RESUMO
Este estudo teve como objetivo avaliar o acesso de mulheres com câncer de mama aos serviços de atenção à saúde em um município de médio porte no interior da Bahia, na perspectiva de usuárias, trabalhadores e gestores. Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, realizado com mulheres com diagnóstico de câncer de mama, tanto da zona urbana quanto da rural. Além disso, participaram trabalhadores da atenção primária em saúde, da média e alta complexidade e gestores municipais. Os resultados foram apresentados em duas categorias: Organização da rede de atenção ao câncer de mama e Acesso à atenção ao câncer de mama na rede de atenção à saúde. Na primeira, destaca-se a inexistência da linha de cuidado ao câncer de mama, financiamento insuficiente da saúde e fragilidade nos mecanismos de integração da rede de atenção. Na segunda, rastreamento mamográfico ineficaz, focalização da atenção ao câncer de mama no Outubro Rosa e dificuldade de acesso aos exames e procedimentos especializados, como consulta com mastologista e punção/biópsia mamária. A pluralidade de perspectivas avaliadas proporcionou observar lacunas importantes na constituição da rede de atenção às mulheres com câncer de mama, em que problemas organizacionais se retroalimentam com aqueles relativos à atenção prestada.
PALAVRAS-CHAVE
Acesso aos serviços de saúde; Neoplasias da mama; Níveis de atenção à saúde
ABSTRACT
This study aimed to evaluate the access of women with breast cancer to health care services in a medium-sized municipality in the interior of Bahia, from the perspective of users, workers and managers. This is a case study with a qualitative approach, carried out with women diagnosed with breast cancer, both in urban and rural areas. In addition, primary health care workers of medium and high complexity and municipal managers participated. The results were presented in two categories: Organization of the breast cancer care network and Access to breast cancer care in the health care network. In the first, the lack of a line of care for breast cancer stands out, insufficient health financing and fragility in the mechanisms of integration of the care network. In the second, ineffective mammographic screening, focusing on breast cancer care in the Pink October and difficulty accessing the exams and specialized procedures, such as consultation with a mastologist and breast puncture/biopsy. The plurality of evaluated perspectives allowed observing important gaps in the constitution of the care network for women with breast cancer, in which organizational problems feedback with those related to the care provided.
KEYWORDS
Health services accessibility; Breast neoplasms; Health care levels
Introdução
O acesso aos serviços de atenção à saúde refere-se à capacidade das pessoas em adentrar e utilizar o serviço de saúde para resolução de alguma demanda, no momento em que acreditam ser necessário; e relaciona-se às características dos sistemas de serviços de saúde que podem possibilitar o atendimento das necessidades da população ou concorrer para entraves no seu percurso de cuidado11 Viegas APB, Carmo RF, Luz ZMP. Fatores que influenciam o acesso aos serviços de saúde na visão de profissionais e usuários de uma unidade básica de referência. Saude soc. [internet]. 2015 [acesso em 2019 mar 26]; 24(1):100-112. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24n1/0104-1290-sausoc-24-1-0100.pdf.
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Por meio desse, é possível expressar a maneira pela qual os Estados protegem seus cidadãos ou não, refletindo equidade ou problemas de iniquidade no acesso a esses serviços22 Arrivillaga M, Aristizabal JC, Pérez M, et al. Encuesta de acceso a servicios de salud para hogares colombianos. Gac Sanit [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 27]; 30(6):415-420. Disponível em: http://scielo.isciii.es/pdf/gs/v30n6/0213-9111-gs-30-06-00415.pdf.
http://scielo.isciii.es/pdf/gs/v30n6/021... . No Brasil, ainda que o arcabouço político e jurídico aponte para a universalidade e igualdade de acesso, na prática, ainda se observam inúmeros entraves para a sua operacionalização. Assim, estudos apontam desigualdades de acesso vinculadas, principalmente, a fatores econômicos, sociais e distribuição geográfica dos serviços33 Silva BFS, Benito GAV. A voz de gestores municipais sobre o acesso à saúde nas práticas de gestão. Ciênc. Saúde colet. [internet]. 2013 [acesso em 2019 mar 26]; 18(8):2189-2200. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/03.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/03.pd... ,44 Almeida APSC, Nunes BP, Duro SMS, et al. Determinantes socioeconômicos do acesso a serviços de saúde em idosos: revisão sistemática. Rev. Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 26]; 51:50. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872016050006661.pdf.
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Desde a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o primeiro movimento alavancado em todo o território nacional foi a descentralização, sendo que esse processo ocorreu dissociado da instituição de Redes de Atenção à Saúde (RAS)55 Santos AM, Giovanella L. Gestão do cuidado integral: estudo de caso em região de saúde da Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 26]; 32(3):e00172214. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v32n3/0102-311X-csp-32-03-e00172214.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v32n3/0102-... . Dessa forma, o sistema brasileiro muito vagarosamente tem instituído as RAS como estratégia central de organização dos sistemas de serviços de saúde e, por conseguinte, do favorecimento de um acesso mais organizado55 Santos AM, Giovanella L. Gestão do cuidado integral: estudo de caso em região de saúde da Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 26]; 32(3):e00172214. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v32n3/0102-311X-csp-32-03-e00172214.pdf.
