Rompimento da barragem em Brumadinho: um relato de experiência sobre os debates no processo de desastres

Giulia Balbi Rodrigues da Costa Geórgia Rolemberg Lau Camilla Ferreira da Silva Maria Clara Barroso Mantel Maria Cristina Mitsuko Peres Tatiane Nunes da Silva Santos Luna Priscila Neves da Silva Sobre os autores

RESUMO

O presente artigo teve como objetivo aprofundar discussões do desastre ocorrido em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019. A partir da relatoria do seminário ‘Desastre da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações’, seis alunas do Curso de Especialização em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma pós-doutoranda da Fiocruz de Minas Gerais realizaram transcrições de falas feitas durante o evento na tentativa de reportar essa vivência mediante lugares de fala distintos. Experiências artísticas retratadas ao longo do texto estabelecem um vínculo com a subjetividade dos atingidos e seu entorno. Portanto, o artigo pretendeu seguir esse caminho.

PALAVRAS-CHAVE
Desastre; Brumadinho; Mineração; Sistema Único de Saúde

Introdução

No dia 25 de janeiro de 2019, rompeu-se a barragem BI, da mina Córrego do Feijão, de responsabilidade da Vale S.A. O rompimento levou a óbito, de imediato, 272 pessoas, entre as quais, 22 ainda não localizadas, além de expor ambiente e população às toxicidades presentes nos rejeitos de mineração.

A lama se estendeu por nove setores censitários do município, o que representa mais de 10 % da população brumadinhense, incluindo comunidades tradicionais e agricultores. Ainda, impactou a biodiversidade, alterando ciclo de vetores e hospedeiros11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-7. Disponível em: https://www.scielosp. org/article/csp/2019.v35n5/e00052519/.
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; inabilitou o Rio Paraopeba para consumo, irrigação, pesca, banho e lazer22 Silva Noal D, Rabelo IVM, Chachamovich E. O impacto na saúde mental dos afetados após o rompimento da barragem da Vale. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-3. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-311X2019000600503.
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; comprometeu de modo significativo a organização econômico-financeira do município, entre inumeráveis impactos que se sobrepõem e se incidem sobre a saúde de toda a população.

Esse é considerado o maior acidente de trabalho da história do País, tendo em vista que, ao fatídico horário de 12h28, os trabalhadores estavam no refeitório quando foram surpreendidos. O fato de o refeitório e o prédio administrativo da empresa estarem implantados na rota da avalanche de lama é um indício de falha na política de segurança do trabalho e monitoramento da empresa.

Entretanto, as falhas técnicas apontam para questões estruturais, como a adoção de um modelo de desenvolvimento extrativista, dependente do setor mineral e de um Estado enfraquecido, facilitador dos interesses corporativos, que flexibiliza as leis ambientais e regulatórias e que permite práticas como automonitoramento das empresas33 Milanez B, Magno L, Pinto RG Da política fraca à política privada: o papel do setor mineral nas mudanças da política ambiental em Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2019 [acesso em 2020 jan 22]; 35(5):e00051219. Disponível em: http://dx.doi. org/10.1590/0102-311x00051219.
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Passados mais de seis meses do ocorrido, a lama de rejeitos secou e tornou-se poeira, misturada à bruma que dá nome a cidade. A população segue em sofrimento crônico, agravado pelo sentimento de injustiça e sem número de incertezas. O setor público de saúde, ainda que tenha oferecido uma resposta rápida e eficiente, em médio e longo prazo, terá de lidar com demandas que ultrapassam suas condições normais de funcionamento e financiamento.

Nesse contexto, o seminário ‘Desastre da Vale SA. em Brumadinho: seis meses de impactos e ações’, promovido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) nos dias 15 e 16 de agosto do ano de 2019, reuniu representantes de instituições do setor público em seus três níveis, de ensino e pesquisa, artistas e comunidade atingida, com o objetivo de oferecer um espaço para troca de experiências e informações, apontando para necessidade de promover políticas públicas que defendam os direitos da sociedade civil e do meio ambiente.

