RESUMO
Este artigo problematiza a disseminação institucional recente de dispositivos para a redução de riscos de desastres – caracterizados pela tríade sirenes, sinalização de rotas de fuga e exercícios simulados de emergência – desde uma perspectiva sociológica e em interface com o olhar antropológico. Parte-se metodologicamente da identificação de nexos significativos entre as noções de vida cotidiana, ordem social e communitas para, então, considerar as modulações entre tais nexos no que tange à (in)viabilização do bem-estar coletivo. Embora apresentados no sistema de proteção e defesa civil como sendo estratégias eficazes ante perigos consideráveis, essa reflexão sugere que tais dispositivos de redução de riscos de desastres cumpram uma finalidade subsidiária. Tratar-se-ia de retirar da sociedade uma visão mais crítica sobre as origens dos processos socioambientais geradores de tais perigos. Ao se indagar acerca do quão efetivo esse conjunto de estratégias padronizadas poderia ser diante das dinâmicas socioambientais complexas dos diferentes contextos comunitários nos quais têm sido replicadas, conclui-se que o efeito prático mais preocupante é o de, progressivamente, converter o medo coletivo de uma possível ocorrência de desastres em um meio pelo qual se buscaria naturalizar uma ordem social baseada em comportamentos sociais dóceis a uma ordem social antidemocrática.
PALAVRAS-CHAVE
Planejamento em desastres; Desastres provocados pelo homem; Exercícios de simulação; Alerta; Administração de desastres
ABSTRACT
This article aims to present the problematics of the recent institutional dissemination of a given set of disaster risk reduction strategies, characterized by the triad composed by sirens, escape routes, and emergency drills, using a sociological perspective, in interface with the anthropological view. It begins with the identification of significant links of the notions of everyday life, social order, and communitas. Then, it is analysed the modulations of such links, concerning the (in)practicability of the collective wellbeing. Although these are present in the civil protection and defense system as effective strategies when facing considerable dangers, this reflection suggests that such dispositifs for disaster reduction serve a secondary purpose. That is to hinder from society the critical perspective about the origins of the socioenvironmental processes that generates such dangers. By asking how effective this set of standardized strategies could be, given the complexity of socioenvironmental dynamics in different community contexts in which such strategies have been replicated, one concludes that their primary effect is to convert the collective fear of a possibility of occurrence of disaster into a means by which a new non-democratic social order based on docile collective behaviour is emerging.
KEYWORDS
Disaster planning; Man-made disasters; Simulation exercises; Alert; Disaster management
Introdução
Em que pese o esforço multilateral, aparentemente exitoso, para que o tema da redução de riscos de desastres e busca de resiliência ganhe crescente visibilidade pública e consiga aderência às agendas governamentais em diferentes escalas de gestão e poder, convém refletir acerca do quão auspiciosa essa amplificação tem sido para os grupos sociais focalizados. Majoritariamente, esses grupos são constituídos por aqueles cujos desprovimentos de cidadania são históricos – na ausência de oportunidades econômicas propícias à mobilidade social ascendente, na impossibilidade de acesso à moradia digna e em uma territorialidade segura, no desatendimento nos serviços de saneamento básico e de saúde –, mas que vão aprendendo a sobreviver e a se reproduzir socialmente às margens do Estado. É dizer, veem-se compelidos a criar e a reafirmar estratégias de apoio mútuo para driblar a precariedade material, produzindo e renovando o seu repertório cultural comum no qual os mecanismos de reciprocidade são testados continuamente pelos desafios de um cotidiano difícil11 Thomaz OR. O terremoto no Haiti, o mundo dos brancos e o lougawou. Novos Estudos CEBRAP. 2010; 86(1):23-50.. Os grupos socialmente marginalizados são sabedores de que a sua coesão interna tem valia para lidar com a sua invisibilidade ante o Estado22 Das V, Poole D. El Estado y sus márgenes: etnografias comparadas. Cuad. Antrop. Soc. 2008; 27(1):19-52., sendo esse o fundamento da sua resiliência perante o abandono social experimentado cotidianamente. O fato de que as suas vidas, reiteradamente tratadas como descartáveis, sejam apresentadas como aquelas que dão feições às prioridades da agenda institucional no tema dos desastres não é algo inusitado. Apelos similares transpassam as agendas de habitação, de saúde, de educação e de outros temas sociais e, ao final, se desenrolam deixando um saldo desolador. Seria diferente dessa vez? Tornar-se-iam sujeitos sociais visíveis de fato? E visíveis para cumprir a qual propósito?
Quando os holofotes institucionais são direcionados aos compromissos políticos multilaterais assumidos no papel, há a presunção de que as agendas sejam cumpridas por meio de correspondentes capacidades operativas públicas no plano internacional, nacional e local para lidar com as avultadas responsabilidades derivadas. Porém, pouco se problematiza em relação ao modo como as instituições interpretam tais compromissos e passam a atuar ante eles. Quando ganham concretude, por intermédio de tais ou quais providências práticas demonstráveis financeiramente, não raro os resultados obtidos vão na contramão do que se espera. No caso de políticas de redução de riscos de desastres, os quadros técnicos governamentais que dinamizam as instituições pelo delineamento de políticas públicas passam a se sentir autorizados a propagar uma visão enviesada e anacrônica do problema, a qual é reforçada pelos grupos científicos que os anteparam. Isso recrudesce a opressão social ao invés de amainá-la33 Valencio N, Valencio A. Vulnerability as social oppression: the traps of risk-prevention actions. In: Marchezini V, Wisner B, Londe LR, et al., organizadores. Reduction of vulnerability to disasters: from knowledge to action. São Carlos: RiMa; 2018, p. 111-137..