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6 Kuschnir R, Chorny AH. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2010 [acesso em 2019 mar 26]; 15(5):2307-2316. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5a06.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5... -77 Magalhães Júnior HM. Redes de atenção à saúde: rumo à integralidade. Divulg. Saúde debate [internet]. 2014 [acesso em 2019 mar 26]; (52):15-37. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-52.pdf.
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A operacionalização dessa diretriz em relação à atenção oncológica é fundamental, pois possibilita a formação de relações horizontais entre diferentes pontos de atenção, tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como ordenadora dessa rede, e contribui para o planejamento das ações conforme as necessidades da população assistida. Assim, facilita o acesso dos usuários às medidas promocionais e preventivas, antes mesmo de estarem doentes, desde o rastreamento, detecção precoce, diagnóstico, tratamento da doença, passando por todos os níveis de atenção (básica, média e alta complexidade), bem como utilizando todos os recursos disponíveis para atender às suas necessidades de saúde88 Peters SH. Avaliação da Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO) e o câncer de mama - dificuldade no acesso: do diagnóstico ao tratamento oncológico. Pelotas: UCPEL; 2013.,99 Cabral MPG, Jorge MSB, Franca EV, et al. Políticas Públicas, Práticas de Saúde e Subjetivações da Atenção Oncológica: pretensa genealogia da produção do cuidado a pessoas com câncer. In: Jorge MSB, Leitão IMTA, Silva RM, et al., organizadores. Políticas e acesso aos serviços de saúde: práticas, cuidados e fluxos [livro eletrônico]. Fortaleza: EdUECE; 2016. [acesso em 2020 mar 14]. Disponível em: http://www.uece.br/eduece/dmdocuments/POLITICAS%20E%20ACESSO%20AOS%20SERVICOS%20DE%20SAUDE%20-%20907pg.pdf.
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Não obstante, estudos apontam fragilidades na organização, no acesso e no direcionamento do fluxo dos usuários com câncer pelas redes de serviços de saúde, impactando diretamente na qualidade da assistência prestada, assim como nos indicadores epidemiológicos de morbimortalidade relacionados com essa doença1010 Silva GA, Bustamante-Teixeira MT, Aquino EML, et al. Acesso à detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde: uma análise a partir dos dados do Sistema de Informações em Saúde. Cad. Saúde Pública [internet]. 2014 [acesso em 2019 mar 26]; 30(7):1537-1550. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n7/0102-311X-csp-30-7-1537.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n7/0102-... . Dentre esses, destacam-se: fragmentação das ações de saúde, caracterizada por uma atenção descontínua e pouco resolutiva; forte polarização entre o hospital e a atenção primária; e ausência de integração entre os vários pontos do sistema88 Peters SH. Avaliação da Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO) e o câncer de mama - dificuldade no acesso: do diagnóstico ao tratamento oncológico. Pelotas: UCPEL; 2013..
Desse modo, para este estudo, optou-se pelo recorte do câncer de mama, devido à magnitude dessa doença, pois consiste na neoplasia mais incidente nas mulheres no Brasil e no mundo, responsável por uma alta parcela de mortes e mutilações e, também, por esta condição convocar um trânsito das mulheres em todos os níveis de atenção integrantes da RAS. Estimativas mais recentes apontam, para o Brasil, a ocorrência de 59.700 casos novos de câncer de mama para cada ano do biênio 2018-2019. Para a Bahia, a projeção é de 2.560 novos casos da doença1111 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2017.. No município de Vitória da Conquista, o câncer de mama ocupa o primeiro lugar em incidência na população feminina1212 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) [internet]. Informações de Saúde. Cadernos de Informações de Saúde. Brasília, DF; 2018. [acesso em 2018 mar 10]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/tabdata/cadernos/ba.htm.
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Dessa forma, entendendo que melhorar o acesso à atenção à saúde deve estar entre os objetivos estratégicos da política de saúde, por relacionar-se intimamente ao direito de cidadania1313 Assis MMA, Villa TCS, Nascimento MAA. Acesso aos serviços de saúde: uma possibilidade a ser construída na prática. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2003 [acesso em 2019 mar 26]; 8(3):815-823. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v8n3/17462.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v8n3/17462.... , faz-se relevante e necessário avaliar o acesso de mulheres à RAS no contexto do município de Vitória da Conquista (BA), identificando as possíveis barreiras que interferem na obtenção dos cuidados necessários tanto para o diagnóstico precoce quanto para o tratamento oportuno e adequado; e apontar caminhos necessários à melhoria da atenção à saúde delas, com vistas a um acesso universal, equânime e integral.
Trajetória metodológica
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, realizada sob a ótica de mulheres com câncer de mama, gestores e trabalhadores de saúde, no município de Vitória da Conquista (BA), localizado no sudoeste da Bahia, com uma população estimada de 338.480 habitantes1414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Estatísticas. Por cidade e estado, 2020 [internet]. [acesso em 2020 mar 14]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/por-cidade-estado-estatisticas.html?t=destaques&c=2933307.
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A APS conta com 44 Equipes de Saúde da Família (EqSF) (27 na zona urbana e 17 na zona rural) e 7 Unidades Básicas de Saúde (UBS) no modelo tradicional, o que corresponde a 44,5% de cobertura pela Estratégia Saúde da Família (ESF) e 53,5% pela atenção básica no total1515 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) [internet]. Informações de Saúde. Rede Assistencial, 2018. [acesso em 2018 mar 9]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/estabba.def.
