A participação do movimento social na Reforma Sanitária Brasileira - entrevista com Jó Rezende e Isabel Cruz

Social movement’s participation in the Brazilian Health Reform - an interview with Jó Rezende and Isabel Cruz

Jó Rezende Isabel Cruz Mônica de Rezende Sobre os autores

A PROPOSTA DESTA ENTREVISTA É RESGATAR A CONTRIBUIÇÃO do movimento social para a Reforma Sanitária do final do século XX, que culminou na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). A fim de entender um pouco melhor a demanda dos movimentos relacionados com a saúde das populações que aconteciam naquele mesmo contexto de reforma e como eles articularam ou interagiram entre si, colocamos Jó Rezende e a Professora Isabel Cruz em diálogo. Jó Rezende participou da construção da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (Famerj) no final da década de 1970 e foi seu presidente no período de 1981 a 1985. Isabel Cruz, hoje professora titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), era estudante de enfermagem na década de 1980 e participante do movimento negro.

No início dos anos 1980, em um momento político marcado pelo autoritarismo da ditadura militar e pela ausência de manejo sobre os meios de comunicação - não havia nada parecido com o que a Internet representa nos dias de hoje -, as pessoas buscavam se encontrar para pensar juntas e produzir alternativas para suas vidas, travando muitas batalhas por direitos e pela redemocratização do País. A luta capitaneada pela Famerj contra a política habitacional desenvolvida pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), vitoriosa naquela época, foi um expoente para a mobilização social nacional. Ajudou a fortalecer a crença na luta organizada. Outro marco importante da mobilização produzida na época pelas associações de moradores foi a realização do Encontro Popular pela Saúde do Rio de Janeiro, no dia 14 de setembro de 1980, na Cidade de Deus. O evento marcou um movimento pela saúde que era caracterizado, também, pelo trabalho de comissões nas comunidades, formadas pelas associações de moradores assessoradas por profissionais de saúde do Sindicato dos Médicos no Rio de Janeiro, pelo núcleo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pelo Centro de Defesa da Qualidade da Vida, entre outros11 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Linha do tempo - 1980. [internet]. [acesso em 2019 out 7]. Disponível em: http://cebes.org.br/linha-do-tempo/ano-1980/.
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. Tais comissões faziam o levantamento das condições de vida e saúde locais e atuavam na conscientização de todos os envolvidos sobre a dimensão social da saúde, contribuindo para a construção do conceito ampliado de saúde que consta na Lei Orgânica da Saúde nº 8.080, de 1990 (LOS 8.080/90), no qual a saúde encontra-se ligada, também, às condições de moradia, trabalho, alimentação, saneamento, transporte e lazer22 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990.,33 Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro. Jornal da FAMERJ [internet]. 1988 [acesso em 2019 out 7]; (43):1-15. Disponível em: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PJOFMRJ021988043.pdf.
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O resgate dessa história nos ajuda a pensar a potência transformadora da organização social que acabou, dentro do SUS, ficando restrita à ideia de controle social, com seus conselhos e conferências. Essa restrição conversa diretamente com a proposta da democracia representativa, que, no processo de reabertura política do País, canalizou os esforços dos movimentos de luta para dentro dos partidos políticos no intuito de garantir a representatividade nas instituições. Por meio do voto direto, os cidadãos buscavam eleger seus representantes e sentiam que não precisavam mais do engajamento direto nem de mobilizar suas rotinas para buscar ter atendidas suas demandas.

Todavia, o quanto fez falta a participação direta dos cidadãos na consolidação do SUS para vocalização de suas demandas e necessidades de saúde? O quanto e de que forma precisamos ocupar os espaços de participação do SUS para que ele expresse os anseios dos diversos grupos populacionais? Que outros espaços e formas de participação podem construir para o enfrentamento dos desafios que se apresentam no momento que estamos?

Diante do cenário atual, com a fragilização de nossas instituições, com a perda de direitos devido à ação direcionada de determinados governos e com o reconhecimento dos limites da democracia representativa para a garantia dos direitos de cidadania, parece uma contribuição importante olharmos reflexivamente para nosso passado recente buscando reforçar a necessidade de evitar o retorno do Estado de exceção e resgatar o valor do engajamento direto na ação política para redução da desigualdade social, ampliação da justiça social e melhoria da qualidade de vida.

