Micropolítica da gestão e trabalho em saúde em um curso de Educação a Distância para gerentes da Atenção Primária à Saúde

Magda de Souza Chagas Sobre o autor

RESUMO

Esse artigo teve como objetivo apresentar a elaboração do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, na modalidade Ensino a Distância (EaD). Para isso, o relato de experiência foi utilizado como método. O curso foi elaborado por docentes da Universidade Federal Fluminense a partir de demanda do Ministério da Saúde, entre os anos de 2016 e 2019, e adotou como base, na Proposta Político-Pedagógica (PPP), a micropolítica do trabalho. Para o alcance da PPP, foram criadas ou incorporadas algumas ferramentas, elaborado material didático pelos próprios docentes, construídas estratégias na formação dos tutores e alguns conceitos relacionados com o desenvolvimento da autonomia para a vida na construção da relação tutor-aluno. Concluiu-se que os alunos e alunas construíram atividades e trabalhos de conclusão que explicitaram atividades micropolíticas no processo de trabalho. Além disso, foi possível destacar que o fato de os membros da coordenação terem participado ativamente de todo o processo do curso, além de ter possibilitado educação permanente para cada um(a), favoreceu a construção e o fortalecimento da identidade institucional do curso, potencializou as ações e as intervenções pedagógicas de apoio aos tutores e facilitou alterações a partir das avaliações e das reavaliações.

PALAVRAS-CHAVE
Educação a Distância; Gestão em saúde; Atenção Primária à Saúde; Educação permanente em saúde; Micropolítica

Introdução

A mudança no modelo de saúde brasileiro teve início com a Reforma Sanitária nos anos 1970, culminando no Sistema Único de Saúde (SUS) garantido a partir da Constituição Federal no final da década de 1980; e as leis elaboradas ainda na década de 1990 possibilitaram rearranjos do sistema de saúde que até então encontrava-se fortemente hospitalocêntrico e médico centrado. Um dos principais rearranjos ocorreu e ocorre no primeiro nível de atenção, na Atenção Primária à Saúde (APS), e teve importante dinamizador: o Programa de Saúde da Família. A proximidade com a comunidade, com a família, com o território físico e existencial das pessoas alterou a dinâmica da construção de oferta de cuidado em saúde. Certo alargamento de olhar, que ocorreu concomitantemente com a expansão da cobertura nas últimas três décadas11 Giovanella L. Atenção Primária em Saúde e coordenação dos cuidados na rede assistencial. Divulg. saúde debate [internet]. 2014 [acesso em 2019 ago 30]; 51:30-37. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-51.pdf.
http://cebes.org.br/site/wp-content/uplo...
.

O crescimento da APS não ocorre ou ocorreu somente na expansão territorial. Esse nível de atenção à saúde, que era visto como de pouca importância, passa a representar a principal porta de entrada do usuário(a) no SUS, ser o coordenador do cuidado e ter a responsabilidade da ordenação do cuidado na Rede de Atenção à Saúde (RAS)22 Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 30]; 22(4):1141-1154. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1141.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-...
. Diante de tamanho crescimento e responsabilidade, a pergunta que surge é: o quanto os(as) profissionais da APS estão preparados(as) para realizar e desempenhar as atividades necessárias?

A gerência da Unidade Básica de Saúde (UBS) em maior número é realizada por enfermeiras(os)33 Galavote HS, Zandonade E, Garcia ACP, et al. O trabalho do enfermeiro na atenção primária à saúde. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016; 20(1):90-98.

4 Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRFG. A complexidade do trabalho do enfermeiro na Atenção Primária à Saúde. Rev bras enferm. 2018; 71(1):752-757.
-55 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, et al. Nurses' clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011; 19(1):1-8.. No entanto, independentemente do profissional que assume a função de gerência, ela é exercida na atividade da assistência. Além da função, com raras exceções, a ocupação de ‘cargo’ ocorre sem capacitação delas(eles). Esse é um dado importante ante a expansão da atenção primária no SUS, o direcionamento para que esse nível de atenção coordene o cuidado que deve acontecer em rede, o que aumenta a complexidade da atuação66 Silva JAM, Ogata MN, Machado MLT. Capacitação dos trabalhadores de saúde na atenção básica: impactos e perspectivas. Rev. eletrônica enferm. 2007; 9(2):389-401., além da necessidade de organizar o cuidado na própria unidade de saúde.