Metodologia

Esta produção é um relato de experiência de um grupo de estudantes do Curso de Especialização em Saúde Pública (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e de uma pós-doutoranda em Saúde Coletiva (Instituto René Rachou – Fiocruz Minas), que participaram como relatoras do seminário ‘Desastre da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impactos e ações’. No decurso do evento, as estudantes trabalharam na síntese das discussões apresentadas nas sete mesas que o compuseram, buscando condensar a multiplicidade de temáticas que emergiram.

As mesas temáticas foram: Impactos e ações do SUS após o período mais imediato ao desastre; Desastres em barragens de mineração – riscos atuais e futuros; Ser atingido por barragens de mineração – situação atual e perspectivas futuras; As consequências sociais e econômicas dos desastres em barragens de mineração nos municípios atingidos; Modelo de desenvolvimento, desastres em barragens de mineração e impactos sobre a saúde; Riscos de desastres em barragens de mineração e sistemas de alerta e alarme – situação atual e propostas futuras; Desastres em barragens de mineração e violação de direitos.

Diante da abrangência dos debates apresentados e da impossibilidade de contemplar a todos para a produção desta publicação, optou-se pela estratégia de, a partir da análise do conteúdo, eleger três eixos centrais como itinerário para a escrita. Uma vez estabelecido o percurso desta produção, selecionaram-se as contribuições de pesquisadores e atingidos, presentes nas mesas citadas acima, que dialogassem com os eixos distribuídos nas seções.

Na primeira seção, discutem-se algumas das questões que produzem o risco estrutural de desastres, em tensão com o debate sobre os direitos humanos; na segunda, apresentam-se algumas das ações do sistema público de saúde, que precisou ser manejado a fim de responder às demandas emergentes, bem como estudos que versam sobre a toxicidade da água do Rio Paraopeba; na última seção, expõe-se uma argumentação sobre a importância de ver e ouvir a comunidade atingida, incluindo a poesia de um artista local.

As secções encontram-se demarcadas por fotografias de uma das autoras deste texto, que pode ausentar-se da tarefa de relatoria do evento, ocorrido na câmara municipal de Brumadinho, para uma visita à área rural do município. Considerou-se importante a apresentação desses registros ao longo do texto por se entender que as imagens igualmente comunicam e representam, neste caso, um importante aspecto da experiência vivida pelas estudantes, que acessavam o campo pela primeira vez.

O contato com o campo, o encontro com os personagens que estiveram presentes no seminário e o trabalho de relatoria das discussões mobilizaram as estudantes que, contagiadas pela atmosfera, utilizaram como recurso para apresentação dos resultados uma composição de trechos das falas de alguns dos debatedores presentes no encontro. A opção por esse recurso diz da intenção de fazer ouvir a multiplicidade de vozes que estiveram presentes na ocasião do seminário, objetivando trazer para a comunidade as experiências vividas durante o evento.

Essas falas foram transcritas a partir de vídeos feitos pela produção do evento, disponíveis publicamente no site YouTube. É possível encontrá-lo através do título do seminário ‘Desastre da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019’.

Figura 1
Primeiro capítulo

Dos riscos estruturais

O modelo de desenvolvimento capitalista, adotado pós-revolução industrial, aliado ao processo de globalização que coloca os países periféricos em situação de dependência econômica ante os países econômica e politicamente fortalecidos, favorece sua subordinação às empresas multinacionais. Tal fragilidade impede que os países periféricos consigam se posicionar e fazer frente a esse processo exploratório, flexibilizando as leis ambientais e trabalhistas que regulam a atuação das empresas e facilitando o interesse privado. Assim, a busca pelo progresso e pelo desenvolvimento, aliada à busca pelo crescimento econômico, fez com que muitos países admitissem a exploração predatória de seus recursos naturais e humanos44 Grisul U. PACHA: Defendendo a Terra: Extrativismo, conflitos e alternativas na América Latina e no Caribe [internet]. 2018. [acesso em 2019 jun 25]. Disponível em: http://www.grisulunirio.com/wp-content/ uploads/2018/ll/Cartilha_Final_Internet-Port.pdf.
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Sobre o enfraquecimento do poder do Estado, o geógrafo Milton Santos assinala:

Na medida em que aquele instituto encarregado de cuidar do geral é enfraquecido, estamos instalando, no território, uma fragmentação; estamos instalando, no território, um abandono da noção de solidariedade; estamos, pelo menos em médio prazo, produzindo as pré-condições da desordem55 Santos M. Da Política dos Estados À Política Das Empresas. Cad. Esc. Legisl. 1997; 3(6):l-9.(6).

