O cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil: desconstruindo saberes e reinventando saúde

Psychosocial care in children’s mental health field: deconstructing knowledge and reinventing health

Julie de Novaes Tavares Sobre o autor

RESUMO

O artigo propõe uma discussão sobre o cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil, no cenário brasileiro atual, sublinhando o tensionamento inerente às suas práticas e envolvendo diversos atores e redes, buscando refletir sobre o sentido de cuidar e reinventar a saúde. Tendo como referência o modelo de atenção psicossocial da Reforma Psiquiátrica Brasileira, busca-se articular o conceito de saúde e doença no trabalho intersetorial, na construção do Projeto Terapêutico Singular. Através da metodologia do estudo de caso, apresenta-se um caso clínico atendido em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil. A Reforma Psiquiátrica Brasileira engendra o modelo psicossocial de cuidado rompendo com o modelo biomédico, modificando a maneira pela qual se concebe o sujeito no processo saúde-doença. No campo da saúde mental infantojuvenil, marcada pela invisibilidade histórica nas políticas públicas, há um tensionamento sobre a forma de conceber o cuidado nas diversas instituições, marcado pelo exercício da tutela. O artigo enfatiza a perspectiva de reinvenção em saúde, a apropriação pelo usuário do seu projeto terapêutico enquanto sujeito do próprio tratamento. O trabalho em rede e intersetorial se apresenta como ferramenta potente de transformação de saberes e práticas cristalizadas, em um movimento micropolítico, como proposto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira.

PALAVRAS-CHAVE
Assistência integral à saúde; Serviços de saúde mental; Colaboração intersetorial; Direito à saúde

ABSTRACT

The article proposes a discussion on psychosocial care in the field of mental health for children and adolescents, in the current Brazilian scenario, underlining the tension inherent in their practices and involving the various actors and networks, seeking to reflect on the meaning of caring and reinventing health. Taking the model of psychosocial care in the Brazilian Psychiatric Reform as reference, it seeks to articulate the concept of health and disease in intersectoral work, in the construction of the Singular Therapeutic Project. Through the case study methodology, it is presented an attended clinical case at a Psychosocial Care Center for children and adolescents. The Brazilian Psychiatric Reform engenders the psychosocial model of care, breaking with the biomedical model, modifying the way in which we conceive the subject in the health-disease process. In the field of mental health for children and adolescents, marked by historical invisibility in public policies, there are tensions over the way of conceiving care in the various institutions, a field marked by the exercise of guardianship. The article emphasizes the perspective of reinvention in health, the appropriation by the user of his therapeutic project as the subject of the treatment itself. Networking and intersectoral work present itself as a powerful tool for transforming crystallized knowledge and practices, in a micropolitical movement, as proposed by the Brazilian Psychiatric Reform.

KEYWORDS
Comprehensive health care; Mental health services; Intersectoral collaboration. Right to health

Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) definiu um novo paradigma sobre a loucura11 Amarante A. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007., que buscava, sobretudo, superar o olhar biomédico, que a compreendia como uma doença a ser curada. Assim, o paradigma biomédico da psiquiatria desconhecia a dimensão de sujeito do louco, reduzindo-o à condição de doente e buscando incessantemente descobrir a causa da loucura como um disfuncionamento a ser eliminado22 Saraceno B. A cidadania como forma de tolerância. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo. São Paulo. 2011; 22(2):93-101.. A RPB representou uma ruptura radical com relação a essa visão biomédica, colocando o acolhimento à integralidade da pessoa na centralidade do trabalho em saúde mental33 Nasi C, Cardoso ASF, Schneider JF, et al. Conceito de Integralidade na Atenção em Saúde Mental no Contexto da Reforma Psiquiátrica. Rev. Min. Enferm. 2009; 13(1):147-152..

Há, historicamente, uma compreensão da loucura enquanto uma alienação mental, de uma pessoa ‘sem razão’, impossibilitada de inscrição no social, na cidade e no mundo dos direitos. “O doente é despojado de seus direitos jurídicos, políticos e civis, tornando-se, dessa maneira, um não cidadão”44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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Pode-se perceber, então, que a luta pela RPB não é uma luta apenas das instituições de saúde. Tanto questões teóricas quanto políticas, culturais e sociais estão no cerne da discussão deste movimento, configurando-o como um processo social complexo, envolvendo diversos atores sociais e uma carga de tensões e embates44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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O movimento da Reforma Sanitária, caminhando pari passu com a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), implicou um esforço radical sobre a maneira como a saúde pública operava no Brasil. Nesse sentido, uma transformação importante foi a introdução da discussão sobre os determinantes sociais da saúde55 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990 [internet]. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
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. Através dessa noção, passou-se a considerar que a saúde é determinada pelas condições de vida, com uma compreensão de sujeito integral, considerando-o no interior das suas relações, do seu cotidiano e modo de habitar a cidade. É sobre esta nova compreensão de sujeito que o paradigma psicossocial constrói o seu cuidado³.

Essa nova compreensão dos processos de saúde-doença introduz uma nova forma de lidar com o sujeito com sofrimento mental, considerando sua relação com o social e a promoção de saúde nos diversos espaços da cidade22 Saraceno B. A cidadania como forma de tolerância. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo. São Paulo. 2011; 22(2):93-101.. Desta forma, o trabalho em rede e intersetorial é o que permite uma atuação com o sujeito em sua complexidade, operando no real das suas relações, promovendo sua autonomia e cidadania¹. Além disto, pela atuação intersetorial, no cerne das relações sociais, o real pode ser transformado, em um contínuo trabalho micropolítico.

Desse modo, o presente artigo propõe uma discussão sobre o cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil, os desafios e embates com o Projeto Terapêutico Singular do usuário, e a rede de saúde mental e intersetorial, refletindo sobre o sentido de cuidar e reinventar saúde.