A partir de uma perspectiva sociológica e em diálogo com a antropologia, este artigo se baseia no panorama atual dos desastres no Brasil para refletir acerca de como as concepções de vida cotidiana e de ordem social têm sido perpassadas pela ideia de communitas nesse tipo de crise aguda. Busca-se, primeiramente, compreender quais nexos existem entre as concepções supramencionadas e que modulações entre elas refreiam ou potencializam o modo específico de sociabilidade que a communitas exprime. Em seguida, busca-se discutir a tríade de dispositivos que intenta refrear a communitas enquanto alega incrementá-la sob o nome de resiliência.
Sob a coordenação de órgãos de emergência, tem havido o espraiamento de práticas técnicas de preparação comunitária diante de perigos concretos e quiçá iminentes. Assentadas na tríade sirenes/alertas, sinalização de rotas de fuga e exercícios simulados de emergência, essas práticas vão simultaneamente acomodando performances oficiais autoritárias. Estas, por seu turno, coadunam-se com os interesses dos agentes dominantes na lógica territorial e procuram ajustar o comportamento comunitário a uma interação social na qual não cabem dissensos ou negociações de sentido ou mesmo questionamentos sobre as causas estruturais que produzem tais ameaças. Diante de tal tríade de dispositivos, a vida cotidiana das comunidades abordadas pelos órgãos de emergência entra em um novo estágio de apreensão e deterioração na medida em que se anuncia a possibilidade de desmontagem da trajetória social do lugar, arruinando-se os projetos de futuro ali assentados, do nível individual ao coletivo, e com potenciais implicações para a saúde pública daquela coletividade. Nesse processo, novos atores adentram à cena com discursos de proteção comunitária enquanto aspiram controlar as práticas sociais locais. Ao disputarem visibilidade tanto nas formas como manejam aspectos da crise quanto na indução de uso de seus repertórios pela coletividade local, fazendo-a exprimir as inquietações locais nos termos que os peritos possam compreender e considerar legítimo, tais atores tendem a violentar a communitas.
As reflexões que tecemos sobre essa problemática se pautam na identificação de regularidades que ultrapassam os casos de desastres recentes e mesmo daqueles que testemunhamos diretamente ao longo de duas décadas. Abrangem arenas de debates tecnocientíficos nacionais, declarações públicas de autoridades governamentais e peritas, além da cobertura midiática sobre medidas preparativas e de resposta aos desastres. É esse conjunto que indica que, sob a justificativa de proteção à vida humana – e em consonância com os apelos dos fóruns multilaterais –, vêm emergindo práticas institucionais que, exponenciando os vieses autoritários na relação Estado-sociedade, intentam normalizá-los em uma nova ordem social.
Desastres ou guerra?
Não apenas no Brasil, mas também aqui, os desastres têm sido insistentemente interpretados pelas lentes do paradigma da guerra. Tal paradigma evoca a precedência de atuação de instituições militares, vistas como as mais aptas para combaterem um inimigo comum – como assim são designados os eventos de variadas naturezas, de inundações aos atos terroristas –, conforme apontava Gilbert44 Gilbert C. Studying disaster: changes in the main conceptual tools. In: Quarantelli EL, organizador. What is a disaster? Perspectives on the question. London; New York: Routledge; 1998. p. 11-18.. Isso abrange todas as fases do problema, desde a contextualização que alude às práticas de prevenção até aquelas concernentes à fase de recuperação pós-crise aguda. Por detrás da atuação frequente de diferentes corporações militares nos desastres, há o espraiamento de suas concepções, tácitas ou explícitas, do que seja uma ordem social adequada ao mundo civil bem como um sistemático esforço de esvaziamento das concepções civis que tentam contrapô-las. Grupos científicos, organizações humanitárias e o voluntariado que se acomodam em nichos cooperativos com essa abordagem que solapa a racionalidade e a dinâmica da vida civil oferecem, em troca, o seu capital social para reforçá-la. Convergem, assim, na produção de um distanciamento social ante as comunidades com as quais interagirão e na postura perita de impermeabilidade cognitiva diante dos repertórios alternativos que estas mobilizam para narrar a sua experiência de sofrimento. Barreiras são estrategicamente erguidas nesse jogo de proximidade física e distanciamento social para que se torne paulatinamente indizível ou deformado todo aspecto do problema que fuja aos enquadramentos narrativos requeridos por esses que se autoproclamarão como sendo os novos intérpretes do lugar. A dor moral provocada nas comunidades que são vitimadas por tais mecanismos de subordinação e silenciamento é um aspecto do que designamos como sendo o ‘assédio do bem’55 Valencio N, Valencio A. O assédio em nome do bem: dos sofrimentos conectados à dor moral coletiva de vítimas de desastres. Lumina. 2018; 12(2):19-39. no contexto dos desastres.
Em solo tupiniquim, nada disso é novidade. Persiste a monológica, estabelecida pelos que ocupam posições de poder, que cerceia as tentativas de reconhecimento da existência de uma pluralidade de racionalidades civis sobre o tema dos desastres. Têm sido estéreis os esforços para suscitar discussões político-institucionais que problematizem a estrutura e a dinâmica do campo de forças66 Bourdieu P. O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004. nesse assunto dado o contexto no qual o servilismo intelectual impera. Desqualificando-se aqueles que focalizam em termos complexos aquilo que é tratado simplificadamente, cria-se no sistema nacional de proteção e defesa civil um ambiente de marginalização de um lado, e de alianças de outro, no qual essas últimas performam um diálogo apascentado em torno de um pensamento não dissonante. Nem a ciência, nem a política pública tampouco a cidadania avançam com esse pacto do atraso.