Essa forma de exploração também desterritorializa parte da população quando não a coloca em situação de vulnerabilidade socioambiental, ampliando o risco à saúde devido ao contato com contaminantes químicos, físicos e biológicos. Cabe ressaltar que o risco gerado não é distribuído de forma equitativa; e as populações vulneráveis são as que mais sofrem as consequências desse modelo de desenvolvimento. Assim, questões como democracia, justiça social e ambiental, qualidade de vida e direitos humanos ficam subjugadas, aprofundando as desigualdades sociais, a degradação ambiental e configurando um cenário de risco estrutural de desastre, como apontou durante o Seminário a antropóloga Andréa Zhouri (Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – Gesta/Universidade Federal de Minas Gerasi – UFMG), mostrado no trecho abaixo:

Na perspectiva da Ecologia Política que orienta a nossa investigação, os desastres não são fenômenos naturais, são processos construídos socialmente... O desastre é processo! Gostaria de repetir aqui em bom tom: o desastre não é o rompimento da barragem, as pessoas confundem desastre com rompimento e chamam inclusive de ‘evento’, aquilo é um evento crítico dentro de um processo de desastre, que começa antes daquilo e tem continuidade66 Zhouri A. Seminário Desastres da Vale SA. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações 2019, parte 4. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sl5Cq7egrhM.
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O processo de apropriação do território pelo desenvolvimento, seguido de desterritorialização, subtrai, também das populações tradicionais e locais, a capacidade de utilizarem seus saberes e práticas como ferramentas para a busca da sobrevivência, levando-as assim a buscar outras formas de vida que as distancia de suas culturas de origem. Em Brumadinho, “estima-se que há 147 e 424 comunidades (indígenas, quilombolas, silvicultores e pescadores artesanais) atingidas”11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-7. Disponível em: https://www.scielosp. org/article/csp/2019.v35n5/e00052519/.
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(2), além dos agricultores familiares. Nessa situação, há um sentimento de perda de identidade e pertencimento que perpassa essas populações, como expressou uma atingida, residente de Brumadinho, durante o Seminário:

Me perguntaram [sic], qual a proposta de vocês para a Vale, agricultores? Agricultor não sabe fazer mais nada, além de cuidar da terra [...]. Eu tenho filho que agora teve que trabalhar de outra forma, aprender outra profissão, eu tenho um filho que antes era agricultor e que agora teve que aprender a mexer com minério, né? Porque é o que temos agora77 Campos S. Seminário Desastres da Vale SA. em Bruma-dinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 2. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3TQVHvZQCSs.
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A fala acima transmite a perversidade relativa à conjuntura, situação na qual outras formas de subsistência acabam sufocadas pela dependência econômica da região do setor mineral, inclusive no momento pós-desastre, uma vez que a contaminação do Rio Paraopeba

inviabilizou seu uso para o consumo humano ou animal para irrigação, pesca, banho, entre outros danos diretos ou indiretos àqueles que se beneficiavam do uso da água22 Silva Noal D, Rabelo IVM, Chachamovich E. O impacto na saúde mental dos afetados após o rompimento da barragem da Vale. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-3. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-311X2019000600503.
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(1).

Uma contradição presente no território é o fato de que o sistema de saúde do município pôde oferecer uma resposta rápida no pós-desastre, em parte, por conta dos impostos de compensação pagos pela atividade mineradora, que favoreceram a organização do sistema de saúde local e, ao mesmo tempo, expuseram a população ao risco de desastre.

