Multilateralismo, ordem mundial e Covid-19: questões atuais e desafios futuros para a OMS

Multilateralism, world order and Covid-19: current issues and future challenges for the WHO

Celia Almeida Rodrigo Pires de Campos Sobre os autores

RESUMO

Este ensaio discute a atuação da Organização Mundial da Saúde (OMS) à luz dos debates sobre a ordem mundial capitalista e o multilateralismo, analisando o enfrentamento de pandemias (incluída a Covid-19) na dinâmica de um sistema interestatal heterogêneo, com assimetrias de riqueza e poder, e conduzido por potências hegemônicas. Assume-se como hipótese de trabalho que as mudanças na credibilidade da OMS e as reivindicações de reforma têm antecedentes que remontam à última década do século XX e estão relacionadas com a governança global, geral e de saúde, que se vincula às transformações do multilateralismo e da ordem mundial capitalista ao longo do pós-guerra e do pós-guerra fria. Utiliza-se uma abordagem histórica crítica e o conceito de sistema-mundo; analisam-se dados de revisão de literatura e de documentos oficiais. Conclui-se que a fragilização da organização e o constante escrutínio a que está submetida há décadas, para além das controvérsias que lhe são inerentes, de possíveis falhas ou de ‘falta de capacidade’, resultam de uma dupla dinâmica, interna e externa, e podem ser mais bem compreendidas no contexto de desafios impostos tanto pelas opções políticas institucionais da Organização das Nações Unidas e da OMS quanto pelas transformações da ‘nova ordem mundial liberal’ associada à globalização contemporânea e ao crescimento dos nacionalismos.

PALAVRAS-CHAVE
Pandemias; OMS; Ordem mundial; Multilateralismo; Covid-19

ABSTRACT

This essay discusses the work of the World Health Organization (WHO) in the light of debates about the capitalist world order and multilateralism, and examines how pandemics (including Covid-19) are addressed in the dynamics of a heterogeneous inter-State system with wealth and power asymmetries and led by hegemonic powers. The working hypothesis is that the WHO’s changing credibility and the demands for its reform date from the late 20tn century and are related to global (general and health sector) governance, linked also to the transformations of multilateralism and the capitalist world order during the post-war and post-Cold War periods. Data from a literature review and documents were analysed on a critical approach to History and using the ‘world system’ concept. The undermining of the WHO and the scrutiny to which it has been subjected for decades were found to have resulted less from the controversies inherent to the organisation or any failings or ‘lack of capacity’ than from a dual, internal and external, dynamic. This process can be better understood in view of challenges posed both by the United Nations’ and the WHO’s institutional political options and by changes in the ‘new liberal world order’ associated with contemporary globalisation and the spread of nationalisms.

KEYWORDS
Pandemics; WHO; World order; Multilateralism; Covid-19

Introdução

Muito se tem escrito sobre a pandemia de Covid-19 no Brasil e no mundo ante as enormes incertezas, medo, insegurança e perplexidade que afligem a humanidade nestes ‘novos tempos’ de pandemia. Os temas são variados e tentam abranger uma ou várias de suas dimensões, que se entrelaçam em complexos processos em diferentes realidades. Vão desde os assuntos relativos à dimensão biológica e fisiopatológica da enfermidade e às medidas de prevenção e preparação dos sistemas de saúde para enfrentá-la; até às questões bioéticas e de direitos humanos envolvidas nos mecanismos de controle da pandemia, à maior visibilidade das desigualdades seculares que assolam as populações mundiais e à importância (e papel) dos sistemas de informação e comunicação, político e governamental dos diferentes países nesse processo, assim como à atuação dos organismos internacionais, principalmente a Organização Mundial da Saúde (OMS). As possíveis ‘causas’ desse ‘desastre’ global e a catastrófica crise econômica, anunciada previamente e em curso antes da chegada do vírus, mas exacerbada pela pandemia, também têm sido objeto de muito debate.

A princípio, pareceria ocioso escrever sobre esses temas sem cair na reiteração compulsiva do que já se sabe, e está publicado em diferentes meios, e do muito que falta conhecer sobre esse novo/velho vírus, suas ‘intenções’ e caminhos futuros para o planeta. Entretanto, aparentemente, as especulações (e achados provisórios) dominam o debate; e os esforços analíticos para explicar toda essa complexa dinâmica e ajudar a entender de onde viemos, como chegamos até aqui e para onde vamos não são abundantes.

Neste ensaio, abordaremos alguns aspectos menos estudados, a nosso ver, que se referem ao multilateralismo e suas transformações ante as mudanças da ordem mundial ao longo do tempo. A proposta é discutir a pandemia de Covid-19 e a atuação da OMS à luz dos debates sobre o multilateralismo e do enfoque de sistema mundial (segundo a conceituação de Wallerstein11 Wallerstein I. The modern world system. Nova York: Academic Press; 1974.), ou seja, analisar o enfrentamento da pandemia em nível global como resultado da dinâmica do sistema interestatal (composto pelos Estados-Nação) em um mundo caracterizado por grandes assimetrias de poder (centro, periferia e semiperiferia, segundo a tipologia elaborada por aquele autor) e conduzido por potências hegemônicas, que mudam ao longo dos séculos, sem que se alterem, porém, os mecanismos de fortalecimento e acréscimo desse poder, próprios do capitalismo - competição econômica, acumulação de riqueza e disputas territoriais. Assumimos, concordando com Fiori22 Fiori JL. O poder global e a nova geopolítica das nações. Crit. Emancip. [internet]. 2009 [acesso em 2020 jul 6]; 1(2):157-183. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ojs/index.php/critica/article/view/186.
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3 Fiori JL. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. J. Humanit. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jun 15]; 1(1):42-45. Disponível em: https://www.manchesteropenhive.com/view/journals/jha/1/1/article-p42.xml.
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-44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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, que as guerras (e, em consequência, a prioridade do aparato militar) foram o motor propulsor de uma dinâmica interestatal permeada por constantes conflitos, de maior ou menor dimensão, e pela necessidade perpétua de acúmulo de poder e riqueza pelos grandes impérios. O conjunto de instituições e organizações multilaterais - a Organização das Nações Unidas (ONU) e o sistema de Bretton Woods -, criados no pós-guerra para conduzir uma determinada ordem mundial, econômica e setorial, integram essa dinâmica. A ordem mundial pode ser definida, portanto, a partir das “características institucionais e normativas incontestes em circunstâncias de cooperação, concorrência e conflito em larga escala”55 Chase-Dunn C, Lerro B. Democratização da governança global: perspectivas históricas mundiais. Sociologias. [internet]. 2013 [acesso em 2020 maio 12]; 15(32):52-93. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/38641.
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(62) no sistema interestatal.

Alguns esclarecimentos teóricos e conceituais são necessários. Segundo Ruggie66 Ruggie JG. Multilateralism: the anatomy of an institution. Int. Organ. [internet]. 1992 [acesso em 2020 maio 10]; 46(3):561-598. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/international-organization/article/multilateralism-the-anatomy-of-an-institution/AB34548F299B16FDF0263E621905E3B5.
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(11), ‘multilateralismo’, na perspectiva liberal clássica, pode ser entendido como a articulação de três ou mais países em torno de algum objetivo de interesse comum, o que pressupõe mecanismos institucionais de coordenação e interação estabelecidos segundo certos princípios e normas de conduta, independentemente da pluralidade de interesses das partes envolvidas ou das exigências estratégicas, que podem ou não resultar em políticas internacionais a serem seguidas por todos. Porém, para Cox77 Cox RW. Multilateralism and World Order. Rev. Int. Stud. [internet]. 1992 [acesso em 2020 jul 8]; 18(2):161-180. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20097291.
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(161-162), multilateralismo e ordem mundial são conceitos inter-relacionados, sendo que o primeiro não pode ser desvinculado do contexto histórico em que ocorre, isto é, o contexto que molda a estrutura da ordem mundial, no qual o multilateralismo é uma força ativa. Assim, para entender o potencial de mudança do multilateralismo, é necessário analisá-lo na perspectiva das relações de poder que movem o sistema mundial. Para esse autor, o termo ‘multilateral’ incorpora pelo menos dois significados - um referente às relações interestatais e outro às relações entre variados atores públicos, privados e da sociedade civil, mediadas pelos Estados e pelas organizações internacionais.