O Ministério da Saúde (MS), reconhecendo o singular e importante papel a ser desempenhado pelo gerente da UBS e a pouca oferta de capacitação específica ao longo dos anos – mesmo diante da descentralização e da construção de propostas e reconhecimento de participação ativa e responsabilidade por parte das secretarias estaduais de saúde na capacitação de recursos humanos para esse nível de gestão77 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS 20 anos [internet]. Brasília, DF: CONASS; 2009. 282 p. [acesso em 2019 ago 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/sus20anosfinal.pdf.
https://www.conass.org.br/bibliotecav3/p...
,88 Andrade MC, Castanheira ERL. Cooperação e apoio técnico entre estado e municípios: a experiência do programa articuladores da atenção básica em São Paulo. Saúde Soc. 2011; 20(4):980-990. –, estabeleceu parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF) para desenvolvimento e realização de curso de atualização para gerentes da atenção básica na modalidade Ensino a Distância (EaD).

A parceria estabelecida ocorreu com o grupo de professores(as) da UFF que desenvolve atividades na área da saúde coletiva e tem elaborado cursos de EaD desde 2013 com abordagem centralizada na micropolítica do cuidado em saúde. Dar corpo à experimentação micropolítica no ensino à distância tem sido nosso principal marcador e diferenciador, dado que o conceito em si de micropolítica ainda parece impalpável e subjetivo para alguns. Desenvolver, como aliados à experimentação sensível, material a ser utilizado no processo de aprendizagem que não seja conteudista e que favoreça o encontro é o que temos tentado fazer.

Construir ferramentas de aprendizagem para EaD que chame atenção e cative o aluno (a aluna) e que, ao mesmo tempo, possa provocar reflexões e desenvolvimento de novos olhares e revisão de postura para si e na sua relação com o outro, principalmente o usuário do SUS, é desafiador. No entanto, o desafio foi potencializado quando pensamos e elaboramos material para um curso a distância que apresentasse valor de uso para as(os) trabalhadoras(es), que abarcasse, acolhesse e atendesse a singular diferença territorial brasileira, assim como a diversidade étnica, cultural, demográfica e existencial da população de cada canto desse país de dimensão continental, assim como cada profissional da área da saúde. Aqui, no caso da atenção primária, com tantos e distintos enfrentamentos diários e construção do ser e agir profissional na construção do cuidado, esse desafio convocou cada um dos(as) envolvidos(as) à constantes reflexões e busca de novos arranjos.

Este artigo, portanto, tem como objetivo apresentar a construção desenvolvida para o Curso de Atualização de Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado, realizado na modalidade EaD semipresencial por grupo de professoras(es) da UFF entre os anos de 2016 e 2019. Durante a elaboração do curso, foram desenvolvidas ferramentas com a intenção de construção de reflexão pelos profissionais sobre o seu processo de trabalho, entre outros pontos, como o de provocar estranhamentos e, quem sabe, a construção e busca de outros caminhos. Para alcançarmos o objetivo proposto, apresentaremos o desenvolvimento da estrutura pedagógica adotada, as estratégias utilizadas e as ferramentas que adotamos para cada unidade de aprendizagem. Assim, utilizaremos o relato de caso para abordarmos a experiência desenvolvida.

Desenvolvimento

A metodologia adotada para este texto trata-se de um relato de experiência de um dos membros da coordenação do curso que participou da elaboração da proposta e que realizou, com outros professores da UFF, curso de EaD para profissionais da APS que exerciam cargo de gerência.

Dialogando com Larrosa99 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19:20-28., podemos tomar a palavra experiência como algo que nos passa, nos acontece, conhecimento lapidado na prática e assim podendo ser experimento vivificado. Dessa forma, a experiência não pode ser controlada como quando se realiza um experimento de laboratório, pois é algo que nos acomete e nos atravessa.

