Promoção da saúde e efetivação da Reforma Sanitária no contexto dos povos originários

Health promotion and accomplishment of Health Care Reform in the context of indigenous populations

Ana Elisa Rodrigues Alves Ribeiro Regina Célia de Souza Beretta Wilson Mestriner JuniorSobre os autores

RESUMO

O Brasil teve atos e políticas excludentes que levaram à quase dizimação dos variados povos indígenas. Buscando voz e inclusão, o movimento dos povos originários contou com a presença de representantes das próprias comunidades para a consolidação da Reforma Sanitária nesse contexto. Conselheiros indígenas de saúde e agentes indígenas de saúde fomentam a resiliência para reivindicar, proteger e curar relações, lidando com a perspectiva biomédica, e atuação de profissionais não indígenas. Este trabalho objetiva evidenciar as aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares no atual sistema de saúde brasileiro, para a promoção da saúde dos povos originários. Em uma revisão integrativa, propôs-se discorrer sobre o impacto da formação profissional com ênfase na questão étnica, possibilidades de atuação não colonizadora e inclusiva, e a contribuição dos diversos atores, indígenas ou não, que possibilitam a consolidação desse subsistema de atenção, considerando suas especificidades e sua maneira própria do fazer da saúde. A autonomia, com foco no empoderamento, fortalecida por meio do reconhecimento do papel fundamental dos próprios indígenas e de pessoas ligadas à causa indigenista que se estabeleceram para tal assistência, consolidaram a Reforma Sanitária também nesses territórios, na tentativa de universalidade no acesso, integralidade da atenção, promoção da equidade e redução de iniquidades.

PALAVRAS-CHAVE:
Práticas interdisciplinares; Promoção da saúde; Reforma dos serviços de saúde; Saúde de populações indígenas

ABSTRACT

Brazil has always had historic practices and excluding politics that almost decimated the varied indigenous peoples. Seeking a voice and inclusion, the movement of original populations counted on the presence of communities’ representatives to consolidate the Health Care Reform. Health indigenous advisors and indigenous heath agents promoted resilience to claim, protect, and cure relations, dealing with the biomedical perspective, and the performance of non-indigenous professionals. The present study aims to emphasize interdisciplinary placement and collaborative learnings among original populations’ heath actors in the current Brazilian health system for the promotion of health among original peoples. Through an integrative review, it was proposed a glossing over the impact of professional qualification emphasizing ethnic issues and practices proper to such context, possibilities of a non-colonizational and inclusive actuation, and the contribution of several actors, indigenous or not, that made such health sub-system possible, considering its specificities and its own way of working in health. Autonomy, focused on empowerment, strengthened by the recognition of the essential role of indigenous peoples and non-indigenous contributors established for such health assistance, consolidated Health Reform also in these territories, trying to achieve universality in service access, integrality of care, promotion of equity, and reduction of inequities.

KEYWORDS:
Interdisciplinary placement; Health promotion; Heath care reform; Health of indigenous peoples

Introdução

O movimento global da promoção da saúde, por ocasião da segunda Conferência mundial, realizada em 1988 na Austrália pela Organização Mundial da Saúde, trouxe pela primeira vez a preocupação com a promoção da saúde dos povos originários de todo o mundo11 Organização Mundial da Saúde. Segunda Conferência Internacional Sobre Promoção Da Saúde; 5-9 Abr. 1988; Adelaide (Aus): OMS; 1988. . No Brasil, um dos maiores conflitos para os povos indígenas se deu no aspecto biótico e da saúde, pelo contato com doenças mortais e a forma de colonização que, desde o princípio, os tornaram grupos vulneráveis e sujeitos a iniquidades22 Ribeiro D. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2006..

Até a Reforma Sanitária Brasileira, apenas iniciativas aleatórias e esporádicas relacionadas a saúde das comunidades indígenas ocorreram, não levando em conta os valores e práticas de saúde desses povos33 Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília, DF: MS; Fundação Nacional de Saúde; 2002.,44 Conselho Indigenista Missionário. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil: Breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. CIMI; 2013. [Ed. Revisada]. . Conflitos econômicos e sociais, especialmente aqueles ligados às questões territoriais e de exploração de recursos, justificaram e ainda justificam descaso, legislações tardias e efetividades nulas nas políticas implantadas para essas populações; culminando no atual quadro de saúde dos povos indígenas55 Fundação Nacional de Saúde. Boletim informativo Especial. Saúde Indígena: uma década de compromisso. 8. ed. Brasília, DF: Fundação Nacional de Saúde; 2009. . O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, com seus princípios fundamentais de descentralização, universalidade, equidade, participação comunitária e controle social, propiciou o reconhecimento e respeito das organizações socioculturais dos povos indígenas, assegurando-lhes capacidade civil plena, não mais de tutela, legislando e tratando sobre suas questões de saúde66 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988. . Em função das especificidades culturais multiétnicas, esses povos necessitaram de abordagens diferenciadas em saúde para que a Reforma Sanitária fosse efetiva, consolidando um subsistema de atenção especial, a partir da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas em 2002 e posteriormente com a Secretaria Especial de Saúde Indígena no Ministério da Saúde33 Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília, DF: MS; Fundação Nacional de Saúde; 2002.,77 Brasil. Decreto nº 7.330 de 19 de outubro de 2010. Oficialização da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Diário Oficial da União. 22 Out 2010..