O pesquisador Luiz Jardim (Poemas/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro -Uerj), presente no Seminário, debate a relação política da mineração com o poder público, deixando ver um Estado subjugado pela dependência econômica do setor mineral, mas também ativo, como facilitador dos interesses corporativos. Elenca uma série de mecanismos dessa porosidade público-privada, como o financiamento de campanhas e lobby em nível federal, a participação efetiva de seus representantes em conselhos ambientais, o recurso de ‘porta-giratória’, entre outros. Sobre os possíveis benefícios econômicos da mineração ao município, adverte:

[...] Aí a gente pensa, bem, a mineração traz o emprego, a renda, e o município fica maravilhoso. Não é bem assim, a faixa salarial fica em torno de 1 a 5 salários mínimos no setor extrativo em Brumadinho..., Mas, Brumadinho tem um dado que é alarmante, 33% dos domicílios vivem com renda per capita menor do que meio salário mínimo! A mineração não tá trazendo essa receita toda para o município, sendo que ela tá operando88 Jardim L. Seminário Desastres da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 2. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=cXBwOyH58Qc&t=8616s.
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Pode-se dizer, assim, que o atual modelo de desenvolvimento, aliado à globalização, estimula a exploração de países econômica, política e socialmente mais fragilizados por empresas multinacionais, favorecendo a violação dos direitos humanos por parte das empresas e do próprio Estado ao não conseguir promover, proteger e garantir esses direitos.

Para além disso, é importante lembrar que, em 2015, os Estados-membros das Nações Unidas assinaram um Acordo Global pactuando objetivos a serem atingidos até 2030 que visavam erradicar a pobreza, proteger o Planeta e garantir que os indivíduos alcancem a paz e a prosperidade. No entanto, esses objetivos só serão atingidos se o atual modelo de desenvolvimento for repensado.

Figura 2
Segundo capítulo

Dos impactos sobre a saúde

Tendo em vista o contexto histórico brasileiro, é possível observar como a organização política e econômica produz desigualdades socioambientais e influencia o risco estrutural de desastres em barragens de mineração. Nos últimos cinco anos, ocorreram, no estado de Minas Gerais, dois grandes rompimentos em localidades diferentes, causando impactos profundos e alterando não só as condições de vida da população atingida, mas também a organização econômico-financeira dos municípios.

Sendo assim, é importante que, após acontecimentos dessa magnitude, determinem-se quais os processos de gestão de risco antes, durante e após uma situação de desastre, estabelecendo-se os perigos aos quais a população está exposta e quais agravos podem incidir sobre a saúde da população, com a intenção de mitigá-los.

Durante o Seminário, observaram-se os esforços realizados pelos serviços de saúde pública para oferecer uma resposta rápida e eficiente à comunidade, instituindo um Centro de Operações Emergenciais nos conselhos de saúde em nível municipal, estadual e federal, com a finalidade de definir diariamente estratégias a serem executadas. Além disso, o município obteve apoio da Força Nacional do Sistema único de Saúde (SUS), Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, Fiocruz, entre muitos voluntários e instituições.

No entanto, isso só foi possível porque, no momento do desastre, o território contava com um sistema de saúde pública estruturado e organizado, integralmente coberto pela Estratégia Saúde da Família (ESF), formado por 14 unidades e 2 equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Na média complexidade, o município contava com: Policlínica; Clínica de Fisioterapia; Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi); Centro de Atenção Psicossocial (Caps); Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (Caps AD); Núcleo de Práticas Integrativas e Complementares (Nupic); Unidade de Pronto Atendimento (UPA) funcionando 24h e um hospital de pequeno porte22 Silva Noal D, Rabelo IVM, Chachamovich E. O impacto na saúde mental dos afetados após o rompimento da barragem da Vale. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-3. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-311X2019000600503.
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No pós-desastre, o sistema de saúde do município foi manejado de acordo com as demandas emergentes, sofrendo alterações especialmente no que tange à atenção à saúde mental e psicossocial, em um contexto no qual o uso de ansiolíticos e antidepressivos aumentou em 60% e 80% respectivamente. Desse modo, o dispositivo de Caps 1 passou para nível 2, além do credenciamento do Capsi da rede de atenção do território, de modo a suprir as demandas previamente existentes, bem como as emergentes.