MÔNICA DE REZENDE: Boa tarde, Jó e Isabel. Obrigada pela presença de vocês.

Estamos fazendo este número especial da revista ‘Saúde em Debate’ para tentar resgatar um pouco da história da reforma sanitária brasileira, que ocorreu na década de 1980, olhando para a participação dos movimentos sociais. Começo perguntando para o Jó como teve início o movimento social que fundou a Famerj nos anos 1970 e 1980 e quais questões mobilizaram a luta social naquele momento?

JÓ REZENDE: Nós vivíamos, naquele período, uma situação muito difícil no País por conta dos resquícios do período autoritário. Toda a sociedade estava contida, represada. Havia um represamento de opinião muito forte, e não tínhamos os partidos políticos atuando, que pudessem servir de escoadouro para as demandas, para aquelas reivindicações, para aquelas inquietações que, naturalmente, existem em toda sociedade.

Nós tínhamos vindo, eu e as pessoas da minha geração, de um período político muito intenso antes do período autoritário. E o período autoritário foi de muita dificuldade, muita repressão e de absoluta distância dos interesses e das demandas da sociedade. E foi neste ambiente bloqueado, muito parado e de muita tensão - mas uma tensão interna, não exposta - que começaram a se desenvolver alguns movimentos sociais. E eles desenvolveram-se em várias dimensões. Na dimensão sindical, por exemplo, através das lutas sindicais, com os operários se organizando... E uma dessas dimensões foi no local de moradia.

Naquela época, não se podia manifestar, e não havia... nós não tínhamos internet. Não era uma comunicação que se irradiasse como hoje em dia. Eram contatos mais diretos, pessoais. Mesmo no movimento estudantil, era muito restrita a comunicação. E aí nós, pessoas que tínhamos um pouco mais de experiência, que já tínhamos vivido alguma militância e já sabíamos um pouco como coordenar as ações de algum modo, começamos a nos reunir num núcleo bem básico, no local de moradia.

Nessa época, havia uma experiência muito intensa, que começava a se reinstalar, que eram os movimentos nas favelas. A Faferj, Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, tinha uma experiência comunitária muito forte e era muito respeitada, porque tinha lutado contra a remoção de favelas e por uma política de urbanização e saneamento nas comunidades. E nós, então, um pouco inspirados nessa organização, começamos a desenvolver um movimento nos bairros.

Lidávamos com alguns problemas muito imediatos. Nós vivíamos uma ameaça da construção de uma via paralela sobre a Rua das Laranjeiras, como tinham feito na Paulo de Frontin, no Rio Comprido. A exemplo do que já se fazia em São Paulo, tipo o Minhocão, o governo Chagas Freitas resolveu criar aqui no Rio vias aéreas, quer dizer, por sobre os bairros. E a primeira experiência foi lá no Rio Comprido, que antes era um bairro muito aprazível, muito agradável. Com a abertura dos túneis ‘Rebouças’, começou a haver uma pressão muito grande de alternativas de acesso. E no programa que eles tinham feito, no planejamento urbano que eles já tinham realizado naquela época, fazia parte a saída do túnel Rebouças para acesso a Zona Norte através de um elevado, o elevado da Paulo de Frontin. Só que isso foi num período em que não houve reação nenhuma. Nem podia, em plena ditadura. Mas essa mesma política começou a vir direcionada aqui para Laranjeiras e o Cosme Velho, porque o Chagas Freiras queria que houvesse uma saída no meio do túnel para o Flamengo. Uma saída intermediária através de uma via elevada, que trouxesse o fluxo de trânsito por cima do Cosme Velho e de Laranjeiras, desembocando ali na praça José de Alencar. Quando vimos o plano, começamos a nos organizar e discutir o assunto, a fazer reuniões. Fazíamos pequenas reuniões nos colégios, nas igrejas... E aquilo foi tomando uma proporção maior. Vimos que, além daquela ameaça de grande porte chamada via paralela, havia também a falta de zoneamento urbano. O que a gente chamava de especulação imobiliária eram construções sem limites de gabarito, sem ordenamento urbano, sem respeito à história da cidade. A cidade estava loteada.