A Secretaria Especial de Saúde Indígena, responsável pela atual coordenação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, foi implementada tardiamente, após inúmeros contratempos, para oferecer um novo modelo de responsabilidade sanitária e gestão. Alinhada com as diretrizes do SUS, mas também às necessidades dos povos originários, suas características especiais visam a um modelo descentralizado, com autonomia administrativa, orçamentária e financeira; a fim de desenvolver ações de atenção integral à saúde e educação em saúde para essas populações, planejar e coordenar as ações de saneamento e edificações de saúde nos territórios, articular estados, municípios e organizações não governamentais nas ações de atenção à saúde indígena e promover o fortalecimento do controle social dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) do Brasil88 Brasil. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sesai [internet]. [acesso em 2018 maio 3]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/sesai.
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Foi preciso um olhar ampliado e adaptado para que se cumprisse a Reforma Sanitária nos territórios indígenas, inclusive acerca dos próprios trabalhadores de saúde envolvidos para esses fins. Respeitando suas organizações socioculturais e seus valores e práticas tradicionais de saúde, essa atual conformação de promoção e assistência à saúde indígena atualmente é alvo de ataques e retrocessos de direitos tão duramente conquistados. Compreender esse modelo de organização construído ao longo do tempo pode contribuir para que iniquidades em saúde sejam evitadas, bem como auxiliar na prevenção de situações que indiretamente as favoreçam, como o preconceito/racismo que gera violência, abuso do álcool e um elevado índice de suicídio nesses grupos; a compreensão das transformações do seu modo de vida; os interesses políticos e econômicos de grupos não indígenas presentes nos territórios que modificam o meio e o trabalho dos indivíduos. Foram necessárias diversas e complexas adaptações para que esses grupos populacionais tivessem o acesso ao sistema de saúde brasileiro com a atual conformação das equipes de saúde, em uma estrutura orçamentária específica dos recursos desse setor e diversas políticas que visam contribuir para a luta dessas populações contra o preconceito, a exploração e as disputas territoriais.

As aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares foram enfatizadas atualmente pela Organização Pan-americana da Saúde como ações imprescindíveis para a resolução das questões de saúde. Esse marco é resultante de estudos voltados para os indivíduos envolvidos na saúde e possibilita mudanças na medicina e na assistência à saúde, a partir dos recursos humanos99 Organização Panamericana de Saúde. Relatório Final. Documento CSP29/10. In: 29ª Conferência Sanitária Panamericana, 69ª Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas; 2017 Set 25-29; Washington, DC. Washington, DC; 2017. 1-125. . Corroborando o histórico de ações nos territórios indígenas e necessidades enfatizadas por suas políticas de saúde, as aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares estão apoiadas nas experiências de diferentes profissionais e atores a fim de prestar uma melhor qualidade de assistência. Assim, o reconhecimento dos atores de saúde tradicionais, o apoio às lideranças e a mudança de atitudes dos profissionais de saúde de acordo com valores locais e culturais foram mecanismos que serviram de base para aperfeiçoamentos na atuação e na formação dos profissionais de saúde dos DSEI e que continuam aperfeiçoando o fazer diário da saúde indígena1010 Organização Mundial da Saúde. Declaração de Adelaide sobre a Saúde em Todas as Políticas: no caminho de uma governança compartilhada, em prol da saúde e do bem-estar. Relatório do encontro internacional sobre a Saúde em Todas as Políticas. Adelaide: OMS; 2010..

Favorecer o empoderamento dos povos originários pelos seus representantes sociais e de saúde é um mecanismo que também contribui para a promoção da saúde, a missão da Secretaria Especial de Saúde Indígena e dos órgãos prestadores desses serviços: de valorização da cultura indígena e do diálogo intercultural. A contribuição dos profissionais e atores da saúde indígena para a consolidação do SUS, promoção da saúde e empoderamento desses grupos nos territórios ainda não foi retratada na literatura e dialoga com perspectivas passadas, presentes e futuras da saúde indígena1111 Souza JM, Tholl AD, Córdova FP, et al. Aplicabilidade prática do empowermentnas estratégias de promoção da saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(7):2265-2276..