Como aponta Simon1010 Simon AA. Sistematização de processos participativos: o caso de Santa Catarina. Rev. Bras. Agroecologia. 2007; 2(1):540-543., o compartilhar experimentações e construções de conhecimentos e aprendizagem é necessário e poderia ser pela sua simples socialização e democratização, mas não fica apenas nesse ponto. Relatar a experiência vivida é colocar autor(a) em processo de reflexão sobre o seu agir e fazer e, assim, produção de teoria e novos olhares. Uma construção de alteridade em si.

Dessa forma, a ideia é compartilhar os caminhos trilhados por nós e as construções de reflexões que realizamos como grupo que, ao construir o curso, constrói-se, constitui-se e fortalece-se como grupo. A primeira experimentação ocorreu e ocorre em cada um de nós.

A problematização foi a base pedagógica, dado que permite ao aluno refletir sobre o seu processo de trabalho ao mesmo tempo que constrói elementos de melhoria para a qualidade da assistência e do cuidado

A Proposta Político-Pedagógica (PPP) foi elaborada tendo como centro o trabalho exercido no âmbito da gestão da APS, compreendendo que ele não se desloca do trabalho para o cuidado, mas que há uma relação direta, um acoplamento entre ambas as dimensões do funcionamento das redes de saúde. Entendendo que a atividade de trabalho envolve necessariamente um aprendizado, e este é o pressuposto do método pedagógico do curso, justifica qualificá-lo como um processo de educação permanente. Os cenários de práticas foram insumos do conteúdo discutido no curso, e possibilitou a pactuação deles dentro dos temas fundamentais abordados.

Adotamos a micropolítica do trabalho como eixo condutor, tanto na construção do material didático quanto na capacitação dos tutores. Tomamos a micropolítica como aposta que, no processo relacional com o outro, constituímos espaços e processos de subjetivação que acontecem no território do encontro na saúde, seja no cuidado, seja na gestão em saúde, em que aquisição e incorporação de novos saberes se constituem na singular relação entre dois entes, que corrobora a formação de cada um dos envolvidos não apenas no espaço da formação acadêmica, mas inclusive no espaço da vida1111 Guatarri F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 2012.,1212 Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014..

A PPP que tem a micropolítica do trabalho como alicerce acontece entrelaçada com os conceitos de Paulo Freire1313 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011.,1414 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. referentes à autonomia do outro, reconhecimento que todos ‘são sabidos’; e assim a construção e a incorporação de uma prática pedagógica horizontal. Aqui foi feita uma aposta no maior ativismo possível do participante ‘aprender a aprender’, ou seja, um protagonismo na busca do conhecimento, e isto foi explorado ao máximo pelo curso que priorizou e estimulou o estudo de situações-problema, casos da gestão, desafios e inovações, considerando o campo da gestão e do cuidado.

Se desejamos relações respeitosas, responsáveis e afetivas entre o gerente da APS e o usuário, entre o gerente e os profissionais da saúde e entre os profissionais e os usuários, precisamos incorporar esse desejo na formação ou na atualização dos profissionais, em processos de educação permanente que convidem cada um à reflexão e ao desenvolvimento de novas habilidades e construções diante do outro.

A proposta teve como foco a construção de um curso voltado para gestores do SUS vinculados à UBS e profissionais de saúde que atuem na APS. A sistematização desse processo tomou como base levantamento inicial sobre as funções do gerente e a identificação de valor de uso dessas atividades. Para aproximação, foram realizadas duas oficinas em Brasília com profissionais de saúde, representantes do MS e membros da coordenação do curso da UFF, em que foram definidas as principais áreas que representavam desafios para o gerente.

Assim, o curso trabalha com três macrocompetências e apresenta algumas ferramentas (sobre ferramentas abordaremos adiante). As macrocompetências estão relacionadas com a gestão do trabalho, com a gestão de insumos e com a gestão de redes de saúde. A partir da definição das macrocompetências, a proposta do curso e o material didático foram elaborados em três Unidades de Aprendizagens (UA):

  1. UA 1 – Gestão do Trabalho – Capacidade de promover espaços para diálogo e formação de vínculo com a equipe e os usuários, definindo acordos e regras, mediando conflitos e resolvendo questões pertinentes ao processo de trabalho.

  2. UA 2 – Gestão dos Insumos – Capacidade de valer-se dos recursos físicos, tecnológicos e equipamentos existentes na UBS, otimizando-os no apoio aos processos de cuidado e de orientação da equipe sobre a correta utilização desses recursos.