Então, começamos a nos reunir discutindo também esses outros aspectos. E, olhe bem: eu estou me referindo a um extrato muito pequeno, que era o Cosme Velho. Nós estávamos nos reunindo no Cosme Velho em função desses problemas que estavam surgindo. Porém, quando estávamos nessas reuniões sucessivas, soubemos da existência de um movimento similar que ocorria na Zona Oeste da cidade, chamado Cezo, Centro de Estudos da Zona Oeste, em Campo Grande. E aí, dada a carência de comunicação, entendemos que o problema não era um problema específico de um bairro, mas era um problema maior, que se expandia para a cidade e para toda Região Metropolitana.

ISABEL CRUZ: O Chagas Freitas era governador do estado. Era uma época de muita corrupção, muito loteamento. Um patrimonialismo total.

JÓ REZENDE: Total. Corrupção, autoritarismo... Completo desprezo pela opinião pública. A grande mídia, nessa época, era toda muito comprometida com esse tipo de governo, com esse tipo de encaminhamento; e, portanto, não havia espaço para nada. Não havia Câmara de Vereadores, não havia Congresso Nacional. Os governadores e os prefeitos eram nomeados. Então, esse contexto todo foi nos levando a fazer articulações.

Quando soubemos da existência do Cezo, procuramos saber quem desenvolvia aquele trabalho. E aí nos encontramos com outras experiências comunitárias. A experiência dos moradores da Rua Lauro Muller, região perto do Rio Sul, em Botafogo, que tinha uma liderança local forte, foi uma delas. Outra foi a experiência com o pessoal do Alto Leblon. Eles desenvolviam trabalhos de arte, trabalhos culturais etc. Aquilo também nos inspirou. Nós fomos lá conhecer o trabalho que eles faziam e, através desse contato, nos encontramos com outras pessoas e experiências importantes que estavam se comunicando.

Fomos, um grupo do Cosme Velho, para a reunião lá em Campo Grande, no Cezo, e lá encontramos várias comunidades começando um movimento, há um ano, aproximadamente... Estamos falando de 1979; e eles tinham começado, em 1978, através do Cezo, um movimento que poderia ser, como existia a Federação das Favelas do Rio de Janeiro, uma Federação das Associações de Moradores, de Não Favelas, do Rio de Janeiro, que eles chamavam de Famerj e que, naquele primeiro momento, só congregava aquelas poucas associações da Zona Oeste: Santa Cruz, Campo Grande, Realengo, um pouco de Bangu. Então, tínhamos ali alguns núcleos de moradores, principalmente direcionados para as lutas dos loteamentos clandestinos que eram vendidos para as pessoas e que, depois de adquiridos, não recebiam infraestrutura, não havia zoneamento, nada.

A partir daquelas reuniões, lá na Zona Oeste, fomos nos animando. E com, digamos, aquela animação de encontrar, de ter um período de articulação, de contato, de vizinhança, começamos a fortalecer o que seria o embrião da Famerj. Naquele momento, com a Famerj nascente, tiramos como uma tarefa nossa começar a visitar outros bairros e convocar uma reunião nesses pequenos núcleos para dali a um tempo, dois meses, no intuito de fazer uma reunião maior. E aí nós fizemos contato com colegas de vários bairros e, também, com os colegas que faziam parte das associações de trabalho, a partir do ambiente de trabalho de cada um de nós, para que eles pudessem reproduzir isso no local de moradia deles. E a coisa cresceu.

ISABEL CRUZ: Era também um período de muita estruturação, porque a gente tinha as comunidades eclesiais, tinha pastorais... No fundo, acho que começava a surgir uma resistência à ditadura com essas organizações ainda desarticuladas.

JÓ REZENDE: Exatamente. Mas na luta, a questão da ditadura não era muito colocada. Certamente que era colocada nos movimentos eclesiais, no movimento de base e tal. Mas, nesses encontros, nos bairros e nas associações de moradores, o pessoal ainda estava muito esterilizado, não queria ação da dita política. Havia uma aversão muito grande a qualquer trabalho que tivesse essa conotação.