Metodologia

Foi utilizada como metodologia uma revisão integrativa dessa temática, visto que, para compreender as diversas articulações de atores e suas contribuições para a saúde indígena, é preciso uma síntese dos fatores que a envolvem na análise1212 Souza MT, Silva MD, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein. 2010; 8(1Pt1):102-6 . Ao longo do tempo, diversas maneiras de interação profissional ocorreram na assistência à saúde desses povos, adaptando-se às premissas políticas e de direitos, e gerando aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares. A compreensão de como os atores da saúde indígena se articulam pode favorecer a promoção da saúde indígena e reduzir retrocessos.

Para o levantamento dos artigos na literatura, realizou-se uma busca na base de dados de Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) utilizando, para tal busca, as seguintes palavras ou conjunto de palavras acrescidos de ‘e’ ou ‘ou’: ‘Saúde Indígena’, ‘Promoção da Saúde Indígena’, ‘Agentes Indígenas de Saúde’, ‘Capacitação em Saúde Indígena’ e ‘Educação Permanente em Saúde Indígena’.

Os critérios de inclusão definidos para a seleção dos artigos foram: artigos ou documentos publicados em português, inglês e espanhol, na íntegra e que retratassem a temática dos atores da saúde indígena no Brasil e países América Latina, nos últimos 15 anos. Como critérios de exclusão, aqueles trabalhos que se repetiam nos diversos descritores foram excluídos, bem como aqueles que mesmo sendo apresentados na busca das palavras não traziam informações sobre atores ou profissionais da saúde indígena ou alguma relação com a formação destes. Seguindo esses critérios, 23 artigos foram selecionados, uma vez que traziam esses aspectos ligados aos ‘recursos humanos’ da saúde indígena. Os estudos selecionados foram divididos em temáticas que facilitassem a compreensão dos papéis, a inter-relação dos atores envolvidos e sua formação para a saúde indígena como apresentado no quadro 1. As análises foram realizadas de forma descritiva para observar, contar, descrever e classificar os dados, com o intuito de reunir o conhecimento produzido sobre o tema explorado na revisão.

Quadro 1
Trabalhos e documentos utilizados na revisão integrativa, divididos em temáticas para a compreensão dos papéis, a inter-relação dos atores e formação para a saúde indígena

Formação profissional e educação permanente em saúde indígena

Para compreender a importância de uma formação profissional diferenciada para especificidades étnicas, e um aperfeiçoamento constante dos serviços de saúde por meio da educação permanente, é preciso retomar discussões teóricas da literatura sobre as condições sociopolíticas e de saúde atuais dos povos indígenas justificadas por uma propagação do padrão eurocêntrico historicamente construído como superior. Esse padrão não leva em conta os valores tradicionais indígenas e suas contribuições sociais ou de saúde para a cultura brasileira, gerando preconceitos, discriminações e iniquidades tanto em saúde como nos diversos âmbitos da sociedade1313 Cruz CS, Jesus SS. Lei nº 11.645/08: A escola, as relações étnicas e culturais e o ensino de história- algumas reflexões sobre essa temática no PIBID. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo Social; 2013 Jul 22-26; Natal. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2013. p. 1-10..

Um dos materiais avaliados nesta revisão, que relata a gestão de um projeto de extensão em áreas indígenas, abordou a necessidade da capacitação diferenciada para esse contexto retratando temáticas como: a relação do homem em sociedade; diferentes culturas e o contato social; o estudo da relação étnico-racial no Brasil; conceitos de cidadania e política; humanização da saúde; sociologia, antropologia, promoção de saúde, saúde indígena e as políticas de atenção à saúde desses povos, na formação dos profissionais de saúde e agentes indígenas de saúde1414 Mestriner Júnior W, Mestriner SF, Bulgarelli AF, et al. O desenvolvimento de competências em atenção básica à saúde: a experiência no projeto Huka-Katu. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(supl.1):903-912..

Também sobre a formação profissional diferenciada para atuação no subsistema de atenção à saúde indígena, Moreira e Motta1515 Moreira GO, Motta LG. Competência Cultural na Graduação de Medicina e de Enfermagem. Rev. bras. educ. med. 2016; 40(1):164-171. enfatizaram o desenvolvimento da competência cultural na própria graduação em saúde, apresentando falhas nessa abordagem e uma necessidade de adequação das grades curriculares para esse fim. No mesmo ano, em um trabalho realizado por uma demanda de alunos indígenas, a Universidade de Brasília instituiu a Disciplina de Saúde Indígena no Departamento de Saúde Coletiva, com perspectivas de compor a matriz curricular da Residência Multiprofissional em Saúde. Essa iniciativa foi relatada no trabalho como uma conquista estudantil pioneira sobre o tema, evidenciando como a formação em saúde indígena e a interculturalidade ainda se encontram distantes da maioria das realidades de ensino em saúde1616 Hoefel MGL, Severo DO. Coletivo de estudantes indígenas. Disciplina de Saúde Indígena na UnB: uma conquista do Movimento Estudantil Indígena. Tempus, actas de saúde colet. 2016; 10(4)-229-234..