  3. UA 3 – Gestão de Redes – Capacidade de utilizar mecanismos para a construção de redes que favoreçam a gestão do cuidado considerando os diferentes atores e os demais serviços de saúde.

O material didático foi desenvolvido pelos membros da coordenação (professores da UFF) que se dividiram entre as três UA. A ideia que nos acompanhou e nos direcionou foi a elaboração de material didático que possibilitasse conversa, que provocasse reflexão no aluno/profissional; e assim desenvolvemos os seguintes pontos: Conteúdo não é carro chefe, é insumo, precisa ser oportuno e objetivo, não há hierarquia entre as UA, há possibilidade de nivelamento do aluno por disciplina, apoia o aprendizado a partir de um conjunto de estratégias e atividades. Dessa feita, as UA foram desenvolvidas com interfaces diretas com o mundo da gestão da APS e do cuidado, com casos inspirados em casos reais. Outro ponto importante que nos acompanhava durante a elaboração das UA foi que o material tivesse leveza, que fosse convidativo e que conversasse com diferentes realidades regionais, mas principalmente com a vida diária do gerente.

Dentro dessa perspectiva, construímos a estrutura pedagógica do curso, associando a dinâmica da micropolítica em saúde para organizar as oficinas de formação de tutores e a sustentação pedagógica da proposta, tendo como eixo fundamental que o mundo do trabalho é uma escola; e assim a problematização do cotidiano fundamentou as ações do curso.

A opção do MS pela educação a distância, no modo semipresencial, teve como intenção a oferta e a viabilização do curso ao maior número possível de profissionais da APS, uma vez que poderiam acessar o conteúdo e o tutor de acordo com sua disponibilidade. Acoplados a essa opção e tendo como marcador o objetivo na formação, organização de redes e atenção à saúde, resolvemos adotar alguns eixos orientadores como: Autonomia, Singularidade e Processo de Subjetivação.

A EaD, quando estimulada, pode desenvolver e promover a aprendizagem colaborativa1515 Santos EO, Carvalho FSP, Pimentel M. Mediação docente online para colaboração: notas de uma pesquisa-formação na cibercultura. Educ Temat Digit. 2016; 18(2):23-42.. Ao olharmos para os gestores da saúde, a aprendizagem colaborativa, quando vivenciada e apreendida, pode se transformar em ferramenta também para o dia a dia no trabalho na saúde para além do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) e dos encontros presenciais, dado que pode alimentar ou expandir as atividades no ambiente de trabalho da saúde, em que colaboração e corresponsabilidade são tônicas desejadas e esperadas.

Às etapas para o desenvolvimento da estrutura pedagógica adotada, estratégias utilizadas para a sua realização, elaboração do material didático, seguiu-se: construção da oficina pedagógica com tutores, construção de grupo de apoio aos tutores, plataforma virtual, proposta de acompanhamento das atividades do curso e proposta de acompanhamento de educação permanente com membros da coordenação e tutores.

A validação do conteúdo das UA ocorreu na Oficina de Formação dos Tutores realizada pelos membros da coordenação nacional do curso, que ocorreu em um período de dois dias intensivos, com todos os tutores do curso. Consideramos que este ator, o tutor, precisava desenvolver olhar amplo, escuta diferenciada e adotar nos encontros (presenciais e virtuais) certa plasticidade e percepção aguçada ao outro. Pensar a formação dos tutores envolveu isso.

Além da elaboração do material didático, preparo e realização da oficina de formação, constituiu-se estrutura de apoio aos tutores, em que, para cada grupo de, no máximo, dez tutores, foi ofertado um membro da coordenação, no desempenho de coordenação (apoio) pedagógico. O coordenador pedagógico teve de, entre outras atribuições: participar dos momentos presenciais do curso, quando possível; colaborar com a seleção de alunos e tutores para o curso; acompanhar, apoiar, orientar, o trabalho dos tutores com os alunos e responder pelas questões de ensino.

Sobre as ferramentas

Cada UA apresentou, no mínimo, uma ferramenta que carregava como intenção de potencializar as ações do gerente em cada uma das macrocompetências; em outra lógica de organização da clínica e do cuidado a partir da gestão (reconhecendo que gestão e cuidado são ações indissociáveis) e que tivessem valor de uso.

