O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030

Marcelo Rasga Moreira Érica Kastrup José Mendes Ribeiro Antônio Ivo de Carvalho Analice Pinto Braga Sobre os autores

RESUMO

O objetivo do artigo foi analisar percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre as possibilidades de o País cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030, sobretudo no que se refere às metas do ‘ODS 3 – Saúde e Bem-Estar’. Definiu-se como ‘especialista’ o autor principal de artigo no campo da saúde pública, publicado entre setembro de 2012 e 2017, em periódicos indexados na plataforma Web of Science (WoS). Suas percepções foram levantadas pela técnica de investigação a distância, com a aplicação de instrumento eletrônico de pesquisa, recebido e devolvido por e-mail, por 884 respondentes (universo da pesquisa), no período de 22 de janeiro a 09 de fevereiro de 2018 (campo da pesquisa). Os especialistas respondentes, que apresentam ‘médio’ e ‘alto’ conhecimento sobre os ODS, consideram como ‘baixas’ as possibilidades de o Brasil cumprir algum dos 17 objetivos. Para eles, o País deveria priorizar o ODS 4 (Educação de Qualidade) e 1 (Erradicação da Pobreza), também considerados como aqueles que mais contribuiriam para a consecução do ODS 3 (Saúde e Bem-Estar). Como recomendações de políticas que viabilizariam a consecução das nove metas do ODS 3, os especialistas respondentes evidenciaram a ‘redução da pobreza’, a ‘universalização da atenção básica’ e a ‘educação’ da população.

PALAVRAS-CHAVE
Desenvolvimento sustentável; Política de saúde; Política informada por evidências

Introdução

A Agenda 2030 é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) que propõe um pacto global em prol do desenvolvimento sustentável. Seu principal intuito é garantir o desenvolvimento humano e o atendimento às necessidades básicas do cidadão por meio de um processo econômico, político e social que respeite o ambiente e a sustentabilidade11 Organização das Nações Unidas. Transformando o nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Resolução A/RES/70/1 [internet]. Nova Iorque: UN; 2015. [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf.
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Ratificada em 2015 por 193 países, essa Agenda é distribuída por 17 Objetivos – os ‘ODS, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável’ – compostos por 169 metas que devem ser cumpridas até o ano de 2030. Ampla, diversificada e demandando a interação de suas metas, tal proposta envolve uma diversidade de campos de atuação que transitam pela erradicação da pobreza e da fome; saúde e bem-estar; educação; igualdade de gênero; acesso à água potável e saneamento; energia limpa; trabalho decente; crescimento econômico sustentável; redução das desigualdades sociais; sustentabilidade da vida; inovações em infraestrutura; consumo responsável; cidades saudáveis; responsabilidade climática; redução das desigualdades; instituições eficazes; e paz social.