Metodologia

Foi adotado, como metodologia deste trabalho, o estudo de caso, considerado o mais adequado para o objetivo proposto, tornando possível a discussão sobre a singularidade que subjaz a todo projeto terapêutico no paradigma da RPB. Abordou-se, assim, a situação clínica em questão, que ocorreu durante o período de Estágio Integrado em Saúde Mental, em 2019, em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Capsi) do Rio de Janeiro. A escolha do citado caso se deu por sua situação emblemática, que permitiu a constatação do cenário construído através das tecnologias em funcionamento no corpo da RPB, de onde surge uma nova visão sobre o processo de saúde-doença, sobre a relação do usuário com o seu projeto terapêutico e o trabalho em rede.

A prática de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil

Através da Doutrina de Proteção Integral estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, crianças e adolescentes deixam de ser objetos de intervenção e tornam-se sujeitos de direito, tendo o Estado a função de protegê-los e garantir seu bem-estar social66 Neta FTB, Lemos FCS, Bicalho PPG, et al. Uma Análise Crítica de Propostas de Emendas Constitucionais para a Redução da Maioridade Penal. Rev. Bras. Adol. Conf. 2015; 13:87-317.. Considerados como seres em desenvolvimento e tendo garantidos os seus direitos, passam a ser tratados como sujeitos, detentores, portanto, de lugares autênticos de fala77 Brasil. Ministério da Saúde; Conselho Nacional do Ministério Público. Atenção Psicossocial a Crianças e Adolescentes no SUS: Tecendo Redes para Garantir Direitos. Brasília, DF: MS; 2014.. Enquanto sujeitos, podem ser escutados e acolhidos na sua singularidade, com suas demandas e sofrimentos legitimados, e, finalmente, compreendidos como sujeitos de suas próprias histórias77 Brasil. Ministério da Saúde; Conselho Nacional do Ministério Público. Atenção Psicossocial a Crianças e Adolescentes no SUS: Tecendo Redes para Garantir Direitos. Brasília, DF: MS; 2014..

Esse novo estatuto, no campo do cuidado em saúde mental, propõe como norte ético o olhar interdisciplinar, integral, e uma atuação intersetorial, voltada para a especificidade desses sujeitos77 Brasil. Ministério da Saúde; Conselho Nacional do Ministério Público. Atenção Psicossocial a Crianças e Adolescentes no SUS: Tecendo Redes para Garantir Direitos. Brasília, DF: MS; 2014.. Deste modo, a compreensão do cuidar é iluminada por um olhar psicossocial, e tal cuidado se apresenta com características muito próprias e específicas, que o paradigma da RPB impõe. Nesta perspectiva, este artigo apresenta o caso de Lucas, acompanhado em um Capsi do Rio de Janeiro, em 2019, de modo a trazer uma reflexão sobre o cuidar psicossocial.

O relato começa em 2019, quando Lucas, acompanhado por sua mãe, Amália, e seu pai, José, aos 17 anos de idade, retorna ao Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Capsi), no qual dera entrada dois anos antes. Amália disse que seu filho precisava ser medicado e receber acompanhamento de um médico psiquiatra. Em 2017, no momento da sua entrada, o Capsi acolheu o jovem e sua demanda foi articulada na rede de cuidado do território. Seu tratamento prosseguiria na Clínica da Família (CF), com o apoio do Núcleo de Atenção à Saúde da Família, e o Capsi atuaria como suporte. Contudo, no seu retorno em 2019, Amália informou que o jovem apresentou uma reação adversa à medicação prescrita pela CF de referência, e que, por conta disso, procurou outros locais de atendimento psiquiátrico na rede. No novo local encontrado por Amália, o jovem pôde ser acompanhado por um psiquiatra por dois anos consecutivos.

Em 2019, Lucas retornou ao Capsi devido às dificuldades encontradas no local em que estava fazendo seu tratamento. Ele demonstrou ser um jovem quieto, que desconfiava da equipe, e demandou alguns atendimentos individuais até se sentir mais confortável para compartilhar suas questões. O jovem, que em 2017 havia passado por um franco surto psicótico na escola, se encontrava demasiadamente desorganizado e com delírios de perseguição, que tornavam difíceis para ele os movimentos de sair de casa, ir à escola, conversar ou até mesmo olhar para outras pessoas. Sentia medo de que todos ‘descobrissem’ quem ele era; sentia-se invadido até mesmo dentro de casa, quando ligava a televisão e via uma notícia, achando que os acontecimentos mencionados pudessem ocorrer em sua residência. Apresentava um estranhamento com o mundo e com ele mesmo. Dizia saber que havia algo errado consigo mesmo e, por conta disso, passava horas no quarto escuro, pensando no que fazer para sair daquela situação. Apresentava embotamento afetivo e humor deprimido.

Desde 2017, devido a uma reação adversa de Lucas ao antidepressivo, Amália optou por cessar-lhe a administração de tal medicamento. No momento do seu retorno o jovem era medicado somente com uma subdose de antipsicótico. Era necessária uma nova avaliação com um psiquiatra. Contudo, em decorrência da ausência de psiquiatra, tanto no Capsi quanto na CF, foi necessária uma articulação com outra instituição para que Lucas pudesse dar continuidade ao seu tratamento, baseado na sua última prescrição.