O quadro 1 apresentado abaixo refere-se resumidamente a cada uma das UA, as competências pretendidas para cada UA e as ferramentas elaboradas para o desenvolvimento dos objetivos e competências pretendidos.

Quadro 1
Relação das ferramentas de acordo com as Unidades de Aprendizagens

Gestão de ensino e aprendizagem e estratégias pedagógicas para o desenvolvimento do curso

A gestão de ensino e aprendizagem foi construída para desenvolvimento e consolidação da relação tutor-aluno. A relação do tutor é de facilitador da aprendizagem, nesse sentido, ele auxilia, motiva, orienta e estimula o desenvolvimento da aprendizagem autônoma do especializando. Autônoma, mas não solitária, uma vez que estimular o trabalho em grupo ou a busca de solução ou soluções diante de problematizações faz parte da estimulação do tutor para os alunos(as)1616 Martins AC, Falbo Neto G, Silva FAM. Características do Tutor Efetivo em ABP - Uma Revisão de Literatura. Rev bras educ med. 2018; 42(1):103-112.; valendo-se, entre outros meios, de recursos tecnológicos como o AVA, uma ferramenta na relação tutor-aluno.

O curso contou com momentos presenciais e utilização da plataforma na internet. Foram realizados três encontros presenciais, com intervalo de dois meses, de forma descentralizada e o mais próximo possível das turmas formadas. O número de presenciais foi o diferencial do curso, cuja intenção foi tanto fortalecer a construção de vínculos entre os participantes como que cada aluno(a) experimentasse as ferramentas com o tutor e os demais alunos e alunas da turma; e, posteriormente, no momento da dispersão, exercitasse com suas equipes de trabalho e compartilhasse com a turma e o tutor.

Respeitando as diferenças regionais, nos estados com mais de uma turma, buscou-se que o primeiro encontro presencial fosse realizado no mesmo local em cada estado, agregando todos os alunos e tutores para possibilitar maior aproximação à proposta, familiarizar com a plataforma na internet, e estimular o estabelecimento de relações e vínculos entre os envolvidos durante os dois dias e, ao mesmo tempo, trabalhar conhecimentos e estabelecimento de rede. A partir desse primeiro momento, o curso foi desenvolvido contando com a plataforma na internet (plataforma Moodle) e outras ferramentas de comunicação a distância.

O terceiro presencial foi realizado em todas as turmas, sempre que possível, nos mesmos locais dos anteriores, e correspondeu à realização de seminário de encerramento quando foram apresentados os trabalhos de conclusão de curso dos participantes.

Sistema de avaliação

Nesse curso, trabalhamos e mesclamos a avaliação somativa e a avaliação formativa. A avaliação foi trabalhada como atividade permanente e crítico-reflexiva no processo de ensino-aprendizagem, nas ações educacionais, uma vez que não deve ser vista como um capítulo à parte, visto que ela faz parte do caminho do processo de aprender1717 Antunes, C. A avaliação da aprendizagem escolar. 10. ed. Petrópolis: Vozes; 2013.. Adotamos avaliação durante todo o processo de ensino-aprendizagem e assim conseguimos perceber os avanços, detectar dificuldades, as chances de agir ainda durante o curso, replanejar, ofertar ações contínuas com vistas à qualificação do processo e atingirmos os resultados esperados tanto pelo aluno(a), como por cada um de nós, profissionais envolvidos.

No processo de avaliação foi importante pensarmos nos três aspectos básicos: localizar os avanços, localizar as necessidades e localizar as potencialidades. A possibilidade de avaliar as conquistas e avanços de cada gestor(aluno e aluna), durante o processo de aprendizagem, pode operar como propulsor de mão dupla, dado que podem fortalecer a autoestima do tutor(a) e do aluno(a)/gerente, pois prepara novas aprendizagens; identifica as lacunas, as necessidades, os erros, as dificuldades para tomar consciência e superá-los, justamente aqui entra a intervenção. O terceiro aspecto é o mais sutil, o que não estava previsto em termos de objetivo e, assim, não se aplica à categoria de certo ou errado, que são as potencialidades, captadas com olhar sensível.