Nesse conjunto, o ODS 3 é dedicado à ‘Saúde e ao Bem-Estar’ e conta com nove ambiciosas metas que englobam a redução das mortalidades materna, infantil, prematura por doenças não transmissíveis, por acidentes nas estradas, por produtos químicos perigosos e por contaminação e poluição do ambiente; a extinção das epidemias de Aids, tuberculose, malária, doenças negligenciadas e o combate à hepatite; a promoção da saúde mental; a prevenção e o tratamento ao abuso de álcool e outras drogas; o acesso universal aos serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva; e a cobertura universal de saúde, incluindo proteção ao risco financeiro, acesso a serviços de qualidade e a vacinas e medicamentos essenciais e seguros22 Plataforma Agenda 2030 - acelerando as transformações para a Agenda 2030 no Brasil [internet]. Brasil. IPEA; PNUD. [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/ods/3/.
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Apesar da ambição e da dimensão global, a estratégia política para a implementação dos ODS tem ênfase nacional, cabendo ao governo de cada país determinar prioridades, estruturas de governança, monitoramento de resultados e formas de financiamento. Isso acontece em um cenário em que parte importante dos ODS – se não todos – exige, ao menos, diálogo com as grandes corporações transnacionais (como no recentíssimo caso em que sindicalistas brasileiros foram à sede da Ford, nos Estados Unidos, para tentar evitar o fechamento de uma fábrica no ABC paulista e não tiveram apoio do governo brasileiro nem sucesso em sua empreitada33 Contra fechamento de fábrica em São Bernardo, metalúrgicos vão à sede da Ford nos EUA. Revista Fórum [internet]; 2019 [acesso em 2019 mar 21]. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/contra-fechamento-de-fabrica-em-sao-bernardo-metalurgicos-vao-a-sede-da-ford-nos-eua/.
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), com as organizações multilaterais que organizam a economia e o mercado mundial44 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 21]; 33(2):e00197316. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017001403002&lng=pt.
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e com os blocos geopolíticos que as nações constroem55 Galvão OJA. Globalização e mudanças na configuração espacial: da economia mundial: uma visão panorâmica das últimas décadas. Revista de Economia Contemporânea [internet]. 2007 [acesso em 2019 mar 21]; 11(1):61-97. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-98482007000100003.
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Ao não apresentar fortes propostas globais de governança e financiamento que apoiem efetivamente os governos nacionais, a Agenda 2030 lida com o risco de os ODS serem cumpridos de maneira desigual pelo mundo, sendo que alguns sequer podem atingir resultados parciais66 Alves JED. Os 70 anos da ONU e a agenda global para o segundo quinquênio (2015-2030) do século XXI. Rev. bras. estud. popul. [internet]. 2015 [acesso em 2019 fev 27]; 32(3):587-598. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982015000300587&lng=pt&nrm=iso.
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7 Buss PM, Machado JMH, Gallo, E, et al. Governança em saúde e ambiente para o desenvolvimento sustentável. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2012 [acesso 2019 fev 27]; 17(6):1479-1491. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232012000600012&lng=pt&nrm=iso.
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-88 Buss PM, Magalhães DP, Setti AFF, et al. Saúde na Agenda de Desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas. Cad. Saúde Pública [internet]. 2014 [acesso em 2019 fev 27]; 30(12):2555-2570. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2014001202555&lng=pt&nrm=iso.
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. Se os países que mais precisam se esforçar para cumprir os ODS são aqueles classificados como ‘em desenvolvimento’ e ‘pobres’, sobressai o fato de que, na maioria deles, os orçamentos nacionais não têm sido capazes de impulsionar o desenvolvimento que a Agenda propõe, sobretudo quando submetidos a políticas de restrição de gastos, de redução do papel do Estado e de restrição de investimentos.

Há alguns anos, o Brasil é um exemplo disso. Revertendo uma trajetória de crescimento, de investimentos em proteção social e de redução das desigualdades e da pobreza, o País adotou, desde 2016, uma agenda política e econômica voltada para um pesado ajuste financeiro, a redução do papel indutor do Estado no desenvolvimento e a desregulação das relações de trabalho. Várias ações políticas têm sido implementadas nesse sentido, sendo as mais representativas a Emenda Constitucional 95, que congelou gastos com saúde e educação pelos próximos 20 anos99 Amaral NC. Com a PEC 241/55 (EC 95) haverá prioridade para cumprir as metas do PNE (2014-2024)? Rev. Bras. Educ. 2017; 22(71):1-25.; a reforma trabalhista, que restringiu direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros1010 Krein JD. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva Consequências da reforma trabalhista. Tempo Social revista de sociologia da USP. 2018; 30(1):77-104.; e a proposta de reforma da previdência apresentada ao congresso nacional em março de 20191111 Desproteção, austeridade e mercado na nova reforma da Previdência. Congresso em Foco. 2019. [acesso em 2019 mar 21]. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/desprotecao-austeridade-e-mercado-na-nova-reforma-da-previdencia/.
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, em um contexto em que o Presidente da República considera que os direitos consagrados na Constituição Federal de 1988 são responsáveis pelo recrudescimento do desemprego, da pobreza e da desigualdade.