ISABEL CRUZ: Eram os problemas locais mesmo que mobilizavam.

JÓ REZENDE: Até por temor. A gente vivia num período de muita repressão. Obviamente que cada um de nós tinha consciência de que uma coisa levava à outra e que esse processo era dinâmico, mas queríamos respeitar o nível de participação que as pessoas queriam. E tinha muita gente que não queria mesmo saber de política, de nada disso. O que elas queriam era saber como é que se resolvem os problemas da população. E foi muito oportuno para as pessoas descobrir ali uma forma de manifestação. E isso foi dinâmico. Criamos um conselho de representantes na Famerj, que tinha a sua diretoria, com um representante de cada uma daquelas comunidades que iam se organizando. Todo final de semana tinha reuniões. A gente foi para Niterói, foi para Pendotiba, foi para Região dos Lagos... Foi se alastrando. A cada semana, a gente contava com novas associações. Criamos um estatuto básico para as Associações de Moradores, que cada uma adaptava como queria. Resultado: em dois, três anos, nós tínhamos mais de 200 associações de moradores no Rio de Janeiro. E com força de luta. E aí o seguinte: como esse movimento se reunia, ele ia para tudo quanto é lugar e ia todo mundo. E a gente chegava a 300 pessoas numa comunidade. E fazia uma festa, verdadeira discussão e debate do que vai fazer, do que não vai fazer. Isso tudo sem perder a dimensão local, pois cada bairro tinha os seus problemas. E tinha que fazer o zoneamento urbano.

MÔNICA DE REZENDE: E como foi que esse movimento alcançou o debate da saúde?

ISABEL CRUZ: Além da questão de habitação, dos problemas locais, era um período de uma inflação absurda. Esses movimentos de bairros, nas associações, eram movimentos que se uniam em torno da questão não só da moradia, dos riscos que havia à moradia ou à falta dela ou risco de perdê-la, mas também essa outra parte [a saúde]... Na verdade, as pessoas estavam se organizando também para se defender. E digamos que, dentro desses grupos, como as pastorais, as comunidades eclesiais, o movimento de favelas, mulheres e outros, a questão da saúde já entrava como um problema, tendo em vista que a saúde ainda estava estruturada na forma clássica hospitalar. Não só hospitalar, mas também da ausência de direito à saúde. As pessoas com empregos formais, com a carteira de trabalho, tinham acesso a algum serviço de saúde, pois o atendimento era via INPS, depois Inamps. No caso das corporações, várias delas tinham serviços de saúde próprios, antes da ditadura. Algumas delas tinham seus próprios planos de saúde, seus próprios serviços de saúde. A ditadura, de uma certa forma, se apropriou desses serviços. E quem não tinha trabalho? Nesse período, as pessoas só tinham o posto de saúde para vacinação ou o pronto-socorro, porque o serviço prestado via governo federal era o mínimo. O acompanhamento da saúde, com a questão da criança, a questão da mulher e outras situações ou períodos de vida que precisam do atendimento à saúde, isso não existia. E isso também já entrava na lista de pressão, pela criação de um serviço ou pela necessidade de rever o sistema, que já estava em discussão entre os profissionais de saúde. Por exemplo, a discussão que resultou no Paism - Programa de Atenção Integral à Saúde das Mulheres - que surgiu em 1983, aparentemente de forma surpreendente, trazendo uma nova e diferenciada abordagem da saúde da mulher e rompendo com a visão tradicional restrita às questões relativas à reprodução; porque mesmo não havendo a questão político-partidária, havia uma intencionalidade de democratizar os bens e melhorar o acesso. A luta pela democratização estava implícita.

JÓ REZENDE: Estava implícita. Todo esse processo que era discutido, naturalmente levava a essa questão. Só se pode resolver isso com democracia.

ISABEL CRUZ: Exato. E com uma distribuição equitativa dos recursos. O movimento social não tinha dúvidas das riquezas do País ou do potencial do País e das pessoas. Mas se sabia que isso era um patrimônio de terceiro.