O contexto específico do surgimento do conceito de multilateralismo remonta às negociações do pós-guerra. Assim, a ‘dimensão econômica’ do multilateralismo consiste na estruturação das bases para impulsionar a expansão da economia capitalista mundial, com a consequente mudança na condução hegemônica, que passou então para os Estados Unidos da América (EUA), deslocando a Inglaterra que ocupou essa posição por alguns séculos. Outrossim, a ‘dimensão política’ se refere à institucionalização dos arranjos, criados naquele momento, para proporcionar a cooperação interestatal na solução de problemas comuns, ainda que com a participação de outros atores, privados e da sociedade civil, articulados nessa rede de relações. Nessa perspectiva, o multilateralismo deve ser analisado considerando também a dinâmica potencial e efetiva de mudanças nesse conjunto que atua tanto em nível local quanto global77 Cox RW. Multilateralism and World Order. Rev. Int. Stud. [internet]. 1992 [acesso em 2020 jul 8]; 18(2):161-180. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20097291.
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.

Ambos os termos - multilateralismo e ordem mundial - integram campos multidisciplinares e transdisciplinares de análise, seja das relações internacionais, da ciência política ou da economia política internacional.

No âmbito da saúde, trabalhamos com o conceito de ‘saúde coletiva’, elaborado nos anos 1970-1980 com o objetivo de “institucionalizar um campo de conhecimento especifico e uma nova vertente analítica”, fundada na “negação da prática médica hegemônica”, operadora de um modelo de cuidados à saúde excludente e inadequado, assim como “em oposição à prática tradicional da saúde pública e da medicina preventiva, por suas insuficiências e subordinação à perspectiva médica”88 Birman, J. A physis da saúde coletiva, PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva. [internet]. 2005 [acesso en 2020 maio 5]: 15(supl):11-16. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a02.pdf.
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(974). O adjetivo ‘coletivo’ especificava a preocupação pela dimensão histórica e social das doenças, representando uma inflexão decisiva no conceito de ‘saúde’, assim como promovia a reestruturação do próprio campo da saúde pública, ao enfatizar a prática política como transformadora do social. Ao mesmo tempo, atribui novo significado ao termo ‘público’, não mais visto como oposto ao privado, mas como espaço de expressão, enfrentamentos e negociação de demandas, sejam elas coletivas ou individuais99 Pêgo RA, Almeida C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2002 [acesso em 2020 maio 5]; 18(4):971-989. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v18n4/10180.pdf.
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. “O eixo conceitual da saúde coletiva se situa em um domínio onde confluem várias áreas do conhecimento”99 Pêgo RA, Almeida C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2002 [acesso em 2020 maio 5]; 18(4):971-989. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v18n4/10180.pdf.
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(975). Portanto, trata-se também de um campo trans e interdisciplinar.

Para a análise que se pretende neste ensaio, esses conceitos, sumariamente descritos, articulam-se para explicar a atuação da OMS na atual pandemia de Covid-19. Ocupando o centro dos debates, a organização tem sido muito criticada e questionada, seja por questões pertinentes - como certa hesitação no anúncio de medidas de prevenção e contenção, ou declarações controversas -, seja por notícias falsas que inundam as redes sociais, ou o não seguimento de suas orientações por parte de seus Países-Membros; ou ainda por retaliação político-ideológica dos EUA (e eventualmente de outros países) na sua luta pelo controle de territórios que ameaçam sua hegemonia mundial. Muitos alardeiam a fragilidade e o enfraquecimento institucional da organização, assim como sua incapacidade para lidar com os problemas de saúde que afligem as populações mundiais, principalmente em caso de pandemias, como a Covid-19. Ademais, é quase unânime o pleito por ‘reforma’, como voltou a ser objeto de discussão na 73ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS) (maio, 2020), apesar de que, desde 1997, está em curso um processo de reforma da ONU, iniciado pelo então Secretário-Geral Kofi Annan, ao qual a OMS aderiu, com avanços e recuos, sem mudanças significativas.

A maioria das críticas e a reiteração de reforma da OMS ao final da segunda década do século XXI em plena pandemia de Covid-19, sem sombra de dúvida a maior já enfrentada pela humanidade, replicam a mesma ladainha há décadas - falta de transparência, inoperância, ineficiência etc. Os fatores que desembocam na atual situação de crise institucional, para além dos amplamente abordados - composição de seu orçamento, do cumprimento estrito das normas da instituição (por exemplo, o Regulamento Internacional da Saúde - RSI, revisto em 2005, vigente desde 2007) e dos limites estruturais (supostamente crônicos) de sua atuação -, são atribuídos à OMS desde seu estabelecimento em 1948. As recomendações de ‘preparação’ ou ‘prontidão’ para enfrentamento dos riscos e ameaças ‘normais e esperadas’ no mundo globalizado e destruidor de hoje também são frequentes. Não são muitos, porém, os analistas que se dedicaram a discutir os elementos históricos, estruturais e conjunturais que desembocam na atual realidade e que, talvez, ajudariam a entender melhor os limites reais que entravam o agir da organização.

Neste estudo, assumimos a OMS não como mera organização formal e estática composta por Estados-Membros organizados em torno de um corpo de normas, regras e procedimentos decisórios, mas como um espaço sociopolítico de embates, negociações e enfrentamentos que refletem a dinâmica mais ampla do multilateralismo e da ordem mundial.

A discussão está organizada em quatro partes. Na primeira, analisamos o significado do sistema multilateral no âmbito da ordem mundial liberal do pós-guerra, capitaneada pelos EUA, seus reflexos na criação da OMS e definição de seu papel estratégico no setor, assim como na estruturação dos sistemas de saúde. A seguir, discutimos o contexto de mudanças no pós-guerra fria, com foco na condução ‘unilateral’ da ‘nova ordem liberal’ e seus conflitos no sistema interestatal, que repercutem na dinâmica setorial. Na terceira parte, alinhavamos algumas ideias a respeito dos ‘riscos’ e ‘ameaças’ na ‘sociedade de risco’ contemporânea e o papel que as epidemias e pandemias jogam nessas dinâmicas. Por fim, tecemos algumas conclusões que remetem à necessidade de aprimoramento de nossa reflexão sobre esse tema.

A hipótese de trabalho deste ensaio é que as mudanças na credibilidade da OMS, assim como da ONU, e as reivindicações de reformas têm antecedentes que remontam à última década do século XX e estão intimamente relacionadas com a governança global, geral e do setor saúde, que, por sua vez, vinculam-se às transformações do multilateralismo e da ordem mundial capitalista ao longo do pós-guerra, em dois períodos cruciais: o pós-guerra fria (anos 1990) e a segunda década do século XXI. Argumentamos ainda que a perspectiva de ‘risco’ e ‘ameaças’, que pretendeu substituir a ideia de ‘segurança em saúde’ (health security), nesse último período, fortalece a perspectiva da saúde pública tradicional, centrada em mecanismos e instrumentos científicos e metodológicos supostamente imunes às distorções da ‘política’ (politics).

Multilateralismo, ordem mundial e saúde no pós-guerra

O desenvolvimento histórico do sistema mundial moderno pode ser estudado a partir das mudanças nas suas instituições-chave - produção de mercadorias, tecnologias e relações de poder -, “conformadas por lutas entre poderes rivais e entre centro e periferia ao longo dos últimos seis séculos”55 Chase-Dunn C, Lerro B. Democratização da governança global: perspectivas históricas mundiais. Sociologias. [internet]. 2013 [acesso em 2020 maio 12]; 15(32):52-93. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/38641.
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(60-62). A ordem mundial foi reestruturada em diferentes momentos históricos, consolidando a acumulação capitalista a partir de distintas ‘ondas de globalização’. Contudo, por sua própria natureza, o sistema mundial é regido por “duas forças político-econômicas contraditórias”1010 Fiori JL. Sobre o poder global. Novos Estud. CEBRAP. [internet]. 2005 [acesso em 2020 mar 15]: 73(3):61-72. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/n73/a05n73.pdf.
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(68): 1) a tendência na direção de constituir um império ou Estado universal, que, geralmente, não tem interesse colaborativo e se impõe aos demais Estados nacionais; e 2) a resistência, ou recusa dos demais Estados, em aceitar imposições que ameacem sua soberania. Sendo assim, esse longo processo histórico foi marcado por guerras, mudanças na condução hegemônica mundial, revoluções e movimentos antissistêmicos, crescentemente transnacionais.