Outro trabalho encontrado também aborda a inclusão de disciplinas sobre populações tradicionais amazônicas na graduação de enfermagem da região Norte. Esta região é composta por 24 dos 34 DSEI, justificando uma maior atenção na formação em saúde indígena, mas ainda assim não possui a abordagem da temática dos povos originais em todas as instituições de ensino. De 69 instituições, apenas 14 cursos apresentaram disciplinas sobre o tema, porém não relacionadas com a interdisciplinaridade e suas especificidades no contexto da saúde indígena1717 Castro NJC, Cavalcante IMS, Palheta ASE, et al. Inclusão de Disciplinas em Graduação de Enfermagem sobre Populações Tradicionais Amazônicas. Cogitare Enferm. 2017; 22(2):e49730. . Esse fato sinaliza como a formação está distanciada das realidades de saúde e das políticas públicas, podendo implicar também inequidades com populações mais vulneráveis.

Martins1818 Martins JCL. O trabalho do enfermeiro na Saúde Indígena: desenvolvendo competências para a atuação no contexto intercultural. [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2017. 175 p. defendeu uma dissertação na área da enfermagem, na qual discorre sobre o aprendizado em saúde indígena in loco ou na própria área indígena, após uma formação que não contemplava as especificidades étnicas e tinha a abordagem hegemônica de saúde; sendo conhecimentos e competências sobre concepções de saúde, corpo, cuidado, e interpretação das doenças e do processo de cura adquiridos apenas na prática em saúde, sem embasamentos teóricos na formação superior e com uma escassez de cursos no País também para este fim após a graduação.

Contextualizando de uma forma mais clara essa ausência de profissionais que compreendam sobre as especificidades étnicas e vulnerabilidades do contexto da saúde indígena, e também no sentido de efetivar a Reforma Sanitária, de atendimento e cobertura de profissionais médicos nessas áreas pelo Sistema de Saúde brasileiro, em 2013, foi instituída a Medida Provisória nº 621, de implementação do Programa Mais Médicos. Em seu terceiro eixo, está a tentativa de suprir emergencialmente a carência de profissionais médicos no interior do País, sendo os DSEI considerados os de maior vulnerabilidade em parte por suas localizações territoriais, em sua maioria localizadas na Amazônia Legal, mas principalmente devido à influência dos macrodeterminantes sociais da saúde desses grupos1919 Dahlgren G, Whitehead M. Policies and Strategies to promote social equity in health. Stockholm: Institute for Future Studies; 1991..

No desafio da formação dos profissionais do Programa Mais Médicos para atuarem no contexto intercultural, foi oferecida pelo Ministério da Saúde uma especialização em saúde indígena para esses profissionais. Entretanto, essa iniciativa ainda carece de considerações acerca das demandas necessárias na atenção à saúde dos diversos grupos no País, com uma necessidade de direcionamento para as diversas realidades e compreensão de que, para os próprios indígenas, a biomedicina muitas vezes se apresenta como complementar à sua medicina tradicional, não sendo apenas o suprimento da demanda médica uma solução para as questões de saúde desses povos2020 Fontão MAB, Pereira EL. Projeto Mais Médicos na saúde indígena: reflexões a partir de uma pesquisa de opinião. Interface. - Comum. Saúde Edu. 2017; 21(supl1):1169-80. . Também em decorrência desses fatores, outro trabalho relata que, em 2018, o Ministério da Saúde publicou a ‘Necessidades de Educação Permanente no Projeto Nacional do Programa Mais Médicos’, o que sugere este constante ajuste na abordagem em saúde para esses povos2121 Mendes AM, Duarte FS. Necessidades de educação permanente no Projeto Mais Médicos para o Brasil. PMMB. Brasília, DF: Acervo Una-SUS; 2018..

Como forma de favorecer a intersetorialidade e a resolução dos problemas resultantes do contato intercultural, a Política de Educação Permanente em Saúde elaborada e implantada pelo Ministério da Saúde em 2004, caracteriza-se, portanto, como uma opção político-pedagógica para a saúde indígena2222 Figueiredo MCB. Formação de Facilitadores de educação permanente em saúde. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Rio de Janeiro: Ensp, 2014. . Além das necessidades e abordagens de formação em saúde indígena encontradas nesta revisão integrativa, também é relevante ressaltar que a Política de Educação Permanente em Saúde dialoga com a necessidade da intersecção educação-saúde para atores dos serviços de assistência à saúde dos povos originários, uma vez que constrói também aprendizagens colaborativas e direcionadas. A intersetorialidade e a interculturalidade, na própria efetivação dessa política e também nesse subsistema, podem ser construídas constantemente e em conjunto com as comunidades assistidas, como alguns estudos mais recentes retratam, na reestruturação dos serviços diante de novas ou diferentes demandas na assistência à saúde2323 Lemos CLS. Educação Permanente em Saúde no Brasil: educação ou gerenciamento permanente. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(3):913-922..