Ademais, três equipes de matriciamento em saúde mental foram formadas com o objetivo de serem itinerantes, ou seja, para estar presentes em todo o território, acolhendo sujeitos e coletando dados importantes para a reorganização desse sistema. As equipes de atenção primária também têm realizado um trabalho dentro da comunidade, tendo como intenção identificar os sinais de adoecimento da população e ofertando a possibilidade de acompanhamento no território, dispensando o sujeito da obrigatoriedade de frequentar um dispositivo de saúde.

Sobre as linhas de cuidado, José Geraldo, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), sinaliza uma aposta possível:

[...] queremos as práticas integrativas, cuidados populares e outras formas de cuidado que nos libertem da indústria da doença. Senão, além de romper a barragem e causar um crime, ainda vai dar lucro para indústria farmacêutica99 Geraldo J. Seminário Desastres da Vale SA. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 4. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://wwwyoutube.com/watch?v=sl5Cq7egrhM.
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Após o rompimento da barragem de rejeitos, a população atingida acabou exposta aos resíduos originários do processo produtivo da mineração, desde o contato direto com a lama até o consumo e a utilização da água contaminada. Além disso, depois que a lama dos rejeitos secou, tornou-se poeira e espalhou-se pela cidade, o que gera profunda incerteza quanto aos seus possíveis impactos sobre a saúde e preocupa a comunidade atingida.

Consequentemente, a análise da toxicidade dos agentes químicos, físicos e biológicos decorrentes desse processo é fundamental tanto para que seja possível dimensionar agravos e doenças que possam se manifestar no território quanto para orientar as ações longitudinais do SUS e para garantir a população o direito à informação precisa e adequada.

O processo de adoecimento por exposição a compostos químicos apresenta expressão multivariada e diversos determinantes. De acordo com o ‘Manual de Epidemiologia Ambiental’:

A suscetibilidade individual pode ser entendida como características inatas ou adquiridas que tornam um indivíduo mais ou menos sensíveis aos efeitos decorrentes da exposição a um intoxicante. Características genéticas podem tornar indivíduos mais ou menos tolerantes aos efeitos da exposição de um toxicante1010 Braga ALF, Pereira LAA, Martins LC, et al. Manual de Epidemiologia Ambiental [internet]. Santos: Puc-Santos; 2015. [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.unisantos.br/wp-content/uploa-ds/2018/05/Vigilancia-saude-ambiental-superior. pdf.
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(41).

A pesquisadora Mônica Lopes Ferreira (Instituto Butantan), presente no Seminário, apresentou uma pesquisa realizada em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em que se analisou a toxicidade da água do Rio Paraopeba em sete amostras coletadas entre os meses de fevereiro e julho de 2019. A análise detectou a presença de grande quantidade de ferro, alumínio e mercúrio; acrescente-se a isso o agravante de que a concentração desse último elemento estava 720 vezes acima do permitido para águas da classe 244 Grisul U. PACHA: Defendendo a Terra: Extrativismo, conflitos e alternativas na América Latina e no Caribe [internet]. 2018. [acesso em 2019 jun 25]. Disponível em: http://www.grisulunirio.com/wp-content/ uploads/2018/ll/Cartilha_Final_Internet-Port.pdf.
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. Quando realizada análise metagenômica, detectou-se a presença de bactérias como salmonela e cianobactérias, que causam prejuízos à saúde humana.

Realizou-se um estudo usando o modelo Zebrafish em que tais peixes foram expostos a amostras da água do rio. O estudo revelou os seguintes resultados: atraso no desenvolvimento embrionário, escoliose, ausência de boca, edema pericárdico, hemorragia e mortalidade. Ressalta-se que esses peixes apresentam 70% de similaridade genética com a espécie humana e que, mesmo após a diluição da amostra em 650x, tais anomalias se manifestaram, alertando para desfechos negativos da exposição da população à lama e à água contaminada do Rio Paraopeba.

Após a apresentação da pesquisadora, uma representante da aldeia Pataxó se manifestou; sua fala foi seguida por aplausos da plateia:

[...] [sic] Quando eu falo nas minhas palestras que o rio está morto tem gente que ri da minha cara mas eu amei viu doutora porque eu não tenho um laboratório como a senhora mas eu tive a oportunidade de fazer a pesquisa dentro de uma caixa d’água sem produtos e os peixes nasceram tudo deformados e morreram com dois dias e eu me emocionei na fala da senhora à tarde1111 Peixoto C. Seminário Desastres da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 2. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=3TQVHvZQCSs&t=9551s.
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.