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Em relação à média e alta complexidade, o município possui um Centro Municipal Especializado em Reabilitação Física e outro de Especialidades Médicas, o qual conta com mastologistas clínicos, e duas Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon), uma em um hospital geral e outra em um hospital municipal privado; esses serviços atendem a toda a região de saúde.
O acesso de mulheres com câncer de mama aos serviços de atenção à saúde é um fenômeno complexo e demanda que a sua investigação seja pautada em características multidimensionais, a fim de apreender com maior clareza esse fenômeno. Assim, os participantes do estudo compuseram três grupos distintos, contando com técnicas e instrumentos de coletas de dados diversificados, tal como apontado no quadro 1.
Dessa forma, o grupo 1 totalizou 24 usuárias, o grupo 2 contou com a participação de 23 profissionais, e o grupo 3, com 7 gestores.
Os critérios de inclusão das mulheres foram: ter diagnóstico confirmado de câncer de mama, ter realizado alguma etapa do tratamento no município da pesquisa, com idade igual ou superior a 18 anos, e ser cadastradas em alguma das Unidades de Saúde (US) situadas na zona urbana ou rural do município de Vitória da Conquista.
O levantamento das mulheres com câncer de mama foi feito pelos profissionais da APS do município. Após isso, as mulheres identificadas foram abordadas no seu domicílio pelas pesquisadoras juntamente com o Agente Comunitário de Saúde (ACS), e convidadas a participar da pesquisa. As entrevistas foram agendadas conforme a disponibilidade das usuárias, em seu próprio domicílio ou outro local escolhido por elas.
Foram excluídas duas pessoas que, após três tentativas, não foram localizadas em seu domicílio. Totalizaram 24 mulheres, identificadas neste estudo pela sigla M seguida pelo número de ordem da sua entrevista, acrescida da informação de procedência da usuária, se Unidade de Saúde da Família (USF) ou UBS, de Zona Urbana (ZU) ou Zona Rural (ZR).
Os profissionais da APS da ZU constituíram 3 enfermeiros, 3 médicos e 8 ACS, o Grupo Focal com Enfermeiros e Médicos foi identificado ao longo deste texto como GF-EM; e o com ACS, como GF-ACS. As entrevistas com 2 Enfermeiras, 1 Médica e 2 ACS da ZR foram identificadas pela sigla ENF-ZR, MED-ZR e ACS-ZR, respectivamente, seguidas pelo número de ordem das entrevistas, totalizando 19 profissionais da APS.
A seleção dos profissionais entrevistados na ZR e para composição dos grupos focais da ZU ocorreu de maneira intencional, com base nas entrevistas com as mulheres. Assim, para cada uma das entrevistadas, foi escolhido pelo menos um profissional da unidade de saúde daquela usuária, preferencialmente aqueles que foram mencionados por elas durante a entrevista, sendo que algumas mulheres pertenciam à mesma unidade, por isso foram selecionados menos profissionais.
Para representar os profissionais da Média Complexidade, foram entrevistados dois mastologistas que atendem no Centro de Especialidades Médicas; e para a Alta Complexidade, foi selecionado um representante da área oncológica e outro da área cirúrgica da Unacon do hospital público, por meio de acordo prévio com os coordenadores e agendamento das entrevistas, com base na disponibilidade deles e na rotina dos serviços. Ambos foram identificados no texto como MC e AC e o número da entrevista, respectivamente.
O grupo de Gestores foi representado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e Unacon, sinalizados nos excertos pela letra G e pelo número de ordem. Na SMS, foi selecionado um representante de cada uma das cinco diretorias que dividem responsabilidades pela atenção à saúde da mulher no município; e na Unacon, um representante responsável pela parte cirúrgica e outro pela ambulatorial/quimioterapia. Os entrevistados foram indicados pelos serviços, conforme disponibilidade no período da coleta de dados. O critério de inclusão tanto para os profissionais quanto para os gestores foi estar no cargo pelo período mínimo de 6 meses no momento da entrevista.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro de 2017 e abril de 2018. As entrevistas, para os três grupos, foram realizadas pela pesquisadora responsável por meio de questionário semiestruturado, nos locais selecionados pelos participantes, sempre de modo reservado, a fim de garantir a privacidade e a confidencialidade das informações. Para os grupos focais, foram estabelecidos roteiros para direcionar a discussão e garantir que os objetivos da pesquisa fossem debatidos em profundidade. É importante ressaltar que não foi observada recusa à participação em nenhum dos grupos.
O fechamento amostral para o grupo 1 (usuárias) utilizou o critério de saturação dos dados, para tanto, a coleta e análise dos dados ocorreram simultaneamente. Assim, a partir da observação de que os discursos acumulados responderam aos objetivos da pesquisa e que o acréscimo de entrevistas proporcionou reincidência das informações e/ou não surgiram novos elementos discursivos, foi instituída a finalização da coleta de dados. Para os demais grupos, houve estabelecimento prévio da quantidade de entrevistados com base nos critérios mencionados anteriormente.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas integralmente por equipe treinada, sendo que elas não retornaram aos participantes para acréscimo de informações. Ademais, todos os dados foram armazenados e guardados pelas pesquisadoras responsáveis na Instituição de Ensino à qual a pesquisa está vinculada.
