RESUMO
O presente ensaio tem caráter qualitativo e exploratório centrado no debate parlamentar do PL nº 3.657/1989, que gerou a Lei nº 10.216/2001. O objetivo foi reconstruir discursos e ampliar o quadro crítico compreensivo acerca dos posicionamentos dos atores do legislativo. O corpus documental histórico (1989-2001) é oriundo dos fundos da Câmara dos Deputados e Diários do Congresso Nacional, coletado nos sítios eletrônicos em dezembro de 2019. Utilizou-se a totalidade dos registros parlamentares da tramitação da Lei nº 10.216 que apresentavam argumentos para discussão da votação e emendas. Entre as fontes secundárias, valeu-se de entrevistas com o autor da lei, Paulo Delgado (2017 e 2018), e de literatura científica indexada, oriunda de revisão integrativa na BVS/Medline (2015-2019). Pelo método histórico hermenêutico dialético, instaurou-se a reflexão compreensiva e crítica dos discursos. Reconstruíram-se posicionamentos favoráveis e desfavoráveis dos deputados federais visando à compreensão dos campos de força históricos e potenciais consonâncias aos movimentos de contrarreforma vivenciados na atualidade. Conclui-se que, mesmo considerando os avanços filosóficos e de organização prática da gestão pública representados pela consolidação legal, conquistados pela saúde mental brasileira no contexto da Reforma Psiquiátrica, as transformações do projeto original deixaram brechas para atuações mais ou menos reacionárias do Estado brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE
Reforma dos serviços de saúde; Saúde mental; Legislação como assunto; Movimentos antimanicomiais; Lei nº 10.216
ABSTRACT
The present essay has a qualitative and exploratory character centered on the parliamentary debate of PL No. 3,657/1989, which generated Law No. 10,216/2001. The objective was to reconstruct discourses and expand the comprehensive critical picture about the positions of legislative actors. The historical documentary corpus (1989-2001) comes from the funds of the Chamber of Deputies and Diaries of the National Congress, collected on the electronic websites in December 2019. All the parliamentary records of the processing of Law No. 10,216, that involved voting and amendments discussion, were used. Among secondary sources, interviews with the author of the law, Paulo Delgado (2017 and 2018), and indexed scientific literature, derived from an integrative review at the BVS/Medline (2015-2019). Through the dialectical hermeneutic historical method, comprehensive and critical reflection of the discourses was established. Favorable and unfavorable positions of federal congresspeople were reconstructed in order to understand the historical force fields and potential consonances with the counter-reformation movements experienced today. We conclude that, even considering the philosophical advances and the practical organization of public management represented by legal consolidation, achieved by Brazilian mental health in the context of Psychiatric Reformation, the transformations of the original project left gaps for more or less reactionary actions by the Brazilian State.
KEYWORDS
Health care reform; Mental health; Legislation as topic; Anti-asylum movements; Law No. 10.216
Introdução
Seguindo as transformações que se desenvolviam com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a política brasileira direcionava-se para a criação de novos serviços e dispositivos legais que reforçassem uma saúde pública que contribuísse para a universalização do acesso e trouxesse práticas mais humanas de tratamento em diversos âmbitos11 Amarante P, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP; 1995.,22 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. Vale ressaltar que o SUS, em si, já representa um dos resultados do otimismo e potencialidade política que a participação social e a renovação de quadros e concepções políticas tiveram no período da Redemocratização, em oposição ao período de aprofundamento das desigualdades e perpetuação de exclusões, representado pela ditadura civil-militar que se esgotava33 Ferreira J. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.,44 Luna FV, Klein HS. Transformações econômicas no período militar (1964-1985). In: Reis DA, Ridenti M, Motta RPS, organizadores. A ditadura que mudou o Brasil, v. 50. Rio de Janeiro: Zahar; 2014..
Uma das grandes transformações nesse sentido foram os esforços em direção à criação da reforma não só nas práticas, mas também nas concepções em torno da saúde mental, envolvendo, sobretudo, psiquiatria e psicologia. Um elemento entendido como símbolo dessa transformação é a Lei nº 10.216/2001, que, entre outras coisas, redireciona o modelo assistencial nesse sentido.
Tendo em vista tal contexto, é importante discutir como política e ciência estão imbricadas no sentido que a primeira pode tanto reter como promover práticas mais ou menos contributivas para os usuários. Há, recentemente, um fluxo tendente à contrarreforma, visando reinserir práticas entre os serviços de saúde mental antes entendidos como parte do modelo a ser superado e, também, voltar a aumentar o número de leitos em hospitais psiquiátricos – problemática fundamental que a lei, ainda como Projeto de Lei (PL) nº 3.657/1989, visava desconstruir55 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução nº 32, de 14 de dezembro de 2017. Estabelece as Diretrizes para o Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Diário Oficial da União. 22 Dez 2017.. Assim, as transformações históricas em torno desse processo são multidirecionais. Não são uma superação óbvia e única de um passado limitado que se encerra temporalmente. É preciso entendê-los como frutos de discussões e disputas, em construção delicada que passou por diversas transformações, sobretudo nos anos de discussão parlamentar.
No presente ensaio, o foco principal é o debate no âmbito da Câmara dos Deputados, argumentos, eixos de oposição e evolução do PL até a aprovação – processo que durou 12 anos, entre proposição e publicação. Nosso objetivo é reconstruir os discursos e ampliar o quadro crítico compreensivo acerca dos diferentes posicionamentos dos atores do legislativo. Nesse sentido, ambicionamos colaborar para o aprofundamento reflexivo sobre as permanências e descontinuidades das motivações políticas históricas potencialmente presentes no período de contrarreforma contemporâneo.