Os quadros técnicos das instituições cuja missão é lidar com emergências estão crescentemente fascinados por equipamentos modernos de monitoramento virtual de fragmentos da realidade, os quais são transformados em tais ou quais dados quantitativos ou imagens que são acompanhadas de longe por esses peritos. A sede por dados, que filtram a dinâmica socioambiental em reduzidas variáveis, faz-se acompanhar por um sentido gerencial no qual se crê em uma governança sobre os riscos conhecidos e, ainda, toma-os como sendo a totalidade dos riscos existentes77 Valencio N. Desastre como antítese da segurança humana: da crise multifacetada à resiliência radical. In: Tarin D, Machado R, organizadoras. Diálogos públicos sobre segurança humana. Brasília, DF: ILAES; Programa Morte Zero; 2019. p. 203-223.. Ocorre que estamos em plena Era da Incerteza88 Galbraith JK. A era da incerteza – história das ideias econômicas e suas consequências. São Paulo: Pioneira; 1983., na qual os fatores ameaçantes conhecidos são uma minúscula constelação no universo99 Douglas M, Wildavsky A. Risk and culture: an essay on the selection of technological and environmental dangers. Berkeley: University of California Press; 1983.. Esse universo se encontra em expansão devido às características intrínsecas de cada novo elemento ambiental e tecnológico que passa a compor a dinâmica socioespacial. Também, ainda, devido às associações inesperadas e problemáticas que tais elementos possam fazer uns com os outros, interferindo deleteriamente nas rotinas do meio social em que estão inseridos. Fragmentar o problema dos riscos em compartimentos de conhecimentos especializados, para que esses pareçam gerenciáveis e sujeitos ao manejo de distintos peritos que se supõem preparados para controlá-los, é um engodo tecnocêntrico que parcela da comunidade científica reforça. Entretanto, isso tem retardado as visões mais polifônicas na discussão da complexidade dos riscos contemporâneos e escamoteia o quanto de ignorância ainda há em relação aos elos ocultos e imprevistos entre variados fatores emergentes de perigo. As práticas educativas sobre resiliência são herdeiras desse mal, pois se pautam em visões simplificadoras sobre riscos específicos as quais podem induzir interpretações sobre o problema que, sob outra perspectiva ou escala, poderiam ser equivocadas ou inócuas. Por exemplo, as lições de como ser resiliente a inundações podem dirigir ao homem comum – e aos seus filhos, alcançados por palestras nas escolas – a cobrança de proteger a sua moradia das águas pluviais que nela adentram, nisso permitindo a procrastinação dos investimentos públicos em um sistema de drenagem urbana mais eficiente.
Tanto quanto são passíveis de iluminar, os holofotes institucionais sobre o tema de redução de riscos de desastres, concomitantemente, delineiam o seu avesso, as zonas de penumbra. Ali há uma dinâmica social própria, a qual ocorre longe do interesse geral. É representada instrumentalmente pelas instituições públicas como sendo o burburinho de massas disformes e alienadas, que necessitam do amparo técnico incondicional para se apropriarem das categorias adequadas para enquadrar o seu pensamento e ação diante os desafios de crescimento exponencial dos riscos. Tal representação é o que respalda discussões técnico-científicas sobre estratégias de resiliência voltadas para essas massas, cujos pressupostos conteudistas e dirigistas reforçam preconceitos de classe, desdenhando-se da capacidade delas em compreender o que se passa ao derredor, como se não sobrevivessem diante os percalços constantes da vida1010 Douglas M. Risk and blame: essays in cultural theory. London; York: Routledge; 1992.. Ali na penumbra é onde se desenrolam processos acelerados de desfiliação social e de morte das democracias1111 Levitsky S, Ziblatt D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar; 2018. em um cotidiano no qual as autoridades públicas aparecem/desaparecem sob o manto da violência material e simbólica. Os escombros são reapropriados, com outros códigos, por aqueles que controlam a direção e o sentido da exposição política amplificada sob as luzes potentes e apelam para a legitimidade de sua biopolítica1212 Foucault M. Vigiar e punir. 4. ed. Petrópolis: Vozes; 1980. como um lenitivo válido às dores sociais dos invisíveis. No contexto de crises sinérgicas, e debruçando-nos particularmente sobre o contexto social brasileiro contemporâneo, dois são os problemas cruciais nesse jogo de luzes-e-sombras.
O primeiro deles se refere ao fato de que o modo gradualmente mais incisivo como os desastres aparecem na agenda pública como tema para a ação imediata ambiguamente equivale à indisponibilidade pública para enfrentar as raízes do problema, que são as injustiças socioambientais derivadas da lógica perversa de acumulação. Ou, mais propriamente, as estruturas governativas públicas, nos diferentes níveis, aumentam a sua sintonia com o modus operandi de agentes empresariais cuja racionalidade predatória1313 Leroy JP. Territórios do Futuro: Educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de Janeiro: Lamparina; 2010. os faz enxergar o mundo como sendo uma cloaca1414 Leff E. A geopolítica da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável: economização do mundo, racionalidade ambiental e reapropriação da natureza. In: Martins RC, Valencio NFLS, organizadores. Uso e gestão dos recursos hídricos no Brasil: desafios teóricos e político-institucionais. São Carlos: RiMa; 2003. p. 1-20. na qual se depositam os resíduos de seus processos de exploração. Aqui imiscuem-se os episódios inúmeros de contaminação e enfermidade simultâneos do ambiente e de humanos. Episódios que incluem os próprios técnicos que operam no cenário com espírito público que transcende à sua condição segura de trabalho, também reduzidos à condição de refugo humano1515 Baumann Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2005.. Uma vez que as instituições públicas desdenhem da necessidade de alavancar o padrão civilizatório a estágios menos indignos à condição humana, os desastres tendem a proliferar e a agigantar a massa de refugados. O quadro de subordinados dos serviços de emergência é o primeiro a sentir as pressões sociais do aumento da demanda por socorro e sofre frustrações do atendimento abaixo dos seus anseios e das expectativas dos atendidos. Designá-los como heróis é, contudo, um leniente enganador e perigoso. Introjeta no repertório cultural desses profissionais uma falsa recompensa, a de que a sua prática arriscada depende da reprodução social de vítimas a serem salvas por seus nobres préstimos. Sua grandeza é construída na pressuposição da pequenez daquele com quem interage. Isso vai na contramão do paradigma da cidadania, o qual se pauta por cidadãos que lidam com os desafios da vida na interlocução contínua com o Estado ao invés de apenas contar com um anteparo ocasional, por vezes tardio, de super-homens. Quanto mais heróis sejam precisos, menos cidadania está no horizonte.
