O Cebes e a emergência do Movimento de Reforma Sanitária Brasileira
A luta pelo direito à saúde no Brasil resultou na conquista, na Constituição Federal de 1988, da saúde como direito universal e dever do Estado a ser garantido mediante políticas econômicas e sociais integradas, voltadas para a produção do bem-estar e da qualidade de vida da população brasileira, e em um sistema público universal de saúde: o Sistema Único de Saúde (SUS).
A luta por um sistema público universal de saúde iniciou-se na década de 1970 e persistiu ao longo das décadas subsequentes, visando à implantação e à consolidação do SUS. Essa tem sido tarefa permanente de ação e mobilização do Movimento da Reforma Sanitária (MRS), do qual o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi e continua sendo um dos principais protagonistas.
De acordo com Paim11 Paim J. Depoimento: a danação dos direitos sociais e a saúde: atualidade da questão democrática da saúde. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016.p. 383-390., é comum que as pessoas façam referência à Constituição de 1988 como ponto de partida para a criação do SUS, mas, na realidade, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), que formula uma concepção ampla para a saúde e o próprio projeto do SUS, nasce com o Cebes, em 1976, a partir da iniciativa de David Capistrano Filho, médico sanitarista e militante político, que conseguiu aglutinar um conjunto de acadêmicos, estudantes, profissionais e movimentos sociais em um efervescente debate sobre a saúde pública em um difícil momento histórico brasileiro que foi o período da ditadura militar (1964-1984).
Concomitante ao surgimento do Cebes e como estratégia de comunicação da entidade, foi criada, em 1976, a Revista ‘Saúde em Debate’ (RSD), com o objetivo de divulgar conhecimentos e reflexões acerca da saúde e do novo projeto político que o Cebes anunciava. No primeiro número da RSD, foi lançada a bandeirada defesa do direito à saúde; e no seu segundo número, foram explicitados os alicerces da proposta da Reforma Sanitária.
O lançamento da revista nos diversos estados do País, com debates fundamentados nos conteúdos publicados, mobilizou, naqueles tempos,importantes setores da sociedade, com destaque para professores e alunos das universidades públicas, profissionais da saúde e movimentos sociais, ajudando na construção deum amplo movimento nacional que recebeu o nome de Movimento da Reforma Sanitária (MRS)22 Escorel S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.,33 Amarante P, Rizzotto MLF, Costa AM. Memória de um movimento: a revista Saúde em Debate e a reforma sanitária brasileira. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2015 [acesso em 2019 set 14]; 20(7):2023-2029. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015207.05752015.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152... .
Em 1979, durante o I Simpósio de Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados, o Cebes divulgou o documento intitulado ‘A questão democrática na área da saúde’, cujas ideias se disseminaram entre políticos, em particular, entre os integrantes do então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao governo militar que abrigava diversos grupos e partidos políticos clandestinos. Assim, iniciou-se o esboço de uma aliança visando promover mudanças no setor saúde, cujo cenário era caótico,tanto em termos epidemiológicos como de organização do sistema de saúde.
‘A questão democrática na área da saúde’ é um documento marco da RSB especialmente por ter inaugurado uma estratégia de posicionamento que caracterizou a incidência política propositiva do Cebes ao estabelecer claramente uma direção por onde caminhar e aonde era necessário chegar. De fato, nele encontra-se a bandeira de luta ‘Democracia é saúde’, que nunca mais foi abandonada, e o conteúdo da proposta política de reorganização do sistema nacional de saúde. É exatamente nesse documento que se menciona, pela primeira vez, a criação de um ‘Sistema Único de Saúde’ descentralizado e democrático. O documento analisava a situação de saúde baseado na sua determinação social e econômica, entendida, portanto, como resultante das condições de vida e de trabalho da população. Ao considerar a saúde como resultante das condições de vida,necessariamente,entende-se a sua conexão estrutural com o desenvolvimento econômico, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a mobilização política da sociedade.