JÓ REZENDE: O movimento tornou-se altamente pedagógico. Na medida em que o processo se desenvolvia, sem que ninguém doutrinasse ninguém. Naturalmente, o processo ia se conduzindo a um discurso político no sentido maior, no sentido, digamos, da compreensão da necessidade da democracia.

ISABEL CRUZ: Exatamente. E desses recursos serem distribuídos equanimemente. E que recursos? Os básicos: alimentação, saúde, moradia. E de uma forma transparente também, porque, como você viu, o plano de zoneamento da cidade existia, mas atendendo a interesses de grupos, e não em um processo de participação, discussão da ocupação da cidade.

JÓ REZENDE: E a forma como isso se operacionalizou, no caso dos movimentos sociais, comunitários, a partir da criação de cada associação de moradores... Eram tantas tarefas, tantas demandas, tantas necessidades, que havia a necessidade de que isso fosse departamentalizado. Em cada associação de moradores, as lideranças se organizavam em função das suas especializações. Então, Jairo Coutinho. Lembra, né? O Jairo Coutinho, o Vivaldo, o Walter Mendes foram pessoas que viviam esse trabalho, mas como eram médicos... a Rosângela, mulher do Walter, na época. Então, essas pessoas viviam suas atividades nos Sindicatos e começaram a perceber a força que tinha se essa ação profissional viesse encontrar também a correspondência no seu local de moradia onde essas demandas se faziam presentes. Aí, então, passou a haver um canal de comunicação entre o local de trabalho e o local de moradia. Os moradores se organizavam em função das suas especialidades. Eu, por exemplo, era do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados). E como éramos profissionais do Serpro, naturalmente, tínhamos muito a ver com a tecnologia, com as coisas de tecnologia que pudessem vir para dentro da comunidade e ajudar essa comunidade, quer seja na comunicação ou em qualquer outra coisa. Então, essa departamentalização fez com que a gente começasse a ter representações dos diversos segmentos da sociedade dentro do Conselho da Famerj. E fizemos isso... no Movimento das Mulheres, por exemplo, a Georgina era uma liderança muito forte. Ela levantava bandeiras que até hoje são extremamente atuais. A Grazia, Georgina, Isabel...

ISABEL CRUZ: Teve a Lélia Gonzalez no caso de mulheres negras também. A Rosália Lemos, do Morro do Andaraí. Jurema Batista, que começou sua trajetória política como presidente da Associação de Moradores do Andaraí, em 1979, e depois foi eleita três vezes vereadora e uma vez deputada estadual. E todo mundo muito jovem naquela época.

MÔNICA DE REZENDE: A gente estava num período pós-Alma-Ata [1978]. A discussão do cuidado primário em saúde, que busca a aproximação da saúde do lugar em que as pessoas vivem, moram, estava muito forte nessa época, eu imagino.

ISABEL CRUZ: Eu acho isso interessante. Acho que há uma coincidência no universo mesmo. Há uma concorrência, uma sintonia; porque, ao mesmo tempo que está havendo essa organização e esse entendimento que as coisas têm que acontecer, que as pessoas vivem nos bairros, vivem nas cidades... você tem um movimento mundial, no caso da saúde, sintetizado na Conferência de Alma-Ata. É quase um sincronismo. As pessoas estavam entendendo que as coisas tinham que ser naquele entorno, que elas tinham que acontecer próximas a elas. Não fazia sentido, nunca fez sentido, uma mãe sair com o filho, distâncias de uma cidade para outra, como às vezes era necessário. Ou atravessar a cidade para vir ao Centro para ter um atendimento. Ou não ter atendimento algum, não ter direito ao atendimento se não tivesse uma carteira de trabalho. Ou se perdesse o emprego, perderia o acesso. Então, esse entendimento já estava latente nas pessoas. E, de certa forma, os profissionais da época... eu não sei da relação deles com o movimento de associações, mas com o movimento social, sim. O Mario Chaves, acho que a gente não pode deixar de falar nele, dentro da Ensp, foi uma pessoa que influenciou muito essa aproximação com a saúde nas comunidades. E puxando a minha mestra, professora Rosalda Paim.