O estudo tem caráter qualitativo e exploratório, valendo-se do método histórico de análise hermenêutica dialética66 Habermas J. Dialética e Hermenêutica. São Paulo: LP&M; 1987.,77 Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do Pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002.. O corpus documental primário é oriundo do fundo legislativo, coletado em dezembro de 2019. Foram acompanhados os passos da tramitação, entre 1989 e 2001, no sítio da Câmara dos Deputados e nos Diários do Congresso Nacional. Realizamos varredura completa do período e selecionamos todos os registros relevantes, sistematizando essas informações em planilhas. Contemplamos a totalidade dos registros e consideramos aqueles que sustentavam argumentações, discussões para votação e emendas. Nesses registros, categorizamos, sobretudo, os posicionamentos contrários e as defesas da matéria legal. Complementarmente, entre as fontes secundárias, valemo-nos de entrevistas em profundidade com o propositor, Paulo Delgado (produzidas entre 2017 e 2018)88 Severo FMDS, Prado Y, Guerrero AVP, et al. Memórias da Saúde Mental brasileira: Usos da história oral e tecnologias midiáticas para pesquisa em saúde. In: Anais Eletrônicos do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2018 Jul 27; [internet] Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Fiocruz; 2018. p.1-2. [acesso em 2020 jun 16]. Disponível em: http://saudecoletiva.org.br/programacao/exibe_trabalho.php?id_trabalho=27399&id_atividade=3284&tipo=#topo.
http://saudecoletiva.org.br/programacao/... , e de literatura científica indexada, oriunda de revisão integrativa na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e no Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online – Medline) (2015-2019)99 Severo FMDS, Araújo CA, Guerrero AVP. Desconstrução da Política de Saúde Mental: uma revisão integrativa 2015-2018. In: Anais do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; 2019 Set 23-30; [internet] João Pessoa. João Pessoa: UFPB; 2020. [acesso em 2020 jun 16]. Disponível em: https://proceedings.science/8o-cbcshs/papers/desconstrucao-da-politica-de-saude-mental--uma-revisao-integrativa-2015-2018.
https://proceedings.science/8o-cbcshs/pa... . Destacamos que, em 2019, complementamos a pesquisa de base indexada produzida pelo grupo de trabalho e nos concentramos na leitura das publicações de caráter teórico-conceitual e histórico. A totalidade do corpus textual (primário e secundário) foi submetida à leitura sistemática. Assim, coletamos os extratos semânticos dos textos originais em uma compilação simultaneamente compreensiva e crítica, evidenciando-se o pano de fundo da cena política com seus aspectos contraditórios e consensuais.
Proposição
Proposta por Paulo Delgado em 1989, então Deputado Federal pelo PT, o PL nº 3.657/1989 contrastava com a prática psiquiátrica até aquele momento: visava encerrar o modelo manicomial de tratamento com a limitação imediata e a progressiva redução de leitos psiquiátricos. Ao momento de seu primeiro mandato, Paulo Gabriel Godinho Delgado era sociólogo e professor, com bagagem teórico-conceitual e política sobre estudos de sociedade e democracia no sentido da liberdade e crítica à sua limitação.
A participação direta da família Delgado na saúde pública é um capítulo histórico a ser explorado. ‘Geninho’, Luiz Eugênio Godinho Delgado, irmão mais velho de Paulo e Pedro, médico, fez carreira no exterior e ajudou a montar o sistema de saúde de Moçambique. Pedro Gabriel Godinho Delgado, médico psiquiatra, já atuava no cuidado em saúde mental, criticava e observava os abusos do sistema manicomial brasileiro desde, pelo menos, a década de 19701010 Delgado PG. As Razões da Tutela: psiquiatria, justiça e cidadania do louco no Brasil. Rio de Janeiro: Tê Corá; 1992.,1111 Em Nome da Razão. Direção: Helvécio Ratton; 1979. (24min.). Dessa relação familiar, apontada pelo autor da lei como influência1212 Fundação Oswaldo Cruz. Entrevista com Paulo Delgado. No prelo 2020., observa-se uma contribuição na referência técnica e filosófica para a articulação da proposta balizada pela experiência italiana de Franco Basaglia, para o cuidado em liberdade. Ademais, o contexto social brasileiro das lutas antimanicomiais protagonizado pelos trabalhadores de saúde mental, havia pelo menos 30 anos, integrava progressivamente usuários e familiares consolidando uma práxis nacional coesa em torno de uma causa. Delgado narra que a formulação dessa legislatura se deu somente porque foi procurado pelo movimento antimanicomial e participou de uma sucessão de debates que o habilitaram.
O projeto inicia com uma premissa muito simples, porém contundente:
Fica proibida, em todo o território nacional a construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e a contratação ou financiamento pelo setor governamental, de novos leitos em hospital psiquiátrico1313 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 29 Set 1989. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD29SET1989.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Para setores pró-reforma, ligados à luta antimanicomial, entendia-se como uma superação necessária de um antigo modelo. Já para os setores mais conservadores, terrores que se denunciavam nas instituições das primeiras intervenções em manicômios eram apenas exemplo de excessos, principalmente justificados por suposta falta de investimentos ou extremos pontuais. Esses setores eram compostos por grupos médico-hospitalares e pelo senso comum. Nesse momento, a oposição foi traçada entre a aceitação ou não da transformação como caminho a seguir.
Antes da discussão do projeto na Câmara, este passou pelas comissões, entre os anos de 1989 e 1990, tendo seus aspectos constitucional, legal e jurídico avaliados na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), com posição favorável do relator Harlan Gadelha. Na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), teve o mérito bastante apreciado, transmitido na manifestação de Carlos Mosconi, relator, pois, segundo este, após buscar informações e encontrar “respaldo em opiniões das mais abalizadas” conclui que “poderá trazer à Psiquiatria Brasileira em geral e aos pacientes psiquiátricos” benefício, de forma que o tratamento “obedecerá critérios humanitários e científicos muito mais adequados, preservando-se ainda o direito que todos têm à cidadania”1414 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 27 Jun 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD27JUN1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Após as comissões, aprovado, encaminha-se ao plenário, encontrando as primeiras contestações.