Na origem institucional e no contexto de emergência do MRS, os Departamentos de Medicina Preventiva e Social das universidades públicas, alimentados pelo pensamento crítico acerca da situação de saúde, da política e da organização dos serviços de saúde vigentes, tiveram papel fundamental; e muitos de seus integrantes passaram a atuar no Cebes44 Escorel S, Nascimento DR, Edler FC. As origens da reforma sanitária e do SUS. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, et al., organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de janeiro: Fiocruz; 2005. p. 59-81.. Desde o final dos anos 1970, o debate sobre o direito universal à saúde foi fortalecido, alastrando articulações entre os diversos movimentos sociais, sindicatos e entidades de trabalhadores e profissionais para a ação política em defesa da democratização da sociedade brasileira, articulando um amplo leque de entidades no campo da saúde.
A atuação do Cebes se transformou em “pedra fundamental, embora não a única, do movimento sanitário como movimento social organizado”22 Escorel S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.(76). Crédito especial deve ser dado, também, à atuação dos partidos políticos clandestinos, de matriz marxista, durante a ditadura militar na década de 1970, que contribuíram para o fortalecimento do MRS22 Escorel S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998..
O fato de o Cebes ter se antecipado na elaboração de uma proposta para a saúde foi extremamente importante e repercutiu na Assembleia Constituinte (1986-1988). Os setores conservadores não tinham projeto para mudar a saúde então excludente, fragmentada e ineficaz. Por outro lado, também não desejavam responsabilizar o Estado e, por isso, não defendiam que houvesse sistema público, entretanto, não conseguiram articular proposta alternativa. Fleury55 Fleury S. Anos de Viagem. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016. p. 150-161. analisa que, mediante essa situação, o MRS tinha um recurso de poder que os conservadores não tinham: uma proposta consistente, com adesão de vários setores. O longo processo coletivo de construção daquele projeto resultou em uma grande coalizão reformadora.
Já no início dos anos de 1980, quando se esboçavam os primeiros sinais de retorno ao Estado democrático de direito, muitos cebianos ocuparam espaços institucionais da saúde, integrando e inserindo propostas de mudanças tanto na expansão de acesso, com a extensão de cobertura de ações e serviços de saúde,quanto do modelo de atenção.
Para Paim66 Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador; Rio de janeiro: EDUFBA; Fiocruz; 2008.(36), a RSB é um fenômeno sócio-histórico que contempla diferentes momentos enquanto “ideia - proposta - projeto - movimento - processo”, lembrando que a ideia da reforma fortalece o movimento sanitário e lhe confere forma ao mesmo tempo que o engaja na luta da sociedade pela democratização do País. O MRS se identificava como suprapartidário, embora houvesse clara relação entre entidades do movimento com partidos políticos. Em relação ao Cebes, apesar de inicialmente contar com a influência de militantes do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), a entidade primava pelo suprapartidarismo e buscava se resguardar, não adotando o corporativismo77 Rodriguez Neto E. Saúde: promessas e limites da Constituição. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003..
Iluminada pela redemocratização do País com o fim dos governos militares ditatoriais e pavimentada pela presença de cebianos e integrantes do MRS em diversos e estratégicos cargos de governo, em 1986, foi realizada a VIII Conferência Nacional de Saúde, com mobilização popular de grande importância para a ampliação do apoio social à proposta da criação do SUS. Paim11 Paim J. Depoimento: a danação dos direitos sociais e a saúde: atualidade da questão democrática da saúde. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016.p. 383-390. lembra que, durante a realização dessa conferência, a primeira com participação popular, uma das diversas faixas de manifestação dos movimentos sociais, lia-se: ‘Saúde é Democracia e Democracia é Saúde’ conferindo ainda maior complexidade e amplitude à articulação entre saúde e democracia.
A questão democrática da saúde vai ganhando cada vez maior sentido quando a compreensão de que o direito à saúde exige torná-la parte endógena, e não periférica, da formulação de um modelo social e econômico de desenvolvimento do Brasil, de forma que uma agenda para a saúde supere o debate setorial e, no lugar de insulada, faça parte do padrão de desenvolvimento do País como política de Estado88 Costa AM. Saúde é Desenvolvimento. In: Sader E, organizador. 10 anos de Governos Pós-Neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Flacso; 2013. p. 239-253..
