ESTE NÚMERO ESPECIAL DA REVISTA ‘SAÚDE EM DEBATE’, intitulado Retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é um compromisso democrático, tributo histórico e compartilhamento de saberes. Em cada texto, temos um retrato da nossa época. Um recorte do cotidiano dos serviços de saúde e de formas de cuidado reveladoras de um tempo que exigiu transformações sociais. Cada composição é uma espécie de instantâneo recortado do fluxo de um tempo produtivo dos novos paradigmas da desinstitucionalização. Retratos que se apresentam como peças da roda do conhecimento e das práticas do campo da saúde mental e da atenção psicossocial contemporâneos. São instantâneos da ousadia em que a aceitação da diversidade e o amadurecimento da construção da democracia aboliam o que aprisionava, para consumar a liberdade. São retratos da inclusão e da justiça social que aproximam a saúde mental da saúde coletiva.
No cenário factual, a Constituição de 1988 apresenta-se como a baliza dessas transformações da saúde pública brasileira, momento da construção do Sistema Único de Saúde e da abertura dos horizontes do cuidado da saúde mental com a Reforma Psiquiátrica Brasileira na conjuntura da democratização do País. Esses novos modelos de cuidados desembocaram na construção de uma rede de atenção orientada à substituição da lógica de internação hospitalar, até então principal meio de tratamento àqueles que apresentavam sofrimento psíquico. Foi essa implementação e sustentação política, por mais de 30 anos, que conferiu ao Brasil um lugar de destaque e reconhecimento internacional no campo da saúde mental11 Caldas ALJM. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso 2020 out 1]; 35(11):e00129519. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502.
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Ciência, militância, sensibilidade artística e cultural e relatos de experiências dos serviços têm consolidado narrativas com diferentes matizes sobre o cuidado em liberdade, evidenciando o quanto a expressividade dessas construções de forte conteúdo simbólico e material demarcam os territórios das práticas locais. Entretanto, a partir de 2016, mudanças nas diretrizes governamentais relativas às políticas de saúde mental e publicações normativas ameaçam as conquistas do processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira.
O cuidado personalizado e as estratégias de atenção psicossocial vêm deixando a linha de frente dando lugar à retomada de um modelo que privilegia leitos em hospitais psiquiátricos, centrado em práticas que desconsideram as necessidades e os desejos das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e daquelas com necessidades relacionadas com o uso de substâncias psicoativas. Nesse sentido, os saberes-fazeres representativos dos avanços da saúde mental brasileira, em contraponto aos retrocessos e disputas, precisam ser analisados e debatidos em perspectiva. Aferir avanços e dificuldades, compartilhar conhecimentos e estratégias, de modo a estimular o desenvolvimento das políticas públicas de saúde sem maiores prejuízos para a garantia de direitos, mobilizaram essa comissão, resultando na presente proposta editorial.
Há que se destacar que a chamada para submissão dos artigos para este número temático, fruto de parceria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), antecedeu a pandemia de Covid-19 e, por isso, não contempla a temática. Em contrapartida, são instantâneos de um mundo imediatamente anterior, já marcado pela incerteza e pelo/a isolamento/exclusão social, agora agravados pela pandemia. Os textos nos oferecem um acúmulo de aprendizados sobre o cuidado em saúde mental e nos lembram da importância dos vínculos, da escuta sensível, da promoção da autonomia e da cidadania.
Esta é a segunda vez que a revista ‘Saúde em Debate’ publica um número especial sobre a Reforma Psiquiátrica. Para os ‘Retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira’, foram submetidos mais de 180 manuscritos, recorde absoluto para o Cebes e a revista ‘Saúde em Debate’ – e um desafio para a equipe editorial –, que acolheram a proposta, concebida em um momento adverso para a Política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas, decorrente dos movimentos retrógrados contra reformistas.
O resultado é um panorama diversificado da produção de conhecimento de autores de diferentes estados e instituições do País, a qual tem procurado compreender o alcance e os desafios das políticas e práticas da saúde mental. Os manuscritos aqui publicados destacam os avanços, relatam experiências implicadas e densas, mas não se esquivam das reflexões críticas; e, além das conquistas e possibilidades, contextualizam contradições, limites e impasses do campo.
Os textos selecionados dão ênfase aos vínculos construídos na vida experienciada nos territórios da liberdade, nos saberes e nas práticas presentes nas Redes de Atenção Psicossocial e abordam os temas da desinstitucionalização, saúde mental infantojuvenil, atenção às necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, projeto terapêutico singular, crise, autonomia o papel das tecnologias de cultura e arte para a potencialização da vida.
Paralelamente, tópicos do processo histórico e do desenvolvimento das bases legais colocam em relevo o enfrentamento ao modelo manicomial e da implementação da rede assistencial de base comunitária e territorial. Entre os convidados para a edição, Benedetto Sarraceno prospecta o futuro da psiquiatria e da saúde mental, Edmar Oliveira e Ana Szapiro dialogam com a densidade do tempo vivido e o horizonte de possibilidades da Reforma Psiquiátrica Brasileira no momento presente. No mesmo diapasão, a Lei nº 10.216, que, em 2019, completou 21 anos, foi revisitada por Paulo Delgado, em um recorte inédito do texto de uma entrevista concedida ao Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fiocruz Brasília.
Retratos da Reforma Psiquiátrica, tal como outros retratos, recorta, documenta, descreve, idealiza, conhece e dá a conhecer, congela um pedaço dos percursos para serem visualizados – edições do tempo e do espaço sustentadas sobre o estatuto da verossimilhança e das representações do presente. Vivemos em tempos árduos que precisam de lembretes do que somos capazes de realizar, do quanto todos os nossos feitos exigiram a ampliação das fronteiras do conhecimento, da humanidade, da persistência, do senso crítico e da disposição para os ajustes. Esperamos que a leitura dos trabalhos aqui reunidos inspire novas questões para pesquisa e construção de propostas estratégicas, reafirmando o caminho de respeito à diversidade, de uma educação à liberdade22 Basaglia F, Ongaro FB, Casagrande D, et al. Considerações sobre uma experiência comunitária. In: Amarante P, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. p. 11-40. e de garantia de direitos plenos de cidadania a todas as pessoas.
Convidamos todos a se aproximarem desta coletânea de textos-retratos como parte de um esforço da resistência de consolidação de uma memória que provoca reflexões sobre o que já realizamos na Reforma Psiquiátrica Brasileira, como propulsão e potência para enfrentar os desafios que se renovaram.
- *Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
- 1Caldas ALJM. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso 2020 out 1]; 35(11):e00129519. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502
» https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502 - 2Basaglia F, Ongaro FB, Casagrande D, et al. Considerações sobre uma experiência comunitária. In: Amarante P, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. p. 11-40.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Ago 2021 - Data do Fascículo
Out 2020