Primeiras discussões e alterações – 1990
Temos entre os opositores principais na Câmara dos Deputados de diversas legendas partidárias. Manifestam-se com posições contrárias à proposta os deputados Jorge Viana (PMDB-BA), Ricardo Fiúza (PFL-PE), Bonifácio de Andrada (PDS-MG), Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), Luiz Roberto Ponte (PMDB-RS) e Amaral Netto (PDS-RJ). Politicamente, é difícil encontrar interseção entre o posicionamento dos deputados mencionados buscando-a apenas na legenda partidária. É importante observar, por exemplo, que, em 1989 o PMDB ainda poderia ser entendido como reorganização de quadros do antigo MDB da estrutura de governo construída nos anos de ditadura. Representava um sentido de oposição, mas de quadros politicamente viáveis após as perseguições e cassações de direitos políticos dos Atos Institucionais. Por outro lado, o PFL era composto em importante medida por antigos quadros da Arena, alinhada com o projeto político-institucional durante o período. O PTB, inclusive, era o partido da presidência em 1964, ao momento do golpe desferido contra seu presidente, João Goulart. Ainda assim, havia convergência de críticas advindas de ambas as partes. A temática da saúde mental, portanto, parece extrapolar barreiras parlamentares.
Nessa etapa, os principais argumentos ou manifestações críticas emergentes direcionam-se ao escopo geral do projeto e concepções que o influenciam. Em primeiro momento, porém, são expostas principalmente por meio das emendas propostas, que em dezembro de 1990 somavam oito. Sete são modificativas, direcionadas aos três primeiros artigos e preâmbulo. A última, aditiva, para o art. 1º. Um dos principais recursos para compreender as bases argumentativas das críticas é trazer, então, as emendas e o que propõem.
A 1ª, assinada por Viana, Fiúza e Bonifácio de Andrada, de natureza modificativa, visava ao art. 2º. Concretamente, seu objetivo era suprimir alguns trechos. Entre eles, o final que mencionava como uma das responsabilidades das gestões regionais a “progressiva extinção dos leitos de característica manicomial”1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . O outro incluía entre os recursos não– manicomiais – portanto, recursos que a lei propunha utilização – a possibilidade de oferta de unidades psiquiátricas em hospitais gerais. Ou seja, há dois trechos que tratam de questões diferentes.
Ainda que a emenda seja aparentemente limitada, técnica, tratando-se apenas de um artigo, na prática, contrasta com concepções mais fundamentais e gerais que constroem o projeto. Apesar disso, a justificativa utilizada pelos deputados limita-se ao trecho menos essencial, suprimindo argumentos mais evidentemente contrastantes. A ideia que usa para justificar a emenda é que “em nenhum país do mundo temos bem sucedida a experiência da unidade psiquiátrica em hospital geral”1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Isso tem por consequência um desvio no teor, o que poderia tornar sua discordância menos acentuada, em aparência. Tal fato poderia influenciar no tom da discussão e das defesas em contrapartida; portanto, faz sentido perceber essa estratégia como algo planejado, não acidental, considerando sua utilidade.
Ainda a respeito da 1ª emenda modificativa, ponto importante é a imagem do paciente psiquiátrico comunicada: pessoa altamente incapaz, receptora e vetora provável de doenças, necessitando de controle para garantir sua segurança e de outros indivíduos que não compartilham de sua situação, como exposto no trecho
A segurança em hospital geral é mínima e, para o paciente psiquiátrico, é necessária segurança média, o que certamente causaria transtornos aos familiares e pacientes clínicos ou cirúrgicos.
Levanta-se ainda a questão do paciente psiquiátrico atuar como agente assimilador e disseminador de infecção hospitalar, uma vez que ele, em não permanecendo no leito e tendo seu juízo crítico prejudicado pela própria doença, transitaria, por todos os setores do hospital, sem os cuidados técnicos necessários1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... (14058).
É possível inferir que não queriam meramente realizar ajuste pontual, visto que tocam na natureza do projeto – mais evidenciado na emenda nº 2, para o art. 1º, dos mesmos deputados. Nesta, o artigo mais direto e fundamental, que visava proibir a construção e a expansão de novos hospitais e leitos psiquiátricos públicos, seria transformado para apenas determinar o funcionamento terapêutico destes e visaria à normatização da assistência.
Na prática, tal alteração subverteria toda a ideia original e o próprio objetivo da lei. A justificativa evidencia esse propósito, de forma que os deputados argumentam que “a eliminação do hospital psiquiátrico como um instrumento terapêutico” redundaria “num retrocesso da assistência psiquiátrica” à época. Também utilizam-se do posicionamento escrito pelo psiquiatra Italiano Gianni Nardo que critica a Lei Basaglia e argumentam que gerou uma falta de assistência (por recusa dos pacientes) com riscos de “danos permanentes e cronificação” e transtorno para a comunidade que o recebia pelo “desconforto ambiental”1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... e ameaça representada por esses indivíduos supostamente desamparados. Esse posicionamento ignora que a cronificação era elemento apontado como um grande risco do sistema manicomial em diversos materiais, documentários e denúncias expostas já desde os anos 1970 pelo movimento antimanicomial.
Cavalcanti inclui outras emendas modificativas. Na 3ª e na 4ª, a tentativa de alterar o cerne do projeto repete-se. No anterior, a justificativa pretende-se institucional, com ideia de que, na realidade, a competência para determinar o dimensionamento da rede hospitalar seria de órgãos técnico-normativos, não cabendo a esta lei. O posterior, com participação de Fiúza e Andrada, direciona-se ao próprio preâmbulo, e faria com que a lei dispusesse da regulamentação dos manicômios, não da extinção; logo, os serviços substitutivos seriam uma adição ao sistema, e a internação compulsória, meramente regulamentada1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Ou seja, há uma tentativa clara de desvirtuação ou abrandamento.
Ambas são justificadas críticas à ideia de um sistema de saúde mental que focasse em estratégias extra-hospitalares ou ambulatoriais, mesmo que de maneira mais branda que nas emendas anteriores. São dois pontos principais: que a limitação dos leitos e sua substituição deveriam ocorrer ao passo que as alternativas tenham seus resultados positivos comprovados; e que a lei não pode se direcionar ao tema da extinção da ‘rede hospitalar especializada’– algo que não se propõe a fazer, pois se direciona especificamente à rede pública. Vale observar que Cavalcanti conta em seu currículo com posições de direção em hospitais, como o Hospital Nossa Senhora de Fátima e o Hospital Coronel Mota, tendo sido Presidente do Conselho Regional de Medicina de Roraima1717 Brasil. Câmara dos Deputados. Biografia do deputado Mozarildo Cavalcanti. [internet]. Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2020. [acesso em 2020 fev 18]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/deputados/139313/biografia.
https://www.camara.leg.br/deputados/1393... . Esses dados biográficos podem ser importantes para compreender seu lugar social nas redes hospitalares.