O segundo problema é o que se refere aos efeitos colaterais – ou seriam esperados? – das novas estratégias integradas de redução de riscos de desastres. Essas visam ao ajustamento progressivo dessa massa subcidadã a formas de interação social com agentes estatais e empresariais filtradas por dispositivos de comando e controle – a tríade constituída por sirenes, rotas de fuga e exercícios simulados – não passíveis a negociação e, portanto, que resultam em naturalizar paulatinamente uma ordem social antidemocrática, regida e justificada por uma lógica de guerra. De qual guerra se trata? Guerra de quem contra quem? É a pergunta que tem ficado sem resposta pelos que estão ditando tais políticas sob os holofotes. Não se tratando de um agente externo inimigo e alegando-se serem difusos e incontroláveis os inimigos que atacam desde dentro da circunscrição nacional, a tarefa relevante passa a ser a de reformatar a ordem social para que as comunidades focalizadas aceitem arcar passivamente com a socialização dos riscos aos quais estão expostas.
É nesse ponto que, por um lado, as desorientações desses que são tratados como subcidadãos se processam nessas relações corroídas com as instituições públicas. Isso acaba por contribuir para a construção de um ambiente eleitoral no qual um misto de escolhas politicamente reacionárias e economicamente ultraliberais parecem plausíveis, embora sendo uma síntese tóxica para o que resta de esperança de cidadania. Essa escolha molda uma filosofia de gestão pública que, em diferentes níveis de governo, aponta para o recrudescimento dos conflitos sociais em todo o País, uma vez que as autoridades públicas parecem não se importar em colidir circunstancialmente com a ordem do Estado de Direito. Dessa colisão, surgem novos desfiliados sociais, expostos a uma gama maior de riscos. Portanto, ampliam-se as vítimas preferencias dos desastres e de outras crises, como a do emprego e a da segurança pública, sobre as quais o Estado se debruçará para ofertar os préstimos dos super-heróis de ocasião, que podem agir ao largo da lei. No contexto no qual há ataques difusos e que ninguém parece invulnerável, os atributos expressos de cidadania são descartados e substituídos pelos atributos opacos do ‘homem de bem’, aquele que merece a atenção e proteção do Estado. A mescla entre razões governamentais e interesses empresariais deixa de ser discreta, aninhada nos bastidores do poder, e se assume como razão única. Revela-se, por assim dizer, o monstro desnudo, no qual o respaldo governamental a territorialidades empresariais problemáticas é explícito, despudor que revela o entrechoque das negligências políticas, para combater aqueles que atacam comunidades desprotegidas, com a performance perita, que visa ao cuidado comunitário quando as relações incômodas e mal equacionadas de vizinhança alcançam o seu ápice. Os desafios na saúde pública são também parte constitutiva desse entrechoque, que põe a perder, em um curto espaço de tempo, as eventuais garantias pregressas de bem-estar coletivo que essas comunidades supunham ter.
Não bastassem tais nuances, que se desenrolam em um jogo entre múltiplos atores aliançados ou em tensão – atores políticos, técnicos, empresariais, científicos e comunitários – disputando sentidos modulados dos desastres que os entrelaçam, vem ganhando precedência o discurso multilateral sobre resiliência ante os riscos iminentes, o que respalda um ambiente de pactuação social reacionária. Um medo coletivo é alimentado para sobrepujar as discussões sobre injustiças socioambientais e legitimar um novo pacto em torno, literalmente, do ‘salve-se quem puder’.
A tríade sirenes/rotas de fuga/exercícios simulados, que se replica por todo o país, é um apelo didático para ensinar ao homem comum que lhe convém prescindir de seus bens e rotinas – em sua casa, em seu local de trabalho bem como com o bem-estar dos membros de rede primária – para se pôr a correr em busca de salvar a própria pele. Apelo que, ao mesmo tempo, valoriza o enfoque individualista, desconsiderando que a teia de vínculos pessoais possa ser mais importante do que se colocar em marcha na direção de um terreno seguro, e remete ao condicionamento social do sujeito para que esse aceite com naturalidade a possibilidade de destruição do lugar onde organiza e dá sentido à sua vida cotidiana. Familiarizamno com o contexto de guerra, mas sem indicar indisposição com aquele que produz a ação avassaladora sobre o lugar.