Historicamente, a dinâmica do sistema mundial avança liderada por alguma potência/estado nacional (o hegemon), que conseguiu garantir o controle de territórios políticos e econômicos mantidos na forma de colônias, domínios ou periferias (in)dependentes22 Fiori JL. O poder global e a nova geopolítica das nações. Crit. Emancip. [internet]. 2009 [acesso em 2020 jul 6]; 1(2):157-183. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ojs/index.php/critica/article/view/186.
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,55 Chase-Dunn C, Lerro B. Democratização da governança global: perspectivas históricas mundiais. Sociologias. [internet]. 2013 [acesso em 2020 maio 12]; 15(32):52-93. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/38641.
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. Em outras palavras, a posição hegemônica é uma conquista, um lugar de poder disputado mesmo nos períodos de paz, e transitória, que só pode ser mantida com a expansão e a acumulação contínua do poder do hegemon, razão de existência do próprio sistema interestatal1111 Fiori JL. Dialética da Guerra e da Paz. In: José Luís Fiori, organizador. Sobre a Guerra. Petrópolis: Vozes; 2018. p. 75-102.,33 Fiori JL. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. J. Humanit. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jun 15]; 1(1):42-45. Disponível em: https://www.manchesteropenhive.com/view/journals/jha/1/1/article-p42.xml.
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. Apenas duas grandes potências conseguiram, em momentos históricos distintos e de forma específica,

impor o seu poder e expandir as fronteiras de suas economias nacionais até quase o limite da constituição de um império mundial: a Inglaterra [1870 e 1900] e os Estados Unidos [1945 e 1973]1010 Fiori JL. Sobre o poder global. Novos Estud. CEBRAP. [internet]. 2005 [acesso em 2020 mar 15]: 73(3):61-72. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/n73/a05n73.pdf.
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(69-70).

Neste trabalho priorizamos dois períodos do século XX, especialmente relevantes para o que nos interessa discutir: o pós-guerra mundial (1945-1960) e o pós-guerra fria (de 1990 em diante).

Ordem mundial pós-guerra e a estruturação dos sistemas de saúde

É bem conhecido que a segunda guerra mundial teve impacto devastador em vários continentes (exceto América Latina e Sul da África), remodelou a ordem mundial e teve como consequência a transformação radical do poder global, sob o comando dos EUA. O sistema de organismos multilaterais (operacionais e financeiros), criado no imediato pós-guerra sob a batuta norte-americana, tinha como principal objetivo a abertura das fronteiras ao comércio exterior e foi central para a chamada globalização econômica pós-guerra. A “estabilidade geopolítica” (bipolar) foi uma “pré-condição para a globalização econômica”1212 Held D. The diffusion of authority. In: Weiss T, Wilkinson R, editores. International Organization and Global Governance. London: Routledge; 2014. p. 60-72.(62); e a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) assim como a “ajuda externa”, também geradas nos EUA nesse período, cresceram de forma importante nesse processo1313 Almeida C. Saúde, Política Externa e Cooperação Sul-Sul. In: Buss P, Tobar S organizadores. Diplomacia em Saúde e Saúde Global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017. p. 4-38..

Surgiram, então, várias organizações multilaterais e agências transnacionais; formularam-se novas política globais, envolvendo Estados, organizações intergovernamentais e Organizações Não Governamentais (ONG), além de inúmeros grupos de pressão, sendo a ONU o centro de um novo sistema, que, ao mesmo tempo que alterou o arcabouço legal no qual os Estados operavam, alavancou uma rápida transformação econômica nos primeiros 30 anos (1945-1975).

Essa teia de relações facilitou a interlocução direta entre os poderes mundiais e possibilitou a inclusão da periferia capitalista nos processos decisórios multilaterais, mas incorporou no seu modus operandi a posição privilegiada dos atores mais poderosos de 1945. Em outras palavras, as novas relações de poder reproduziram a assimetria histórica tanto entre Estados quanto entre atores diversificados.

O elenco de mecanismos pelos quais a condução mundial contemporânea é exercida supera as relações formais interestatais, pela proliferação de atores que atuam nas arenas nacional e internacional. Embora os Estados nacionais continuem sendo peça crucial no sistema multilateral, ganham protagonismo as inter-relações entre distintos atores, e os mecanismos que utilizam em todos os níveis, e entre os processos de decisão em nível global e sua implementação nacional ou local (e vice-versa, isto é, os efeitos de ações locais em âmbito global). Os novos arranjos institucionais, e redes transgovernamentais, atuam paralelamente aos órgãos multilaterais; e atores puramente privados criam suas próprias instituições, abrangendo desde regulações voluntárias até tribunais arbitrais. Alguns desses mecanismos têm mais influência que os Estados nacionais: por exemplo, os mercados financeiros; o crescente uso de padrões do setor privado como princípios para várias áreas1414 Ruckert A, Labonté R. Public-private partnerships (PPPS) in global health: the good, the bad and the ugly. Third World Q. [internet]. 2014 [acesso em 2020 jan 18]; 35(9):1598-1614. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01436597.2014.970870.
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,1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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; e os lobbies, menos visíveis, em torno de interesses comerciais, como as redes sociais e as grandes mídias1616 Weiss T, Wilkinson R. International organization and global governance: what matters and why. New York: Routledge; 2014..

Há consenso, porém, na constatação de que a globalização econômica contemporânea criou problemas para os quais essa estrutura de governança global (denominação adotada na década de 1990) parece inefetiva. Nesses problemas incluem-se as epidemias, as pandemias e outros riscos transfronteiriços.

As configurações de poder e as políticas mudam em cada setor/área/tema e não são controláveis por um único ator. Isso não significa, porém, que todos os atores tenham igual poder de voz e voto ou influência na formulação da agenda ou das políticas, pois o bias está sempre a favor das grandes potências e seus interesses. Nessa complexa interdependência, a noção de ‘problemas globais compartilhados’ assegura que o multilateralismo pode moderar (mas não eliminar) as assimetrias de poder1212 Held D. The diffusion of authority. In: Weiss T, Wilkinson R, editores. International Organization and Global Governance. London: Routledge; 2014. p. 60-72.. Weiss e Wilkinson1616 Weiss T, Wilkinson R. International organization and global governance: what matters and why. New York: Routledge; 2014. alertam que é importante explorar essa dinâmica em distintas áreas, mas sem perder de vista toda a paisagem, ou seja, o contexto mais amplo em que ocorrem.

No que concerne ao setor saúde, muito sinteticamente, a consolidação da hegemonia norte-americana trouxe mudanças significativas no campo médico-científico, pois, durante a segunda guerra, os EUA deram um salto qualitativo importante na área de ciência e tecnologia, que foi utilizado a seu favor no período seguinte. Não se trata de detalhar aqui essa dinâmica, analisada em outros trabalhos1717 Almeida C. Os modelos de reforma sanitária dos anos 80: uma análise crítica. Saúde Soc. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jan 10]; 5(1):3-53. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v5n1/02.pdf.
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18 Almeida C. Reforma do estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 1999. [acesso em 2020 abr 28]; 4(2):263-286. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v4n2/7112.pdf.
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-1919 Starr P. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. 2. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica; 1991., mas de recuperar elementos que apoiam esta reflexão.

De acordo com Starr1919 Starr P. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. 2. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica; 1991.(188),

depois da Segunda Guerra Mundial, a medicina nos Estados Unidos havia se convertido em metáfora do progresso, transformando-se, pouco a pouco, na maior referência de competência setorial para o mundo ocidental.

A estratégia foi vincular a luta contra as doenças ao modelo de desenvolvimento: “pesquisa básica é ‘capital científico’; mais e melhor pesquisa é um dos elementos essenciais para alcançar nossa meta de pleno emprego”2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(398). Assim, os EUA institucionalizaram a pesquisa médica, que foi incluída na formação profissional, ampliaram e equiparam seu parque hospitalar, que se tornou referência como “um dos mais adiantados do mundo”2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(187). Esse avanço considerável foi facilitado pela emigração de cientistas europeus, refugiados no País, e pelo aporte financeiro e operacional do setor privado.

A indústria de fármacos e equipamentos norte-americana tornou-se uma das mais dinâmicas do mundo e, durante a Guerra Fria, a ciência assumiu função tanto simbólica quanto prática na manutenção da posição do País como “líder de um mundo livre”1919 Starr P. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. 2. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica; 1991.(392).

Esse processo repercutiu na estruturação mundial dos sistemas de saúde no pós-guerra, difundindo uma determinada ‘modernização’ da atenção à saúde. A ênfase estava

em um modelo assistencial hospitalocêntrico de alta tecnologia e na prática especializada, altamente inflacionária, além da grande prioridade à formação desse tipo de profissional2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(185).

Dessa forma, “como parte desse processo, a assistência técnica em saúde passou a integrar formalmente a política externa norte-americana”2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(187), com o desenvolvimento de programas de cooperação e ajuda externa voltados para a melhoria das áreas menos desenvolvidas e em reconstrução, difundindo-se internacionalmente os inegáveis avanços científicos conquistados pelo País e seu progresso industrial.