Nessa perspectiva, a questão democrática está nas origens do movimento sanitário, e toda vez que a democracia é ameaçada, esse movimento se rearticula para atuar em defesa dos direitos sociais e democráticos. Para o Cebes e para o MRS, a saúde não deve se restringir a uma questão setorial, mas ser tratada em uma dimensão ampla, que dialoga com vários setores que organizam a sociedade. A bandeira da defesa do SUS fica fragilizada se não está articulada e associada ao conjunto de mudanças do modelo de Estado que garante não apenas atenção à saúde, mas qualidade de vida e bem-estar.
O projeto da Reforma Sanitária tem uma radicalidade necessária, que se relaciona com um conjunto de princípios que passam pela solidariedade social, mas, fundamentalmente, pauta-se pela igualdade proporcionada pela universalidade e pela equidade para a emancipação dos seres humanos sendo, portanto, princípios essencialmente democráticos. Assim é que a reforma sanitária brasileira na sua relação com a democracia tem como pressuposto a democratização do Estado, a democratização da sociedade, a democratização da cultura e da própria saúde.
A democratização da saúde vai muito além dos processos de democracia participativa e do controle social. Ao tratar do direito ao cuidado, a democratização não se limita à oferta e ao acesso igualitário ao serviço de saúde, mas implica direito equânime e universal à vida saudável. Nesse sentido, Paim11 Paim J. Depoimento: a danação dos direitos sociais e a saúde: atualidade da questão democrática da saúde. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016.p. 383-390. afirma que a reforma sanitária brasileira tem um projeto radical que exige mudanças mais amplas dentro sociedade, inclusive mudanças culturais, mudanças no sentido ético, aquilo que Gramsci falava de ‘uma reforma intelectual e moral’.
Pode-se afirmar que a RSB tem-se configurado como um projeto político contra-hegemônico com fluxos e influxos, com avanços e recuos que dependem de cada conjuntura. Sua amplitude inspirou referência à reforma sanitária como ‘um projeto civilizatório’, e que, portanto, seus valores, seguramente, interessam ao conjunto da nação brasileira. Sob essa perspectiva, a Reforma Sanitária não limitou sua atuação ao período do processo da transição democrática pós ‘anos de chumbo’. Tampouco está paralisada no momento atual, quando o Estado se retrai de suas responsabilidades com as políticas sociais e de saúde. O movimento sanitário está nas lutas em defesa da democracia e dos direitos humanos e prossegue na conquista de sua utopia.
Cabe ressaltar que o projeto de País e de saúde defendido pela Reforma Sanitária nasceu no Brasil, mas teve inspirações em autores e ativistas de outras partes do mundo, especialmente com os que, na Itália, fizeram a Reforma Sanitária italiana. No entanto, o crédito histórico e político da Reforma Sanitária deve ser conferido aos movimentos populares e ao povo mobilizado. Para Paim11 Paim J. Depoimento: a danação dos direitos sociais e a saúde: atualidade da questão democrática da saúde. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016.p. 383-390., a RSB não nasceu do Estado, não nasceu de organismos internacionais, não nasceu de governos, não nasceu de partidos políticos, tem um componente popular nacional e democrático intenso, mesmo quando vivemos uma conjuntura como a atual que ameaça seriamente os direitos conquistados historicamente.
O Cebes: ação política para a construção do SUS e da democracia
A luta do Cebes tem sido em defesa da democracia e da saúde com vistas à concretização dos ditames da Constituição Federal de 1988 que assegura, em seu art. 196, o direito à saúde
[...] garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação99 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2020 jan 19]. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_196_.asp.
https://www.senado.leg.br/atividade/cons... .