Os dados foram analisados mediante a modalidade de Análise de Conteúdo Temática1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco; 2011.. Foram utilizados três processos para a análise: inicialmente, foram feitas a leitura exaustiva e a síntese de cada uma das entrevistas individualmente; após isso, elas foram comparadas com as demais do seu próprio grupo e elaborada uma nova síntese; por fim, foi realizada a análise entre os grupos e elaborada a síntese final, expressando as similaridades e contradições observadas.
Os resultados foram organizados com base nas categorias empíricas que emergiram nos discursos e apresentados: Organização da Rede de Atenção à Saúde voltada ao câncer de mama e Acesso à atenção ao câncer de mama na Rede de Atenção à Saúde.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Multidisciplinar em Saúde – Campus Anísio Teixeira, CAAE: 54535916.5.0000.5556, processo: 1.502.395.
Resultados
Organização da Rede de Atenção à Saúde voltada ao câncer de mama
Os resultados demonstram que a organização dos fluxos de cuidado para a atenção ao câncer de mama e a delimitação dos agentes envolvidos na estruturação e prestação do cuidado foram avaliados como frágeis pelos profissionais e gestores. Um exemplo emblemático refere-se à admissão na Unacon para início da quimioterapia por conta das próprias usuárias, sem nenhum encaminhamento.
Normalmente, o paciente não é referenciado para cá, eles procuram por conta própria. A maioria das pacientes de mama elas não vêm referenciadas do serviço. Vem porque ouviu alguém falar que aqui faz o tratamento, elas já estão com diagnóstico na mão e aí na maioria você vai ver que eles não têm uma consulta, um direcionamento de consulta com o oncologista. Eles marcam por conta própria a primeira consulta. (G1).
Quanto à participação na construção dos fluxos de atendimento/cuidado e das decisões sobre o próprio processo de trabalho, os profissionais da APS queixaram da não participação:
na maioria das vezes, essas políticas e essas construções, esse material que é produzido, muitas vezes não envolve quem realmente interessa e a gente já recebe o pacote pronto. (ENF-ZR2).
No que diz respeito ao aspecto logístico, aqui representado pela comunicação entre os profissionais, principalmente médicos, ressalta-se que esta ocorria de forma concomitante pela via pessoal e institucional, sendo que a primeira se destacava pela utilização de telefones, contatos pessoais e rede de relacionamentos para referenciar as usuárias.
Já tem profissionais que já são profissionais que a gente conhece, já tem mais contato, então, às vezes, ele liga, pede para agilizar, ele pede pra tentar priorizar algumas situações e a gente prioriza. Mas, às vezes, alguns profissionais, a gente não conhece, né, então, às vezes, o contato é muito pequeno, né, então a gente faz o que tem que fazer e segue com as orientações e vai trocando cartas e bilhetinhos e relatórios na medida que a paciente vai passando. (AC1).
Tais mecanismos são utilizados devido à insuficiência dos meios ditos ‘oficiais’ de referência e contrarreferência, bem como de integração da RAS.
A gente não tem ainda aquele prontuário único, mas a gente tenta minimizar de todas as formas essa falha que realmente existe [...] essa questão de WhatsApp, hoje em dia também tem os grupos, que os médicos discutem, entendeu? Então tudo isso vai estreitando e facilitando a comunicação. (G5).
No que refere à integração da RAS, essa foi avaliada como incipiente pelos profissionais, gestores e algumas usuárias.
Eu acho que aqui falta mesmo a questão de organizar a rede mesmo né, da gente sentar, da gente discutir [...] a gente vê que os profissionais também não sabem esse fluxo, entendeu, então se a gente não sentar para criar, vai ficar desse jeito mesmo, os próprios profissionais não sabem para onde encaminhar, não sabe para onde vai, né, o usuário fica igual um pingue-pongue. (G6).
Em relação à governança da rede, foi unânime entre usuárias, profissionais e gestores o relato das dificuldades relativas ao subfinanciamento do SUS:
é surreal, então você tem o orçamento desse ‘tamanhozinho’ assim pra você administrar uma população toda que a gente sabe que a população tem envelhecido, então sugere muito mais procedimentos. (G7).
Além de aspectos relativos ao financiamento, no geral, os profissionais de saúde, independentemente do nível de atenção, afirmaram que a gestão está alheia aos problemas enfrentados cotidianamente na rotina dos serviços e que o monitoramento das ações é realizado de forma ineficiente e não condiz com a realidade do fazer em saúde.
O link, na verdade, é muito entre os pacientes e a linha de frente que somos nós que tratamos, né. A gestão, às vezes, ela trabalha um pouquinho isolada aí de tudo, né, e talvez eles até conheçam algumas dificuldades, né, mas a particularidade, o dia a dia, não, é muito uma noção. (AC1).
No que tange à gestão, essa apontou dificuldades para dar o apoio suficiente às equipes de saúde, tanto pela falta de tempo quanto de recursos financeiros.
A gente teria que sentar, o problema é que falta tempo mesmo pra gente sentar e fazer [...] a gente planeja diversas coisas, nem tudo a gente consegue de fato, por conta de recurso, né, por conta de várias situações. (G6).