No final da década de 1960, o crescente gasto público com os sistemas de saúde (centrado na assistência médico-hospitalar) começou a alertar para possíveis problemas futuros com os custos em todos os sistemas de saúde. Da mesma forma, a intensa mobilização política e social dos anos 1960 e 1970 estimulou, também no campo da saúde, um grande debate ideológico, político e acadêmico que questionou os fundamentos básicos dos sistemas de saúde, propondo modelos alternativos de atenção à saúde (medicina preventiva, medicina comunitária, medicina social, médico de família, planejamento em saúde - sobretudo na América Latina e Caribe - e saúde coletiva, principalmente no Brasil)1717 Almeida C. Os modelos de reforma sanitária dos anos 80: uma análise crítica. Saúde Soc. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jan 10]; 5(1):3-53. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v5n1/02.pdf.
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,1818 Almeida C. Reforma do estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 1999. [acesso em 2020 abr 28]; 4(2):263-286. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v4n2/7112.pdf.
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. Tratava-se de uma ‘crise na saúde’ ou de uma ‘crise nos custos dos serviços de saúde’, centrada em um desenvolvimento tecnológico frenético e descontrolado, que privilegiava ‘o doente’ e não ‘a saúde’?

As críticas e a politização amplas da saúde, de diversos matizes, e os modelos reformadores preconizados como solução, confluíam num ponto central: a oposição ao excessivo privilégio dado à assistência médica nos serviços de saúde e à centralidade do médico na organização dos serviços. E, aliadas às mudanças nos financiamentos externos, repercutiram também na arena internacional da saúde2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(197).

Inicialmente centrada em uma perspectiva racionalizadora, essa crítica contundente confluiu, na década seguinte (1980), para a formulação do diagnóstico e das prescrições neoconservadoras, configurando uma ‘agenda pós-welfare’ também na saúde, focada nos custos do setor e que preconizava a implantação de medidas de contenção do crescimento do gasto sanitário. Nesse contexto, dois fatores foram cruciais: os custos médicos haviam subido muito mais do que em décadas anteriores (cerca de três pontos acima da inflação média da economia); e a parte governamental no financiamento havia aumentado substantivamente, seja nos países com sistemas majoritariamente públicos, seja naqueles que privilegiavam o setor privado1717 Almeida C. Os modelos de reforma sanitária dos anos 80: uma análise crítica. Saúde Soc. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jan 10]; 5(1):3-53. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v5n1/02.pdf.
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,1818 Almeida C. Reforma do estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 1999. [acesso em 2020 abr 28]; 4(2):263-286. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v4n2/7112.pdf.
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.

[...] a crise fiscal do Estado a partir de meados dos anos 1970 havia direcionado os refletores especificamente para dois problemas dos sistemas de saúde: a eficiência no uso dos recursos e a efetividade nos resultados alcançados. Por trás desses debates, já se evidenciava o esgotamento da hipótese que havia orientado o grande investimento estatal em saúde no pós-guerra: a suposição de que, uma vez superadas as deficiências devidas à inadequada capacidade produtiva e tecnológica dos serviços de assistência médica e aos efeitos de barreira dos altos custos da formação, as forças de mercado produziriam uma redistribuição de serviços e de profissionais (sobretudo médicos) das áreas e especialidades mais bem servidas, nas quais havia uma concentração de oferta (oversupply), para aquelas mais necessitadas de profissionais e assistência2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(197) .

Certamente, os avanços na ciência e na tecnologia haviam criado demandas de investimento, além de estimularem as reivindicações por melhores salários dos trabalhadores dos sistemas de saúde, em sintonia com o clima político da época. Porém, o ponto crítico se deslocara para a estrutura de financiamento dos sistemas e para a estratégia de seu desenvolvimento implantada até então.

Com o declínio do rápido e breve crescimento econômico e social do pós-guerra, eclodiu uma série de crises (simultâneas e sucessivas), exacerbadas pelas crises econômicas dos anos 1973 e 1978 (as ‘crises do petróleo’) e pelos resultados desastrosos dos ajustes macroeconômicos dos anos 1980 em diante, condicionados pelos empréstimos do Banco Mundial, que marcaram o renascimento do fundamentalismo neoliberal. Esses empréstimos foram condicionados a reformas também da área social (incluída a saúde), de acordo com determinados modelos de organização de serviços elaborados nos EUA, reformulados no Reino Unido e implementados mundo afora, com o apoio do Banco Mundial1717 Almeida C. Os modelos de reforma sanitária dos anos 80: uma análise crítica. Saúde Soc. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jan 10]; 5(1):3-53. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v5n1/02.pdf.
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,2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.. O presidente Reagan, nos EUA, e Margareth Thatcher, no Reino Unido, foram protagonistas relevantes nesse processo.

Foi o fim da guerra fria (1989) que descortinou a complexidade dessa ordem mundial, evidenciada tanto pelas mudanças que impulsionaram (tecnológicas, econômicas, sociais, políticas, culturais e éticas) quanto pelo aumento e maior visibilidade do elenco de atores transfronteiriços que atuavam na arena internacional1616 Weiss T, Wilkinson R. International organization and global governance: what matters and why. New York: Routledge; 2014.. Também, no setor social iniciou-se a era de desconstrução de direitos, das reformas sociais contemporâneas, que pregavam a diminuição do papel do Estado na provisão de serviços e benefícios. Essas reformas fragilizaram e espoliaram os sistemas de proteção social em geral, e de saúde em particular, em todo o mundo. O sacrifício maior recaiu sobre as populações mais vulneráveis, com o aumento exponencial das desigualdades em praticamente todos os países, extremamente mais dramático nos países em desenvolvimento. Essa dinâmica, caracterizada por uma transição na ordem mundial, invadiu o século XXI com mais crises, radicalização econômica e político-ideológica, fortalecendo a ultradireita. Os resultados de décadas desse processo destruidor estamos vivendo agora.

A OMS nesse contexto

Desde o início do século XX, houve várias tentativas de criar uma instituição internacional permanente na área de saúde com atuação em nível global, com sede tanto nas Américas como na Europa, com maior predominância das primeiras na cena internacional, sob os auspícios dos EUA2121 Lima NT. O Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde: uma história de três dimensões. In: Finkelman J, organizadores. Caminhos da saúde pública no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; Opas; 2002. p. 23-116., seja em termos financeiros, seja em termos de poder de enforcement em âmbito internacional. Havia divergências nas perspectivas norte-americanas e europeias em relação à saúde, sendo as primeiras mais centradas na ‘medicina social’ e que dispunham de orçamentos inexpressivos. Todas essas instituições constituem antecedentes da OMS e participaram dos debates de sua criação; logo após o final da guerra, suas atividades e funções foram absorvidas pela nova organização (quadro 1).

Quadro 1
Criação do sistema de organizações multilaterais

Vários autores analisaram em detalhe esse processo histórico, mas interessa relembrar algumas especificidades. Datam da criação da OMS as inúmeras controvérsias que pautaram seu desempenho.

[...] a construção de sua legitimidade mundial foi um processo lento e controverso, tendo como ‘moeda de troca’ a oferta de colaboração para a reconstrução dos sistemas de saúde europeus e sua intervenção em ‘problemas mundiais de saúde’, isto é, epidemias e doenças infecciosas consideradas ameaças, seja para o comércio internacional seja para a influência geopolítica das potências hegemônicas2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(200-201).

A forma de constituição do orçamento da OMS - contribuições dos Países-Membros - viabilizou sua existência, ao mesmo tempo que submeteu a organização aos ditames das maiores potências: os EUA sempre foram um importante contribuinte da OMS, mas fizeram valer, ao longo dos anos, seu poder de ‘autonomia’ em relação à organização em nome da ‘segurança nacional’, assim como seu poder de veto na defesa de seus interesses nacionais, segundo concordavam ou não com as decisões da AMS, órgão máximo de decisão da organização2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.. Assim, a OMS era “percebida como estreitamente vinculada aos interesses dos Estados Unidos”2222 Brown T, Cueto M, Fee E. The World Health Organization and the transition from “international” to “global” public health. Am J Public Health. [internet]. 2006 [acesso em 2020 abr 15]; 96(1):62-72. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1470434/.
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(629).

As tensões da guerra fria também repercutiram na OMS, seja pela entrada e saída dos países socialistas (como Rússia e China), em distintos momentos, seja pelas disputas políticas mais amplas - segurança nacional, armamento nuclear, retórica pacifista e capacidade científica e tecnológica -, traduzidas em disputas internas.