JÓ REZENDE: O Arouca.

ISABEL CRUZ: O Arouca também; porque eles já estavam escutando esses grupos e vendo que realmente era uma demanda. Não era um entendimento teórico, era uma demanda da sociedade ter a saúde próxima a si, a saúde na comunidade, pelo menos naquele atendimento primário que é o cotidiano mais comum que as pessoas precisam.

MÔNICA DE REZENDE: E o movimento ‘saúde direito para todos’?

JÓ REZENDE: Isso. Essa aproximação dos profissionais com a moradia priorizou algumas áreas. Então, priorizou a área habitacional, que nós tínhamos a questão do BNH (Banco Nacional da Habitação) e a questão dos loteamentos e tudo mais. Priorizou a área de saúde, porque na época, os médicos... o Sindicato dos Médicos tinha um movimento chamado Reme, Renovação Médica, que depois transformou-se no Renovação Médica Mais, o Reme Mais. Tinha o Reme e o Reme Mais. Eram lutas internas dos movimentos sociais no caso dos Sindicatos dos Médicos. E o Reme e o Reme Mais viviam um certo conflito interno da política, mas eles se aproximaram do movimento social. Jairo Coutinho e o Walter Mendes foram expoentes nessa aproximação. E o Arouca, na Fiocruz na época, e o Antônio Ivo. Então, essas pessoas começaram a fazer um vínculo muito forte com o movimento. E perceberam que a luta pela democratização do acesso à saúde era essencial. E a reorganização da saúde. Da luta pela saúde, digamos assim. E aí começamos a fazer núcleos de saúde em cada comunidade, em cada associação de moradores. O pessoal discutindo saúde; os moradores discutindo saúde. E chamávamos o pessoal dos Sindicatos dos Médicos para vir participar dessa discussão. Muitos vinham participar dessa discussão.

ISABEL CRUZ: Em Niterói, esse núcleo de associação de moradores praticamente foi o germe do médico de família.

MÔNICA DE REZENDE: Nessa época, você estava na Universidade?

ISABEL CRUZ: Eu estava, mas como aluna ainda, na enfermagem. E lá na escola, em Niterói, a gente teve uma forte influência da professora Rosalda Paim porque ela conduzia alguns projetos locais. Digamos assim, o consultório na rua, não a modalidade como é pensada hoje, mas a professora Rosalda junto com o Mario Chaves, o Edson Paim, marido dela, Hésio Cordeiro e outros... Eles conseguiam projetos para lá e levavam nessas comunidades o carro assistencial, como tinha antigamente, das pioneiras. A Rosalda também tinha um projeto de saúde na comunidade. O projeto de puericultura, que acompanhava criança de zero a um ano de idade. Isso tudo bancado por projetos da Ensp em parceria com a UFF, com Mario Chaves. E, então, esse trabalho nas comunidades Morro do Céu, Caramujo, Pendotiba... comunidades periféricas em Niterói. E levando os professores e os alunos para atuarem nesses espaços. Mas isso tudo era embrionário e encontrava uma grande resistência, porque o modelo hospitalar era muito forte e tinha quem o defendia de uma forma muito intensa. Até hoje! A questão mesmo do posto de saúde atrelado à vacinação e cuidados bem elementares também era muito forte. A ideia que surgia era realmente abrir uma frente de atendimento que acolhesse a demanda e enviasse para o hospital apenas os casos mais complexos. Mas esse modelo encontrou muita resistência. Resistência de gestores, de profissionais, de pessoas do setor privado da saúde que só ficaram um pouco mais tranquilos quando o próprio Estado voltou a comprar leitos hospitalares, porque não dava conta. Aí se tranquilizaram. A gente vê que a questão da atenção especializada foi algo que praticamente ficou sem ser tocado em todos esses 30 anos do SUS.