Com a chegada de um novo psiquiatra na CF, Lucas retornou a esta instituição e passou por uma nova avaliação, sendo diagnosticado com um quadro depressivo. Entretanto, a equipe do Capsi percebeu, através de atendimentos familiares e individuais, que o caso de Lucas se tratava mais de um quadro psicótico. Acreditava-se que a avaliação da CF tenha ocorrido mediante atendimentos familiares, nos quais, como observado pelo Capsi, apenas Amália relatava o que acontecia com Lucas, enquanto ele mesmo se calava. Entretanto, em atendimentos individuais, os relatos de Lucas divergiam dos relatos da mãe, demonstrando seu sofrimento por outra ótica. Por conta disso, foi sugerido à CF que Lucas fosse atendido individualmente. Então, após novo atendimento, sua medicação foi alterada, com aumento do antipsicótico e do antidepressivo.

Mesmo com as doses aumentadas, Lucas não começou o tratamento prontamente. Por conta da reação adversa à medicação que ele apresentou em 2017, Amália sentia-se insegura em medicá-lo com o antidepressivo. Foi necessário um trabalho de conscientização para que ela se sentisse segura para dar a medicação ao jovem. Então, após um tempo, tendo sido acolhida em seus receios e amparada pela rede de saúde mental, Amália iniciou o tratamento de seu filho.

Após alguns meses de tratamento, notou-se uma melhora no ritmo de produção dos pensamentos de Lucas, por conta do trabalho terapêutico aliado à medicação. Ele se encontrava com mais desejo de sair de casa e ir à rua. Nos atendimentos, conseguia olhar nos olhos dos membros da equipe. Além disso, começou a despontar-lhe um desejo de retornar à escola.

Em um determinado momento, em uma consulta com Lucas e sua mãe, em meados de julho de 2019, Amália surpreendentemente relatou que o jovem iria interromper os estudos no colégio que frequentava e recomeçá-los em outra instituição somente no ano seguinte. Lucas apenas abaixou a cabeça e concordou com a mãe. Amália justificou que Lucas possuía uma defasagem de conhecimento devida às faltas no corrente ano letivo, e também por sua aprovação via Conselho de Classe, nos últimos dois anos. Por conta disso, em uma decisão conjunta, a família e a escola decidiram que seria melhor para Lucas que ele fosse para um colégio ‘mais fácil’. Solicitou-se, no entanto, que tal decisão não fosse tomada naquele momento.

Em um atendimento individual seguinte, Lucas foi questionado sobre o colégio. Ele, então, falou sobre seu desejo de prosseguir na escola, sobre querer se formar com seus colegas de sala, e a importância de passar de série. Relatou estar tentando estudar, mas que, pela dificuldade com o conteúdo, gostaria de ter uma explicadora e de se sentar à frente, na sala de aula. Contou sobre se sentir invadido pelo olhar dos outros, em sala de aula, e que, por vezes, a permanência na instituição lhe causava demasiado mal. Então, juntamente com Lucas, foram criadas estratégias para ele estar em sala de aula, tais como abaixar a cabeça quando os olhares lhe fossem insuportáveis, e se ausentar da sala por algum tempo. Contudo, Lucas relatou as dificuldades junto à própria instituição para conseguir acordar as saídas mais cedo, e como isso era um obstáculo para ele estar na escola. Foi perguntado a ele sobre a possibilidade de suas questões serem levadas para uma conversa presencial com a escola e sobre possíveis formas de mantê-lo no ambiente escolar. Lucas concordou.

O Capsi, que possuía um contato prévio com a escola, marcou uma reunião presencial para discutir a urgente situação de Lucas. Compareceram dois representantes da escola, bem como dois representantes do Capsi. A escola afirmou que Lucas não mais conseguiria passar de ano através do Conselho de Classe, caso precisasse, pois houve o entendimento de que sua ‘condição’ não o prejudicava cognitivamente. Por conta disso, o jovem seria avaliado como todos os alunos, e, pelo fato de sua base de conteúdos estar irregular em relação à classe em que se encontrava, haveria uma chance de ele repetir de série.

A possibilidade de repetir um aluno como Lucas era cerne de receio para a escola, por não saberem como ele reagiria e temerem uma piora no seu quadro. Então, a solução discutida entre escola e família foi transferi-lo para uma escola ‘mais fácil’. A representação do Capsi perguntou qual a opinião de Lucas sobre aquela situação, e a escola relatou que não houve uma reunião que o incluísse, apenas conversaram com Amália. Inclusive, sempre que chamavam Lucas para alguma conversa, o jovem permanecia olhando para baixo e apresentava respostas curtas.

Conforme acordado com Lucas, a escola foi informada sobre seus atendimentos no Capsi, sobre o entendimento de que o jovem se sentia mais confortável nos atendimentos sem sua família, sobre o processo de criação de vínculos e abertura para sua fala, e sobre seu desejo de começar a tomar a nova medicação, por achar que ela o ajudaria a querer sair mais de casa e frequentar a escola. Foram relatados tanto o desejo de Lucas, de continuar na instituição escolar, com a sua turma, como os esforços e obstáculos que ele enfrentava para permanecer na instituição.

A instituição não tinha conhecimento do que se passava com Lucas, até aquele momento. Mesmo nas reuniões com Amália, os relatos de Lucas não eram sequer comentados. Não se tinha ideia do tamanho dos obstáculos enfrentados. Assim foram, então, desenhadas, conjuntamente, estratégias e modos de cuidado para que Lucas pudesse completar bem o seu ano letivo.