A 5ª, 6ª e 7ª emendas também foram propostas por Mozarildo. A 5ª possui muita consonância com a 1ª em teor, adicionando o fato de que ele critica, na justificativa, mais claramente a ideia de extinção de leitos psiquiátricos em hospitais. Segundo ele, constituiria ‘aberração assistencial’, afirmando a necessidade dos hospitais psiquiátricos e indicando argumento semelhante aos outros deputados no sentido de ‘mistura’ de ambientes e suposto perigo de ‘riscos adicionais’ de contaminação aos pacientes psiquiátricos, ressaltando, novamente, a condição de alienação mental grave1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Curioso esse posicionamento, dadas as frequentes denúncias nos relatos, reportagens e documentários sobre situações de extraordinária precariedade sanitária e de cuidados flagrados em manicômios, inclusive transmitidos por Mosconi, em posicionamento na CSSF.
Enquanto a 6ª é mais simples e estende o prazo para a comunicação às autoridades locais de internações compulsórias, a 7ª traz pontos mais delicados, propondo nova redação aos §§ 2º e 3º do art. 3º. Em princípio, pretende parecer mais abrangente, determinando que podem ser ouvidos a respeito da internação compulsória “todos aqueles que [a autoridade] achar conveniente”1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Porém, contrasta com a redação original, evidenciando o peso da contradição.
O questionamento e o novo olhar sobre a internação compulsória eram questões importantes para os movimentos impulsionadores das demandas e para os conceitos norteadores da reforma, construídos por meio de propostas técnico-científicas e experiências práticas próprias dos trabalhadores da saúde mental, prévias à proposição da lei1818 Vieira MN, Marcolan JF. Fatores Político-ideológicos Associados a Escolha do Modelo de Assistência da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rev. Min. Enferm. [internet]. 2016 [acesso em 2020 jun 16]; 20(985):1-10. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-907919.
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso... , que permitiram importante maturidade conceitual na redação dos textos propositivos apresentados por Delgado. O mecanismo da internação compulsória, reconhecidamente, era utilizado em algumas situações para desumanizar o indivíduo antes mesmo da porta de entrada da instituição. Pouco importaria sua concordância com a sua hospitalização ou sequer suas demandas para cessação daquele tratamento. O confinamento era imposto, muitas vezes, produzindo não um progresso no tratamento, mas, sim, o lucro da empresa credenciada que receberia recursos. Aplicava-se a membros indesejáveis das famílias, marginalizados em situação de rua e toda sorte de pessoa socialmente incômoda. Em muitas instituições, era praticamente norma o não– retorno após a institucionalização que, na prática, tornava-se total.
Nesse contexto, o art. 7º justifica-se, tentando fazer com que a escuta do próprio indivíduo a quem se direciona a internação fosse necessária, também a de “médicos e equipe técnica do serviço, familiares e quem mais julgar conveniente”, para “emitir parecer em 24 horas, sobre a legalidade da internação”, construindo alguma garantia de que esse confinamento não fosse realizado senão justificadamente necessário – ou seja, preservando a ideia de que essa necessidade fosse uma possibilidade real, não excluindo por completo o mecanismo. Quando Mozarildo propõe emenda que transformaria a menção das pessoas que o Ministério Público viria a convocar para “todos aqueles que achar conveniente”1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... , é possível que esses elementos originalmente mencionados sejam entendidos em situações como menos que necessários ou convenientes. Na prática, propõe-se abrangente, mas resultaria praticamente na anulação esse objetivo.
Finalmente, a 8ª, aditiva e menos desarmônicas com a ideia original, ainda expõe preocupação com a reforma. Cavalcanti, Luiz Roberto Ponte e Amaral Netto propõem adição de parágrafo determinando a gradatividade da transformação, evitando o dito “colapso para o atendimento”1515 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 12 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1990.pdf.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Foi a única aprovada.
A votação das emendas foi também um campo de discussão que acrescenta ao entendimento do debate. Neste momento, explicitam-se alguns argumentos mais abertos e acrescentam-se algumas figuras à questão. Surgem aqui as primeiras defesas abertas, com Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e Eduardo Jorge (PT-SP). Contrariamente, aparecem Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Sandra Cavalcanti (PFL-RJ).
Observa-se, novamente, com Geraldo Alckmin, a manifestação do relator como elemento de posicionamento. Concretamente, agiu também como possível defesa de um projeto contra emendas incompatíveis, revelada na situação na CSSF. Com a rejeição da 1ª a 7ª emenda, sob justificativa de que seriam contrárias ao próprio PL, é expressa também avaliação sobre a qualidade geral da lei, de maneira fortemente favorável e elogiosa, inclusive acrescentando que iria no caminho do que havia de mais moderno em tratamento à época1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Tendo as emendas rejeitadas, o posicionamento de Mozarildo torna-se ainda mais explícito, agora com Roberto Jefferson. O primeiro reúne vários pontos apresentados por ele e outros colegas com as emendas, dizendo que, na verdade, “a única forma de se escoimar todas as aberrações ali contidas” seria mesmo elaborar um substitutivo, defendendo a necessidade de leitos psiquiátricos, a sua crença na inviabilidade do projeto, por terem havido outras experiências de “criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais [...] em vários países, com consequências desastrosas”1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... – mesmo sem mencionar exemplos –, além de que apresentaria risco de saúde, contaminação e perigo social para os pacientes e comunidade – por conta da presença destes –, resgatando a crítica de Gianni Nardo. Conclui que, sem alterações profundas, possivelmente, a Câmara fosse, em breve, “considerada como responsável por um sem-número de ocorrências desagradáveis, com repercussões sociais as mais sérias”1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Caso aprovado da maneira apresentada, defende, levaria ao colapso assistencial e desastre social. É significativa sua posição de que não vislumbrava “qualquer possibilidade de um acordo que eventualmente possa vir a ser proposto”1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... a respeito da retirada das emendas, declarando que as manteria. Há, então, um subtexto de posicionamento e concepção embutidos nos discursos mais polidamente contrários. Na trajetória argumentativa desse deputado, há uma transição em direção à maior clareza nas críticas após parecer contrário ao recurso mais sutil – as emendas.