Acesso à atenção ao câncer de mama na Rede de Atenção à Saúde
A atenção ao câncer de mama na RAS perpassa por todos os níveis de complexidade de assistência em saúde. Em relação à APS, foi observada, como principal entrave, a sobrecarga das EqSF decorrente de uma alta demanda de pessoas para poucas ESF no município:
no dia a dia, a nossa demanda não dá nem para você... nossa! Sua obrigação de ter que acolher essa mulher, ter que fazer uma busca ativa dessa mulher as vezes não dá, você tem uma demanda que você não consegue. (GF-EM).
Para os profissionais, o somatório entre alta demanda, baixa cobertura e falta de tempo traduziu em um rastreio do câncer de mama ineficaz, sendo que entre as entrevistadas que tinham entre 50 e 69 anos, menos de 40% referiram realizar o rastreamento mamográfico periodicamente. Para essas, a principal causa para não realização do rastreamento foi o desconhecimento acerca da sua importância/necessidade: “eu achava que não precisava. Eu não sentia nada” (M4USFZU).
Na rotina diária das EqSF, observam-se ações destoantes da prática clínica integral, em que mesmo as mulheres que buscaram o serviço rotineiramente não foram avaliadas acerca da saúde das mamas:
nunca me orientou não, sempre eu passava aí no posto, mas nunca, nunca me orientava não. (M13UBSZU).
você dizer que toda mulher na idade de rastreio que passou pelo seu consultório você examinou a mama, isso não é verdade, porque a demanda é muito grande. (GF-EM).
Ademais, as ações direcionadas ao controle do câncer de mama estavam focalizadas na campanha do Outubro Rosa. A despeito da avaliação positiva e do aumento das ações de rastreio e detecção precoce nesse período, entre todos os grupos, ocorreram críticas muito enfáticas de que as ações desenvolvidas são pontuais e que, muitas vezes, não seguem determinações protocolares, já que não há continuidade nos demais meses do ano e que há falhas na prevenção e no cuidado primário:
a gente só ouve do câncer de mama com um pouco mais de ênfase em outubro, no decorrer do ano não se fala tanto. (M20USFZR).
para falar sobre câncer de mama só existe o outubro rosa e ponto final. Parece que a mama só tem câncer em outubro. (GF-EM).
Relativo à média complexidade, com exceção dos gestores, os entrevistados dos demais grupos se mostraram insatisfeitos com a oferta de vagas para especialista, como o mastologista, para exames complementares como ultrassonografia de mamas, para punção/biópsia mamária e de cintilografia óssea no processo de atenção ao câncer de mama:
precisa melhorar mais a saúde das mulheres né? Ter mais acesso, fazer mamografia, isso aí que precisa mais. E os exames não ser tão demorado, porque, às vezes, muitas mulheres têm o diagnóstico de um câncer de mama, aí demora. (M13UBSZU).
Todavia, na visão dos gestores, à exceção da punção/biópsia, o quantitativo encontra-se dentro do recomendado pelo Ministério da Saúde, porém não existe um uso racional ou as práticas dos profissionais não estão alcançando o grau de resolubilidade esperado, o que gera uma demanda maior para a média e alta complexidade:
não é a oferta que a gente tem de profissional na rede especializada que tá impactando na questão do diagnóstico, e sim a gente sensibilizar esse nosso profissional que tá lá na atenção básica pra poder realmente triar essas pessoas. (G7).
No que diz respeito à alta complexidade, o tratamento quimioterápico foi o mais bem avaliado no processo saúde-doença-cuidado das mulheres com câncer de mama: “lá é maravilhoso, lá é maravilhoso... olha, eu não tenho o que queixar da Unacon dentro do Hospital de Base e nem a Unacon de lá aonde toma químio” (M2USFZU). A única crítica tecida pelas usuárias foi a alta rotatividade dos oncologistas.
No entanto, a alta vinculação das usuárias à Unacon se relaciona também à recusa dos demais serviços da rede em atender o paciente oncológico, tal como exposto abaixo.
As pessoas na rede, no geral, quando fala é paciente oncológico eles não querem cuidar. Eles falam assim: ‘quem cuida do oncológico é o oncologista’. O paciente ele tem uma comorbidade totalmente diferente, nada relacionado com o câncer, mas se ele passou um dia pelo médico oncologista quem tem que cuidar é o oncologista. Essa é uma dificuldade grande. É a comunidade de saúde entender que o paciente ele não é só do oncologista, ele merece cuidado integral. (G1).
Em relação ao tratamento radioterápico, também foram relatadas facilidades de acesso e boas avaliações, mas, das 13 mulheres que passaram por essa terapêutica, 2 (M8USFZU e M13UBSZU) relataram que o aparelho quebrou, por isso houve atraso nas sessões. Quanto ao tratamento cirúrgico do câncer de mama, muitas mulheres relataram demora para conseguir o procedimento até o ano de 2015, o que ocasionava aumento do nódulo e necessidade de quimioterapia neoadjuvante para redução e posterior cirurgia:
o caroço já tinha 6,5 cm quando eu fui operar, então aí era muito grande pra o tamanho da mama, comecei a químio antes pra poder diminuir pra eu poder fazer a cirurgia, porque já era muito grande. (M5USFZU).
Além disso, apenas uma mulher teve acesso à biópsia por congelamento para avaliação do comprometimento dos linfonodos axilares, sendo que a cirurgia ocorreu na capital do estado e por meio de convênio de saúde. As demais realizaram cirurgia mamária junto com o esvaziamento axilar sem a presença desse exame.