Destacam-se as diferentes visões sobre a abordagem dos problemas de saúde: social versus econômica e tecnológica centradas nas enfermidades; campanhas de erradicação de doenças - malária ou varíola; apoio técnico de caráter instrumental (desenvolvimento do ‘Terceiro Mundo’ e luta contra o comunismo) versus apoio ao desenvolvimento dos sistemas de saúde2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.. O modelo norte-americano de assistência ao desenvolvimento, entendido como promotor da “modernização com reformas sociais limitadas, administrada por um pequeno grupo de especialistas”2222 Brown T, Cueto M, Fee E. The World Health Organization and the transition from “international” to “global” public health. Am J Public Health. [internet]. 2006 [acesso em 2020 abr 15]; 96(1):62-72. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1470434/.
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(630), foi a estratégia dominante da OMS nos “breves anos dourados”2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(201) (década de 1950). Essas tensões e controvérsias sempre acompanharam a organização ao longo dos anos, influenciando seu processo decisório, estimuladas também pela maior participação de países recém-libertados do jugo colonial, que entraram no fórum decisório da AMS. O contexto político mundial e as conjunturas críticas das décadas de 1960-1970 exacerbaram essa dinâmica.

Os debates sobre a melhoria da infraestrutura para a saúde, sobretudo nos países mais pobres, assim como de abordagens mais integradas para o desenvolvimento dos serviços de saúde culminaram na formulação da Atenção Primária à Saúde (APS) (1973), como parte da estratégia de Saúde para Todos nos anos 2000 (SPT), ambas aprovadas em 1978 (em Alma-Ata, no Cazaquistão) (quadro 2).

Quadro 2
Atenção Primária à Saúde e Saúde para Todos no ano 2000

Contudo, já em 1979, começou o desmanche simbólico e prático desse enfoque inovador na OMS e, consequentemente, de sua liderança setorial, pari passu à construção paulatina de ‘lideranças internacionais alternativas’ no setor, como o Banco Mundial. O enfoque da APS foi substituído pelo da ‘atenção primária seletiva’ que gerou um intenso (e virulento) debate nos anos 1980, difundido por revistas consagradas na área de saúde. Subjacente a essa dinâmica, estavam a oposição da OMS às fórmulas industrializadas substitutivas do aleitamento materno, fabricadas pela Nestlé; e a oposição das principais multinacionais farmacêuticas norte-americanas ao Programa de Medicamentos Essenciais, lançado em 1978, que estimulava tanto a formulação de políticas de assistência farmacêutica, com base em uma lista de medicamentos a serem distribuídos, quanto a produção nacional desses medicamentos2424 Martins CE. O Brasil e a América Latina na geopolítica mundial da COVID-19 e do caos sistêmico. In: Augusto CB, Santos RD. Pandemias e pandemônio no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 27-35.. Temos por hipótese que:

[...] Mahler aproveitou brilhantemente a ‘janela de oportunidade’ que a conjuntura política mundial lhe oferecia [...], mas, ao mesmo tempo, desafiou interesses poderosos, e o avanço das políticas estratégicas aprovadas foi bloqueado pela ação dos poderes hegemônicos no sistema mundial, que dominavam tanto a OMS quanto a arena internacional da saúde. Os Estados Unidos e o Banco Mundial foram atores importantes nesse processo2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(204).

Concomitantemente, a discussão sobre as reformas setoriais neoliberais se acirrou nas décadas de 1980. Os opositores ao processo anterior defendiam o deslocamento das atividades de cooperação técnica do âmbito assistencial para o de gestão dos sistemas de serviços de saúde, a capacitação profissional para tal, a avaliação das políticas no contexto mais amplo da economia e, mais importante, a utilização do instrumental econômico como ferramenta privilegiada para tais atividades1717 Almeida C. Os modelos de reforma sanitária dos anos 80: uma análise crítica. Saúde Soc. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jan 10]; 5(1):3-53. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v5n1/02.pdf.
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,2222 Brown T, Cueto M, Fee E. The World Health Organization and the transition from “international” to “global” public health. Am J Public Health. [internet]. 2006 [acesso em 2020 abr 15]; 96(1):62-72. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1470434/.
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,2323 Walt G. Health Policy: an introduction to process and power. Johannesburg: Witwatersrand University Press; 1994..

A fragmentação das atividades programáticas da OMS se ampliou paulatinamente, com o crescimento dos recursos não regulares ou extraorçamentários (de doadores voluntários), ‘carimbados’ para programas e atividades específicas, alterando o seu financiamento e fragilizando as atividades, os programas regulares e as diretrizes institucionais aprovadas pela AMS. Essa situação enfraqueceu o poder decisório e de condução institucional e minou a estrutura regional descentralizada da organização, uma vez que o seu financiamento foi deslocado da sua política estratégica para ‘prioridades’ e ‘políticas’ definidas fora dela. Dessa forma, o poder de decisão das AMS foi ‘controlado’, visto que sua autoridade decisória se restringe ao orçamento regular. Nesse período, os países em desenvolvimento eram majoritários na AMS.

Esse processo se agravou em 1982, quando a AMS votou pelo congelamento das contribuições dos países, e se agudizou em 1985, quando os EUA decidiram pagar apenas 20% de sua contribuição para as Nações Unidas e suspender (transitoriamente) o pagamento de seu aporte à OMS2323 Walt G. Health Policy: an introduction to process and power. Johannesburg: Witwatersrand University Press; 1994.,2424 Martins CE. O Brasil e a América Latina na geopolítica mundial da COVID-19 e do caos sistêmico. In: Augusto CB, Santos RD. Pandemias e pandemônio no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 27-35.. Na saída de Mahler em 1988, a ‘crise’ institucional já era uma realidade.

Criaram-se assim as condições para fragilizar a organização e neutralizar a influência dos países pobres ou em desenvolvimento nas decisões institucionais, ao mesmo tempo em que crescia na arena setorial a influência de novos atores (públicos e privados), sendo o Banco Mundial o mais importante deles, com o aumento da sua participação nos financiamentos do setor saúde. Toda essa dinâmica erodiu o papel da OMS de liderança internacional na área de saúde, produzindo indefinição sobre seu lugar e competência na arena internacional2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.(206).

Em 1988, o pesquisador Hiroshi Nakajima foi inesperadamente eleito o novo diretor da organização, primeiro cidadão japonês a assumir esse posto. Os critérios dessa eleição são ‘nebulosos’ na literatura, mas, aparentemente, articularam-se forças internas e externas que preferiam uma OMS menos combativa, mais inexpressiva e alinhada com os interesses dominantes. Nakajima foi o mais controverso diretor na história da OMS, contudo, permaneceu nesse posto por dez anos (1988-1998) e contribuiu enormemente para o desprestígio da organização e o início dos clamores por sua reforma2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014..

As mudanças na ordem mundial no pós-guerra fria e a saúde

Os anos 1990 foram palco de significativas inflexões, seja na ordem mundial e na sua condução, seja nas arenas multilaterais. Evidenciavam-se mudanças no sistema mundial moderno instituído no pós-guerra, com “o giro dos Estados Unidos de um imperialismo informal para outro, [explícito] unilateral”2424 Martins CE. O Brasil e a América Latina na geopolítica mundial da COVID-19 e do caos sistêmico. In: Augusto CB, Santos RD. Pandemias e pandemônio no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 27-35.(27). Essa virada tem especificidades: consolidação dos valores ocidentais norte-americanos em um mundo agora unipolar, “um poder global quase absoluto, sem limites”44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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, comemorado como

a vitória definitiva da ‘democracia’, do ‘livre mercado’ [desregulado e sem fronteiras] e de uma nova ‘ordem ética internacional’, orientada pela tábua [rasa] dos ‘direitos humanos’44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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.

Paralelamente, (re)surgem Estados nacionais que, apesar da interdependência e interconectividade global e das diferenças em termos de poder, iniciaram trajetórias que poderiam alterar, de alguma forma, as relações interestatais no sistema mundial (como a Rússia, na área militar, e a China, na área econômica), utilizando as mesmas estratégias históricas dos EUA33 Fiori JL. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. J. Humanit. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jun 15]; 1(1):42-45. Disponível em: https://www.manchesteropenhive.com/view/journals/jha/1/1/article-p42.xml.
https://www.manchesteropenhive.com/view/...
,44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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,2525 Carvalho EM. O uso político da pandemia e a crise diplomática com a China. In: Augusto CB, Santos RD, organizadores. Pandemias e pandemônios no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 36-44..

Ainda que as crises econômicas e o fim da bipolarização tenham suscitado inúmeras análises que declaravam o fim da hegemonia norte-americana no mundo, os EUA saíram fortalecidos desse processo e renovaram o seu ‘cosmopolitismo liberal’, ou seja, seu ‘projeto de reorganização do sistema mundial’, segundo a ‘nova ideologia da globalização liberal’, caracterizada por aumento significativo do poderio militar pelo mundo afora, intensificação de intervenções alhures, de diferentes ordens, em nome da ‘liberdade’ e ‘contra o autoritarismo’ que, geopoliticamente significa ampliação do poder (imperial) de controle de uma potência sobre outros territórios, submetendo-as aos seus desígnios.

