Políticas do cotidiano: a gestão na atenção básica

Ana Lúcia Abrahão Ândrea Cardoso de Souza Túlio Batista Franco Maria Paula Cerqueira Gomes Sobre os autores

É COM PRAZER E IMENSA ALEGRIA QUE APRESENTAMOS este número especial da revista ‘Saúde em Debate’ do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em que é possível disponibilizar formulações e reflexões, produtos de vários anos de experimentação em encontros entre as pessoas que trabalham e que estão implicadas no cotidiano das redes de saúde. Esses encontros foram proporcionados pelo curso direcionado à Gerência da Atenção Básica da Universidade Federal Fluminense (UFF), que teve como foco as políticas do cotidiano e a micropolítica do trabalho. Sempre pronunciamos a ideia de que o ‘chão de fábrica’ dos serviços de saúde, ou seja, o local de encontro entre os usuários e trabalhadores, é um lugar onde germinam as inovações, pela força e potência criativa do próprio trabalho em saúde. Apoiados nessa convicção, buscamos trazer aos debates os cenários de práticas, as múltiplas relações no trabalho, o exercício cotidiano do ato de cuidar, para o primeiro plano de produção do curso. As disciplinas se tornaram assim, laboratórios de vidas na sua atividade cotidiana de produção do cuidado.

O curso percorreu todo o território brasileiro, foi invadido pelos vários sotaques, experiências de diferentes realidades, as muitas faces do imenso Sistema Único de Saúde se fizeram presentes. Ele foi produção de uma multidão, que, na sua multiplicidade, trouxe à cena aquilo que é comum a todas e todos nós: a função de acolher, cuidar, proteger os corpos que chegam para serem cuidados nas redes de serviços de saúde. O cuidado tem a função de dar passagem às suas potências.

Com toda diversidade presente, vemos que o comum em nós é o cuidar. A partir dessa ideia, encontramos a mesma gramática na produção da vida, que direciona as ações do trabalho, seja ele vinculado à atenção cotidiana à saúde, ou os processos de gerência e gestão dos serviços de saúde para o mesmo fim, que é a defesa da vida seja ela qual for. Todas as atividades do trabalho convergem sempre para o mesmo plano, que é a produção do cuidado11 Franco TB. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface (Botucatu). 2007; 11(23): 427-438..

Os encontros que experimentamos na gestão em saúde se misturam com as apostas de cuidado desenhadas pelas equipes. No cotidiano dos serviços, a produção intensa por modos de aliviar a dor, de construir com o usuário ferramentas com potencialidade de ampliar a vida e projetos terapêuticos se misturam com propostas de melhor desempenho do serviço, planejamentos e indicadores de saúde, ou seja, diferentes regimes de produção de verdades22 Foucault M. Verdade e poder. In: Micropolítica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2004. se apresentam em um mesmo cenário que convoca gestor e trabalhador a compartilhar da vida do usuário, exercendo, nessa tecedura, arranjos que coloquem ou não em evidência as multiplicidades da existência.

Gestão e cuidado conformam dimensões importantes a serem enfrentadas, principalmente por subsumir modos de sustentação e ampliação da potência de vida no seu processo de produção. Não se trata de aplicação de conceitos, mas que eles sejam experimentados como ferramentas capazes de aprofundar e formular perguntas que operam no cotidiano dos serviços.

A defesa da produção de subjetividades como uma característica a ser analisada nos espaços em que opera a gestão e a assistência pode ser traduzida como conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva33 Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. 3. ed. São Paulo: Editora 34; 1992.. Uma dinâmica processual em que há forças que estabelecem relações com outras forças e com ela mesma, produzindo processos de subjetivação; forças em relação.

Subjetividades que se expressam concretamente e se materializam no trabalho, na construção de ideias, de planilhas, protocolos, nos atos de cuidado na construção de vínculos, na construção de negociações entre os profissionais. Essa materialidade produz diferentes arranjos e ofertas de assistência e de gestão capazes de ampliar ou restringir o acesso ao cuidado em saúde nas diferentes redes de atenção.

Aposta-se que olhar esse território de produção de subjetividades como múltiplos processos de produção de vida, gestão e assistência incorpora uma potente fonte para pensar os diferentes problemas inerentes a essas dimensões. Os movimentos das instituições atravessam constantemente o gerar, o gerir e o cuidar nos serviços de saúde. Na produção de subjetividades, as tensões são fabricadas e merecem ser analisadas na medida em que são identificadas.

A constituição de coletivos a partir de modelos centrados em experiências partilhadas de gestão, lidando com as redes de dependência, torna possível desencadear processos de corresponsabilização, promovendo um modo de gerenciar que tenha espaço para a dinâmica de singularização e, portanto, de autonomia dos sujeitos envolvidos44 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. 3. ed. São Paulo: Hucitec; 2007..

Vemos, então, que não se trata de estabelecer hierarquias sobre a produção da saúde construída pelas equipes, nem mesmo de tomá-las em oposição, já que cada processo é composto de múltiplas direções e instituições que se atravessam produzindo infinitos encontros. Caminhos díspares cruzam a todo instante o plano da gestão em saúde e da produção das equipes. O fluxo contínuo de processo de subjetivação em que a invenção se faz presente compõe a paisagem. Aproximar-se desse território requer ferramentas que possam, ao penetrar entre as moléculas da gestão, da assistência, analisar seus fluxos, provocar ‘pororocas’55 Abrahão AL. Produção de subjetividade e gestão em saúde: cartografias da gerência [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004. 190 p..

Propor movimentos de análise sobre o processo que opera na gestão e na produção das equipes de saúde não é uma ação rotineira que identificamos nos serviços. Com facilidade, o que encontramos são conflitos de diferentes origens e uma baixa capacidade de enfrentá-los como matéria: o gerar. São processos que agitam a vida dos serviços que recortam as atividades e nos convocam para análise, um convite que quase sempre deixamos para depois. São pontos que agitam o nosso processo de operar por entre as lógicas instituídas como analisadores. Tomar o cotidiano do trabalho nas suas diferentes redes e formas de atenção e gestão requer um exercício de olhar para uso das tecnologias que são incorporadas nesse processo em suas diferentes dimensões: operativas, políticas, comunicacionais, simbólicas, subjetivas.

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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

  • 1
    Franco TB. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface (Botucatu). 2007; 11(23): 427-438.
  • 2
    Foucault M. Verdade e poder. In: Micropolítica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2004.
  • 3
    Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. 3. ed. São Paulo: Editora 34; 1992.
  • 4
    Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. 3. ed. São Paulo: Hucitec; 2007.
  • 5
    Abrahão AL. Produção de subjetividade e gestão em saúde: cartografias da gerência [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004. 190 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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