Incorporando a diversidade de pautas associadas à determinação social e econômica da saúde, o Cebes orienta sua luta ao processo de implantação do SUS sob os princípios doutrinários - universalidade, integralidade e equidade - que deve ser operacionalizado sob as diretrizes organizativas da descentralização, regionalização, hierarquização e participação social.
A atuação do Cebes está articulada com um conjunto de movimentos sociais e entidades que incluem o Movimento dos Sem Terra (MST), Grito dos Excluídos, Movimentos feministas, de trabalhadores, de população negra, LGBTI, entre outros. Com as entidades Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia em Saúde (Abres), Associação Brasileira Rede Unida (Rede Unida) e outras que compõem um Foro para a Reforma Sanitária com incidência nos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo.
Em nível internacional, o Cebes integra a Associação Latino Americana de Medicina Social (Alames) e é afiliado ao Movimento pela Saúde dos Povos enquanto rede, e ativo participante do Fórum Social Mundial, integrando assim o movimento global pelo direito universal à saúde.
O Cebes está organizado em uma estrutura que inclui uma diretoria nacional executiva, uma diretoria ampliada com papel consultivo e núcleos presentes em várias cidades do País. Atualmente, são 18 núcleos em diferentes situações de funcionamento; os quais dispõem de autonomia de ação, orientados pelos princípios constitutivos da entidade: a defesa da democracia, da saúde como direito social e o suprapartidarismo. Os núcleos vêm sendo reorganizados com o movimento de Refundação do Cebes desde 2006, após um período de baixa mobilização da entidade. A proposta foi expandir o Cebes para as bases, ampliando seu papel de movimento social e criando novas lideranças. Esse processo foi bastante profícuo, mas permanece certa inconstância na atuação dos núcleos, parte da ação mesma de qualquer movimento social. Os núcleos do Cebes têm papel importante no acompanhamento do setor saúde nos estados e cidades onde se encontram, e seus membros, em geral, são atores de destaque na área, além de comporem conselhos, associações profissionais e integrarem outros movimentos sociais.
As teses políticas do Cebes, que fornecem as diretrizes de atuação para a entidade, são definidas nos simpósios bianuais, momento que se elege a direção nacional para dois anos de mandato. Todos os membros do Cebes, das diretorias aos núcleos, exercem suas funções na entidade de forma voluntária, sem remuneração.
Como entidade de formulação política, divulgação científica e movimento social, o Cebes se faz representar mediante eleição no Conselho Nacional de Saúde, em vários Conselhos Municipais de Saúde e nas Conferências de Saúde. Os Conselhos de Saúde são uma conquista do MRS para garantir a participação popular, a democracia participativa e o controle social na construção do SUS,democratizando a gestão do sistema e aproximando as necessidades e as demandas da população.
Para a divulgação das reflexões acerca da conjuntura e temas importantes para a saúde, o Cebes conta com um Portal web (http://cebes.org.br/) repercutido nas redes sociais do Twitter, Facebook e Instagram. Os mecanismos da web têm-se mostrado potentes na difusão de análises e reflexões influenciando atores do campo da saúde e apoiando as demais mídias parceiras não especializadas. Outra forma de atuação do Cebes é por meio da RSD, atualmente no 123º número. Os editoriais da revista constituem-se posicionamentos da entidade sobre temas relacionados com a saúde, com a política nacional e internacional que têm repercussões na saúde e na própria existência do SUS como política social universal. A revista é referência na área de saúde, principalmente para o setor de serviços, já que é muito procurada por profissionais que estão na linha de frente do SUS e sistematizam na formação acadêmica sua experiência prática. Além da RSD, o Cebes publica a revista Divulgação em Saúde para Debate, que atende a propostas de publicação de projetos de pesquisa ou institucionais. A entidade também publica livros e tem linhas tradicionais de publicações para a formação em saúde coletiva, sempre na perspectiva da Reforma Sanitária. Todas as publicações do Cebes são de livre acesso e estão disponíveis no site.
O Cebes na resistência ao autoritarismo e ao desmonte do direito à saúde.