Como é sabido, a implementação da “nova ordem liberal” dos 1990 em diante “provocou um aumento geométrico da desigualdade entre os países, as classes e os indivíduos” e foi associada “a uma sucessão de crises econômicas localizadas que culminaram na grande crise financeira de 2008, que contagiou a economia mundial - a partir dos Estados Unidos - pelas veias abertas da desregulamentação dos mercados globalizados”44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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, com sérias consequências nos níveis nacional (aumento dos governos de ultradireita, implementação das políticas de austeridade) e global (conflitos, incremento da extrema pobreza, emigrações).

Na segunda década do século XXI, os EUA explicitaram claramente a mudança de sua forma de condução geopolítica, ao anunciar, no final de 2017, sua “nova estratégia de segurança nacional”33 Fiori JL. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. J. Humanit. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jun 15]; 1(1):42-45. Disponível em: https://www.manchesteropenhive.com/view/journals/jha/1/1/article-p42.xml.
https://www.manchesteropenhive.com/view/...
, abrindo mão do seu “messianismo moral” e trocando suas convicções liberais, e humanitárias, pela defesa pura e simples do seu próprio “interesse nacional”44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
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.

Essa atitude seria produto de uma longa luta interna dentro da sociedade e do establishment americano que ainda está em pleno curso44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
http://www.americalatina.net.br/requiem-...
, sendo impossível, por enquanto, prever uma trajetória clara para o sistema mundial.

Não é o caso de detalhar aqui essa dinâmica, bem trabalhada por outros autores, mas enfatizaremos sinteticamente algumas questões.

Dos anos 1990 em diante, o mundo vivenciou a proliferação e a disseminação de diversos riscos, que se expressam em problemas relacionados com a saúde, concentrados em curto espaço de tempo, que não têm precedentes na história da humanidade2626 Almeida C. Global Health Diplomacy: a theoretical and analytical review. In: Oxford Research Encyclopedia, Global Public Health, Oxford. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jun 15]. Disponível em: https://oxfordre.com/publichealth/view/10.1093/acrefore/9780190632366.001.0001/acrefore-9780190632366-e-25.
https://oxfordre.com/publichealth/view/1...
. Outros fatores não sanitários contribuíram para essa mudança (quadro 3).

Quadro 3
Dinâmicas globais que se entrelaçam

O fim da bipolaridade reformulou também a agenda de segurança nacional, substituindo a percepção essencialmente militar por um discurso de ameaças originadas em outras áreas, incluída a saúde.

A agenda da segurança em saúde (health security) surgiu nos anos 1980, frequentemente associada às perspectivas tradicionais (e militarizadas) das ameaças à segurança nacional, mas se ampliou na segunda metade dos anos 1990, vinculada às doenças transmissíveis - epidemias e pandemias (especificamente a de HIV/Aids). Entretanto, foi radicalizada na primeira década dos 2000, após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA, quando a saúde passou a frequentar a agenda da política externa de diferentes países e a ser considerada tema de debates na arena internacional.

A inclusão das pandemias como risco ou ameaças à segurança nacional se converteu em uma constante nas doutrinas e estratégias de segurança na maior parte dos países avançados2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.(34).

Sanahuja2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020. considera positiva essa

ampliação do conceito de segurança, um reconhecimento de seus vínculos transnacionais e sua dimensão não militar, aproximando-se da ideia de segurança humana2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.(34).

Na nossa opinião, é preciso atentar para o contexto de emergência do termo e para as diversas narrativas que o sustentam2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
https://academic.oup.com/ia/article/93/6...
,2929 Wenham C. The oversecuritization of global health: changing the terms of debate. Int. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 mar 25]; 95(5):1093-1110. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/95/5/1093/5556752.
https://academic.oup.com/ia/article/95/5...
.

A reestruturação da “nova ordem econômica neoliberal global”3030 Kamat S. The privatization of public interest: Theorizing NGO discourse in a neoliberal era. Rev. Int. Polit. Econ. [internet]. 2004 [acesso em 2020 jun 16]; 11(1):155-176. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969229042000179794.
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não se restringiu à área econômica, pois promoveu a reforma do Estado e suas políticas, disseminou o individualismo como valor ético-moral, descaracterizou os bens públicos e desmontou o arcabouço de direitos sociais e humanos.

No final da década de 1990, o World Report 1997 do Banco Mundial pregava a baixa efetividade dos Estados nacionais na promoção do desenvolvimento, pois a globalização econômica exigiria um Estado diferente daquele estruturado no pós-guerra. Identificando como principal problema a falta de efetividade da condução estatal, alegava que, diferente do período pós Segunda Guerra, o papel central do Estado não seria mais de alavancar o desenvolvimento econômico e social, ou de prover serviços diretamente, mas sim de catalizador e facilitador desse desenvolvimento1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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(3).

Esse relatório do Banco, juntamente com outros documentos produzidos desde o início da década dos 1990, confirma a ascensão da nova liderança setorial, financeira e ideológica. A agenda explicita a privatização dos bens públicos, preconizando as Parcerias Público-Privadas (PPP) e Iniciativas Globais em Saúde (Global Health Initiatives - GHI), que proliferaram exponencialmente no setor a partir dos anos 20001515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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. Esses arranjos tornaram-se um mecanismo-chave para a implementação das políticas sociais, introduzindo “uma profunda mudança na forma como atores públicos interagem com o setor privado e na maneira como os atores privados atuam frente ao setor público”1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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(5).

Historicamente, a ONU (incluída a OMS) interagiu com o setor privado desde seus primórdios. Porém, a referência à ‘parceria’, com essa outra conotação, remonta ao início dos anos 1990 (até então se referia a mecanismos para impulsionar as metas de ‘Saúde para todos no ano 2000’ e de desenvolvimento sustentável)1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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. Concomitantemente, os relatórios da United Nations Inspection Joint Unit recomendavam estreitar a colaboração entre “os parceiros da CID, inclusive não-governamentais, para que a ONU pudesse colaborar mais efetivamente com as instituições financeiras multilaterais”1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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(5), ou seja, preconizavam a ‘harmonização’ de interesses.

A eleição de Kofi Annan como Secretário-Geral da ONU, em dezembro de 1996, assumiu a institucionalização das ‘parcerias com a indústria’, como parte das reformas da organização, e pretendia, dessa forma, aumentar o seu orçamento, “não apenas com doações, mas com maior engajamento [do setor privado], inclusive financeiro, na sua missão institucional”1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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(5). Na administração de Gro Brundtland na OMS (1998-2003), essa agenda orientou as políticas e as estratégias implementadas, explicitada como instrumento para recuperar a liderança e a legitimidade da OMS em nível global. Os trabalhos da Comissão de Macroeconomia e Saúde (2001), instalada pela nova Diretora-Geral no início de sua gestão, pautaram a agenda de intensificação das relações com o setor privado na OMS e no setor saúde, reforçando a orientação de ‘harmonização’ entre os diferentes atores multilaterais. Ademais, o lançamento do Relatório Mundial da Saúde no ano 2000, avaliando desempenho dos sistemas de saúde e estabelecendo uma hierarquização entre os países, além de cunhar a expressão ‘novo universalismo’, causou enorme indignação nos Países-Membros da organização e foi mundialmente muito criticado2020 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2014.,3131 Almeida C, Braveman P, Gold MR, et al. Methodological Concerns and Recommendations on Policy Consequences of the World Health Report 2000. The Lancet. 2001; 376(9757):1.692-1.697., inclusive com a constituição de um grupo de especialistas de alto nível para avaliar a metodologia considerada equivocada e o procedimento anticonstitucional da OMS. Além disso, anos depois, a estratégia da Cobertura Universal em Saúde (CUS) colocou em prática o mesmo conceito de universalidade restrita, disfarçado na expressão, pois o alcance dessa cobertura envolve as PPP, em suas diversas modalidades. Enfim, pode-se dizer, resumidamente, que:

Os anos da administração de Brundtland foram marcados por tensões permanentes em torno de decisões polêmicas, principalmente em relação à articulação entre atores públicos e privados. Embora tenha exercido uma única gestão, o que não é comum na OMS, seu legado, construído em perfeita sintonia com as opções político-ideológicas da época, permanece vigente1515 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: Processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 2]; 33(14)(supl2):1-16. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf.
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(6-7).