Então, a gente tem que entender que os movimentos sociais vinham pleiteando várias coisas, mas também se organizando para fazer algumas mudanças estruturais. E, nesse sentido, a saúde teve uma mudança estrutural; porque o SUS reorganiza o sistema, que estava começando incipiente com o Suds, antes mesmo da Constituição. Já estava se tentando alinhar; e é óbvio que com a força do movimento social, aquele modelo de hierarquização de atenção à saúde encontrou eco na população e foi consagrado.

JÓ REZENDE: Pois é. Exatamente! Convergidos nesse contexto que a Isabel colocou, esses grupos todos, dentro das associações de moradores e nos ambientes de trabalho, não só nos Sindicatos, mas nos próprios ambientes dentro das empresas onde se formavam grupos que tinham essa sintonia, eles foram se mobilizando por algumas campanhas. Havia necessidade de defesa dessas teses que a Isabel expôs, e isso passava a ser uma discussão interna, orientada. E percebeu-se que havia necessidade de fazer um marco, alguma coisa que fosse um episódio, um evento que dissesse o seguinte: “este é o referencial novo para nós”. E surgiu a discussão, dentro da Famerj, de fazermos um encontro popular pela saúde; e, especificamente, em Cidade de Deus. Iríamos fazer isso em Cidade de Deus em função do drama que essas pessoas viviam ali, com absoluta falta de assistência de tudo. Então, resolvemos fazer o I Encontro Popular pela Saúde na Cidade de Deus. E fizemos uma grande mobilização.

ISABEL CRUZ: Isso tudo acabou gerando o quê? Os conselhos... Essas são as sementes dos conselhos gestores, dos conselhos de saúde; porque o SUS também tem o tripé, que é o usuário, o gestor e o profissional. Por conta desses movimentos, porque quem estava mobilizando e chamando para a necessidade de saúde não era um gestor nem um profissional. Era a população dizendo como que ela queria ser cuidada, como que ela precisava ser tratada, como a rede tinha que ser distribuída.

JÓ REZENDE: E, institucionalmente, não havia nada que correspondesse a isso. O governo Chagas Freitas, com os seus secretários, com tudo, não tinham nenhuma... a única resposta que eles davam era, eventualmente, cuidar do Salgado Filho ou...

ISABEL CRUZ: Geralmente inaugurar alguma coisa: o Getúlio Vargas, Salgado Filho...

JÓ REZENDE: Lá em Realengo, o Albert Schweitzer. A nossa luta, por exemplo, foi para reabrir o Alberto Schweitzer, porque estava fechado. Era um hospital que tinha sido construído, estava virando um prédio abandonado; e nós, então, começamos a dizer: “nós queremos o Albert Schweitzer!”. Por quê? Porque era um atendimento naquela região. Foi o movimento popular pela saúde, a partir da Cidade de Deus, que deflagrou o movimento pela abertura do Hospital Albert Schweitzer. Depois, inclusive, verificou-se que aquilo era apenas uma etapa e que não resolvia o problema da distribuição da saúde, mas havia necessidade de ter aquele hospital aberto.

ISABEL CRUZ: Ele fechado era indecente. Era demais! Não resolvia. Mas existe também uma situação - a gente não pode ser ingênuo - que, às vezes, quando a população demanda por saúde, o gestor ouve o que ele quer. Então, por exemplo, para um gestor atender a uma demanda popular, abrindo... ampliando a atenção especializada, para ele não é problema algum, porque ele atende a vários interesses, principalmente aos dos ‘tubarões da saúde’. Problema é o gestor ampliar a atenção primária. Isso aí é problema! Mas ele atender a uma demanda pela atenção especializada não é problema. Agora, é óbvio que, no contexto que a gente tinha de saúde, você manter um hospital fechado era um pouco demais até para população entender.

JÓ REZENDE: Localizado em um ambiente em que não havia nenhum atendimento.

ISABEL CRUZ: E de difícil locomoção com alto custo. E a gente também tem que entender que esses políticos dessa época - não que hoje tenha mudado muito, mas na época era um pouquinho pior - achavam que atender... primeiro que eles não viam o pobre como cidadão. Isso para eles não existia. E quando era para atender uma demanda... para eles, por exemplo, inaugurar uma bica num acesso de uma favela era uma obra grandiosa.