Tendo em vista os entraves culturais e a dificuldade de acesso à educação formal encontrados por esses povos, foi registrada e aprovada, em 2012, a Lei nº 12.711/2012, uma ação afirmativa que favorece acesso às universidades federais por indígenas2424 Frias L. As cotas raciais e sociais em universidades públicas são injustas? Direito, Est. e Soc. 2012; (41):154-164. . Essa inserção das populações originárias nas universidades pode ser também uma possibilidade para enfrentamento de vulnerabilidades e inequidades em saúde por meio do empoderamento, e capacitação direta dos indígenas para cuidarem de suas comunidades e também dialogarem com os diversos âmbitos ligados ao contato cultural.

Aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares na saúde indígena

Existem mecanismos que podem auxiliar no trabalho colaborativo em equipe e que são aplicáveis no sistema de saúde indígena local, de forma a alcançar uma melhoria direta de resultados na saúde desses povos; esses mecanismos podem estar ligados à prestação de serviços de saúde, no próprio ambiente do trabalho em saúde, na cultura ou maneira de execução desse trabalho ou ligados ao apoio institucional1010 Organização Mundial da Saúde. Declaração de Adelaide sobre a Saúde em Todas as Políticas: no caminho de uma governança compartilhada, em prol da saúde e do bem-estar. Relatório do encontro internacional sobre a Saúde em Todas as Políticas. Adelaide: OMS; 2010..

O papel dos Agentes Indígenas de Saúde é, sem dúvida, um retrato claro da aprendizagem colaborativa voltada para a comunidade, uma vez que esse profissional se torna um elo entre os saberes tradicionais e biomédicos, na equipe multidisciplinar não indígena e com o apoio de lideranças e representantes dos Conselhos Locais e Distritais de Saúde Indígena. Diversos artigos encontrados nesta revisão retratam os benefícios e mecanismos de aprendizagem colaborativa ligados a esses atores na prestação do serviço em saúde no território indígena2525 Langdon EJ, Diehl EE. Participação e Autonomia nos Espaços Interculturais de Saúde Indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saúde Soc. 2007; 16(2):19-36.

26 Diehl EE, Langdon EJ, Dias-Scopel RP. Contribuição dos agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(5):819-831.
-2727 Scopel D, Dias-Scopel RP, Langdon EJ. Intermedicalidade e protagonismo: a atuação dos agentes indígenas de saúde Munduruku da Terra Indígena Kwatá-Laranjal, Amazonas, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(12):2559-2568. . Uma vez que os desafios das relações de contato cultural são constantes nessa dinâmica, muitas vezes com a tendência colonizadora dos próprios profissionais de saúde que tiveram uma formação biomédica, o reconhecimento do agente indígena de saúde como membro da equipe multidisciplinar no território é fundamental inclusive para a sensibilização e tentativa de romper com esses padrões, ampliando o ‘como fazer a saúde indígena’ para uma troca de saberes efetiva entre todos.

Com relação às práticas interdisciplinares ligadas ao ambiente em que as relações de saúde ocorrem, Ribeiro e colaboradores2828 Ribeiro AA, Arantes CIS, Gualda DMR, et al. Aspectos culturais e históricos na produção do cuidado em um serviço de atenção à saúde indígena. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(6):2003-2012. retrataram as Casas de Saúde do Índio (Casai) como espaços mediadores entre a rua e a aldeia. Nos ambientes de saúde, os serviços e o cuidado se estabelecem com práticas e códigos sociais influenciáveis, sendo no contexto indígena susceptíveis à visão etnocêntrica. Neste estudo, a falta de prática interdisciplinar foi evidenciada nesses ambientes, sendo retratadas concepções profissionais que relativizavam as dos indígenas.

Sobre a temática da educação permanente em saúde, a prática interdisciplinar de cultura de trabalho ocorre na associação dos atores da saúde com outros setores das comunidades indígenas, como o da educação indígena. Questões como a linguagem também precisam ser trabalhadas, respeitadas e transpostas; intervenções pedagógicas em educação foram realizadas no Paraná com o povo Kaigang, nos períodos de 2004 a 2007, possibilitando a elaboração e a publicação de material pedagógico bilíngue em saúde: Educação para a Saúde - Eg hárh keto venhkarhrán e Terra Limpa - Ga Jãnhkri. A ampla participação de professores, estudantes e comunidade nas terras indígenas promoveu saúde com uma melhoria direta de resultados2929 Faustino RC, Chaves M, Toledo MJO, et al. Intervenções Pedagógicas Em Educação Para A Saúde Realizadas Junto Aos Grupos Indígenas Kaingang De Ivai E Faxinal No Paraná. Cienc Cuid Saude. 2007; 6(supl2):433-441..