Ao mesmo tempo, a atenção, sem precedentes, às questões de saúde na agenda das políticas externas nacionais e a rápida expansão dos ‘problemas de saúde’ em nível global, simultaneamente à maior presença do tema nas arenas e debates internacionais, ocorreram pari passu à crescente atuação de doadores na área de saúde no Sul geopolítico, vinculando saúde e desenvolvimento - a assistência para o desenvolvimento em saúde (development assistance for health) -, conduzida por número reduzido de poderosos atores globais, como por exemplo as Global Health Initiatives, ancoradas em empresas farmacêuticas de determinados países3232 Roemer-Mahler A. The rise of companies from emerging markets in global health governance: Opportunities and challenges. Review of International Studies [internet] 2014 [acesso em 2018 mar 23], 40(5):897-918. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/review-of-international-studies/article/rise-of-companies-from-emerging-markets-in-global-health-governance-opportunities-and-challenges/D3E562B5E7196322AB329709499B3E56.
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33 Lee K. Understanding of global health governance: the contested landscape. In: Adrian K, Williams D, editores. Global Health Governance. New York: Palgrave Macmillan; 2009.
-3434 Lee K, Kamradt-Scott A. The multiple meanings of global health governance: A call for conceptual clarity. Globalization and Health [internet] 2014 [acesso em 2020 maio 25]; 10(1):28. Disponível em: http://www.globalizationandhealth.com/content/10/1/28.
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. Um ponto central dessa dinâmica é como uma questão de saúde é classificada como um problema global que requer ‘ação coletiva’3333 Lee K. Understanding of global health governance: the contested landscape. In: Adrian K, Williams D, editores. Global Health Governance. New York: Palgrave Macmillan; 2009.,3434 Lee K, Kamradt-Scott A. The multiple meanings of global health governance: A call for conceptual clarity. Globalization and Health [internet] 2014 [acesso em 2020 maio 25]; 10(1):28. Disponível em: http://www.globalizationandhealth.com/content/10/1/28.
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. Além disso, o aumento de recursos e de políticas voltadas para a ‘saúde global’ está relacionado com o reconhecimento que as questões de saúde têm implicações que extrapolam a área social, incluindo segurança nacional e internacional, crescimento econômico, desenvolvimento nacional, direitos humanos, comércio global e mercado2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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.

É preciso registrar que, apesar de tudo, os debates dos anos 1960-1970 e as controvérsias sobre qual o melhor enfoque para abordar a saúde - perspectiva biomédica/epidemiológica tradicional versus multideterminação do processo saúde-doença; programas verticais versus fortalecimento do sistemas de saúde - persistiram na OMS e nos debates nas arenas internacionais, influenciando outras estratégias da ONU - como as Metas de Desenvolvimento do Milênio e sua avaliação pós-2015, que resultaram na formulação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030. Tampouco foi banido o legado de Mahler com a APS resultando em iniciativas louváveis, como o trabalho da Comissão Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde (2005-2008), que se desdobrou na Declaração de Adelaide sobre ‘Saúde em Todas as Políticas’ (2010), a tentativa de retomar/repaginar a APS (Conferência de Astana, 2018) e a mais recente Sustainable Health Equity Movement (julho 2020). Em outras palavras, são essas ‘controvérsias’, e não as reivindicações por reforma, que constituem uma continuidade na organização e a mantêm ‘viva’, mesmo com o descrédito paulatino do multilateralismo do pós-guerra.

Ameaças, riscos e ‘preparação’ (‘prontidão’) mundial para enfrentá-los

Na segunda década do século XXI, observa-se a tentativa de mudança da perspectiva de segurança em saúde para a de ‘riscos’, que seriam inerentes à ‘sociedade de risco’ no mundo atual2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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,2929 Wenham C. The oversecuritization of global health: changing the terms of debate. Int. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 mar 25]; 95(5):1093-1110. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/95/5/1093/5556752.
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.

Muitos dos argumentos que explicam a sociedade de risco se constroem a partir da crítica do desenvolvimento capitalista, que alguns autores consideram uma ‘crise civilizatória’, caracterizada, entre outras coisas, pelas contradições entre o capitalismo e a revolução técnico-científica, ou seja,

a profunda incapacidade da globalização neoliberal e do modo de produção capitalista de assimilar o paradigma biotecnológico emergente e suas implicações sociais e ambientais2424 Martins CE. O Brasil e a América Latina na geopolítica mundial da COVID-19 e do caos sistêmico. In: Augusto CB, Santos RD. Pandemias e pandemônio no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 27-35.(27-28).

Os volumes crescentes de circulação de mercadorias e pessoas, o aumento das escalas geoespaciais de produção e a elevação da desigualdade mundial, impulsionando o consumo supérfluo e mantendo altos níveis de escassez e pobreza, pressionam o equilíbrio dos ecossistemas, vulnerabilizam a saúde pública e se somam às limitações de gastos sociais impostas pelas políticas neoliberais2424 Martins CE. O Brasil e a América Latina na geopolítica mundial da COVID-19 e do caos sistêmico. In: Augusto CB, Santos RD. Pandemias e pandemônio no Brasil. São Paulo: Tirant lo Blanch; 2020. p. 27-35.(27).

A emergência de um microrganismo desconhecido, que pode ser transmitido rapidamente, causar sérios danos às pessoas e populações, provocando medo e pânico, suscita o acionamento das normativas legais do regime de segurança, focado na preparação (preparedness) para detecção e controle dessa ameaça infecciosa. Por outro lado, a narrativa da segurança e o tratamento do ‘risco’ ou ‘ameaça’ mudam segundo o patógeno, sua manifestação fisiopatológica, grupos humanos mais atingidos e a região/país onde aparece, evidenciando os diferentes objetivos dessas narrativas: os casos da pandemia de HIV/Aids (anos 1980 até hoje), de Zika vírus (2015-2016 em diante) e microcefalia (2017-2018 no Brasil) e dos surtos de ebola (2014-2016 e 2018 na África ocidental), entre outros, são paradigmáticos dessas distintas narrativas e respostas implementadas. De qualquer forma, há um discurso dominante que estrutura as doenças infecciosas transmissíveis como um ameaça, uma questão de segurança2929 Wenham C. The oversecuritization of global health: changing the terms of debate. Int. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 mar 25]; 95(5):1093-1110. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/95/5/1093/5556752.
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, amplamente originado na comunidade de saúde pública tradicional2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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.

Grande parte dos estudos sobre securitização da saúde concentra-se no crescente nível de risco nos processos contemporâneos de globalização2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.. Outros trabalhos no campo da saúde coletiva têm focado na mudança do significado dos riscos, avaliação de riscos, gerenciamento dos riscos3636 Castiel LD. Vivendo entre exposições e agravos: a teoria da relatividade do risco. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos. [internet]. 1996 [acesso em 2020 jun 6]; 3(2):237-264. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v3n2/v3n2a03.pdf.
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,3737 Luiz OC, Cohn A. Sociedade de risco e risco epidemiológico. Cad. Saúde Pública. [internet]. 2006 [acesso em 2020 mar 1]; 22(11):2339-2348. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v22n11/08.pdf.
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. Para McInnes e Roemer-Mahler2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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, o aumento do interesse nos riscos sanitários globais seria concomitante ao descontentamento com a perspectiva de segurança em saúde, pois pareceria um enfoque ‘menos político’, mais técnico-científico, um instrumento, e não um processo, um objetivo incontestável nas arenas da saúde pública tradicional, fundada no positivismo e na racionalidade cientifica.

Assim, os avanços nas metodologias epidemiológicas e nas técnicas de modelagens estatísticas permitiriam avaliar a possibilidade de disseminação de uma doença, epidemia ou pandemia, e apoiariam as decisões sobre o tema. Os riscos poderiam ser previstos cientificamente, a partir da observação rigorosa dos eventos, dados de boa qualidade e metodologias empíricas robustas, identificando a probabilidade desses eventos ocorrerem e a melhor reposta para enfrentá-los. Frequentemente, essa perspectiva impregna a política e a prática de saúde; e as possíveis ‘falhas’ na resolução desses problemas são atribuídas à má qualidade dos dados, a questões metodológicas e à ‘interferência política’. Não se trata aqui de desqualificar a contribuição da epidemiologia e da vigilância em saúde nesses processos, mas de analisar a importância que adquirem e como são utilizadas no mundo atual. McInnes e Roemer-Mahler2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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argumentam que:

[...] a estruturação/avaliação dos riscos não é um enfoque livre de valores e interesses, ao contrário, a maneira como o discurso do risco é construído é eminentemente política. Não obstante, a mudança da segurança em saúde para riscos em saúde pode ajudar a mobilizar a atenção pública e a ação política, porque coloca a saúde global na vasta percepção contemporânea de uma sociedade em risco2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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(1315).