A pesquisadora Carmem Froes (Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – Iesc/UFRJ) debate sobre o sentido de saúde ampliada, em que o nexo causal não é suficiente para objetivar o impacto sobre a saúde, uma vez que uma multiplicidade de fatores psicossociais, econômicos e de exposição podem configurar riscos adicionais à realidade pós-desastre:

[...] Todo e qualquer processo de adoecimento, essa é a base que a gente trabalha, ela é consequente não só da exposição a um agente físico, a um agente químico ou a um agente biológico. Ela sempre foi, ela sempre vai ser do conjunto de condições econômicas, sociais, culturais, genéticas, ambientais de um município, de uma localidade, do lugar onde você vive. E isso vai interferir diretamente na percepção e condição de saúde dos indivíduos e na análise sobre as condições de saúde de uma população1212 Froes C. Seminário Desastres da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 2. [vídeo] [internet], [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=3TQVHvZQCSs&t=9551s.
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Figura 3
Terceiro capítulo

Ver e ouvir

Após o desenvolvimento de diversos temas imprescindíveis para a discussão apresentada neste artigo, será feita uma reflexão acerca da importância de escutar a voz dos indivíduos atingidos pelo rompimento da barragem.

Utiliza-se a palavra ‘atingido’ como uma forma de referência a falas feitas pelas pessoas que tiveram a experiência de ter seus territórios e suas vidas modificadas pelo rompimento das barragens. Entendendo que esse acontecimento traz diversas versões e distintas análises, observa-se um impasse em relação aos termos utilizados para se referir às pessoas que vivem a situação. Segundo o ‘Glossário de Proteção e Defesa Civil’, que vem sendo referência para entender os riscos de desastre no Brasil, o termo utilizado para definir esses sujeitos é ‘afetado’. Para eles, “afetado é qualquer pessoa que tenha sido atingida ou prejudicada por desastre (deslocado, desabrigado, ferido etc.)”1313 Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. Manual de Proteção e Defesa Civil. Brasília, DF: Sedee; 2017.(9).

Por outro lado, na comunidade científica, a expressão é definida de forma mais abrangente:

Para além dos números de ‘atetados’ tradicionalmente definidos pela Defesa Civil (desabrigados, desalojados, mortos, feridos e doentes) e registrados durante o período de resgate e socorro, deve-se considerar todos os que tiveram suas condições de vida e trabalho atingidas nos diferentes territórios11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 jun 30]; 35(5):l-7. Disponível em: https://www.scielosp. org/article/csp/2019.v35n5/e00052519/.
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(2).

Para além de ter sua casa invadida pela lama ou da perda de um familiar, existem efeitos que se ampliam no espaço-tempo contínuo e irreparáveis danos provocados pela mudança social e ecológica naquele ambiente.

No entanto, percebe-se que existem visões distintas provenientes de personagens diversos dentro desse contexto. Ser considerado um sujeito atingido ou um sujeito afetado faz diferença para aqueles que sofreram com o desastre. Dessa forma, dar visibilidade à fala desses indivíduos é fundamental para o relato proposto neste texto.

Quando se fala em trazer o discurso desses sujeitos, é preciso olhar para o conceito de lugar de fala, muito discutido pela filósofa Djamila Ribeiro. Com o objetivo de esclarecer uma questão central dentro dos movimentos sociais, a pensadora traz suas contribuições acerca deste. Segundo sua teoria,

‘Lugar de fala’ pode ser entendido como o ponto a partir do qual cada pessoa compreende o mundo e, portanto, constrói interpretações sobre o mesmo, faz pesquisas e produz conhecimento. Mais do que isso, destaca que a nossa forma de compreender o mundo é perpassada por elementos estruturais como por exemplo classe, raça e gênero1414 Kyrillos GM. “O que é Lugar de Fala?” De Djamila Ribeiro. Cap. Críptica. 2018; 7(1):209-214.(210).