A prática intersetorial em saúde indígena, seguindo o princípio da atenção diferenciada, também deve abranger setores de gestão e apoio institucional, como dos DSEI, da Sesai e das instituições prestadoras de serviço, uma vez que levam a aprendizagens colaborativas. Vargas3030 Vargas KD. Gestão Participativa no Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá: Uma análise de sua viabilidade política. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2015. 411 p. defendeu a tese sobre gestão participativa do DSEI Cuiabá e sua viabilidade política, fornecendo orientações sobre a perspectiva de voz dos atores indígenas na formulação do Plano Local de Saúde. Mota e Nunes3131 Mota SEC, Nunes M. Por uma atenção diferenciada e menos desigual: o caso do Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia. Saúde Soc. 2018; 27(1):11-25. verificaram práticas de gestores do Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas na Bahia com relação a contribuições sociais, políticas e culturais na sua operacionalização. Um dado relevante apontado foi a presença de indígenas na gestão como forma de contribuição para práticas contextualizadas e orientadas para os problemas vivenciados pelas comunidades, criticando uma gestão ainda de hegemonia não indígena.

Langdon e Diehl3232 Langdon EJ, Diehl EE, Wiik FB, et al. A participação dos agentes indígenas de saúde nos serviços de atenção à saúde: a experiência em Santa Catarina, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(12):2637-2646. também questionaram a subparticipação política dos indígenas nos Conselhos Distritais de Saúde uma vez que a estes compete somente aprovar e acompanhar a execução do Plano Distrital, acompanhar as ações dos conselhos de saúde locais e exercer o controle social das atividades de atenção à saúde indígena. Isso corrobora o intuito deste trabalho que é evidenciar o papel de todos os atores de saúde para uma efetiva promoção desta e consolidação da Reforma Sanitária, trazendo ainda a necessidade dessa prática estar nas diversas esferas: territoriais, distritais e de gestão.

Promoção da saúde indígena

A promoção da saúde objetiva fomentar a capacidade dos indivíduos e grupos para o controle de seus próprios determinantes de saúde. O empoderamento é um exemplo desse processo de fortalecimento dos sujeitos, de incentivo à autonomia de maneira dinâmica, por meio de aspectos cognitivos e afetivos que levam a mudanças nos aspectos conduturais e de participação social e política dos envolvidos, inclusive dos atores da saúde. Por meio das mudanças geradas pelo empoderamento, pode-se, também, gerar aprendizagens colaborativas e práticas intersetoriais3333 Kleba ME, Wendausen A. Empoderamento: processo de fortalecimento dos sujeitos nos espaços de participação social e democratização política. Saude soc. 2009: 18(4):733-743. . Outro aspecto que se relaciona ao empoderamento e à promoção da saúde é o termo resiliência, como estudado nas ciências humanas, representando a capacidade de (re)construção positiva ante as adversidades3434 Noronha MGRCS, Cardoso OS, Moraes TNP, et al. Resiliência: nova perspectiva na Promoção da Saúde da Família? Ciênc. Saúde Colet. 2019; 14(2):497-506..

Um dos artigos relatou esse aspecto ligado à promoção de saúde sob a perspectiva dos próprios indígenas. Os Agentes Indígenas de Saúde do povo Munduruku perceberam certo desempoderamento social de seus cargos após a inserção das equipes multiprofissionais de saúde indígena2727 Scopel D, Dias-Scopel RP, Langdon EJ. Intermedicalidade e protagonismo: a atuação dos agentes indígenas de saúde Munduruku da Terra Indígena Kwatá-Laranjal, Amazonas, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(12):2559-2568. . A complexa organização dos serviços ligados à saúde indígena é evidente neste caso, e coube ao povo Munduruku esta autopercepção e reorganização pelo processo de resiliência. Os agentes indígenas de saúde, como atores nessa dinâmica, verificaram uma emergência em reconsolidar seus papéis, empoderando-se politicamente em uma complexa rede de interação com o poder estatal.

Esse processo de resiliência também corrobora a promoção da saúde indígena na reivindicação, proteção e cura de suas relações no território, por meio de aprendizagens colaborativas e práticas inter-setoriais que reorganizam o próprio sistema de saúde de perspectiva biomédica não indígena para essa realidade.

Outro trabalho que dialogou diretamente com a promoção da saúde e suas diversas abordagens relatou a experiência do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) da Universidade Federal de Tocantins, integrando ensino-serviço-comunidade, pesquisa e extensão. Em respostas às demandas de alunos indígenas e de aldeias locais, alunos de enfermagem, medicina, serviço social e nutrição, e uma professora antropóloga, pretenderam contribuir para a promoção da saúde indígena por meio do trabalho educativo em saúde. Trabalharam os efeitos negativos do álcool na saúde dos indivíduos e da coletividade, com preceitos da cultura, a desvalorização e marginalização indígena em relação à sociedade, dando visibilidade às interpretações dos indígenas e dos atores da equipe de saúde como interlocutores do campo de pesquisa3535 Silva RP, Barcelos AC, Hirano BQL, et al. A experiência de alunos do PET-Saúde com a saúde indígena e o programa Mais Médicos. Comum. Saúde Edu. 2015; 19(supl):1005-14..