Um dos pontos primordiais no processo de avaliação que adotamos foi que não tem sentido realizarmos avaliação descolada de uma proposta de intervenção, assim como pensamos planejamento em saúde. Para a intervenção, na prática educativa, o principal elemento é a sensibilidade, a questão do olhar que carrega intencionalidade1818 Vasconcellos CS. Avaliação da Aprendizagem - Práticas de Mudança: por uma práxis transformadora. 10. ed. São Paulo: Libertad; 2013..

Temos a tendência de um olhar classificatório. O olhar classificatório, da curva de Gauss ou da distribuição normal impede ver a pessoa como ela é. Ver o outro como ser humano, com direitos, com potencialidades, acreditar que ele pode aprender, que ele pode crescer, não negar a ele esse direito e, a partir desse olhar, construir a diferença. A questão do vínculo é importante. Para construirmos, para fazermos essa avaliação, precisamos de pessoas que estejam também dispostas a se avaliar. Avaliar e ser avaliado. Antes de falar da intervenção no outro, precisamos falar da nossa intervenção. Antes de avaliarmos o outro, necessitamos realizar autoavaliação, autonomia, autoria, do tutor(a) se fazer. Esses aspectos da avaliação que decidimos assumir no curso foram apresentados e trabalhados com os tutores durante a oficina de formação e lembrados, quando necessário, durante acompanhamento pedagógico.

Adotamos a narrativa como ferramenta transversal de avaliação. Ela é uma forma leve de escrita, como se estivéssemos contando uma história a uma pessoa que não pôde estar presente, mas que tem interesse em saber o que aconteceu. Transversal porque toda atividade, de cada UA, alimentava a narrativa que foi construída ao longo do curso. A elaboração constante corroborava a ideia de avaliação formativa, dado que permitia ao tutor acompanhar o caminhar e o progredir de cada aluno, além de poder realizar e atualizar acordos e intervenções. No terceiro encontro presencial, momento de encerramento do curso, cada aluno apresenta seu percurso narrativo ao longo do curso e pode utilizar diferentes formas de expressão, inclusive artística. Vale destacar que os recolhimentos têm sido riquíssimos.

Além das avaliações realizadas ao longo e ao término, adotamos reavaliação a cada final de curso, a cada final de ‘onda’ (denominação que temos para cada edição do curso). Para a construção da reavaliação, elaboramos e disponibilizamos via Google Forms®, para todos tutores e alunos, que realizam avaliação do curso, da plataforma, do tutor, da coordenação, de cada UA e das atividades de avaliação proposta em cada UA. Após análise quantitativa e qualitativa do material, organizamos e realizamos oficina de avaliação do curso em que convidamos representantes dos alunos, dos tutores, representantes do proponente (MS) e membros da coordenação. A prática de reavaliação está em consonância com o que apontou Levy1919 Levy S. Six factors to consider when planning online distance learning programs in higher education. OJDLA. 2003; 6(1):1-19., que trata dos avanços da proposta EaD alinhadas com reavaliação.

Conclusões

A construção de um curso EaD que se propôs incorporar micropolítica na construção da proposta pedagógica apresentou múltiplos desafios, que começaram na construção do material didático convidativo que não fosse básico demais ou acadêmico em demasia, e atravessou na formação de tutores que conseguissem transitar por territórios existenciais distintos e; a partir destes, trabalhar a potência em cada um dos envolvidos. Um ponto alto de destaque foi o fato de alunos e alunas terem construído atividades no espaço de trabalho e, posteriormente, trabalhos de conclusão que explicitaram o exercício micropolítico no processo de trabalho.

O fato de os membros da coordenação participarem ativamente de todo o processo do curso, além de possibilitar educação permanente durante a construção, dado que nos atualizou e atualiza, favoreceu a construção e o fortalecimento da identidade institucional do curso, potencializou as ações e intervenções pedagógicas de apoio aos tutores e facilitou alterações a partir das reavaliações.

Foi possível avaliarmos muito positivamente a aposta feita na coordenação pedagógica no acompanhamento de dez tutores. Foi possível assegurar o desenvolvimento da PPP do curso, assim como fundamentalmente realizar educação permanente com os tutores diante de situações cotidianas que surgiam durante a realização do curso.