O principal recurso que nenhuma usuária conseguiu acessar pelo sistema público foi a reconstituição mamária: duas usuárias (M12UBSZU e M20USFZR) referiram contato pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) no final de 2017 para iniciar a avaliação da colocação da prótese em Salvador; a Unacon refere estar acompanhando para garantir que as demais também tenham acesso.
Discussão
É sabido que a constituição da RAS, enquanto mecanismo de construção de sistemas integrados de saúde, convoca uma articulação sincrônica de diferentes níveis de atenção, serviços e profissionais, cujos objetivos em comum são norteados pela garantia do acesso à saúde como direito e as necessidades sociais como premissa para o provimento do cuidado singular aos sujeitos de forma integral, resolutiva e equânime1717 Viana ALD, Bousquat A, Melo GA, et al. Regionalização e Redes de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2018 [acesso em 2019 mar 26]; 23(6):1791-1798. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1791.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-... ,1818 Assis MMA. Redes de Atenção à Saúde e os desafios da Atenção Primária à Saúde: um olhar sobre o cenário da Bahia. In: Almeida PF, Santos AM, Souza MKB, organizadores. Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em regiões de saúde. Salvador: EDUFBA; 2015..
Não obstante, a frágil integração entre os distintos níveis assistenciais e a inexistência de fluxos consensuados, claros e com envolvimento participativo de todos os atores envolvidos no estabelecimento de papéis e responsabilidades para sua construção/efetivação, foram marcantes nos resultados encontrados. Tal situação denota que a implantação da RAS e da rede de cuidado aos pacientes com doenças crônicas, notadamente aqueles que possuem alguma doença oncológica, como o câncer de mama, ainda possui um longo percurso até a sua efetivação no contexto local³.
O estabelecimento de integração horizontal e vertical, entre os profissionais e os diferentes níveis de atenção, deu materialidade ao complexo mecanismo comunicacional instituído, o qual se mescla com a informalidade e/ou a institucionalidade deles no sistema. Esses mostraram-se efetivos para a solução de demandas relativas ao referenciamento das mulheres na RAS, a despeito de estar atrelado à disposição do profissional em empreendê-lo e da rede de relacionamentos tecida para o alcance das soluções almejadas.
Não obstante, ainda que tais processos sejam importantes para a consecução do acesso, o seu acionamento revela, em alguma medida, a ausência de mecanismos institucionais potentes, visto que podem gerar desigualdade no acesso ao diagnóstico e à terapêutica, obstaculizando a entrada e o uso por parte daqueles que se encontram mais necessitados do sistema e que não comparecem aos serviços de saúde1919 Oliveira LA, Cecilio LCO, Andreazza R, et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde debate [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 27]; 40(109):8-21. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v40n109/0103-1104-sdeb-40-109-00008.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v40n109/01... .
A esse respeito, evidências demonstram que a integração comunicacional é prerrogativa importante para a continuidade do cuidado em redes de atenção2020 Almeida PF, Gérvas J, Freire JM, et al. Estratégias de integração entre atenção primária à saúde e atenção especializada: paralelos entre Brasil e Espanha. Saúde debate [internet]. 2013 [acesso em 2019 mar 27]; 37(98):400-415. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v37n98/a04v37n98.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v37n98/a04... , portanto, necessária para a consecução do acesso ao cuidado em saúde. Um estudo realizado em quatro municípios brasileiros demonstrou que, em três deles, informações escritas representaram uma prática utilizada por mais de 90% dos médicos entrevistados2121 Almeida PF, Giovanella L, Mendonça MHM, et al. Desafios à coordenação dos cuidados em saúde: estratégias de integração entre níveis assistenciais em grandes centros urbanos. Cad. Saúde Pública [internet]. 2010 [acesso em 2019 mar 27]; 26(2):286-298. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v26n2/08.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v26n2/08.pd... , o que contraria os resultados deste estudo em que as ligações telefônicas, as mensagens de texto por parte dos profissionais e o contato direto das mulheres com os serviços especializados foram as modalidades que prevaleceram.
No que diz respeito ao sistema de governança de uma RAS, considerando o contexto locorregional, este objetiva fomentar e promover articulação de políticas institucionais e intersetoriais por meio do planejamento, monitoramento e avaliação, a partir do fortalecimento da capacidade institucional, gerencial e do financiamento2222 Casanova AO, Cruz MM, Giovanella L, et al. A implementação de redes de atenção e os desafios da governança regional em saúde na Amazônia Legal: uma análise do Projeto QualiSUS-Rede. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 27]; 22(4):1209-1224. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1209.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-... .
O quesito financiamento, apontado por todos os entrevistados deste estudo como interveniente na governança da RAS, revela-se insuficiente, mesmo garantindo o patamar mínimo de recursos para a saúde preconizadas pela Emenda Constitucional nº 29 (EC 29), aprovada em 2000; e, atualmente, tende ao franco declínio decorrente das restrições impostas pela EC nº 95, de 2016, que congela as despesas federais com saúde e educação por 20 anos2323 Vieira FS, Benevides RPS. O direito à saúde no Brasil em tempos de crise econômica, ajuste fiscal e reforma implícita do Estado. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas [internet]. 2016 [acesso em 2019 mar 27]; 28(1):4417-4426. Disponível em: https://docplayer.com.br/50887131-O-direito-a-saude-no-brasil-em-tempos-de-crise-economica-ajuste-fiscal-e-reforma-implicita-do-estado.html.
https://docplayer.com.br/50887131-O-dire... .