Em 2015, um relato de experiência foi publicado abordando as práticas dos promotores de salud autónomos zapatistas em uma comunidade indígena tojolabal no México. O empoderamento indígena mexicano de organização comunitária nos princípios da educação popular em saúde pode servir de inspiração para a compreensão da aprendizagem colaborativa de diversos atores para a promoção de saúde indígena no mundo. Sem vínculos com as políticas públicas, nem com o setor privado, mas com a própria organização do movimento popular, este estudo enfatizou o protagonismo, o diálogo, a superação das desigualdades e o desenvolvimento da autonomia indígena3636 Morel APM. Popular Health Education and Community Organization: a report on the Zapatista autonomous health promoters in Chiapas/Mexico. Rev. APS. 2015; 18(4): 523-527..

O protagonismo Pankararu no Brasil foi relatado sob a perspectiva da promoção da saúde, a respeito do empoderamento das lideranças dessa etnia para a percepção de sua situação de saúde, identificação das ações prioritárias e reformulação geral das organizações e estabelecimentos, modificando todo o cenário local a partir de questões culturais, antropológicas e sociais que ocorrem no dia a dia do trabalho em saúde indígena3737 Oliveira JWB. Aquino JM, Monteiro EMLM. Promoção da saúde na comunidade indígena Pankararu. Rev Bras Enferm. 2012; 65(3):437-44..

Discussão e considerações

O contexto indigenista, de luta e resistência, traz grandes pistas da capacidade de organização comunitária, valorização cultural, formas de reivindicar direitos, e do modo próprio de organizar a saúde desses povos. Apesar de seguirem o modelo descentralizado e hierarquizado do SUS, o perfil epidemiológico e a distritalização da saúde nas áreas indígenas possuem peculiaridades locais de uma região para outra que também moldam a maneira como ocorreu a Reforma Sanitária nesses territórios3838 Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Diagnóstico situacional do Subsistema de Saúde Indígena - relatório inicial (revisado). Brasília, DF: Consórcio Institute of Development Studies; Saúde Sem Limites; Centro Brasileiro de Análise e Planejamento; 2009..

Lideranças políticas e profissionais médicos tradicionais - como pajés, parteiras, raizeiros e rezadores - já eram existentes nessas culturas, e ainda são protagonistas nos saberes culturais e de orientação para as comunidades, com impacto no fazer da saúde indígena3939 Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Educação profissional básica para agentes indígenas de saúde. Brasília, DF: Fundação Nacional de Saúde; 2005. . Com a formação de conselhos de saúde que pudessem representar essa população e a participação de uma equipe multidisciplinar indígena e não indígena, houve a possibilidade de efetivar o empoderamento desses povos a partir do controle social e assisti-los nos serviços do SUS, garantindo acesso e o princípio da universalidade66 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988..

Uma vez que a história revela um estado de maior fragilidade em saúde ou maiores riscos que expõem os povos indígenas ao adoecimento, o conceito de vulnerabilidade para práticas sociais e históricas dentro do contexto de saúde justifica as diversas abordagens e atores de saúde4040 Ayres JRCM, Franca-junior I, Calazas GJ, et al. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa RM, Parker R. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidade e poder. Rio de Janeiro: Editora 34; 1999. . A formação para saúde indígena envolve uma maior complexidade, e precisa trabalhar conteúdos ampliados, como: papéis sociais das comunidades, da família, ciclo biológico, riscos e vulnerabilidades, padrões culturais de alimentação, relação entre doenças e hábitos alimentares, imunização, procedimentos e tratamentos padronizados, vigilância nutricional, ações básicas de saúde, acompanhamento e desenvolvimento das crianças e educação em saúde4141 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional De Promoção Da Saúde. 3. ed. Série B. Textos Básicos de Saúde. Série Pactos pela Saúde 2006, v. 7. Brasília, DF 2010..

Adentrando as interfaces saúde, cultura e modo de vida de maneira específica e inclusiva, os DSEI contam atualmente com uma equipe multiprofissional e intersetorial. Conselheiros locais e distritais, agentes indígenas de saúde e saneamento, médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas, assistentes sociais, nutricionistas, farmacêuticos, psicólogos, engenheiros, técnicos e/ou auxiliares de enfermagem, auxiliares de saúde bucal, agentes de combate a endemias, técnicos de saneamento e apoiadores técnicos compõem os recursos humanos da saúde indígena4242 Associação Para o Desenvolvimento da Medicina. Xingu [internet]. [acesso em 2018 maio 24]. Disponível em: http://www.saudeindigena.spdm.org.br/site/index.php/dsei/xingu.
http://www.saudeindigena.spdm.org.br/sit...
. Tais atores se apresentam como fonte de aprendizagens e práticas diversas para as questões de saúde atuais e que ainda possam envolver os povos originais brasileiros; na gestão, assistência, avaliação, controle ou acompanhamento das políticas públicas de saúde voltadas para esses povos e promoção da saúde indígena. Entretanto, até mesmo nesse contexto, os padrões eurocêntrico e da medicina ocidental, considerados ‘corretos’, precisam ser constantemente questionados, dando oportunidade de expressão aos próprios conselheiros indígenas33 Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília, DF: MS; Fundação Nacional de Saúde; 2002..