A construção de uma proposta de avaliação também formativa foi fundamental. Já durante a capacitação dos tutores, foi possível receber retornos quanto ‘a nova’ possibilidade de olhar para a questão da avaliação e assim novos olhares para o outro, seja o aluno, tutor, coordenação ou até mesmo o usuário do sistema de saúde.

As ferramentas utilizadas apresentaram e têm apresentado potência na discussão da aprendizagem e fomentado mudança no processo de trabalho da gerência, assim como na construção de relação com as pessoas (profissionais e usuários). Algumas foram muito bem avaliadas, principalmente do Processo Circular que lida diretamente com a organização da equipe e conflito. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é a ferramenta que, no primeiro momento, em grande parte, desperta interesse comedido, dado que grande parte dos profissionais considera que já sabe, e somente durante a discussão e apresentação que o interesse ganha outra proporção e uso.

A EaD possibilitou que gerentes de diferentes estados e municípios do País pudessem receber a oferta do curso; e assim a oportunidade de trocas de ideias sobre gestão do cuidado, conflito, rede e insumos. Foram muitos os gerentes que relataram ser a primeira vez que participavam de uma formação e que algumas palavras que ouviam e repetiam em algumas reuniões passaram a ter sentido, como a discussão e realização do PTS e que reconheciam o quanto o tema RAS precisava estar presente no dia a dia do que faziam, assim como não deixar de lado ou fugir quando o conflito surge.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

  • 1
    Giovanella L. Atenção Primária em Saúde e coordenação dos cuidados na rede assistencial. Divulg. saúde debate [internet]. 2014 [acesso em 2019 ago 30]; 51:30-37. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-51.pdf
    » http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-51.pdf
  • 2
    Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso em 2019 ago 30]; 22(4):1141-1154. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1141.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1141.pdf
  • 3
    Galavote HS, Zandonade E, Garcia ACP, et al. O trabalho do enfermeiro na atenção primária à saúde. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016; 20(1):90-98.
  • 4
    Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRFG. A complexidade do trabalho do enfermeiro na Atenção Primária à Saúde. Rev bras enferm. 2018; 71(1):752-757.
  • 5
    Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, et al. Nurses' clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011; 19(1):1-8.
  • 6
    Silva JAM, Ogata MN, Machado MLT. Capacitação dos trabalhadores de saúde na atenção básica: impactos e perspectivas. Rev. eletrônica enferm. 2007; 9(2):389-401.
  • 7
    Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS 20 anos [internet]. Brasília, DF: CONASS; 2009. 282 p. [acesso em 2019 ago 28]. Disponível em: https://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/sus20anosfinal.pdf
    » https://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/sus20anosfinal.pdf
  • 8
    Andrade MC, Castanheira ERL. Cooperação e apoio técnico entre estado e municípios: a experiência do programa articuladores da atenção básica em São Paulo. Saúde Soc. 2011; 20(4):980-990.
  • 9
    Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19:20-28.
  • 10
    Simon AA. Sistematização de processos participativos: o caso de Santa Catarina. Rev. Bras. Agroecologia. 2007; 2(1):540-543.
  • 11
    Guatarri F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 2012.
  • 12
    Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014.
  • 13
    Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011.
  • 14
    Freire P. Pedagogia do Oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.
  • 15
    Santos EO, Carvalho FSP, Pimentel M. Mediação docente online para colaboração: notas de uma pesquisa-formação na cibercultura. Educ Temat Digit. 2016; 18(2):23-42.
  • 16
    Martins AC, Falbo Neto G, Silva FAM. Características do Tutor Efetivo em ABP - Uma Revisão de Literatura. Rev bras educ med. 2018; 42(1):103-112.
  • 17
    Antunes, C. A avaliação da aprendizagem escolar. 10. ed. Petrópolis: Vozes; 2013.
  • 18
    Vasconcellos CS. Avaliação da Aprendizagem - Práticas de Mudança: por uma práxis transformadora. 10. ed. São Paulo: Libertad; 2013.
  • 19
    Levy S. Six factors to consider when planning online distance learning programs in higher education. OJDLA. 2003; 6(1):1-19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2019
  • Aceito
    18 Nov 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br