Roberto Jefferson, justificando a posição do seu partido, PTB, contra o projeto, diz ser problemático este basear-se na Lei Basaglia que, declara, fracassou, mas diz não se ater ao mérito e indica como o maior problema os possíveis conflitos de instância que geraria, por propor a limitação ou proibição de serviços que, alega, deveria ficar a cargo de outras esferas1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Dessa forma, mostra um embasamento para discordância calcado no sentido supostamente técnico, mas com fundo político e ideológico forte, ao qual supostamente não se atém.
Efetivamente, percebe-se o estigma, fortemente representado na ideia da incapacidade do ‘paciente psiquiátrico’ de cuidar de si ou, muitas vezes, de sequer procurar ou manter-se em um contexto terapêutico de maneira espontânea, apostando que, limitando as internações compulsórias e os leitos psiquiátricos ou nosocomiais, estariam desamparados e gerariam transtorno para o resto da população. O estigma do ‘louco incapaz’ fica ainda evidente em menções fora do contexto da discussão direta, por Sandra Cavalcanti, que sarcasticamente exagera a um estereótipo sobre o PL:
Sr. Presidente, para falar a verdade, a única coisa que me deixou um pouco mais tranquila na sessão de hoje foi a votação de um estapafúrdio projeto que manda abrir todos os manicômios do País. Foi uma medida muito acertada, porque agora não precisaremos mais internar aqueles que estiverem fora do seu juízo. Eles poderão ficar livres, atuando – sabe Deus – em quantos escalões do Governo1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Nesse primeiro momento, com Delgado, poucos outros deputados incluem-se no posicionamento mais abertamente favorável à ideia geral, ao menos discursivamente. Além de Alckmin e Mosconi, enquanto relatores, quem se manifesta é Eduardo Jorge, correligionário do autor, tentando desfazer aquilo que trata como maus entendimentos ou maus julgamentos. A questão da internação compulsória, esclarece, permanece uma possibilidade, tentando minimizar a polarização à ideia da exclusão desse mecanismo, e esclarece a não incongruência entre as normas que coloca e sua existência1616 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 15 Dez 1990. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15DEZ1990.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Faz parte da negociação política em constante andamento tentar suavizar a polarização, de forma que a concessão concreta, em inclusões ou supressões, torna a adesão da oposição mais viável, que contrariamente poderia ser mais intransigente.
Com o que foi mencionado, podemos entender parte da disputa político-ideológica em curso. Apesar do peso simbólico que carrega o momento de encaminhamento de votação do projeto e o seu consequente debate para aprovação ou rejeição, observa-se que o campo de disputa é muito mais amplo, principalmente considerando como encaminharam-se as emendas. Visivelmente, aqueles que possuem críticas mais fundamentais e discordâncias diametrais não se limitaram a criticar ou votar contra a proposta, mas tentaram seu enfraquecimento ou transformação – por vezes quase completa – na direção oposta. Chegaram a propor alterações tão profundas – apesar de textualmente breves ou tecnicamente simples – que alterariam a intenção última do PL, mesmo que descritas apenas como modificações ou sendo referidas em tom de aprimoramento. É uma questão tão concreta que recebem parecer contrário após terem mérito avaliado.
É compreensível, no âmbito parlamentar, ser considerado mais viável tentar alterar uma proposta por dentro ou aprová-la com a supressão de ideias mais desagradáveis do que conquistar sua reprovação e enfrentar todo o caminho político de propor uma alternativa mais alinhada a outros interesses para ser aprovada no lugar.
Passado esse aspecto, a respeito do conjunto de deputados que se manifestam – seja favorável ou contrariamente –, constata-se a pluralidade de legendas partidárias. O eixo político, caso baseado em concepções mais tradicionais e tratados por ‘direita’ e ‘esquerda’, parece pouco determinante em apontar o posicionamento que um deputado específico possa ter. Vimos que partidos localizados mais à direita no espectro político brasileiro, como PDS e PFL, compartilhavam em linhas gerais das mesmas críticas manifestadas por partidos tradicionalmente considerados de centro ou esquerda, como PMDB e PTB. Estes últimos, inclusive, por vezes possuíam críticas mais acentuadas e abertas.
Vários elementos podem explicar tal situação. Um dos principais pode relacionar-se exatamente com a natureza do assunto abordado, saúde mental – tópico que apela diretamente a diversos preconceitos e estigmas culturais através da História, e a uma série de tabus e costumes velados na sociedade. Questionado a respeito da composição da Câmara em 2001 (ano da aprovação da lei) e 2003 (aprovação do Programa de Volta para Casa), Delgado responde algo que, em essência, refere-se a todo o processo de discussão:
[...] essa lei tem uma característica diferente das outras, essa lei não adianta o líder encaminhar, essa é uma lei que o mais modesto deputado tem sua opinião. Porque ele tem um parente, um amigo, um vizinho. Todos queriam dar opinião e quando ficavam quietos atrapalhavam mais por transmitir seu receio de forma humana, sincera, mas pelos corredores, talvez sem se darem conta, agiam conspirativamente1212 Fundação Oswaldo Cruz. Entrevista com Paulo Delgado. No prelo 2020..
Apesar desse aspecto importante, não se trata apenas de cultura e o do entendimento popular do assunto. Já se questionava amplamente no período a insuficiência de antigas terminologias originária dos séculos XVIII e XIX, como ‘direita’ e ‘esquerda’, para determinar posicionamentos políticos e ideológicos, como menciona Bobbio1919 Bobbio N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; 1995.. Apesar deste concluir a respeito da permanência de sua utilidade, o debate era relevante e transmite a complexidade dos termos.
Isso não significa ausência de eixo de ligação dos posicionamentos. Talvez a justificativa mais plausível seja a apresentada por Delgado: é uma questão muito ligada a elementos não só terapêuticos, mas também de foro íntimo de vários dos indivíduos ali presentes, assim como ligada ao senso comum e à cultura social dessa questão. É na continuidade da discussão que a construção desse entendimento será buscada.