No que concerne especificamente ao ‘setor saúde’, as dificuldades para cumprir os ODS passam por problemas históricos e avolumam-se por conta da crise do federalismo cooperativo que estrutura o Sistema Único de Saúde (SUS), atingindo estados e municípios que enfrentam dificuldades orçamentárias, restringem investimentos, deixam de pagar os salários de seus servidores e lidam com a falta de novos recursos federais como um dos principais obstáculos para a melhoria do SUS1212 Ribeiro JM, Moreira MR. A crise do federalismo cooperativo nas políticas de saúde no Brasil. Saúde debate [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 15]; 40(esp):14-24. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500014&lng=pt.
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,1313 Moreira MR, Ribeiro JM, Ouverney AM. Obstáculos políticos à regionalização do SUS: percepções dos secretários municipais de Saúde com assento nas Comissões Intergestores Bipartites. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso 2019 mar 15]; 22(4):1097-1108. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017002401097&lng=pt.http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.03742017.
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Em um cenário nacional como este e na ausência de um arranjo global favorável, que possibilidades o Brasil tem de atingir as metas da Agenda 2030? Esta é a pergunta-problema que origina o presente artigo.

Tendo como foco o ODS 3 (‘Boa Saúde e Bem-Estar’), perguntou-se a especialistas em saúde brasileiros(as) sobre as possibilidades de o País cumprir as metas dos 17 ODS e, de maneira mais detalhada, as 9 metas principais do ODS 3. Tais especialistas avaliaram o grau de importância de determinadas medidas para o cumprimento do ODS 3, bem como propuseram outras medidas. A articulação de avaliação e proposição produz um conjunto que pode ser analisado como recomendações para as políticas públicas, cuja discussão torna-se o objetivo deste artigo.

Aspectos metodológicos

O presente artigo foi elaborado a partir dos resultados do estudo ‘Percepção de especialistas brasileiros em saúde sobre os ODSs e a Agenda 2030’, desenvolvido por meio de uma parceria do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/Fiocruz) com pesquisadores do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e apoiado pelo Departamento de Atenção Programática e Estratégica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (Dapes/SAS/MS).

Para este estudo, foram considerados como ‘especialistas em saúde’ os(as) autores(as) de artigos no campo da saúde pública, publicados em revistas indexadas na base de dados Web of Science (WoS), no período de setembro de 2012 a setembro de 2017. Como a proposta do estudo era a de conhecer percepções sobre os rumos do Brasil ante o cumprimento – ou não – dos ODS e da Agenda 2030, optou-se por realizar um primeiro recorte no público-alvo, selecionando-se apenas brasileiros(as) que fossem os(as) autores(as) principais de cada artigo. Assim, a busca por ‘especialistas brasileiros em saúde’ foi diretamente associada à produção de artigos científicos.

Para a busca iniciada na WoS, foram utilizados os seguintes ‘rótulos de campo’: (i) ‘SU – área de pesquisa’, na qual optou-se pela ‘Public, Environmental & Occupational Health’; AND (ii) ‘CU – país/região’, em que se digitou ‘Brazil’ OR ‘Brasil’. Foram encontrados nesse processo, 5.568 artigos.

Para organizar esses artigos, utilizou-se o software Vantage Point, que extraiu as informações da WoS e produziu uma planilha Excel® com as seguintes informações: título do artigo; autores; autor principal; e-mail; filiação institucional do autor principal; e país. A seleção dos autores brasileiros aconteceu nesse momento, o que reduziu o número de artigos para 4.948.

Nesse conjunto, um(a) mesmo(a) autor(a) poderia ter mais de um artigo selecionado, o que significa que ele(a) seria selecionado(a) mais de uma vez. Para evitar isso, identificou-se a duplicação de e-mail dos(as) autores(as) principais, excluindo-os(as). Atingiu-se, então, a 3.943 artigos. Também foi necessário verificar, entre os e-mails selecionados, os que ainda eram válidos. Utilizou-se, para tal, o software Quick Email Verification, chegando-se a 3.842 artigos.

Uma análise dos resumos desses artigos apontou que havia os que se referiam à pesquisa básica e a aspectos específicos de saúde ocupacional, afastando-se, pois, do campo de estudos desejado. Tais artigos foram retirados, ficando-se, então, com 3.287, cujos autores principais representam o conjunto de especialistas para os quais o instrumento de pesquisa foi enviado.