Democracia é saúde. Saúde é democracia
A Reforma Sanitária pode ser entendida como o processo de mudanças na estrutura de poder, no aparato institucional, no acesso e nas práticas de saúde. Em sua constituição e consolidação, a RSB teve caráter nitidamente contra-hegemônico e, como tal, esteve relacionada com um contexto político com construção de alianças, que pode ser identificado por: 1) recuperação da democracia pós-regime ditatorial 2) oposição a estruturas tradicionais e arcaicas de organização e gestão da saúde; 3) atendimento a demandas sociais decorrentes da exclusão de setores significativos da população dos benefícios do crescimento econômico, expresso, na saúde, pela falta de acesso à atenção saúde1010 Lobato LVC. Prefácio. In: Lobato LVC, Fleury S, organizadoras. Participação, Democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2009..
A construção de um projeto alternativo baseou-se na agregação de forças em torno a propostas naquele contexto, que tinham três pontos básicos: 1) a democratização do poder político e do Estado; 2) a universalização do acesso à saúde como direito e como responsabilidade estatal; 3) a construção de um aparato institucional e organizacional democrático, descentralizado e com autoridade única, responsável pela consolidação dos preceitos anteriores. O processo de implementação dessa proposta contou com enormes desafios, dados pelas tensões decorrentes tanto do enfrentamento da estrutura tradicional do Estado e do próprio setor saúde como pelo embate com projetos políticos posteriores, de caráter conservador, que tiveram como base também a transformação do Estado e da saúde, mas em sentido distinto daquele da reforma sanitária, ou seja, no sentido da mercantilização da saúde1010 Lobato LVC. Prefácio. In: Lobato LVC, Fleury S, organizadoras. Participação, Democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2009..
Dessas tensões, resultou a prevalência à garantia da universalidade por meio da construção do SUS, materialidade mais visível e concreta da reforma. Contudo, não se alcançou um sistema universal, público e de qualidade, o que fragilizou sua sustentação.
Hoje, a sociedade e os atores políticos de diferentes espectros reconhecem a importância do SUS, mas são várias as visões sobre qual SUS deve prevalecer; e a proposta do Cebes, de um SUS público, universal e integral, não é majoritária. No imaginário social, prevalece a ideia do SUS para os que ‘não podem pagar’, apesar de o sistema ser amplo, cobrir toda a sociedade e não apenas garantir atenção aos menos favorecidos, e pagar pelos procedimentos de mais alto custo, tanto para pobres como para não pobres. As fragilidades do sistema foram sempre intensamente registradas, em oposição ao parco apoio às inúmeras iniciativas exitosas. As camadas médias apoiam o direito à saúde, mas consideram alto o custo da organização social em seu benefício e optam por pagar planos de saúde, mesmo que de qualidade duvidosa. A alta estratificação da sociedade brasileira, com profundas desigualdades sociais, dificulta projetos de solidariedade social ampla e estimula a individualização do acesso à saúde como sinônimo de status.
Essa baixa solidariedade tem sido amplificada com a chegada ao poder, em 2019, de um governo de extrema direita, avesso a iniciativas solidárias, ao papel do Estado no cumprimento da proteção social e, principalmente, antidemocrático e retrógrado nos costumes. O governo do presidente Bolsonaro representa uma inédita associação entre extrema direita e liberalismo econômico, com pauta conservadora no âmbito social sustentada por propostas ultraliberais no campo econômico. O projeto está alinhado com o avanço da financeirização sobre os recursos nacionais em nível global, ampliando a concentração de renda, para o que se vale da asfixia da política democrática como campo legítimo de intermediação dos conflitos decorrentes das condições estruturais do capitalismo1111 Lobato LVC, Costa AM, Rizzotto MLF. Reforma da previdência: o golpe fatal na seguridade social brasileira. Saúde debate [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 22]; 43(120):5-14. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201912000.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420191... .