O retorno do Senado e discussões finais – 1999 a 2001
Como faz parte da transformação legislativa, diversas alterações foram geradas no decorrer. Ao momento da aprovação da Emenda nº 8, gerou-se o Substitutivo 3.657-B. O Substitutivo 3.657-C, no entanto, era uma reescritura total do projeto, retornando do Senado em 1999 para as comissões na Câmara, tendo continuidade da discussão em 2001. Houve substituição de todos os artigos; porém, mantinham-se, em grande medida, as ideias gerais do projeto, conservadas de maneira menos contunde.
De uma lei que determinava diretamente a limitação e a proibição de aumento de leitos psiquiátricos mantidos com dinheiro público, transformava-se em uma que tenta garantir os direitos das ‘pessoas com transtornos mentais’, havendo, inclusive, artigo que previa a possibilidade de aumento no número de leitos, com a construção de hospitais psiquiátricos ‘nas regiões onde não exista estrutura assistencial adequada’ – o que é contraditório em um dispositivo que visa redirecionar a ‘estrutura assistencial’, ou seja, focado também nas regiões que ainda não possuíam. O resultado poderia ser adverso. Afinal, como propor um novo sistema de serviço em saúde se, justamente onde não se possui ainda, seria encaminhado o antigo em detrimento do novo? Não resultaria em construção, mas em reaplicação do que se pretendia superar.
Uma década transcorre até que volte a ser discutido na Câmara. Delgado permanecia em exercício, no terceiro mandato após esse primeiro momento. É um longo tempo nesse sentido, e carregado de uma série de transformações não só na proposta como na conjuntura, e até mesmo em expectativas. Há, também, nos posicionamentos, defesas e críticas ao projeto.
Logo que é colocado em pauta, o substitutivo conta com o estranhamento de alguns deputados, com pedido de adiamento sendo encaminhado pelas lideranças do governo, PMDB, PPB, PFL e PSDB. Inicialmente, a posição do PT, partido de Delgado, é defender o conteúdo original, com o relator, Mosconi, que se mostrava muito favorável em 1990 e foi restabelecido como relator em 1999 na CCJC. O que se propõe, pelo PT, é o aceite do adiamento sob a condição de reunião entre as principais lideranças para construir acordos e encontrar base comum entre a defesa do projeto original e o substitutivo do Senado2020 Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 22 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD22MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Nesse momento, então, delineiam-se os principais argumentos.
Voltando à pauta, na semana seguinte, surgem novamente defesas, principalmente com Mosconi, que visam conservar o projeto original, em detrimento do mais recente substitutivo; mas, simultaneamente, há acordos traçados. Os principais são em torno dos arts. 4º e 5º. No mesmo substitutivo, esses representam, simultaneamente, antagonismo na discussão.
Por um lado, o art. 4º defenderia a possibilidade de construção e expansão de leitos em hospitais psiquiátricos, contrastando com o intuito de reforma, e o art. 5º limitaria a possibilidade de internação a algumas condições, principalmente “os outros recursos [extra-hospitalares] se mostrarem insuficientes”2121 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 20 Abr de 1999. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD20ABR1999.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... (16712), e apontando a busca da reinserção social. Deputados mais favoráveis à preservação do aspecto hospitalar e, portanto, mais reacionários tendiam favoravelmente à manutenção do art. 4º, logo, contrários ao art. 5º. Congruentemente, o inverso também era relativamente verdadeiro para setores mais favoráveis à reforma.
Tendo por base esse entendimento, pode-se traçar uma oposição, e é em torno disso que se justifica a existência da negociação política. Ela envolvia a aceitação do substitutivo pelo PT e outros mais favoráveis à versão anterior, com a condição da votação em separado do art. 4º, desde que se retirassem os destaques supressivos para o art. 5º.
Parece haver articulação para manutenção da viabilidade do projeto, mesmo com concessões, que suavizaram a contundência das versões anteriores. É provável que seja exatamente por isso que as oposições à aprovação da matéria tenham se retraído e, nesse momento, estejam mais direcionadas a pontos específicos, como observaremos. É o que dá sentido à fala do deputado Rafael Guerra, que se mostra favorável à versão anterior e menciona que o projeto, na atual, poderia ser “mais avançado, mais radical” mas declara que o que se discute agora é o “acordo possível”2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... para que avançasse, o qual deveria ser foco da construção. Após o acordo, já não há muita disputa entre o substitutivo ser aprovado ou não, sendo encaminhado para votação. O campo de tensionamentos transforma-se, e é traçado em torno de como se modelará o resultado.
Ou seja, há deputados de diferentes tendências votando favoravelmente ao substitutivo, o que indica negociação bem-sucedida, em uma situação que inclui Delgado. Mosconi manteve-se mais conservador, em defesa do original. O autor estava sendo mais complacente com o abrandamento do dispositivo, e apostando na viabilidade da nova construção. Assim sendo, votar a favor ou contra o substitutivo de maneira alguma implica automaticamente o posicionamento perante a reforma.
Há, paralelamente, alguns acontecimentos na década transcorrida que justificam um pouco mais de abertura por parte das oposições ao projeto. Em 1999, faleceu na Casa de Repouso Guararapes o interno Damião Ximenes, comprovando-se posteriormente ter sido vitimado pelo espancamento e maus-tratos na instituição, à época credenciada do SUS. Tal caso levou o Brasil a sua primeira condenação na Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2006. A condenação é posterior à aprovação da lei, mas possuiu grande importância todo o caso e o respectivo processo, pois trata-se da construção de um reconhecimento de organismo internacional e, também, pelo próprio Brasil de que tal exemplo era uma realidade entre várias análogas no País2323 Delgado PGG. Saúde Mental e Direitos Humanos: 10 Anos da Lei 10.216/2001. Arq. bras. psicol. [internet]. [acesso em 2020 fev 18]. 2011; 63(2):114-121. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672011000200012&lng=pt.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr... ,2424 Almeida V. Caso Damião: 1ª condenação do Brasil na OEA completa 10 anos [internet]. G1. 2016 Ago 30 [acesso em 2020 fev 28]. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2016/08/caso-damiao-1-condenacao-do-brasil-na-oea-completa-10-anos.html.
http://g1.globo.com/ceara/noticia/2016/0... .