No dia 22 de janeiro de 2018, os(as) 3.287 especialistas selecionados – que, dez dias antes, receberam um e-mail do CEE-Fiocruz explicando o estudo e convidando-os(as) a participar – receberam o instrumento de pesquisa, com um prazo de preenchimento e devolução estipulado em dez dias (9 de fevereiro de 2018). É importante destacar que, por ser um instrumento eletrônico, foi possível criar uma programação que obrigava a resposta a todas as questões, uma vez que a não resposta impedia sua finalização e devolução. Permitiu-se, com isso, que todas as questões tivessem o mesmo número total de respondentes.

No prazo estipulado, foram devolvidos 884 instrumentos, o que corresponde a cerca de 26,0% do total de especialistas selecionados(as), índice considerado elevado para pesquisas desse tipo. As respostas trabalhadas no presente artigo referem-se a esses 884 ‘especialistas brasileiros em saúde’, que se constituem, portanto, em seu universo.

O instrumento respondido pelos(as) especialistas tomou como referência a estrutura utilizada pela GlobeScan/ SustainAbility Survey (2017), na pesquisa ‘Evaluating Progress Towards the Sustainable Development Goals’, em especial no que concerne à relação entre os ODS e a adoção de escalas do tipo Likert.

Assim, o instrumento foi composto por 20 questões, sendo 11 fechadas e 9 semiestruturadas, organizadas em três partes: 1) Perfil do Respondente; 2) Agenda 2030 e ODSs; e 3) Medidas para o Cumprimento das Metas do ODS 3.

Nas partes 1) e 2), determinadas questões apresentavam como resposta uma escala do tipo Likert, com variação de 1 a 5, em que 1 significava ‘muito baixo (a) potencial/importância’; 2, ‘baixo(a) potencial/importância’; 3, ‘médio(a) potencial/importância’; 4, ‘alto(a) potencial/importância’; e 5, ‘alto(a) potencial/importância’.

No presente artigo, os quadros 2 e 4 utilizam dados que se referem aos resultados obtidos por meio dessa escala. Para sua elaboração, optou-se por consolidar os dados por meio de uma média aritmética do valor numérico que representa as escalas atribuídas por cada um(a) dos(as) especialistas respondentes. Ou seja: para uma determinada resposta, somou-se o valor numérico da escala atribuída por cada autor (de 1 a 5, como acima referido) e dividiu-se o resultado pelo número total de especialistas respondentes (884), o que permitiu um valor final que é expresso de acordo com a escala original.

Quadro 1
Pesquisa ‘Percepção de especialistas brasileiros em saúde sobre os ODSs e a Agenda 2030’: perfil dos entrevistados. 2018. (n=884)
Quadro 2
Pesquisa ‘Percepção de especialistas brasileiros em saúde sobre os ODS e a Agenda 2030’: ODS prioritários para o Brasil; ODS que mais contribuiriam para o ODS 3; e potencial do Brasil para cumprir os ODS. 2018
Quadro 3
Pesquisa ‘Percepção de especialistas brasileiros em saúde sobre os ODSs e a Agenda 2030’: recomendações propostas pelos especialistas entrevistados, classificadas por tema e distribuídas percentualmente pelas Metas do ODS 3. 2018 Brasileiros
Quadro 4
Pesquisa ‘Percepção de Especialistas Brasileiros em Saúde sobre os ODS e a Agenda 2030’: recomendações políticas para o cumprimento das metas do ODS 3 e seu grau de importância segundo os especialistas respondentes. 2018

Provenientes das respostas às questões semiestruturadas, as medidas que os(as) especialistas respondentes consideraram como necessárias para o cumprimento de cada uma das nove Metas principais do ODS 3 são aqui trabalhadas como ‘recomendações de políticas’. O quadro 3 sistematiza as recomendações apresentadas pelos(as) especialistas que, por somarem 1.805, foram classificadas e analisadas por meio de categorias temáticas. O quadro 4 apresenta as respostas dos(as) especialistas (por meio da escala Likert já referida) a recomendações propostas pelo instrumento de pesquisa.

O instrumento eletrônico que os(as) especialistas responderam contava com um detalhado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A programação digital de tal instrumento tornou possível que ele só fosse enviado de volta pelos respondentes após sua concordância com o Termo. No TCLE, também foram garantidos os princípios da bioética referentes à beneficência, não maleficência e sigilo, este, em especial, porque os profissionais que analisaram os dados não tiveram acesso ao nome dos respondentes. Por fim, foi explicado que as respostas seriam utilizadas para a elaboração de artigos científicos como este. Passe-se, pois, à apresentação e discussão dos resultados.

