NOS ÚLTIMOS ANOS, O SETOR de Água e Esgoto (A&E) tem sido exposto a inúmeras propostas de reestruturação que questionam o atual arranjo institucional para a provisão desses serviços no País. A principal justificativa para a reforma é que a gestão pública não dispõe de recursos ou eficiência necessários para universalizar a cobertura. A solução proposta é a substituição do poder público por agentes privados na provisão do abastecimento de água e esgotamento sanitário.
O maior mérito da coletânea ‘Saneamento como política pública: um olhar a partir do SUS’11 Heller L. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018. é oferecer um abrangente painel da situação do setor, que destoa substantivamente das formulações do mainstream orientadas para o mercado22 Azevedo PF, Toneto Jr R, Saiani CCS. Diagnóstico e Propostas para o Setor de Saneamento. In: Giambiagi F, Almeida Jr MF, organizadores. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. p. 313-327.. Na abertura da obra, o organizador reitera a necessidade de se assumir o acesso ao saneamento como direito e, portanto, parte integrante do desenvolvimento de uma agenda de Estado de bem-estar social. Infelizmente, a coletânea não inclui os desafios da gestão dos resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais, que igualmente integram o setor de saneamento e impactam a condição de vida e de saúde das populações. Apesar da lacuna, os artigos não se furtam ao enfrentamento de questões centrais do setor de A&E e da exposição á controvérsia.
O trabalho de Menicucci e D’Albuquerque, ‘Política de saneamento vis-à-vis á política de saúde: encontros, desencontros e seus efeitos’, propõe um diálogo entre as políticas de saneamento e de saúde. O arrojado objetivo de construir uma ponte dialógica entre duas políticas públicas com trajetórias singulares poderia ser mais efetivo caso a explicação sobre as contradições contemporâneas do setor saúde fosse priorizada. A ênfase dada pelo texto à descrição da emergência da reforma sanitária compromete a compreensão da trajetória de fragmentação do setor saúde até os dias atuais. A literatura já reconhece que essa fragmentação favoreceu a proliferação de arenas e grupos de interesses particularistas empresariais, profissionais e sindicais que enfraqueceram a agenda universalista da reforma sanitária. Portanto, o desenvolvimento da relação público e privado na saúde não sustenta a ideia de que o setor não tenha sido afetado severamente pelas preferências do mercado, como ocorreu no setor de saneamento.
A abordagem sobre a política pública de saneamento, por sua vez, recebeu um tratamento descritivo, com a apresentação de um interessante panorama geral e atual da provisão de serviços do setor. Ainda assim, a opção descritiva fez com que as barreiras impostas pelo pacto federativo e pelas regras constitucionais ao setor de A&E não fossem apresentadas de modo detalhado ou com a profundidade necessária a um aspecto que se mostra presente em todas as disputas que envolvem a provisão dos serviços no País.
Finalmente, cabe chamar a atenção que o artigo ratifica a controversa tese de que predomina a lógica empresarial na gestão das empresas públicas, mas não apresenta os indicadores econômicos e financeiros que permitiriam ao leitor não familiarizado com o assunto compreender melhor o argumento da autora. A noção de dependência de trajetória é também utilizada pelo artigo de Menicucci e D’Albuquerque para explicar o veto às iniciativas de inovação que contrariam as rotas previamente adotadas pelos serviços de A&E. Nos últimos anos, o campo intelectual que investiga o saneamento no Brasil tem acolhido, de fato, a tese de que parte da paralisia decisória identificada no setor pode ser atribuída ao poder de veto das empresas estaduais. No entanto, cabe destacar que o trabalho pioneiro que identifica o papel da dependência de trajetória no setor de A&E brasileiro situa o papel dos interesses estadualistas na função de veto dentro de um espaço temporal e de iniciativas de regulação claramente delimitadas33 Sousa ACA. Política de Saneamento no Brasil: atores, instituições e interesses [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2011. p. 98.. No contexto atual, as mudanças na matriz institucional setorial a partir da Lei do Saneamento Básico (Lei nº 11.445 de 2007) e as experiências de gestão local exigem que a tese da dependência de trajetória seja utilizada com mais cautela, preferencialmente sob outros ângulos de análise que não apenas o do veto.
Na direção do artigo anterior, o capítulo de AL Britto, ‘Proposições para acelerar o avanço da Política de Saneamento no Brasil’, identifica importantes barreiras para a universalização do acesso no Brasil e situa as perspectivas dos atores dos setoriais na política pública de saneamento. O texto faz um balanço bastante vivaz da intervenção dos diversos atores na arena decisória do saneamento durante o governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016).
O artigo poderia ganhar mais consistência caso as fontes que sustentam muitas das afirmações da autora fossem referenciadas. Outro tema relevante abordado no capítulo é a experiência da universalização dos serviços na Europa e nos Estados Unidos. Para ela, a definição do acesso ao saneamento como direito social foi o que tornou possível a universalização dos serviços nas economias avançadas. O artigo de Britto defende a tese de que a inconstância do fluxo de recursos para o setor de A&E constitui uma barreira estrutural para a universalização. Porém, não discute as razões pelas quais importantes iniciativas governamentais que garantiram financiamento setorial por vários anos – o Programa de Aceleração do Crescimento, por exemplo – não produziram os resultados esperados.
A questão da geração de receitas no setor de A&E é retomada no capítulo ‘Padrão de investimento e a estratégia financeira das grandes empresas regionais de água e esgoto no Brasil’ de Sarti e Ultremare. Os autores analisam os indicadores financeiros de quatro grandes empresas estaduais de capital aberto, que responderam por metade dos investimentos e por um terço da receita total do setor entre 2000 e 2014. A análise econômico-financeira das empresas de saneamento brasileira Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) demonstra que a rentabilidade delas foi superior à de grandes empresas de capital aberto do setor não financeiro.
Os autores mostram ainda que a abertura de capital nesse cluster de empresas, impondo mecanismos de governança mimetizados do setor privado, não produziu resultados substancialmente diferentes das demais empresas na universalização da cobertura, porque a opção preferencial pela remuneração dos acionistas constrangeu as decisões de investimento na ampliação da cobertura. Aqui reside o ponto forte do texto e da coletânea de uma maneira geral: os autores mostram que a adoção de mecanismos privados de governança não produz resultados extraordinários de universalização e de redução do deficit na provisão dos serviços.
Ao alertar para os constrangimentos impostos à universalização quando empresas de A&E se subordinam á logica da financeirização, os autores refutam os argumentos em defesa da privatização dos serviços como solução para o problema da universalização e inspiram futuros estudos sobre o desempenho das demais empresas estaduais, que constituem a maior parte das prestadoras. Resta, por fim, parabenizar ao Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) pela iniciativa da publicação sobre um tema absolutamente essencial ao campo da saúde pública.
- Suporte financeiro: não houve
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
References
- 1Heller L. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018.
- 2Azevedo PF, Toneto Jr R, Saiani CCS. Diagnóstico e Propostas para o Setor de Saneamento. In: Giambiagi F, Almeida Jr MF, organizadores. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. p. 313-327.
- 3Sousa ACA. Política de Saneamento no Brasil: atores, instituições e interesses [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2011. p. 98.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Jul 2020 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
24 Mar 2019 - Aceito
09 Jul 2019