A partir da disponibilidade da instituição, foram pensadas aulas de apoio e monitorias para ajudar Lucas nos estudos. Por ele ter perdido as provas do começo do ano, foi levantada a possibilidade de ele realizar as provas seguintes normalmente, sem prejuízo pelas que perdeu. A escola aceitou a possibilidade de mudar o jovem de lugar em sala de aula, e demonstrou cuidado na elaboração de uma justificativa para isso, procurando não expô-lo mais do que o necessário, entendendo que o ato de mudar o local de uma pessoa em sala de aula é um componente importante nas relações sociais de tal espaço escolar. Além disso, foi discutida a possibilidade de Lucas sair mais cedo quando fosse necessário, e a possibilidade de haver uma pessoa no espaço escolar disponível como referência para Lucas conversar quando se sentisse confortável. Discutiu-se também sobre como deveria ser realizada a conversa com Lucas como uma maneira de acolhimento de seu sofrimento. Tanto o Capsi quanto a escola puderam recollher que o diálogo com Lucas devia dar a ele liberdade de falar sobre suas questões sem que ele se sentisse interrogado, e que seu interlocutor soubesse sustentar o silêncio caso fosse necessário.

Lucas foi informado sobre a discussão com a escola. Ele agradeceu pela ‘coragem’ da equipe, de falar com a escola o que ele não conseguia. Tanto a fala de Lucas quanto a posição que a escola pôde tomar foram exemplos da dimensão do cuidado no paradigma da atenção psicossocial. Lucas tinha desejos e dificuldades, e, sozinho, não conseguia dizer o que queria. A escola, por ver-se sozinha no cuidado, tinha receio e desconhecimento, o que dificultava sua aposta em Lucas. Amália, sua mãe, na mesma situação, sem encontrar um lugar de tratamento para o filho, relatava seu medo de tomar decisões sozinha sobre a medicação.

O trabalho clínico-institucional no cuidado em saúde mental infantojuvenil é um trabalho ampliado, que inclui outros componentes da rede, de natureza clínica ou não, e que atravessam a vida das crianças e dos adolescentes88 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Caminhos para uma Política de Saúde Mental infanto-juvenil. 2. ed. Brasília, DF: MS; 2005. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/diversos/mini_cd/pdfs/caminhos.pdf.. São como “linhas que costuram seu território”88 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Caminhos para uma Política de Saúde Mental infanto-juvenil. 2. ed. Brasília, DF: MS; 2005. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/diversos/mini_cd/pdfs/caminhos.pdf.. O território não se confunde com o espaço físico, mas compreende um campo interinstitucional e intersubjetivo, que atravessa a experiência do sujeito e constitui seu lugar psicossocial88 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Caminhos para uma Política de Saúde Mental infanto-juvenil. 2. ed. Brasília, DF: MS; 2005. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/diversos/mini_cd/pdfs/caminhos.pdf..

Com o trabalho intersetorial, redes de suporte podem ser construídas, não apenas para os usuários, mas também para os profissionais dos serviços. A ampliação da comunicação e das trocas produz parcerias e compartilhamento do trabalho, qualificando o cuidado99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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. Segundo Matsukura e Tãno99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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Compreende-se que a intersetorialidade se afirma em práticas contextualizadas, sendo apoiada por diferentes atores sociais e relativa a problemas reais e, portanto, somente por meio destes pode ser empreendida. O conhecimento e o saber articulados são produzidos em arenas dialógicas, entendidas enquanto espaços de diálogo e elaboração de alternativas para as problemáticas elencadas a partir dos diferentes sujeitos envolvidos, nos quais distintos interesses, perspectivas e valores são colocados em jogo.

O compromisso das equipes de saúde diz respeito ao exercício da corresponsabilização do cuidado. Esta corresponsabilização dá lugar a relações transversalizadas, que podem superar eventuais disputas de poder e oferecem a possibilidade de produzir saberes, articulações e estratégias, pensadas pelos diversos atores99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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Isso é o que se considera importante neste novo paradigma do cuidado: o ‘fazer com’. No momento em que a escola não se viu mais sozinha diante de uma situação grave, tendo parceiros para trocar experiências e ideias, ela pôde modificar a maneira como concebia Lucas e seu sofrimento, assim, dando lugar às dificuldades e singularidades do jovem, acolhendo-o e apostando em seu desejo. Esta segurança da escola tem relação com o trabalho desempenhado pelo Capsi. A partir da legitimação e do acolhimento das demandas da escola, da família, da CF e de Lucas, foi possível mudar a maneira como esses atores sociais lidavam com o caso. O ‘fazer com’ é fundamental para o cuidado psicossocial, que, pelo trabalho em rede, faz compartilhar e qualificar o cuidado, corresponsabilizando cada componente dessa rede. Através de uma aposta no desejo de Lucas, pôde-se desenhar uma rede de cuidados em que cada componente atuou conforme o possível, tendo a certeza de não estar sozinho.

O que se entende por ‘ter saúde’

O caso de Lucas ilustra a ética de uma clínica voltada para o sujeito, tal qual é o trabalho em um Capsi. Como diz Espinosa, a vida ética só é possível no interior dos afetos. A partir do desejo, que “é a força que nos leva ao encontro com algo que sentimos que compõe com a potência de nosso corpo e alma para se conservar”1010 Sawaia BB. Psicologia e desigualdade social: Uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicol. Soc. 2009 [acesso em 2021 fev 10]; 21(3):364-372. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822009000300010.
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, pode-se falar da busca da liberdade e da felicidade. Considerando a ética e os afetos, o que está em jogo é a busca de uma liberdade que não pode ser dissociada da alegria de viver1010 Sawaia BB. Psicologia e desigualdade social: Uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicol. Soc. 2009 [acesso em 2021 fev 10]; 21(3):364-372. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822009000300010.
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. Considerando a potência dos afetos, pode-se perceber o momento em que os desejos de Lucas são legitimados e postos em primeiro plano. Foi a partir do seu desejo de permanecer no espaço escolar que se abriu um horizonte para seu tratamento. Então, seu desejo entra em consonância com o cuidado de si1111 Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface 2004; 8(14):73-92., de um sujeito entrando em contato consigo mesmo, compondo uma vida que lhe seja própria.