Resultados e discussões

O quadro 1 apresenta um breve perfil dos 884 especialistas que responderam ao instrumento de pesquisa, ressaltando maior concentração na faixa entre 30 e 60 anos; mínimo de 10 anos de experiência profissional; médio e alto conhecimento sobre os ODS e a Agenda 2030; e a percepção de que os ODS têm uma importância muito alta para orientar política públicas.

No entanto, o principal destaque refere-se à ampla predominância de respondentes do sexo feminino, justificando que, a partir daqui, a referência ao conjunto de respondentes seja feita no feminino – ‘as especialistas respondentes’ – o que, além de respeitar a objetividade do fato, contribui para a luta pela representatividade de gênero na ciência brasileira, questão trabalhada com rigor e qualidade por Grossi et al.1414 Grossi MGR, Borja SDB, Lopes AM, et al. As mulheres praticando ciência no Brasil. Revista Estudos Feministas [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 21]; 24(1):11-30. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n1p11.
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O quadro 2 relaciona a percepção das especialistas respondentes sobre os ODS que deveriam ser prioridades para o Brasil, os ODS que mais contribuem para o cumprimento do ODS 3 (Saúde e Bem-Estar) e o potencial do Brasil para cumprir os ODS.

O primeiro ponto a destacar na análise do quadro 2 é o de que a percepção das especialistas respondentes sobre o potencial de o Brasil cumprir os ODS é de descrença: a pontuação de todos os 17 objetivos variou em uma escala de 2,2 a 2,8, o que, conforme explicado nos aspectos metodológicos, corresponde à categoria ‘Baixa’.

Nesse contexto, ao se enfocar o ODS 3 (Saúde e Bem-Estar), constata-se que, para as especialistas respondentes, esse é apenas o 12º ODS em potencial de cumprimento pelo Brasil, ficando acima apenas dos ODS 8, 11, 16, 10 e 1. Nessa classificação, os ODS 6 (água limpa e saneamento) e 5 (igualdade de gênero) ocupam o primeiro lugar.

Chama a atenção que, entre os ODS que as especialistas respondentes percebem como de menor potencial de cumprimento pelo Brasil, estão o ODS 1 (erradicação da pobreza) e 10 (redução das desigualdades), problemas sociais para os quais o Brasil, ao longo dos 15 anos iniciais do século XXI, executou um conjunto importante de políticas públicas que obtiveram sucesso, colocando o País numa trajetória positiva e que apontava oportunidades concretas para o cumprimento dos referidos ODS.

Como o campo da Pesquisa foi realizado em 2018, sob o impacto de políticas de austeridade fiscal e redução do investimento estatal; do ataque às políticas de proteção social; da publicização do recrudescimento da desigualdade, pobreza, desemprego, mortalidade materna; e das crescentes restrições à democracia, considera-se, aqui, que os resultados acima discutidos refletem, ao menos em parte, este cenário problemático. Pesquisas que periodicamente atualizem estes resultados seriam uma importante maneira de corroborar ou rejeitar essa concepção.

Ainda no quadro 2, constata-se que as especialistas respondentes consideram que o Brasil deveria priorizar o cumprimento dos ODS 4 (Educação de Qualidade) e 1 (Erradicação da Pobreza) e que, estes, são também os ODS que mais contribuiriam para o cumprimento do ODS 3 (Saúde e Bem-Estar). Perceba-se que, como já assinalado, o ODS 1 é aquele que foi apontado como de menor potencial para ser cumprido, enquanto o 4 tem o mesmo baixo potencial do ODS 3.

Esse conjunto de percepções coaduna-se com a abordagem dos determinantes sociais da saúde, o que é reforçado ao se perceber que os ODS 8 (emprego digno e crescimento econômico) e 2 (fome zero) também figuram entre os que devem ser considerados como prioridades pelo Brasil e que mais contribuiriam para o ODS 3.

Diante desse cenário pouco alvissareiro apontado pelas especialistas respondentes, que fatores elas apontariam como impeditivos para a consecução do ODS 3? É o que ilustra o gráfico 1.