À medida que o processo evoluía até a condenação e a situação se tornara pública por meio da mídia, crescia a ideia da necessidade de aprovação de uma lei nesse sentido. Assim coube ao Estado acelerar o processo de aprovação da lei, a fim de evitar problemas diplomáticos, considerando que o Brasil era signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Há, então, alguma urgência, mesmo que não tenha causado concessão total por parte dos setores mais reacionários.
Resgatando os argumentos apresentados para caracterizar o que seria resistência ao projeto, em 2001, podemos apontar que essas manifestações ficaram mais entre os deputados Inocêncio Oliveira (PFL-PE), Arnaldo Faria de Sá (PPB-SP), Damião Feliciano (PMDB-PB), Salomão Gurgel (PPS-RN), Regis Cavalcante (PPS-AL) e Rubens Bueno (PPS-PR), e direcionam-se principalmente aos arts. 5º e 10º. Ou seja, novamente, verificam-se posicionamentos convergentes de deputados de legendas teoricamente opostas, de tendências supostamente contrárias, como o caso do PFL, em sua herança Arenista, e o PPS, que seria pretensamente Socialista (Partido Popular Socialista).
Discursivamente, há semelhança entre esses posicionamentos que transparecem concordâncias interpartidárias no tema de oposição. A posição do médico como autoridade não meramente técnica é bastante significativa junto da defesa da manutenção do hospital como foco de investimentos.
Nas defesas mais explícitas ao Hospital, aparecem Feliciano e Gurgel. São muito semelhantes em teor, e revelam que sobrevive argumentação de 11 anos antes, porém um pouco menos presente em quantidade, se considerada a proporção de deputados que manifestam-se favoravelmente. O primeiro, sendo, inclusive, um dos mais reacionários à reforma psiquiátrica nesse momento, defende a estrutura nosocomial como imprescindível, principalmente para contenção de pacientes. Para ele, críticas a respeito de maus-tratos e más condições seriam superadas com mais fiscalização e, ao contrário do que é proposto, com mais financiamento a essa estrutura – ignorando que, segundo as ideias que a embasam a proposta, é o próprio isolamento que cronifica. É importante apontar que, adicionalmente a todo esse posicionamento, ainda está presente menção elogiosa ao substitutivo do Senado, ao qual vota favoravelmente, deixando explícito que se deve, em muito, à retirada do trecho que determinaria a proibição da construção de novos hospitais psiquiátricos públicos2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Gurgel vai ainda um pouco mais fundo na questão, culpando a baixa qualidade do atendimento na quantidade de recursos repassados pelo SUS aos hospitais psiquiátricos, que considera pouco, propondo maior repasse. É curioso o entendimento dele de que a proposta fira a autoridade ou a necessidade do médico psiquiatra no tratamento de saúde mental, tanto ao declarar que os seus pares deputados podem não compreender com propriedade a questão, já que “quem cuida do cérebro humano é o médico psiquiatra”, como por, logo em seguida, aproveitar essa ideia para questionar o art. 10, acusando-o de colocar os psiquiatras em posição de suspeita, como se “fossem verdadeiros assassinos de pacientes nos hospitais”2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Para constar, o artigo propunha que a internação psiquiátrica involuntária deveria ser comunicada no prazo de 72 horas ao Ministério Público Regional, e o § 1º que o Ministério Público, “atendendo denúncia, ou por solicitação familiar ou do representante legal do paciente” poderia “designar equipe revisora multiprofissional de saúde mental”2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Tal consideração a respeito do art. 10 é um dos pontos mais complexos nesse momento de debate final, de forma que atravessa algumas ideias e juízos a respeito de seu conteúdo. A votação deste ou de seu § 1º tem motivos distintos advindos de deputados com posicionamentos até contrastantes. O que complexifica é que foram manifestadas contrariedades, mesmo por deputados que se mostravam a favor da ideia do projeto e discordantes do art. 4º, como Oliveira, que defende a reforma, mas é conservador quando se trata da posição do médico como figura de autoridade. Segundo ele, é contra, pois o parágrafo seria “enorme interferência sobre a atividade médica, sobre os psiquiatras”2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... . Essa discordância se aproxima a de deputados mais conservadores, como Regis Cavalcante, que inclusive tem críticas mais profundas ao dizer que a medida “criminaliza o ato médico”2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... , de forma que encaminha requerimento de destaque para o art. 10, não se limitando ao parágrafo mencionado.
Cabe destacar outra linha de argumentos contra o § 1º do art. 10. Alguns, como Rafael Guerra (PSDB-MG) e Fernando Coruja (PDT-SC), declaram serem contra por suposta inconstitucionalidade, por atribuir função ao Ministério Público. Apesar disso, o que se conclui é que, conectado à complexidade do tema da reforma, à discussão sobre como devem ser tratados os usuários dos serviços de saúde mental, existe uma preocupação e uma defesa da posição profissional do médico que, a certo nível, se pretende técnica, terapêutica, mas diz respeito também à manutenção de autoridade. Esse ponto específico pode ser tema de mais profunda investigação quanto da sua importância e transformação com a reforma.
Por fim, da discussão em 2001 na Câmara, o resultado foi a retirada do art. 4º, produto das articulações para aceitação do substitutivo do Senado, e, também, do art. 10 § 1º, segundo os argumentos expostos. Quanto a este último, não fica claro se está relacionado com o que foi concedido nas articulações. Em detrimento disso, fica evidente que há uma construção contínua, até a votação final, culminando com sua exclusão. Como ajuste final, é realizada a reorganização dos artigos após as supressões, chegando à versão derradeira, que se tornou a Lei nº 10.216/2001.
Conclusões
A partir dessa reflexão histórica, evidenciam-se pontos sensíveis das conquistas político-administrativas no âmbito da Reforma Psiquiátrica e mapeiam-se os limites gerados pelas concessões dos atores. Essas compreensões do caráter limitado das transformações dos oponentes da matéria são representativas do conservadorismo e das estratégias de negociações do Estado brasileiro. Entretanto, de forma alguma, diminuem os avanços protagonizados pelo projeto e conceitos terapêuticos que orientam o movimento antimanicomial. Arcabouços científicos e sociais acumulados ao longo de décadas por profissionais e movimentos, prévios às discussões parlamentares2525 Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc Saúde Colet. [internet]. 2018 [acesso em 2020 jun 16]; 6(23):2067-2074. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182... .