JÓ REZENDE: E como aquilo era uma necessidade extraordinária da população, você acabava tendo um círculo vicioso de clientelismo; porque como o político achava... o vereador, o deputado... achavam que abrir uma bica d’água era suficiente, então o Governo vivia disso.

ISABEL CRUZ: Ou, se fosse o caso, ele criaria algum serviço mínimo. Mas é o que a gente coloca sobre a diferença do movimento para demandas clientelistas. O movimento está sempre pleiteando algo orgânico, algo que se estruture... não um atendimento à demanda. Então, neste ponto, eu vou colocar, por exemplo, uma unidade de saúde. Não é bem isso que nós queremos. Nós queremos saber como é que está sendo planejada a saúde. Então, acho que essa característica é algo que não tem volta. Foi um dos ganhos. Uma herança para hoje do movimento daquele momento é entender que as mudanças não podem ser pontuais, elas têm que ser estruturantes. É óbvio que o sistema, políticos inescrupulosos, ainda jogam com isso, com o atendimento pontual. Inclusive, esse atendimento pontual que até enfraquece. Mas a gente sabe, quem está no movimento sabe, que se a mudança não for estrutural não resolve, não atendeu ainda.

Mas essas sementes estão lá. Elas estão na Constituição e nos planos. Há dificuldade de encaminhar e de dar continuidade, mas isso também é natural, porque onde há ser humano, há luz e moscas. E a gente tem que entender isso. Por exemplo, além da saúde, em outros setores, a estrutura é a mesma: temos os conselhos gestores, as conferências, que seriam esses espaços em que a população, gestores, essas pessoas participantes apontariam as demandas e discutiriam e se faria um consenso sobre o que é prioritário. Então, essa semente existe. Ela está na estrutura. Por exemplo, nenhum governo... nós estamos agora, para o ano que vem, ter eleição para prefeito. Esse é o ano de fazer o plano do próximo governo.

JÓ REZENDE: Deveria ser.

ISABEL CRUZ: Mas isso é da lei, será feito. Mas o que acontece? Qual é a dificuldade? Aí é a hora que nós temos, então, que discutir, sair da lente dos partidos e olhar as relações humanas. As pessoas têm dificuldade de manter relações produtivas e relações democráticas e equânimes também dentro do poder. Não pensando agora esse poder de opressão, mas o poder gestor, o poder de governança. A governança tem dificuldade de administrar isso. Por conta de quê? Esses movimentos sociais, aglutinados em algumas causas, conseguiram colocar a semente da participação social na estrutura. É óbvio que o sistema... O poder não dorme. Ele se reestrutura muito rapidamente. E não precisa quebrar o que está lá, não. Ele apenas faz, modela e se adapta e funciona com esse mecanismo. Então, nós continuamos tendo, na estrutura, a questão da participação social colocada como norma de gestão.

JÓ REZENDE: Agora, nós também precisamos, assim como o poder, e considerando que nós também somos o poder, em vários aspectos e de várias formas, precisamos nos ajustar aos novos tempos, porque embora tenha mudado a circunstância - daquela época, aquela forma, aquelas dificuldades pós-ditadura, um processo de redemocratização incipiente, difícil, sem partidos, sem formações partidárias, sem experiência -, existe aí uma convulsão, que é muito atual. Isso tudo é muito atual. Nosso tempo histórico aí é extremamente reduzido. E nós estamos vivendo um período em que todas essas, digamos, iniciativas - como Isabel colocou muito bem - estão aí. Agora, elas precisam ser ajustadas à época, ajustadas à atualidade.

Figura 1
Jornal da Famerj, ‘A festa dos 10 anos’

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Linha do tempo - 1980. [internet]. [acesso em 2019 out 7]. Disponível em: http://cebes.org.br/linha-do-tempo/ano-1980/
    » http://cebes.org.br/linha-do-tempo/ano-1980/
  • 2
    Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990.
  • 3
    Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro. Jornal da FAMERJ [internet]. 1988 [acesso em 2019 out 7]; (43):1-15. Disponível em: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PJOFMRJ021988043.pdf
    » http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PJOFMRJ021988043.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2019
  • Aceito
    24 Out 2019
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