No mesmo sentido, é notória a inclinação do governo atual para a ampliação dos planos de saúde privados e ‘redução’ do tamanho do SUS, o que implicará aumento dos custos individuais em saúde, levando camadas com maiores condições financeiras ao sistema suplementar; os que têm consciência dos seus direitos e meios de reivindicá-los, para a judicialização; e os mais vulneráveis, à desassistência crônica e às piores condições de vida e saúde2424 Shimizu HE. Percepção dos gestores do Sistema Único de Saúde acerca dos desafios da formação das Redes de Atenção à Saúde no Brasil. Physis [internet]. 2013 [acesso em 2019 mar 27]; 23(4):1101-1122. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v23n4/05.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/physis/v23n4/05... .
Em relação à capacidade de gestão, destaca-se que, neste estudo, despontou um descompasso entre as necessidades apresentadas pelas usuárias e aquelas atendidas pelos profissionais e consideradas pelos gestores. Com isso, entende-se que modelos de gestão que não agreguem a participação social no processo de tomada de decisão tendem a produzir práticas verticalizadas, antidialógicas e destoantes das necessidades reais da população e dos serviços33 Silva BFS, Benito GAV. A voz de gestores municipais sobre o acesso à saúde nas práticas de gestão. Ciênc. Saúde colet. [internet]. 2013 [acesso em 2019 mar 26]; 18(8):2189-2200. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/03.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/03.pd... .
Quanto ao acesso à atenção ao câncer de mama na RAS, a despeito das ações de controle do câncer de mama estarem incluídas nas agendas das políticas públicas no Brasil desde a década de 1980, tendo como marcos normativos o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), o Programa Viva Mulher, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o próprio SUS e a ESF2525 Marques CAV, Figueiredo EN, Gutiérrez MGR. Políticas de saúde pública para o controle do câncer de mama no Brasil. Rev enferm UERJ [internet]. 2015 [acesso em 2019 mar 27]; 23(2):272-8. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/13632/12813.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.... , observa-se um lapso temporal entre a criação e a incorporação de ações, notadamente de prevenção e rastreio de forma sistemática e contínua, além do escopo de ações que competem aos outros níveis de atenção à saúde.
No âmbito da APS, ações de promoção da saúde não foram relatadas por nenhum grupo de entrevistados. Entretanto, ressalta-se que as políticas públicas pertinentes ao câncer de mama ainda são grandemente direcionadas à prevenção, especificamente à detecção precoce2626 Migowski A, Silva GA, Dias MBK, et al. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II - Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cad. Saúde Pública [internet]. 2018 [acesso em 2019 mar 27]; 34(6):e00074817. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v34n6/1678-4464-csp-34-06-e00074817.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v34n6/1678-... . Outrossim, para a prevenção, além da grande demanda de pessoas para serem contempladas, o baixo índice de rastreamento mamográfico e clínico relatado pode relacionar-se à focalização das ações apenas na Campanha do Outubro Rosa e ao rastreamento oportunístico.
Dessa forma, as intervenções que poderiam ser realizadas cotidianamente em todos os meses do ano, a grupos direcionados ou não, são condensadas em um único mês, o que limita a atenção ao câncer de mama e, também, ao cuidado integral, uma vez que as mulheres em idade para o rastreio costumam frequentar os serviços rotineiramente para o cuidado de outras comorbidades e precisam ser avaliadas integralmente, independentemente de ações campanhistas.
Destarte, o baixo nível socioeconômico das mulheres entrevistadas tem relação estreita com o rastreamento do câncer de mama, pois a maioria referiu ter ensino fundamental incompleto e renda mensal de até um salário mínimo. Em um importante levantamento nacional, foi constatado que a chance de realização de mamografia aumenta com o nível socioeconômico em função do maior acesso aos serviços de atenção à saúde2727 Silva GA, Souza Júnior PRB, Damacena GN, et al. Detecção precoce do câncer de mama no Brasil: dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Rev Saúde Pública [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 27]; 51(supl1):14s. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51s1/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872017051000191.pdf.
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Mesmo considerando que a APS no contexto nacional operou expansão dos serviços às pessoas com doenças crônicas – entre elas, o câncer de mama –, neste estudo, esse fator foi considerado insuficiente no contexto local, do ponto de vista dos trabalhadores e usuárias. Concretamente, essa expansão só se sustenta em termos qualiquantitativos se a robustez da APS ocorrer concomitantemente a um sistema de saúde fortalecido, o que exige um redimensionamento dela não apenas como solução para a coordenação da RAS e o ordenamento do cuidado, mas para um necessário rearranjo político-organizativo-técnico-assistencial de caráter contínuo e sistêmico1717 Viana ALD, Bousquat A, Melo GA, et al. Regionalização e Redes de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2018 [acesso em 2019 mar 26]; 23(6):1791-1798. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1791.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-... .