Longe de supor que essa tríade tenha derivado das recentes catástrofes relacionadas com o colapso de barragens de rejeitos em Minas Gerais, ela vem sendo empregada há anos no contexto dos desastres ditos ‘naturais’, em que o inimigo oculto da especulação imobiliária, que é acolhido pelas autoridades públicas, joga os despossuídos para as periferias desassistidas. Assiste-se ali ao espetáculo da implantação das sirenes nas áreas sujeitas aos escorregamentos de massa e aos alagamentos. São frequentes os usos desses dispositivos em lugares sujeitos a acidentes industriais, incluindo nucleares, como em Angra dos Reis. Exercícios simulados de ataques terroristas foram replicados durante os preparativos da Copa do Mundo no País a fim de atestar, à comunidade internacional, que as autoridades locais saberiam lidar com esse tipo de risco, caso ele por cá se manifestasse. Atualmente, no contexto de centenas de barragens que, espalhadas pelo Brasil, apresentam diferentes gradações de risco de colapso, eis que surge mais uma justificativa para que essa tríade de dispositivos seja acionada, fundamentando a amplificação da performance de guerra para adestrar a população civil. A nova-velha coalizão entre a ação técnica providencial e as necessidades sociais de sobrevivência imediata reaparece com um tom farsesco dessa guerra inglória, que ensina que a vida cotidiana do homem comum pode ser desmantelada, de um instante para o outro, por ‘boas razões’.
Da tríade conceitual socioantropológica à tríade das tecnopolíticas enganosas
O enfoque socioantropológico para a tríade vida cotidiana/ordem social/communitas não é algo trivial para a problemática aqui delineada. No que tange à perspectiva sociológica sobre a vida cotidiana, essa deriva do esgotamento das grandes certezas, localizando em outra escala de tempo e espaço os processos e forças que revitalizam o homem comum no seu esforço de se reproduzir, mas também de se reinventar a cada dia. Os seus repertórios de conhecimento, caracterizados como senso comum, são postos continuamente à prova como método socialmente compartilhado de produção de significados sobre o mundo. Isso dá inteligibilidade à interação entre os sujeitos que participam atentamente dessas trocas e indica que tais repertórios servem como conectores sociais e que são dinâmicos, potencialmente instáveis e passíveis de descontinuidades1616 Martins JS. O senso comum e a vida cotidiana. Tempo Soc. 1998; 10(1):1-8.. Na vida cotidiana, as práticas corriqueiras dos sujeitos estabelecem associações entre os seus saberes e práticas, e testam-se continuamente os limites de suas interações sociais.
Mais recentemente, a circunscrição ambiental passou a ser considerada como algo relevante nas ponderações sociológicas sobre a produção social vida cotidiana1414 Leff E. A geopolítica da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável: economização do mundo, racionalidade ambiental e reapropriação da natureza. In: Martins RC, Valencio NFLS, organizadores. Uso e gestão dos recursos hídricos no Brasil: desafios teóricos e político-institucionais. São Carlos: RiMa; 2003. p. 1-20.; e, com o impulso de debates entre a geografia1717 Thornes JE. Cultural climatology and the representation of sky, atmosphere, weather and climate in selected art Works of Constable, Monet and Eliasson. Geoforum. 2008; 39(1):570-580.,1818 Tuan, YF. Landscapes of Fear. Oxford: Blackwell; 1979. e a antropologia1919 Ingold T. Footprints through the weather-world: walking, breathing, knowing. J. of the Royal Anthropol. Instit. 2010; 16(1):121-139.,2020 Ingold T. Being Alive: essays on Movement, Knowledge and Description. London; New York: Routledge; 2011., nexos culturais, comportamentais e ambientais têm sido mais frequentemente analisados. Por exemplo, há estudos que abordam a relação entre a atmosfera interna do sujeito e as condições atmosféricas do ambiente de inserção, debruçados sobre a relativa dissolução de certas fronteiras entre a materialidade e a imaterialidade, entre a experiência e a imaginação, entre o interior e o exterior quando condições ambientais passam a influir nas condições internas do humor, nas disposições de comportamento social e nas inspirações artísticas de indivíduos. Tamanha fluidez da vida cotidiana parece colidir com a ideia de ordem social. Porém, também nesse aspecto, há ancoragens com distintos graus de solidez e provisoriedade.
Dentre as variadas concepções de ordem social, para fins desta análise, destacamos a que acentua, na sociedade moderna, a presença das instituições para parametrizar as interações entre seus membros2121 Douglas M. Como as instituições pensam. São Paulo: EDUSP; 1998.. Isto é, adotamos aqui a concepção de que as instituições atuariam como um caminho relativamente estável para amoldar o repertório de classificações sobre os fenômenos sociais, os pensamentos e juízos derivados dessas classificações, além de influir sobre o teor dos rituais das trocas, desde os de cunho econômico até os de caráter simbólico. Tal concepção parece indicar uma perda de autonomia do sujeito para traçar os rumos da sua vida cotidiana, sobretudo quando lhe ocorre tentar escapar de dadas coerções ou ultrapassá-las. Como é também cotidianamente que as necessidades morais se apresentam exigindo o reforçamento de laços de confiança e de solidariedade entre sujeitos, esses se reatam com o pensamento e as orientações suprapessoais que as instituições representam. Isto estabilizaria as suas interações sociais e os seus modos de classificação do mundo para assentar as rotinas da vida cotidiana, dando compreensibilidade aos comportamentos sociais vistos como adequados ou desviantes. Dota-se, assim, de certa previsibilidade o devir imediato do homem comum – e este, por seu turno, supõe que os desafios da vida sejam suportáveis dentro de uma cadeia de eventos rotineiros. Contudo, as forças sociais emergentes que os sujeitos produzem no varejo, nas margens do controle social ou como expressão criativa de resistência, refundam as fronteiras da previsibilidade e o homem comum também passa a crer em certa autonomia no seu viver de cada dia. Desde aí, forja progressivamente novas representações que, apropriadas coletivamente, passam a atuar como pressões de autocorreção/atualização institucional, senão mesmo na produção de novas instituições, cuja missão é a de recalibrar a ordem social dentro de um novo espaço de liberdades.