Gráfico 1
Pesquisa ‘Percepção de especialistas em saúde brasileiros sobre os ODSs e a Agenda 2030’: fatores que mais impedem que a sociedade brasileira atinja melhor nível de Saúde e Bem-Estar. 2018. (n=884)

Nota: A questão apresentada aos entrevistados permitia respostas múltiplas, por isto o somatório das porcentagens excede 100%.

A análise do gráfico 1 aponta que as especialistas respondentes consideram, com bastante destaque, a ‘má qualidade na gestão em saúde’ e a ‘corrupção no sistema de saúde’ como os principais fatores, o que revela uma, até certo ponto, inesperada convergência com o senso comum, em especial porque não parece haver evidências e estudos suficientes para, cientificamente, sustentar tais relações, sobretudo no que concerne à corrupção no sistema de saúde.

Por outro lado, é possível considerar que uma aproximação temática entre as respostas ‘políticas de austeridade’, ‘falta de recursos financeiros’ e ‘excessiva dependência financeira de estados e municípios com relação ao governo federal’ permitiria uma análise na qual a unificação dessas respostas atingiria a 84,3%, o que a colocaria como a mais citada pelas especialistas respondentes.

Ressalte-se, contudo, que essa aproximação temática não retiraria o destaque dado à ‘má qualidade na gestão em saúde’ e ‘corrupção no sistema de saúde’, muito menos encobriria o fato de que a ‘falta de recursos financeiros’ tenha tido, como resposta individual, um baixíssimo percentual de respostas, bem inferior a um terço dos respondentes.

Pensando na superação das dificuldades e nos rumos que o Brasil deve trilhar para atingir o cumprimento dos ODS rumo à Agenda 2030, a pesquisa buscou levantar com os(as) especialistas respondentes um conjunto de medidas, políticas e ações que deveriam ser implementadas pelo poder público brasileiro a fim de que o País cumprisse o ODS 3. Neste artigo, esse conjunto será trabalhado como ‘recomendações de políticas’ e detalhado nos quadros 3 e 4.

O quadro 3 sistematiza um conjunto de 1.805 recomendações de políticas que as especialistas respondentes propuseram para que o Brasil cumpra o ODS 3. Perceba-se que tais recomendações estão distribuídas pelas nove Metas do ODS 3 e classificadas em temas que viabilizam a análise e superam a dispersão típica de um ‘n grande’ para questões abertas.

Destaca-se que as recomendações classificadas nas categorias ‘Educação’ e ‘Atenção Básica’ são as principais para as Metas 3.1; 3.2; 3.3; 3.4; e 3.7. Além disso, ‘Educação’ aparece como categoria importante para as Metas 3.5; 3.6; 3.8; e 3.9.

Basicamente, a categoria ‘Educação’ sistematiza uma miríade de recomendações que se referem, de diferentes maneiras, à educação da população sobre o tema a que se refere a Meta do ODS. É importante destacar que essa categoria não engloba as recomendações que se voltam para a formação dos profissionais do sistema de saúde (ou que tenham relação com o tema da Meta), que foram agrupadas na categoria ‘Formação’.

Por sua vez, a categoria ‘Atenção Básica’, de compreensão mais automática, agrega as recomendações que, abordando a melhoria de serviços, recursos humanos, organização, financiamento etc. dizem respeito à atenção básica no SUS.

O quadro 4 ilustra as percepções das especialistas respondentes sobre um conjunto de 48 recomendações de políticas consideradas pela Equipe de Pesquisa como capazes de contribuir para o cumprimento das 9 metas do ODS 3.

Das 48 recomendações apresentadas às especialistas respondentes, 42 são percebidas por elas como de ‘alta importância’ (conforme explicado nos ‘aspectos metodológicos’, escala de ‘4’ a ‘4,9’), enquanto 5 têm ‘razoável importância’ (escala entre ‘3’ e ‘3,9’); e 1, ‘baixa importância’ (escala entre ‘2’ e ‘2,9’).