No acesso aos exames e procedimentos diagnósticos, usuárias e trabalhadores reportaram entraves que parecem atravessar toda a rede. A esse respeito, estudo prévio sinalizou que o tempo de realização de exames por meio do SUS foi extenso, constituindo possível fator concorrente para o diagnóstico tardio do câncer de mama2828 Ataíde RCN, Waissmann W. O direito à saúde e o diagnóstico tardio do câncer de mama na região Sudoeste da Bahia. In: Oliveira MHB, Erthal RMC, Vianna MB, et al., organizadores. Direitos humanos e saúde: construindo caminhos, viabilizando rumos. Rio de Janeiro: Cebes; 2017. p. 277-291.. Diagnósticos tardios estão implicados com menor sobrevida e maior mortalidade da doença, sobretudo em países em desenvolvimento como o Brasil2929 Alves MO, Magalhães SCM, Coelho BA. A regionalização da saúde e a assistência aos usuários com câncer de mama. Saude soc. [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 7]; 26(1):141-154. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v26n1/1984-0470-sausoc-26-01-00141.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v26n1/19... .
Em contrapartida, para a insuficiência dos exames disponibilizados pelo componente especializado, os gestores apontam a dificuldade de a APS exercer o papel de porta de entrada e filtro, creditando ao aparato político-normativo a exclusividade na resolução de toda ordem de problemas relatados. Achados semelhantes foram encontrados em outro trabalho, cuja condição marcadora analisada foi o acidente vascular encefálico3030 Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, et al. Primary health care and the coordination of care in health regions: managers' and users' perspective. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso em 2019 mar 27]; 22(4):1141-1154. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1141.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-... .
No que tange ao acesso a exames e tratamentos realizados pela alta complexidade, os que foram mencionados pelas mulheres, como a biópsia por congelamento e a reconstituição mamária, são realizados fora do município sede deste estudo. O não acesso a esses elementos aludem que o processo de regionalização na construção das RAS precisa ser fortalecido ante a necessidade de cooperação solidária entre os entes federados e a garantia da atenção integral.
A alta concentração tecnológica e a excelência no atendimento prestado pelo Serviço de Alta Complexidade em Oncologia, espaço em que as mulheres passam a transitar por um tempo mais prologando no percurso do tratamento e seguimento do câncer de mama, receberam maior valoração por parte das usuárias. O estabelecimento de vínculos mais fortes com os profissionais desse nível de atenção, a atração às tecnologias duras e a consideração do câncer como uma morbidade que guarda certa complexidade também podem ter concorrido para esse desfecho, assim como apontado em outro estudo3131 Cecílio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, organizadores. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec; Fapesp; 2014..
Por outro lado, nos demais serviços da rede de atenção, o cuidado à pessoa com câncer ainda é identificado como exclusivo do oncologista, mesmo quando as demandas não são relacionadas com essa doença. Tal fato remete ao modelo de atenção predominantemente médico-hegemônico, que fragmenta o cuidado, enclausura as pessoas a um diagnóstico patológico e não contempla uma atenção que perceba as usuárias enquanto detentoras de demandas e necessidades, cujas responsabilidades pelo cuidado são de todos os níveis de atenção1111 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2017.. Também traz à tona o caráter seletivo da APS, ao ser considerada espaço para atendimentos corriqueiros, de menor complexidade e específica para alguns agravos.
Considerações finais
As dimensões de análise projetadas neste trabalho revelam que o mote dos discursos aponta lacunas importantes na constituição da RAS às mulheres com câncer de mama no contexto local, em que problemas organizacionais se retroalimentam com aqueles relativos à atenção prestada.
Nesse sentido, a posição central da APS para a coordenação do cuidado atrelada aos outros níveis de atenção à saúde mostrou-se fragilizada, assim como os mecanismos de integração entre eles. O acesso às ações de atenção ao câncer de mama na RAS também apontou que tanto o rastreamento quanto o diagnóstico e tratamento do câncer de mama ainda constituem desafio a ser superado pelas mulheres, profissionais e gestores da saúde, visto que podem interferir no prognóstico da doença e na qualidade de vida, concorrendo para piora do quadro clínico, maior gravidade, complicações e elevação da mortalidade no contexto local e nacional.
Ainda que se espere da APS um papel importante na reestruturação do modelo assistencial, e de coordenação de uma rede poliárquica, tal assertiva não se sustenta se não for combinada a uma RAS organizada, bem estruturada e integrada. De igual modo, a atenção especializada não pode ser marginalizada dos processos integrativos com vistas ao acesso em saúde em perspectiva ampliada.
A pluralidade de sujeitos avaliados propiciou a captação de percepções que ora apresentaram-se concordantes, ora discrepantes, o que potencializa a apreensão mais abrangente da realidade e demonstra o quanto esses três atores precisam estar contíguos no planejamento das ações em saúde, tendo o usuário no centro do cuidado e a inclusão factual dos anseios/demandas/necessidades da população assistida.
Apesar da vantagem de a avaliação compor diversos atores, o estudo tem como limitação a circunscrição a um município e o fato de não possibilitar generalizações. No entanto, pode apontar caminhos para novas pesquisas, inclusive na perspectiva de regiões de saúde, a fim de proporcionar comparações entre municípios. De modo similar, sugere-se o acréscimo de abordagens metodológicas, com a inclusão de dados quantitativos para ampliação do escopo analítico da dimensão organizacional e da atenção em redes de saúde.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Maio 2020 - Data do Fascículo
Jan-Mar 2020
Histórico
- Recebido
04 Jun 2019 - Aceito
19 Fev 2020