No contexto brasileiro contemporâneo, o Ministério Público e a Defensoria Pública são alguns desses novos espaços institucionais de quem se espera atuação para garantir ao homem comum uma maior eficácia no uso do escudo legal para preservar as suas liberdades e demais direitos que assentam e alargam a vida cotidiana. Isso inclui a prescrição de mecanismos compensatórios quando negligências e omissões de outras instituições desorganizam e desestruturam as rotinas, meios de vida e formas de sociabilidade. Enquanto uma maior maleabilidade institucional é esperada para fazer caber e convergir uma multiplicidade de anseios, vozes e práticas sociais e representar esse homem comum polifacetado, tem havido uma lentidão deliberada como os modos instituídos de classificação do mundo são atualizados, senão mesmo há os retrocessos nessas classificações, fantasmas que arrastam correntes nas instituições públicas e cujo som ecoa nas instituições privadas. E que pairam na vida cotidiana por meio de gramáticas não apenas cerceadoras da criatividade e da imaginação humana, mas também mediante rótulos estigmatizantes nos quais se apoiam as intolerâncias miúdas e graúdas, do indivíduo ao coletivo, o que exige sobre-esforços de resistência ao status quo.
A comunidade pode ser identificada com uma pequena malha na qual os vizinhos têm rotinas semelhantes e produzem suas regras de interação em um território compartilhado. Na vida diária, o fluxo dos membros de uma comunidade é entrelaçado com sistemas espaciais e de objetos maiores que influenciam as atividades locais (por exemplo, transporte, energia, infraestrutura de comunicação). Portanto, há interdependência entre a dinâmica local e uma escala mais ampla de atores, coisas, valores e regras que, direta ou indiretamente, participam da vida social local. Nessa escala maior da sociedade, as instituições governamentais, econômicas, educacionais, religiosas e outras também organizam regras para um funcionamento mais global e impessoal subjacente ao trabalho em rede das comunidades e às relações interpessoais. Em determinado momento, a dinâmica da sociedade tem potencial para dissolver as comunidades em um processo de fragmentação da vida humana de seus membros devido ao excesso de fluidez nas relações sociais que estes prezam, cada vez mais efêmeras e instáveis. O vínculo entre indivíduo e o lugar pode se tornar frágil e criar desafios para a vida comunitária com base em valores fundamentais, como a solidariedade e o interesse mútuo.
Contudo, quando sobrevém um acontecimento trágico, emerge a communitas2222 Turner E. Communitas: The anthropology of collective joy. New York: Palgrave MacMillan; 2012., como uma experiência coletiva local e não institucionalizada de liminaridade que mobiliza as melhores características dos seus participantes com o intuito de compartilhamento e complementaridade dos meios materiais, espirituais e psicossociais necessários à confirmação coletiva dos sentidos mais significativos que lançam uma compreensão diferenciada sobre o passado e o presente e apontam para alguma esperança no futuro imediato e aquele de longo alcance. A communitas é, assim, uma predisposição coletiva à autoproteção e autorregulação em situações críticas e a qual tenta filtrar, por critérios culturais próprios e pelo habitus, as formas de recepcionar manifestações ampliadas de adesão e solidariedade quando em face de dada situação de sofrimento social experimentada localmente. Embora na communitas operem classificações legadas pelas instituições que parametrizam o comportamento social corrente daquele coletivo e a sua forma de compreensão de um determinado problema localmente vivenciado, também é essa uma experiência na qual as singularidades como cada qual exprime e ajusta o seu modo de privação ou de acolhimento dialogam com as estratégias coletivas de reinvenção da vida cotidiana.
Nos desastres, definidos como acontecimentos sociais trágicos e estressantes relacionados com eventos físicos de diferentes naturezas, que mobilizam a experiência humana2323 Oliveira SS. Experiência e produção de saberes, possibilidades de superação das vulnerabilidades: reflexões acerca do desastre da região serrana do Rio de Janeiro. In: Siqueira A, Valencio N, Siena M, et al., organizadores. Riscos de desastres relacionados à água: aplicabilidade de bases conceituais das ciências humanas e sociais para a análise de casos concretos. São Carlos: RiMa Ed; 2015. p. 291-309.,2424 Quarantelli E. What is a disaster? Perspectives on the question. London; New York: Routledge; 1998., a communitas é imediatamente acionada entre os que estão diretamente implicados na condição de afetados, sendo a primeira e essencial frente de resposta local baseada em princípios tácitos de coesão social, estratégias e habilidades oriundas do senso comum. Porém, quando a mídia repercute e as instituições públicas reportam a ocorrência, essa passa a ser interpretada preponderantemente no sistema formal de classificações. Assim, a forma de sociabilidade convencional passa a ser reiteradamente desrespeitada desde então.
Enquanto o contexto trágico é descrito tecnicamente como ‘cenário’ ou ‘teatro de operações’, essas descrições conferem legitimidade ao desmantelamento da communitas. Impõem-se outras lógicas de interação sociais que respaldam um massacre simbólico das vítimas, a saber: em prol da visibilidade das práticas dos heróis institucionalizados, os quais se creem como únicos depositários dos conhecimentos e técnicas profissionais vistos como apropriados para as ações de resposta (resgate e reabilitação) e cujas instituições vão disputar ferozmente os direitos de acesso, precedência e coordenação das ações no terreno, tendo em consideração o quanto isso significa para a sua validação social; em prol do voluntariado, organizado ou espontâneo, que revitimiza os atendidos para, pelos olhos desses, confirmar a sua bondade vaidosa enquanto os violentam simbolicamente e controlam o espaço das relações privadas e comunitárias, descompensando-as; em prol de membros da comunidade científica que se lançam rapidamente no terreno no afã de autopromoção e incremento do capital social de seu grupo mais do que empenhados em compreender sistematicamente os processos que ocorrem à sua frente e em trazer luz aos novos e relevantes conhecimentos no assunto.