Seguindo esse raciocínio, portanto, e trans-portando-o para nossa discussão, é de extrema importância encarar as pessoas atingidas como detentoras de conhecimento e das necessidades existentes em suas vidas, devendo ser consideradas, isto é, vistas e ouvidas; indivíduos ativos no processo de gestão de riscos e reconstrução do território.

Sendo assim, entende-se o território como um conceito que ultrapassa o espaço físico, transformando-se em um espaço subjetivo constituído por processos sociais. Baseando-se na ideia de território-vivo de Milton Santos, “o território englobaria as características físicas de uma dada área, e também as marcas produzidas pelo homem”1515 Araújo Lima EMF, Yasui S. Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial. Saúde debate. 2014; 38(102):593-605.(596). Ou seja, o território é definido como um todo dinâmico em que ocorrem interações econômicas, sociais e políticas. Ademais, nesse sentido, ele é entendido como um espaço no qual há uma troca de afetos materiais e imateriais.

É possível pensar na importância da construção de ciência e conhecimento engajados e comprometidos com o território, cultura e comunidade. Durante a abertura do Seminário, Zélia Profeta da Luz (Instituto René Rachou – Fiocruz Minas) sinaliza as potências de construir um debate que conte com as contribuições em abertura ao diálogo com a arte:

[...] E aí o motivo de colocar arte é pelo entendimento de que a arte nos ajuda muito nesses momentos, né? A arte tem o papel de transformação... Então a gente resolveu fazer essa discussão hoje e amanhã com os especialistas, mas também trazendo muita arte para nos ajudar a construir tudo isso1616 Luz ZP. Seminário Desastres da Vale SA. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019, parte 1. [vídeo] [internet]. [acesso em 2019 set 3]. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=op_350lXdjs.
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Posto isso, optou-se por expor aqui, a título de inspiração, um poema transcrito de uma declamação registrada em vídeo durante o Seminário de Sérgio Papagaio1717 Papagaio C. Desastres da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impacto e ações; 2019. [vídeo] [internet]. [acesso em 2019 set 3]. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=Z4fB9uLlwVo&featur e=youtu.be.
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, poeta e atingido pelo desastre da Samarco em Mariana.

Minas será planaNão terá maisO encanto das montanhasSuas águas turvasSuas estradas sem curvasSeus mistérios desvendadosSeus sonos transbordadosSeu povo transtornadoAfugentadoAterrorizadoNivelada a linha do horizontePois o diabo comerá seus montesMinas virará um grande lingoteDe ferro maciçoUma barra de ouro mistoAo som do povoEntoando um grito de socorroSob o domínio da ValeCom seu tridenteMina agora doenteMandará para o marO resto que sobrarDo verbo minerar

Conclusões

Os desastres em barragens de mineração, resultantes de falhas técnicas e processos históricos e estruturais, configuram um enorme desafio à saúde coletiva, uma vez que expõem população e ambiente a riscos multifacetados que se sobrepõem, desde o contato com agentes tóxicos presentes nos rejeitos de mineração até sentimentos disruptivos de perda de identidade e memória comunitária, desorganização financeira do município, entre tantos outros. Desse modo, produzem agravos que se manifestam de modo imediato, mas também de forma longitudinal, no decorrer do tempo, sobrepujando as condições de funcionamento do sistema de saúde do município.

Seis meses após o desastre da Vale S.A. em Brumadinho, e quatro anos depois do desastre da Samarco em Mariana, está nítida a necessidade de reflexão sobre o modelo de desenvolvimento adotado no País, que enfraquece o poder do Estado e gera desigualdades socioambientais e riscos aos direitos humanos.

A despeito disso, o seminário ‘Desastre da Vale S.A. em Brumadinho: seis meses de impactos e ações’ aponta outro caminho possível: a partir da escuta ativa dos atores envolvidos no processo, participação dos atingidos, do emprego da arte – esta que deixa ver o sofrimento advindo do processo de desastres – em diálogo com uma ciência engajada e solidária. Ainda, esta reunião facilita a articulação do setor público, favorecendo as condições para que este cobre da empresa suas responsabilidades.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    10 Mar 2020
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