionamentos de uma sociedade minada pelo esgarçamento das relações humanas, competividade e consumismo exacerbados.

  • Suporte financeiro: Fapesp, processo 2016/23973-2

Agradecimentos

À Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Professora Catedrática de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dedicada aos estudos femininos e de gênero.

À Fernanda Henriques Professora Emérita, da área de Filosofia, da Universidade de Évora. Criou e foi Diretora do Mestrado em Questões de Género e Educação para a Cidadania.

À Dra. Margarida A. Santos, Presidente da Fundação Cuidar o Futuro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2019
  • Aceito
    04 Nov 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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