Quando se coloca o caso de Lucas, é interessante salientar os termos de uma ‘vida mais apropriada’, uma vez que ele frequentemente se calava diante da figura materna e procurava resolver suas questões sozinho, com dificuldades para verbalizar seu sofrimento. Então, quando Lucas afirma o desejo de querer ficar na escola, indo contra uma decisão das instituições família e escola, e sustentando o ano letivo, ele compõe um retrato surpreendente do trabalho que pôde realizar. Assim, percebeu-se uma melhora em Lucas, que passou a se mostrar mais sorridente, com uma postura mais ereta, não mais evitando os olhares, contando piadas e com vontade de sair de casa. Isso foi fruto de um trabalho, de uma aposta e afirmação do desejo de Lucas e do cuidado de si.

Este trabalho não se realizou sem tensões, pois o cenário da saúde mental infantojuvenil sempre foi historicamente invisível e ineficiente quanto à elaboração de políticas públicas1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40.. No entanto, a RPB acabou por cessar a histórica experiência do não lugar para tal clientela, e a trajetória de dispositivos voltados ao atendimento em saúde mental infantojuvenil se tornou uma realidade no campo.

A primeira política pública destinada para o cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes foi a Portaria nº 336/2002, que instituiu os Capsi, após séculos de ausência de cuidados voltados para essa população. Antes disso, acumulavam-se práticas segregadoras, punitivas e tutelares, que visavam o que era considerado o ‘verdadeiro’ problema da juventude: a pobreza1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40.. Diante da falta de palavras, crianças e adolescentes com sofrimento mental se viam ‘sem lugar’, altamente medicalizadas, sujeitas ao tratamento para suas condutas consideradas inapropriadas1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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. Nestes casos, desinstitucionalizar está para além de desconstruir saberes e práticas psiquiátricas, uma vez que esses saberes sequer foram aplicados para essa clientela.

O caso de Lucas demonstra a possibilidade de produção de um lugar e uma ética de trabalho com crianças e adolescentes. A partir da afirmação do desejo do sujeito, foi possível pensar em maneiras de o jovem continuar na escola. E isso apenas foi possível porque Lucas pôde verbalizar sua vontade de permanecer. Para ele ter dito isso, primeiro foi necessário que confiasse na equipe que o acompanhava, indo contra os discursos tanto da instituição escolar quanto da instituição familiar. A possibilidade de colocar em palavras seus desejos e ter seu discurso legitimado, levado em consideração enquanto uma ferramenta potente no tratamento, demonstra outra forma de olhar para o sujeito e dar eco à sua voz. Dar lugar ao desejo de Lucas, incluindo-o no interior de um projeto terapêutico, possibilitou a construção de outros projetos possíveis, com ele e para ele. Entretanto, não é possível dizer, de antemão, o que será de seu futuro, ou de sua felicidade tão almejada. Isso será construído por ele, e sua rede de apoio o acompanhará no processo.

Entender o espaço escolar enquanto um lugar de produção de saúde para o jovem passa, sem dúvida, por uma concepção sobre o que é a saúde, que, segundo Canguilhem1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80., não é a ausência de doença, como compreende o modelo biomédico. Ter saúde significa exercitar uma capacidade normativa própria a cada sujeito, de modo que ele possa ‘andar a vida’1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80..

Como dito, o paradigma biomédico define a saúde como ausência de doença, buscando causas e tratamentos no campo orgânico. Este paradigma biomédico abre lugar para uma racionalidade biomédica, que modificará a forma como se compreende e lida com o diferente, sendo central no saber e fazer médico a nova concepção de doença, tratando-se, assim, de uma ciência da doença. A biomedicina compreende o controle das influências do organismo, com uma prática intervencionista, como uma verdadeira obsessão com a ‘saúde perfeita’1515 Camargo KR. A biomedicina. Rev. Physis. 2005; 15(supl):177-201..

A biomedicina possui um caráter generalista, mecanicista e analítico. A perspectiva é o exame do corpo enquanto uma máquina, na busca de causas e consequências, dividindo-o em especialidades, traduzindo-se em formas científicas de abordar o ‘problema’. Com o corpo dividido, a busca por causas a partir do exame empírico, o positivismo da biomedicina, abre alas para o objetivo intervencionista da cura e a tradução objetiva do ser da doença1515 Camargo KR. A biomedicina. Rev. Physis. 2005; 15(supl):177-201..

No que tange a saúde mental, na interseção com a biomedicina se encontra a psiquiatria. Empregada com a intenção de um postulado científico, procura produzir um saber positivo, neutro e autônomo, e, pela experimentação, chegar à verdade da doença¹. Contudo, o mito da neutralidade apenas obstrui a produção de uma verdade, da doença mental enquanto objeto construído pela psiquiatria. Suas extensas classificações funcionam como forma de conhecer o problema sobre “fenômenos que, em última instância, lhe são absolutamente incompreensíveis e que, portanto, cumprem papel meramente ideológico”44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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, resultando na coisificação e consequente exclusão do ser considerado ‘doente’. Fica evidente a função social da psiquiatria, de produtora de discursos, práticas e saberes1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133..

A RPB colocou esse modelo racionalista em xeque. A dualidade proposta pela racionalidade médica – para a normalidade, a rua, e para a patologia, o muro – é continuamente contestada. Não se trata de uma ciência da doença, mas sim de aproximar o sujeito da sua experiência global, que também inclui o seu sofrimento. Para isso, Basaglia propõe colocar a doença mental entre parênteses. Esta operação pretende:

A negação, isto sim, da aceitação da elaboração teórica da psiquiatria em dar conta do fenômeno da loucura e da experiência do sofrimento; significa realizar uma operação prático-teórica de afastar as incrustações, as superestruturas, produzidas tanto no interior da instituição manicomial, em decorrência da condição do estar institucionalizado, quanto no mundo externo, em consequência da rotulação social que é fortemente autorizada pelo saber psiquiátrico44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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Não se tr ata da negação do sofrimento, mas de uma ruptura com o modelo teórico que coisificou e objetificou a experiência humana1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40., buscando aproximar-se do homem real, incluindo o seu sofrimento.