Segundo os discursos do legislativo, a mudança não foi necessariamente que as alas mais reacionárias tenham sido convencidas e transformadas em mais favoráveis com as discussões. Para alguns deputados, o ponto mais significativo foi a inclusão de elementos alinhados ao seu posicionamento e retirada de outros contraditórios às suas intenções. Observa-se que o projeto ficou menos arrojado, tornando-se aceitável, por meio das mediações argumentativas dos parlamentares.
Essas constatações, possíveis a partir da análise sistemática dos discursos aqui realizada, revelam-nos a habilidade política por parte daqueles que a propuseram e defenderam, entendendo que havia reação forte o suficiente para tornar a intransigência perante esse debate inviabilizador da aprovação. Assim, considera-se que a complacência do proponente e parte dos defensores das concessões foram decisões estratégicas, tanto ao construir votação que fosse mais positiva dentro do substitutivo do Senado quanto ao tentar garantir o possível, negando o art. 4º – que era mais avesso e inviável –, mesmo perdendo, em contrapartida, o art. 10 § 1º. Ainda sobre conjuntura da aprovação, infere-se que o caso Damião Ximenes tenha pressionado, de alguma forma, o Legislativo em função de sua repercussão internacional, gerando celeridade e possibilitando posicionamentos contundentes, como o de Fernando Coruja (PT-MG) que, ao fazer uma defesa do projeto, argumenta não haver mais viabilidade para emendas, e que deveria ser votado o projeto original ou substitutivo do Senado, realizando, no máximo, supressões no texto2222 Brasil. Congresso Nacional, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. [internet]. [acesso em 2020 fev 18] 28 Março 2001. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD28MAR2001.pdf#page=.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf... .
Na lei, entre os elementos que propiciam retrocessos de conquistas, está a questão dos leitos psiquiátricos. Ela tem sucesso em propor o novo modelo de assistência e saúde, com foco no modelo extra-hospitalar, mas ancora-se na eficiência de uma gestão que zele e concorde com oposição ao regime asilar. Não há determinação explícita que impeça uma gestão discordante, de perfil análogo aos opositores ou mais reacionário, de reconstruir medidas do modelo antigo, que tentavam superar, se considerarmos apenas a letra da lei. Exemplo é a reinclusão de leitos psiquiátricos entre investimentos e a declaração de que o Ministério da Saúde lamenta a diminuição da oferta, subvertendo o que se considerava conquistas pelos movimentos que a consubstanciaram55 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução nº 32, de 14 de dezembro de 2017. Estabelece as Diretrizes para o Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Diário Oficial da União. 22 Dez 2017.,2626 Brasil. Ministério da Saúde. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Nota Técnica nº 11/2019. [internet] Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2020 fev 18]. Disponível em http://mds.gov.br/obid/nova-politica-nacional-de-saude-mental.
http://mds.gov.br/obid/nova-politica-nac... . Outro, é a situação atual de retomada/permanência das Internações Compulsórias como ferramenta de segregação e sobrevivência do sistema arcaico no Brasil pós-reforma, perpetuando controle sobre grupos excluídos2727 Braga CP, D’Oliveira AFPL. A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):33-44., sobretudo em torno de pessoas em uso de crack e outras drogas2828 Azevedo AO, Souza TP. Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis [internet]. 2017 [acesso em 2020 jun 16]; 27:491-510. Disponível em: https://scielosp.org/article/physis/2017.v27n3/491-510/.
https://scielosp.org/article/physis/2017... ,2929 Pontes AK, Meza APS, Bicalho PPG. Ciência e política das drogas: as controvérsias em torno das políticas públicas de internação compulsória. Estud. pesqui. psicol. [internet]. 2015 [acesso em 2020 jun 16]; 15(4):1433-1450. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-834565.
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso... .
Finalmente, aproximando os argumentos históricos e contemporâneos, observamos a permanência e a evolução de críticas semelhantes. A defesa do hospital psiquiátrico permanece, mas torna-se menos acentuada à medida que este, apesar de desprivilegiado, não está ameaçado. A preocupação com o controle sobre o ‘louco incapaz’ cede espaço à defesa da autoridade do médico sobre a internação compulsória. Reunidos, constroem um quadro em que a reação se justifica em defesa da rede hospitalar, da autoridade da classe médica – com teor corporativista – e no descrédito da viabilidade do cuidado em liberdade.
A construção da saúde mental após a reforma, principalmente se considerados os dispositivos posteriores componentes da Raps, provaram sua eficácia muito além desse descrédito. Por outro lado, não impedem que os discursos avessos se façam orientadores de ações institucionais caso haja gestão pouco alinhada. A reforma, então, pela natureza da conjuntura política que a concretizou e pelo texto que a oficializa, necessita de atenção constante e trabalho profissional, técnico e terapêutico que permita continuidade.
A título de autocrítica, consideramos que apresentamos elementos recolhidos de um fluxo histórico complexo em que se consolidava o processo de redemocratização do País. Ao nos concentrarmos nos atores legislativos, identificamos tópicos de avanços da garantia de direitos e parte dos resíduos contrarreformistas contemporâneos que podem colaborar para reflexões estratégicas do campo de ciência e política. Entretanto, ao privilegiarmos o aspecto institucional, reduzimos o foco do contexto histórico que incluiria outros atores de uma rede extensiva e capilarizada. Entendemos, assim, que essa é apenas uma fração da complexa realidade das múltiplas forças agenciadas na construção contemporânea da Reforma Psiquiátrica. Compreender sua completude é tarefa pertinente a outros trabalhos que tanto nós como outros pesquisadores precisaremos seguir tecendo, por meio de novas abordagens e novos métodos.
- Suporte financeiro: não houve
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Ago 2021 - Data do Fascículo
Out 2020
Histórico
- Recebido
05 Mar 2020 - Aceito
27 Jul 2020