Nesse processo invasivo, os olhos do público frequentemente são direcionados para o local mais essencial da privacidade, a casa, e se perscruta sobre as disfunções do lar derivadas da danificação ou destruição de seus elementos materiais. A morada condenada, ademais, contém muitos outros lugares em que os seus membros exercitam o seu viver – seja fluindo nos seus cômodos, no uso de objetos e nas funções distintas e integradas do espaço privado – e, ao mesmo tempo, também está contida em locais maiores2020 Ingold T. Being Alive: essays on Movement, Knowledge and Description. London; New York: Routledge; 2011., inserção que desaparece no lugar desmantelado por inimigos ocultos. Tendo como substrato as relações privadas, que tratam a moradia como uma fortaleza que os defende das paisagens do medo1818 Tuan, YF. Landscapes of Fear. Oxford: Blackwell; 1979., os escombros da moradia deixam os seus membros expostos a essa tripla curiosidade, de técnicos, voluntários e cientistas, que remexem em objetos e lembranças sem os cuidados simbólicos devidos. O pior aspecto desse massacre na autoestima coletiva é que os desastres catastróficos tendem a aumentar devido à recorrência dessas crises e sua conexão com outras crises sociais que se avolumam. A configuração supramencionada é preocupante ante um contexto nacional no qual não são apresentadas evidências de que haja esforços públicos consistentes, nas variadas escalas da ordem social, indicando que os desastres estejam em processos de contenção. Ao contrário, os indicativos quantitativos vão no sentido da persistência e do recrudescimento desses acontecimentos trágicos que perturbarão a vida cotidiana, mobilizarão e, em seguida, desmantelarão a communitas.
No período de 2003 a 2017, a média anual de decretação de emergência pelo conjunto de municípios brasileiros foi de 2.062,5 decretos/ ano. Sinaliza, ainda, uma curva ascendente nos últimos anos. Isso indica a incapacidade sistêmica das administrações municipais para lidar preventiva ou preparativamente com riscos e com a debilidade de ação antecipatória a qual também caracteriza os respectivos governos estaduais e o governo federal em diferentes gestões e orientações ideológicas. Tais percentuais indicam simultaneamente a fragilidade – ou o vício – da administração pública em relação ao homem comum, falhando esta continuamente em proteger as comunidades em que este se insere, particularmente as mais desassistidas, permitindo que nelas incidam o sentimento de que se encontram reiteradamente nas margens da sociedade. A crise financeira na qual mergulha a administração pública e que cresce em espiral não é a razão única dessa desassistência, mas as escolhas que fazem os gestores públicos perante os recursos de que dispõem. Catástrofes deixam de vitimar apenas aqueles a quem os setores mais abastados acostumaram-se a identificar como sendo imprevidentes e ignorantes. Passam a englobar também esses últimos. O sofrimento social multidimensional que disso decorre se esparge. Se entretece em problemas de saúde física e mental, convertendo-os em uma dor moral coletiva que corrói, de modo difuso, aquilo que resta na relação de confiança com os governantes.
É nesse contexto que a tríade sirenes/rotas de evacuação/exercícios simulados ganha força como uma autoilusão que, de um lado, impossibilita a reversão dessa dinâmica de crises e, por outro, insinua-se como conjunto de dispositivos que cria uma reinterpretação alienante da realidade social, sobrepondo-se às lutas sociais locais por territorialidades seguras, nas quais os fatores causadores dos riscos precisariam ser postos em xeque. Essa reversão do foco do problema é o aspecto crucial por meio do qual tal tríade contextualizada para a guerra mereceria ser objeto de debate profundo das ciências sociais, as quais dispõem da munição teórica apropriada para interpretar os constrangimentos que operam na adoção institucional desta. Nos contextos reais nos quais operam, as sirenes estabelecem o momento, a ação e o ritmo dos corpos ao derredor, dissociando uns dos outros nas suas distintas capacidades de mobilidade. As rotas de fuga pressupõem que os fluxos no território terão a viabilidade pretendida de acesso e que cobrem todas as possibilidades de percursos em que os indivíduos, em seus atributos rotineiros ou excepcionais, estarão inseridos e de um modo tal coadunados enxergariam as mesmas possibilidades de escape e quereriam deixar para trás uma vida conectada com pessoas e coisas. Os exercícios simulados, por fim, traçados como experiência de simplificação da vida social, na qual as instituições públicas e privadas constroem e coordenam o roteiro e ajustam o comportamento dos personagens, seriam questionados como experiência dissociativa da vida concreta do lugar.
Diferentemente do que ocorre em outros países, onde as instituições de urgência e emergência são surpreendidas com alertas aleatórios para demonstrarem publicamente uma capacidade de atuação mais próxima da realidade, no Brasil, o foco tem estado em atuações que permitam performar um sucesso da operação diante as crises presumíveis. Isso condiciona as comunidades, cujo lugar é tecnicamente retraduzido em Zonas de Autossalvamento (ZAS), a se submeterem em ver o seu cotidiano reduzido a um sonido capaz de desfazer o sentido das suas vidas. Não bastante, figuras de autoridade permitem que, nas catástrofes reais ou simuladas, agentes empresariais passem a adotar os coletes laranjas de defesa civil, fazendo-se passar por agentes públicos a fim de se apropriarem do capital social do Estado para criar relações artificiais de confiança com os atendidos e, assim, exercerem com maior eficácia o seu controle sobre a vida social local. Essa, talvez, seja a derradeira mostra de perversão do uso da coisa pública para o estabelecimento de uma ordem social totalmente orientada para os propósitos privados.