Dessa forma, ao considerar a saúde como uma questão psicossocial, entende-se que ela não é a ausência de doenças. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde enquanto bem-estar físico, social, afetivo, buscando sua determinação social, não apenas física e mental11 Amarante A. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. É preciso levar em consideração as condições de (re)existir, os determinantes sociais de saúde.

Canguilhem parte do entendimento de que ter saúde, ser saudável, é exercer a capacidade normativa pela qual, à semelhança do que se passa no organismo, pode-se estabelecer novas normas de vida diante de situações diversas1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80.. A linha entre saúde e doença é demasiadamente tênue, e diferente entre os indivíduos. Cada pessoa deve ser considerada a partir de um ponto de referência, que é absolutamente singular. Nesta perspectiva, ser saudável não pode se definir a partir de uma média estatística ou a partir de uma norma supraindividual1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80.. Desta forma, a doença se refere à incapacidade de produção de novas normas, correspondendo a uma perda da capacidade normativa. Isto representa um abalo e uma ameaça à existência, uma vez que o indivíduo sem capacidade normativa apresentaria reações catastróficas no meio que lhe é próprio1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80..

Pode-se perceber, assim, que a doença representaria uma nova dimensão da vida, e não uma variação da saúde. O estado denominado anormal não é uma ausência de norma, pois o patológico seria justamente a dificuldade de encontrar uma nova norma capaz de restabelecer um equilíbrio, que, no entanto, como argumenta Canguilhem, diferentemente de uma máquina, busca funcionar estabelecendo ou restabelecendo um estado de equilíbrio estável. Ser sadio, então, diferentemente do ser normal, seria ser normativo. A doença é a redução da margem de tolerância às infidelidades do meio, e ser infiel é o devir do meio. Desta forma, o limite entre normal e patológico é impreciso, o estado de doença apenas pode ser julgado em relação à situação com a qual a pessoa reage, e aos seus instrumentos de ação, oferecidos pelo próprio meio1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80..

Pode-se pensar se a possibilidade de construir novas formas e instrumentos para lidar com o cotidiano não seria, finalmente, aquilo que se compreende como atenção psicossocial. Lucas tinha desejo de continuar na escola e, com a construção a partir do trabalho do Capsi no seu meio, foi possível criar um ambiente mais propício para sua existência. Mesmo diante de situações em que não se pôde intervir, como na apresentação de um trabalho em sala de aula, por exemplo, Lucas, no exercício de sua capacidade normativa, pôde cumprir um requisito considerado ‘normal’ para um aluno. O próprio desejo de Lucas, de permanecer na escola, pode ser entendido enquanto exercício dessa capacidade normativa, que existe a partir do sujeito. Compreende-se, assim, o sujeito enquanto um sujeito de desejos, e não como um portador de doença, como o modelo biomédico o classificaria.

Cabe uma ressalva sobre o que Canguilhem entenderia enquanto cura, e ao considerar uma doença que o modelo biomédico considera ‘incurável’, como a de Lucas. A cura seria a tentativa do organismo de estabelecer uma nova ordem, procurando a conservação. Pela obtenção de novas constantes, garantiria, assim, uma nova ordem, possibilitando a ele, na expressão do próprio autor, ‘andar a vida’1414 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. p. 71-80.. Modificar essas novas constantes é perigoso, pois poderia criar uma nova desordem. Desta forma, toda constante – por exemplo, um sintoma psicótico – é nociva e deve ser calada? Ou a tentativa de mudar a ordem estabelecida pelo sujeito, como o sintoma que o sustenta, não acarretaria um desmoronamento daquela existência psíquica? Neste caso, é preciso respeitar a busca de novas normas de cada um.

A tensionalidade da intersetorialidade

Um aspecto fundamental do trabalho de um Capsi é o trabalho intersetorial, considerado imprescindível para uma ação ampliada de atenção, territorializada, cobrindo as complexas questões do cuidado em saúde mental infantojuvenil1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40.. No aparato das leis, este aspecto do cuidado é ressaltado. A Política Nacional de Promoção da Saúde é a primeira normativa a tratar sobre a intersetorialidade como promotora de saúde e cidadania99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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. A Portaria nº 3.088/2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), em seu artigo 2, sobre as diretrizes de funcionamento da rede, designa a

organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado1717 Brasil. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União [internet]. 21 Maio 2013. [acesso em 2021 jan 27]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.
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O mesmo documento dispõe sobre a articulação dos Caps e a sua “participação de forma ativa na articulação intersetorial para promover a reinserção do usuário na comunidade”1717 Brasil. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União [internet]. 21 Maio 2013. [acesso em 2021 jan 27]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.
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. A própria criação de Comissões Intersetoriais, disposta na Lei nº 8.080/1990, demonstra a importância da intersetorialidade para o cuidado integral em saúde55 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990 [internet]. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
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Nesse contexto, o trabalho proposto pelos Caps tem como diretrizes a intersetorialidade, a integralidade da atenção, o cuidado em rede e de base comunitária1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40.. O cuidado psicossocial foca no sujeito e no coletivo, na sua (re)inserção social, com a aposta na inclusão, cidadania e autonomia como formas de possibilitar a existência33 Nasi C, Cardoso ASF, Schneider JF, et al. Conceito de Integralidade na Atenção em Saúde Mental no Contexto da Reforma Psiquiátrica. Rev. Min. Enferm. 2009; 13(1):147-152.. Fica evidente que o trabalho a ser desempenhado não se traduz em uma excessiva medicalização, no controle de condutas ‘estranhas’ ou na manicomialização1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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O (re)encontro com a cidade, como cuidado proposto pela RPB, ocasiona embates e tensões1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133.. A intersetorialidade se justifica por uma forma de cuidado que, compreendendo o sujeito de forma integral, busca atuar em seus diversos contextos e singularidades, construindo um cuidado cada vez mais qualificado1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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. As instituições, integrando-se em uma rede de corresponsabilização, podem intervir nos diversos aspectos da vida dos sujeitos, favorecendo sua inclusão e sua cidadania99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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A intersetorialidade e o trabalho em rede são as principais estratégias para um cuidado potente, uma vez que permitem lidar com as questões complexas do cuidado em saúde mental1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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. Permitem, igualmente, a afirmação dos sujeitos em práticas contextualizadas, operando, assim, no real. Somente podem ser empreendidas a partir das tensões, de atores diferentes e de problemas reais, criando, assim, espaços de diálogo, com elaboração de diferentes alternativas. Os embates são positivos, como formas de circulação dos saberes, demandando a configuração de novos olhares. Desta forma, o trabalho em rede e intersetorial configura-se como uma micropolítica, procurando a transformação de práticas hegemônicas cristalizadas e a formação de novos discursos sobre a loucura, visando à garantia dos direitos.

O exercício intersetorial contribui também para o questionamento em relação aos entendimentos sobre o sofrimento psíquico, que se fundamentam em uma linearidade biomédica oriunda dos diagnósticos nosológicos e classificatórios que condicionam a compreensão ‘técnica’ sobre os contextos de vida por meio de checklists e protocolos99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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A RPB propõe a desinstitucionalização, apontando para o fim dos manicômios e a desconstrução dos saberes e das práticas do paradigma psiquiátrico, não como uma desospitalização ou desassistência44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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. Pelo fato de o modelo asilar não se sustentar apenas com suas estruturas físicas, é necessário colocar em xeque o manicômio enquanto um dispositivo social, para, assim, desconstruí-lo e fazer emergir novos discursos e saberes sobre a loucura, outro paradigma sobre o sofrimento mental1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133..

A desinstitucionalização, desta forma, é um processo também de transformação social, de reencontro da cidade com a loucura44 Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv.
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. Este processo conta com uma carga de tensionalidade, uma vez que os saberes e práticas asilares estão cristalizados no social e nas formas de se operar nas instituições, se configurando em relações de opressão e violência1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133.. Um exemplo disto é a manutenção do mito de periculosidade do louco, que se iniciou na construção dos Hospitais Gerais, no século XVII, permanece ainda hoje no imaginário social e é reproduzido nos discursos11 Amarante A. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007..

Conforme a discussão de caso apresentada, o espaço escolar é um lugar potente para a constituição do jovem99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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, lugar de trocas sociais e construção de uma identidade durante o adolescer. Contudo, a própria escola é uma instituição da violência, de reprodução de relações de opressão e de poder, capturada pelo discurso asilar1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133.. Aspectos do estigma da loucura são encontrados neste espaço, como, por exemplo, a forma de lidar com o diferente como algo a ser consertado e normalizado.

Em nome de tutelar e proteger, muitos descaminhos são construídos, submetendo os jovens à mortificação de sua palavra, ao exercício cruel da institucionalização, ou à intervenção adaptativa dos especialistas. Neste aspecto particular, equivalem-se crianças e os ‘loucos de toda ordem’: são considerados os seres da desrazão, a requerer a sabedoria iluminada dos tutores, sejam eles médicos ou juízes1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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Crianças e adolescentes, excluídos das agendas de debates e políticas públicas de saúde mental1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40., demonstram que o paradigma asilar ultrapassa os muros dos hospícios. A loucura fica sob a égide do estigma da deficiência, e há a necessidade de readaptar crianças para se transformarem em adultos produtivos, criando dispositivos mais pedagógicos do que clínicos1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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. Somando-se a isto, encontra-se a psicologização ou psiquiatrização das demandas advindas das escolas, com o objetivo de alteração de condutas para permanência no espaço escolar. Desta forma, percebe-se o consequente sequestro de cidadanias, pelo estatuto de indivíduos a ‘serem tutelados’1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133..

A assistência à clientela infantojuvenil colocava toda uma gama de aspectos considerados ‘problemáticos’ sob o discurso da deficiência1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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. No exemplo de Lucas, a escola relatou a impossibilidade de ele ser aprovado em um conselho especial, já que precisaria haver um diagnóstico de problema cognitivo, desconsiderando, nesse sentido, o funcionamento psíquico do jovem.

No caso estudado, a instituição escolar apresentava uma dificuldade para lidar com Lucas. Nas reuniões sobre seu caso, apenas sua mãe comparecia; nos momentos em que ele era chamado para conversar, permanecia quieto. Por conta do silêncio de Lucas, a instituição questionava seus professores e colegas sobre seu comportamento, e buscava mais informações. É importante ressaltar o aspecto negativo disto para Lucas, que constantemente dizia que as pessoas falavam sobre ele, que sabiam quem ele era ‘de verdade’, o que lhe representava um sofrimento. Todos tinham medo de insistir nos estudos de Lucas.