Na perspectiva de fortalecimento dos DSEI, o processo de formação de agentes indígenas de saúde e saneamento possibilita a efetivação sanitária desse subsistema de atenção à saúde, uma vez que estes são pilares dos recursos humanos no DSEI, intermediando todo o processo e conhecendo as especificidades desse contexto juntamente com o controle social. Sobre as os aspectos pedagógicos e a elaboração curricular, as questões raciais e étnicas das teorias pós‐críticas do currículo ressaltam a necessidade de inclusão de formas culturais e experiências de grupos sociais descriminados pela identidade europeia dominante4343 Malta SCL. Uma abordagem sobre currículo e teorias afins visando à compreensão e mudança. Espaço Curríc. 2013; 6(2):340-354. . Assim, a formação de agentes indígenas de saúde, como atores dentro e um contexto multiétnico, também envolve esses aspectos, necessitando que significados e valores culturais sejam abordados e respeitados mesmo em uma formação para o sistema de saúde considerado ocidental.

O papel central dos agentes indígenas de saúde foi considerado nesta revisão integrativa para a atenção primária diferenciada, sensível ao pluralismo e à diversidade cultural. Diehl et al.2424 Frias L. As cotas raciais e sociais em universidades públicas são injustas? Direito, Est. e Soc. 2012; (41):154-164. estudaram em uma revisão de literatura a implantação, formação, participação e contribuições desses atores nas equipes multidisciplinares de atenção básica à saúde indígena, tratando de problemas na capacitação e centralização desta, não reconhecimento de antigas capacitações e ambiguidades de papéis após a implementação dos DSEI4444 Fundação Nacional de Saúde. Distritos Sanitários Especiais Indígenas DSEIs, 1991-2001 [internet]. [acesso em 2018 set 25]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diret_indigena.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
. Positivamente, esse grupo profissional vem sendo reconhecido e contratado em maior número pelos órgãos responsáveis, uma vez que são, muitas vezes, os únicos estabelecidos nos territórios, além de serem alvos de reivindicação central das organizações indígenas. Esse achado dialoga com o papel político do agente indígena de saúde no contexto interétnico trabalhado em outro artigo encontrado nesta revisão integrativa e com os intuitos da promoção da saúde2626 Diehl EE, Langdon EJ, Dias-Scopel RP. Contribuição dos agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(5):819-831..

Em tempos de grandes mudanças nas conquistas sociais já alcançadas, grupos de maior vulnerabilidade, como os povos originários, tendem a sofrer os maiores impactos, como evidenciado nos índices de mortalidade infantil indígena atuais - muito superiores aos verificados na média nacional4545 Equipe Mapa Guarani Continental. Caderno Mapa Guarani Continental: povos Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Campo Grande: MS; Cimi; 2016. . Além disso, o acesso a informações acerca da realidade dos povos indígenas na formação em saúde precisa de uma ampliação visto que existe uma discrepância entre territórios e população autodeclarada indígena no País; os dados de 2010 do Censo/IBGE mostram que hoje a maior parte desses povos tem um importante contingente populacional em áreas urbanas/periurbanas (cerca de 61 mil pessoas só nos estados da região Norte) impactando a efetivação de seus direitos4646 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Folder Brasil Indígena [internet]. 2013 [acesso em 2018 maio 24]. Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2013/img/12-Dez/pdf-brasil-ind.pdf.
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Como apresentado nesta revisão integrativa, os diversos atores envolvidos na saúde indígena podem ressignificar suas práticas para a promoção da saúde desses povos, sendo fundamental para eles o fortalecimento de sua autonomia para essa construção de aprendizagens colaborativas e práticas interdisciplinares. A abordagem completa dos recursos humanos da saúde indígena, com todos seus atores, em uma prática não colonizadora pode contribuir para a redução de iniquidades sociais sofridas por tais grupos, promover saúde e consolidar os ganhos de muitos anos de resistência. Atualmente, com atuais cenários políticos nacionais e internacionais, as reformas sanitárias nesses territórios são desafios e devem ir além, não só para os povos indígenas, mas protagonizada por eles.

  • Suporte financeiro: não houve

Agradecimentos

Agência de fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio institucional à Universidade de Franca.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
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