Considerações finais
Embora o desiderato de redução de riscos de desastres possa parecer algo alentador, em termos de orientação de políticas públicas e em relação às convencionais ações de resposta, cremos que, no Brasil, ambas as coisas caminhem reiteradamente descompassadas com as demandas sociais. De um lado, as concepções dominantes sobre o tema de riscos, que fundamentam as narrativas multilaterais bem como as práticas institucionais governamentais e empresariais às quais elas aderem, teimam em aludir aos elementos estanques e dinâmicas restritas a poucos componentes de riscos a fim de favorecer a visualização de pretensões peritas de controle do cenário. Os atores à frente dessas narrativas e na condução de políticas públicas com tais concepções mantêm-se refratários à possibilidade de incorporação de quaisquer perspectivas de complexidade. Com isso, bloqueiam um leque de discussões sobre incertezas passíveis de desmantelar o seu campo de interesses e de atuação. De outro lado, a rejeição pública ao reconhecimento dos mecanismos basilares de produção social dos riscos – tratando de como estes são tecidos e se fundem em inusitadas combinações, como subproduto das lógicas da acumulação privadas, dos prejuízos socializados, do aparato estatal sequestrado por interesses corporativos e das injustiças sociais perenizadas – é o que garante a recorrência da manifestação desses riscos como desastres. Uma vez que tais acontecimento trágicos se concretizem, a resposta emergencial, embora imprescindível, atestará inexoravelmente o fracasso das instituições em relação à sua capacidade antecipatória. Um misto de perplexidade, incômodo e náusea transpassa os sentimentos e representações sociais dos que ouvem as autoridades públicas repisando convicções na eficácia de suas respectivas culturas de segurança, propalando certezas de controle em um mundo que se esfacela à sua frente.
Se fossem apenas fracassos contínuos aquilo que tais políticas estivessem experimentando, logo essas se esgotariam desvitalizadas pelos contínuos insucessos colhidos; seus atores quedariam esmorecidos; suas narrativas seriam amplamente desacreditadas. Eis que os fracassos formam um novo compósito, revitalizado e mais aterrorizador. Trata-se do modo como o alarde sobre ocorrências trágicas havidas e cenários ainda mais catastróficos vem sendo apropriado pelo establishment para pautar, em uma abordagem transescalar, uma agenda de preparação comunitária perante riscos prováveis ou iminentes. Intenta-se a conversão do medo coletivo em obediência servil. Os argumentos amplificados em torno de um perigo iminente à vida de uma dada coletividade tomam precedência no repertório técnico para garantir uma posição de poder aos agentes que representam os órgãos de emergência. Tal posição lhes confere possibilidade de reorientar a vida cotidiana da comunidade abordada e filtrar as preocupações locais para reduzi-las aos termos que caibam na biopolítica que os gestores têm em mente. É nesse ponto que a ruína dos sistemas de sentidos das vidas vividas no lugar é vista, pelo gestor público, como um mal menor em virtude daquilo que é ofertado como ação emergencial em prol dos atendidos. Tal inversão constante dos sinais tem reverberado no contexto nacional.
Perdas sociais comunitárias, expressas objetiva e intersubjetivamente por seus membros, são ressignificadas como sucessos indubitáveis pelo corpo perito que atua na resposta aos desastres. Enquanto os membros da comunidade significam como indignidade serem acordados por sirenes no meio da noite para deslocarem-se intempestivamente para abrigos provisórios mal preparados, devido aos sinais de perigo iminente de colapso de barragem ao derredor, os técnicos significam como êxito a logística de transporte adotada. Enquanto moradores de dezenas de bairros são convocados ao exercício de subirem ladeiras em uma tarde quente de final de semana, após sirenes disparadas em alusão ao rompimento simultâneo de várias barragens ao derredor, nos pontos de encontro encontram-se os funcionários da empresa que, portando coletes laranjas de defesa civil, perguntam-lhes se as sirenes soaram alto o suficiente. Enquanto processos de indenização se arrastam por anos a fio em tribunais, as empresas responsáveis pelos desastres relacionados com tais demandas legais fazem peças publicitárias sobre a sua responsabilidade socioambiental. Tudo isso é parte constitutiva de uma lastimável depreciação do valor da vida cotidiana, descontinuada abruptamente na imposição de repertórios demarcados por outras racionalidades que prescindem do exercício de alteridade.
Manter os ouvidos atentos para as sirenes, adestrando o corpo para um estado permanente de alerta, preocupar-se em ter a mobilidade requerida para escapar pelas rotas de fuga sinalizadas, em uma marcha superior ao que possa vir a ser alcançado pelo ritmo do fator de perigo e em terrenos difíceis, reduzindo os seus pertences de levar consigo a uns parcos e leves objetos discriminados pelos gestores e dispor-se a performar em situações encenadas de desastres, cujo enredo simplista é de domínio de agentes externos que lhes comandam, eis algumas das dimensões representacionais, perceptivas, fisiológicas e cognitivas encadeadas para amalgamar o corpo obediente. As implicações dessas violências na saúde física e mental não devem ser desconsideradas e mereceriam ser objeto de estudos detalhados da saúde pública.
- Suporte fnanceiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Jul 2021 - Data do Fascículo
Jul 2020
Histórico
- Recebido
03 Out 2019 - Aceito
12 Dez 2019