Esse modo de a escola lidar com a diferença que Lucas apresentava refere-se ao lugar de tutela em que ele era colocado, tanto por ser jovem quanto por ter um sofrimento mental considerável. Historicamente, as políticas públicas para crianças e jovens os colocam no lugar objetal, sem considerá-los enquanto sujeitos. Observa-se uma mudança neste aspecto apenas com o advento do ECA, em 1990, e com a instituição da Doutrina de Proteção Integral1212 Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin. 2015; 27(1):17-40.. Contudo, apenas implementar leis não ocasiona uma transformação no imaginário social e nas práticas.

Além do lugar de jovem, Lucas ocupa o lugar de sujeito com um diagnóstico grave, do qual a escola estava ciente, tendo sido palco de seu primeiro surto. O aspecto da manicomialização do espaço escolar acaba por constranger o sujeito e reduzi-lo ao seu diagnóstico, conferindo-lhe o lugar de pessoa a ser tutelada por terceiros, sem capacidade de decisão por si própria1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133.. Esta ausência de lugar configura-se em uma forma de exclusão do sujeito. E esta representação em torno da loucura acarreta consequências danosas ao cotidiano dos sujeitos1616 Basaglia F. A instituição negada: relatos de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal; 2001. p. 99-133.. Desta forma, fica evidente que qualquer transformação que se pretende operar na saúde mental infantojuvenil necessita rever o exercício histórico da tutela1313 Couto MCV. Novos desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In: 3º Conferência Nacional de Saúde Mental; 2001 dez 11-15; Brasília, DF: MS; 2002. p. 133-142. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/3conf_mental.pdf.
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Considerando esses aspectos, o trabalho intersetorial é imprescindível para a atenção psicossocial99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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. O diálogo com a escola se fez essencial para a discussão sobre uma maneira de trabalho com Lucas, entendendo o que aparecia para a escola e o que chegava ao Capsi. Desta forma, comportamentos que apareciam para a escola, como falta de interesse e sono, podem ser vistos como uma maneira de o jovem lidar com as invasões que sentia em sala de aula e ainda poder habitar tal espaço. A abundância de discursos da figura materna e ausência de discursos de Lucas pôde tomar outro lugar, em uma tentativa de tornar o ambiente escolar acolhedor e propício para que o jovem se sentisse amparado e dissesse coisas sobre si mesmo. Assim, a instituição escolar pôde conceber a diferença do funcionamento psíquico de Lucas, dando lugar à sua singularidade e construindo uma aposta no desejo do jovem, de forma responsável.

A mudança na maneira de atuar da instituição foi possibilitada pelo acolhimento das suas demandas e dificuldades por parte do Capsi, que, saindo do lugar de um suposto saber, pôde dialogar com o outro, legitimar suas dificuldades e colocar suas demandas a trabalho, assim construindo ‘com’ a instituição. O trabalho em rede somente pôde se efetivar a partir da corresponsabilização do cuidado99 Matsukura TS, Tãno BL. Intersetorialidade e cuidado em saúde mental: experiências dos CAPSij da Região Sudeste do Brasil. Rev. Physis. 2019 [acesso em 2021 fev 10]; 29(1):1-27. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000100607.
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, na qual os componentes não se viram sozinhos, mas tiveram a certeza de poderem dialogar e compartilhar entre si.

A mudança de paradigma e a RPB são processos de transformação do lugar social da loucura e de um novo modo de lidar com o sofrimento mental que ainda estão em andamento. Resquícios mais ou menos gritantes e alarmantes sobre o modelo manicomial ainda se encontram nas instituições. Desta forma, o trabalho em rede e intersetorial é essencial para a construção de um novo discurso sobre a loucura e um cuidado psicossocial integral.

Considerações finais

A partir da RPB, observa-se uma mudança na forma de atuar sobre a saúde mental, com a negação da instituição manicomial e a desconstrução dos saberes psiquiátricos. A psiquiatria tem como alicerce o paradigma biomédico, funcionando como dispositivo social e promotor de capturas manicomiais. Com a transformação operada pela RPB, surge o paradigma psicossocial, modificando a forma de se conceber o sujeito em seu sofrimento, entendendo-o enquanto ser integral, dentro de um contexto que o afeta e o subjetiva, reconhecendo-o enquanto sujeito, com uma dimensão subjetiva e desejante. Esta transformação coloca em xeque o que se entende como saúde e doença. Saúde não é mais considerada como ausência de doença, e sim como exercício da capacidade normativa.

Através deste estudo de caso, sustenta-se o lugar de sujeitos de crianças e adolescentes, apostando no cuidado integral e psicossocial, e nas práticas em rede, que são preceitos da RPB. O cuidar passa por assegurar ao sujeito a centralidade do seu projeto terapêutico, acolhendo e legitimando suas demandas e seu sofrimento. No relato exposto, a intervenção com os componentes da rede de Lucas e a sua necessidade de ser ouvido individualmente permitiram construções inventivas de cuidado. Além disso, foi a partir do acolhimento da demanda e das dificuldades da escola que tais construções puderam ser postas a trabalho. Apenas através da corresponsabilização do cuidado entre os componentes da rede está sendo possível afirmar o lugar de Lucas no centro do projeto terapêutico.

É a partir do sujeito que os dispositivos vão atuar, com os seus contextos e o real de suas vidas. Entretanto, em contato com instituições distintas e, algumas vezes, capturadas pelo discurso manicomial, o exercício da intersetorialidade é tensionado. Esta tensão se mostra benéfica ao permitir uma circulação de saberes, possibilitando uma transformação no social, em um movimento micropolítico. Desta forma, o cuidado é qualificado com cada instituição atuando na promoção de saúde do sujeito, da sua autonomia e cidadania.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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  • 4
    Amarante P. O homem e a serpente: Outras histórias para a Loucura e a Psiquiatria. 5. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. [acesso em 2021 fev 10]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/prmpv
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    10 Ago 2020
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