Chama a atenção que, entre as seis recomendações que são percebidas como de ‘razoável’ ou ‘baixa’ importância pelas especialistas respondentes, estão: ‘legalização do aborto’ (recomendação para o cumprimento da Meta 3.1, referente à redução da mortalidade materna); ‘legalizar a maconha’ e ‘descriminalizar outras drogas’ (recomendações para a Meta 3.5, referente à prevenção ao abuso de drogas), esta última a única percebida como de ‘baixa’ importância; e ‘comprometer e responsabilizar montadoras de veículos automotivas’ (recomendação para a Meta 3.6, que se refere à redução das mortes e ferimentos por acidentes em estradas).

Em relação às recomendações que são percebidas como de ‘alta’ importância pelas especialistas respondentes, destaca-se que: i) as que se referem à atenção básica figuram entre as mais importantes, com destaque nas Metas 3.1, 3.2, 3.3, 3.7 e 3.8 (em que ‘alcançar a cobertura universal da atenção básica’ atinge a maior pontuação de todas as recomendações: 4,9); e ii) ‘reduzir a pobreza’ aparece como a mais importante para as Meta 3.1 e 3.2, e como a segunda mais importante para a Meta 3.3.

Conclusões

O ceticismo das especialistas respondentes em relação às possibilidades de o Brasil cumprir os ODS até 2030 aponta para uma resposta negativa à pergunta-título do presente artigo. Os dados apresentados estruturam a percepção de que, para elas, é baixo o potencial do País para atingir qualquer um dos 17 ODS, em especial: a erradicação da pobreza (ODS 1), a redução das desigualdades (ODS 10) e a construção de uma cultura de paz e justiça (ODS 16), o que alinha tal percepção ao ‘Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável’15, elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030.

Educação de qualidade e erradicação da pobreza, respectivamente ODS 4 e 1, são aqui considerados como os mais importantes de serem cumpridos pelo Brasil e também aqueles que mais contribuirão para o País atingir o ODS 3 ‘saúde e bem-estar’, resultado que abre possibilidades de diálogos com a proposta de ênfase na interação de ODS e suas metas1616 Moreira MR, Ribeiro JM, Motta CT, et al. Mortalidade por acidentes de transporte de trânsito em adolescentes e jovens, Brasil, 1996-2015: cumpriremos o ODS 3.6? Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2018 [acesso 2019 mar 21]; 23(9):2785-2796. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232018000902785&lng=pt.
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e com a proposta de saúde em todas as políticas1717 Buss PM, Fonseca LE, Galvão LAC, et al. Health in all policies in the partnership for sustainable development. Rev Panam Salud Pública. [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 21]; 40(3):186-191. Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/31235/v40n3a7-186-91.pdf?sequence=1&isAllowed=y&ua=1&ua=1.
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Educação, por sinal, tem imenso destaque também no que se refere ao cumprimento das metas do ODS 3 – Saúde e Bem-Estar –, visto que surge como recomendação de destaque para a consecução de todas as nove metas, sendo a mais importante para as metas que se referem à mortalidade materna, Aids, tuberculose, saúde mental, abuso de drogas, acidentes na estrada e saúde sexual e saúde reprodutiva.

Menos citado do que a educação, mas ainda muito importante, o fortalecimento da atenção básica também surge como recomendação forte para o poder público, sobretudo no que se refere à mortalidade infantil.

Levando-se em conta as recomendações que foram propostas pelo instrumento de pesquisa e destacando-se a que foi considerada como a de mais alto potencial para o cumprimento de cada meta do ODS 3, é possível apresentar um rol de recomendações distribuídos em dois eixos: o primeiro eixo está relacionado com o que se pode denominar, senso lato, de ‘políticas sociais’ – i) reduzir a pobreza; ii) aumentar a cobertura de saneamento básico; iii) reduzir as diferentes manifestações da violência; iv) investir na qualidade das vias públicas e rodovias; e v) ampliar o controle sobre atividades de extração e de indústrias poluidoras – enquanto o segundo eixo está mais diretamente vinculado à ‘política de saúde’: vi) alcançar a cobertura universal da atenção básica; vii) ampliar e qualificar o pré-natal na atenção básica; viii) ampliar a ‘saúde sexual e saúde reprodutiva’ na atenção básica; e ix) ampliar a prevenção ao abuso do álcool.

  • Suporte financeiro: Departamento de Atenção Programática e Estratégica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (Dapes/SAS/MS)
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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

References

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2019
  • Aceito
    13 Set 2019
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