Nessa conjuntura, o projeto da reforma sanitária se vê mais ameaçado do que nunca, exatamente por defender a radicalidade democrática e o direito universal à saúde. Os movimentos sociais em defesa da Reforma Sanitária mantêm sua pauta e, no momento, adotam uma estratégia de resistência, difundindo a relação entre democracia e saúde e denunciando as iniciativas privatistas e individualistas em curso. O Cebes tem lugar de destaque nesse cenário, defendendo: 1) universalização e responsabilidade estatal como mecanismos de vínculo societário; 2) sistema público de saúde como instrumento de desenvolvimento social e construção de cidadania igualitária, para além do direito individual; 3) saúde como elemento de aprofundamento da democracia, por meio da ampliação do caráter público do Estado e da expansão da participação direta dos cidadãos nos assuntos públicos; 4) saúde como construção de bem-estar coletivo e, portanto, integrada a um conjunto de políticas de seguridade social e garantia de bens básicos de vida1010 Lobato LVC. Prefácio. In: Lobato LVC, Fleury S, organizadoras. Participação, Democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2009..
Se o Cebes se une aos movimentos de resistência ao desmonte das políticas sociais e do direito à saúde, não deixa de lado sua característica precípua de acompanhar as iniciativas dos atores sociais e institucionais, as medidas governamentais, o movimento da conjuntura, os atores políticos; e de debater criticamente as proposições em jogo. O conhecimento aprofundado sobre os temas de saúde e afins por meio da reunião de inúmeros especialistas em diversas áreas faz do Cebes um misto de movimento social com grupo especializado, e é nessa seara que mais contribuímos. Somos movimento social na medida em que nos associamos e apoiamos os diversos movimentos com produção intensiva de conhecimento. À prática crítica, associamos a postura plural e apartidária, o que nos permite dialogar com movimentos de diversas frentes e pautas. O desafio maior hoje é resistir construindo diálogos, inovando na ação política, ampliando e consolidando movimentos sociais no Brasil e na América Latina, sem renunciar à análise crítica de nosso lugar, do papel que desempenhamos e dos desafios que temos pela frente.
O Cebes permanece assim, desde sua criação em 1976, na luta pelo direito universal à saúde elucidando os processos econômicos, sociais e ambientais da determinação social da saúde e alinhando-se com todos os movimentos políticos e sociais em defesa da democracia e da construção de uma sociedade justa e solidária.
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Paim J. Depoimento: a danação dos direitos sociais e a saúde: atualidade da questão democrática da saúde. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016.p. 383-390.
- 2Escorel S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.
- 3Amarante P, Rizzotto MLF, Costa AM. Memória de um movimento: a revista Saúde em Debate e a reforma sanitária brasileira. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2015 [acesso em 2019 set 14]; 20(7):2023-2029. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015207.05752015
» http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015207.05752015 - 4Escorel S, Nascimento DR, Edler FC. As origens da reforma sanitária e do SUS. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, et al., organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de janeiro: Fiocruz; 2005. p. 59-81.
- 5Fleury S. Anos de Viagem. In: Camargo ATSP, Costa AM, Lobato LVC, et al., organizadoras. Cebes 40 anos: memorias do futuro. Rio de Janeiro: Cebes; 2016. p. 150-161.
- 6Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador; Rio de janeiro: EDUFBA; Fiocruz; 2008.
- 7Rodriguez Neto E. Saúde: promessas e limites da Constituição. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.
- 8Costa AM. Saúde é Desenvolvimento. In: Sader E, organizador. 10 anos de Governos Pós-Neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Flacso; 2013. p. 239-253.
- 9Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2020 jan 19]. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_196_.asp
» https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_196_.asp - 10Lobato LVC. Prefácio. In: Lobato LVC, Fleury S, organizadoras. Participação, Democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2009.
- 11Lobato LVC, Costa AM, Rizzotto MLF. Reforma da previdência: o golpe fatal na seguridade social brasileira. Saúde debate [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 22]; 43(120):5-14. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201912000
» http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201912000
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Ago 2020 - Data do Fascículo
Jan 2020
Histórico
- Recebido
20 Nov 2019 - Aceito
20 Nov 2019