Inúmeras reuniões e documentos de distintos órgãos da ONU, fóruns internacionais e instituições financeiras multilaterais, entre outras iniciativas, têm sido elaborados na tentativa de mitigar os impactos multidimensionais dos riscos, principalmente econômicos, refletindo a mudança de perspectiva - “da probabilidade para possibilidade”2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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(1323) )-, que se transformaria em ‘avisos’, considerados quase premonitórios, e na necessidade de ‘preparação’ ou ‘prontidão’ (preparedness) para enfrentá-los.

A Agenda da Segurança em Saúde Global (Global Health Security Agenda), conduzida pelos EUA e que congrega mais de 50 países, em seu relatório de 2014 ‘Advancing the Global Health Security Agenda: progress and early impact from US investment’3838 United States State Department. Global Health Security Agenda Annual Report. Advancing the Global Health Security Agenda: progress and early impact from US investment [internet]. 2016 [acesso em 2020 mar 1]. Disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2019/02/1-ghsa-annual-report-2016.pdf.
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argumentava que “os enormes custos de pandemias poderiam ser evitados com investimentos estratégicos em capacity building e preparedeness2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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(1324), considerados instrumentos e mecanismos efetivos para o controle e a contenção do evento catastrófico quando ocorresse. A rationale da preparedness articula vários elementos2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
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:

  1. 1) Revisão e fortalecimento dos mecanismos e sistemas de vigilância em saúde (Regulamento Internacional de Saúde, Comitês de Especialistas e Divisões de Emergência, sistema de alarme precoce, rede de laboratórios especializados etc.).

  2. 2) Armazenamento de medicamentos e vacinas.

  3. 3) Desenvolvimento de protocolos, legislação e mecanismos de financiamento que possam ser rapidamente mobilizados frente a uma emergência.

  4. 4) Estabelecimento de sistemas de informação em saúde estruturados e ágeis, capazes de fornecer dados passíveis de análise para o acompanhamento cotidiano do evento.

Em nível nacional, os EUA são o país onde esses mecanismos e legislações são mais avançados, entretanto, não parecem ter sido adequadamente valorizados nas estratégias de enfrentamento da atual pandemia de Covid-19.

As epidemias, as pandemias e as crises, mais ou menos amplas, que assolaram o mundo ao longo dos séculos e, especialmente, nos últimos 40 anos (figura 1), têm sido objeto de análise de vários especialistas de diferentes formações acadêmicas, entretanto, não serão comentadas neste ensaio. Chama a atenção a reincidência de epidemias de influenza A, desde o início do século passado; e a emergência, como epidemia ou pandemia, do coronavírus e do ebola no século XXI.

Figura 1
Linha do tempo: contexto de mudanças na ordem mundial e no multilateralismo - surtos, epidemias e pandemias

Esses eventos, mais especificamente a partir dos anos 1990, desdobraram-se em severas críticas à OMS e em reivindicações pela sua reforma (quadro 4). Seus esforços para seguir a rationale da preparação no enfrentamento de epidemias/pandemias, depois de amargar relativos insucessos no controle de alguns eventos, que se aceleraram no século XXI, não pouparam a organização.

Quadro 4
Principais epidemias e pandemias, atuação da OMS, críticas e reivindicações (1980 a junho 2020)

Conclusões

Os relatos e análises sobre os ‘riscos ou ameaças’ que acometem as sociedades - em nível nacional, regional ou global - evidenciam que, historicamente, o contexto no qual esses eventos ocorrem é fundamental para entender sua dinâmica. Intensificam-se em períodos de transição ou de inflexão no status quo das sociedades, em seus territórios, e na ordem mundial, em momentos específicos, impulsionando mudanças que nem sempre caminham na perspectiva almejada. Comumente, são disruptivos e destruidores, em maior ou menor proporção, configurando ‘conjunturas críticas’ (ou ‘fato social total’), conceitos que remetem a abalos generalizados, a um conjunto de fatos que se relacionam de forma complexa, que repercutem em todos os âmbitos da sociedade, em que os problemas das estruturações históricas (com seus fundamentos, normas e regras) são desnudados, apontando para mudanças (positivas ou negativas).

A estrutura da ordem mundial liberal foi moldada nas negociações do pós-guerra, sob o comando dos EUA, e incluía o multilateralismo como propulsor de uma dinâmica que, ao mesmo tempo, reconstruiria os países devastados pela guerra, promovendo o desenvolvimento à imagem e semelhança do seu condutor; e manteria um sistema interestatal dinâmico e cooperativo em torno de objetivos comuns. Na dimensão econômica, esse consenso provisório lançou as bases para a expansão do capitalismo mundial; e na dimensão política, institucionalizou os arranjos necessários para tal com o sistema de organizações multilaterais. O progresso seria alavancado sem necessidade de conflitos, congregando diferentes atores cujas relações seriam mediadas pelos Estados nacionais e as organizações internacionais.

O crescimento dos EUA (nos campos econômico, científico e tecnológico) financiou, paradoxalmente, a expansão do Estado de bem-estar social keynesiano na Europa4646 Keohane RO. The World Political Economy and the Crisis of Embedded Liberalism. In: Goldthorpe JH, organizador. Order and Conflict in Contemporary Capitalism. Oxford: Clarendon Press; 1985. p. 22-26., que emergiu nesse período e continuou a crescer durante os anos 1970, incluindo a ‘modernização’ dos sistemas de saúde à imagem norte-americana - centrada nos hospitais, difusão permanente de tecnologias de ponta, insumos farmacêuticos e laboratoriais -, até a explicitação da sua crise1919 Starr P. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. 2. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica; 1991.,4646 Keohane RO. The World Political Economy and the Crisis of Embedded Liberalism. In: Goldthorpe JH, organizador. Order and Conflict in Contemporary Capitalism. Oxford: Clarendon Press; 1985. p. 22-26.. Registra-se também, como parte desse processo, a concentração, cada vez maior, da produção desses insumos em empresas nacionais/multinacionais, em um primeiro momento, e transnacionais desterritorializadas, logo a seguir4747 Gadelha CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2003 [acesso em 2020 maio 27]; 8(2):521-535. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v8n2/a15v08n2.pdf.
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. Essa forma de organização dos serviços de saúde se difundiu mundo afora, estimulando as controvérsias e as reformas ‘pós-welfare’ - diminuição da provisão estatal de serviços, aumento da participação do setor privado, focalização nos mais pobres com pacotes básicos e valorização do ‘mercado’ para solução daqueles problemas.

As crises econômicas e o fim da bipolaridade alteraram a condução da ordem mundial liberal no pós-guerra fria (1990) e evidenciaram as estratégias unilaterais do hegemon, extremamente bélicas e intervencionistas, ampliando de forma importante o poder ‘imperial’ norte-americano. Concomitantemente, o ideário econômico e político-ideológico neoliberal, descartado no imediato pós-guerra, retoma protagonismo em nível global, sob a liderança do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. O conjunto de forças (compostas por distintos atores), mais ou menos institucionalizado, capaz de influenciar mudanças estruturais na ordem capitalista mundial, e que extrapola o poder estatal ainda que articulado com ele, havia crescido muito, interferindo de forma significativa na governança global e setorial no final do século XX. Consequentemente, essa mudança na condução da ordem mundial e nas relações de poder entre diferentes atores afetou também a dinâmica multilateral e do sistema interestatal, promovendo resistências e revides de outros Estados, cada vez mais frequentes. Em resumo, com o ‘desaparecimento do regime geopolítico bipolar’, as ‘bases éticas e ideológicas que sustentavam a cooperação entre as grandes potências capitalistas também desapareceram’, evidenciando que se tratava de um momento de transição para uma “ordem mundial incerta”1010 Fiori JL. Sobre o poder global. Novos Estud. CEBRAP. [internet]. 2005 [acesso em 2020 mar 15]: 73(3):61-72. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/n73/a05n73.pdf.
https://www.scielo.br/pdf/nec/n73/a05n73...
(71).

Outra guinada importante na ordem mundial ocorreu na segunda década do século XXI, quando os EUA se desvinculam de qualquer compromisso de conduzir uma ordem mundial favorável à coesão do sistema interestatal e à promoção do desenvolvimento no mundo, explicitando a defesa de seus próprios interesses nacionais a qualquer custo.

A velha ‘geopolítica das nações’ voltou a ser a bússola do sistema mundial; o nacionalismo econômico voltou a ser praticado pelas grandes potências; e os grandes ‘objetivos humanitários’ dos anos 90 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional44 Fiori JL. Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana. Portal América Latina. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 21]. Disponível em: http://www.americalatina.net.br/requiem-por-uma-utopia-defunta-as-vesperas-da-eleicao-americana-por-jose-luis-fiori/.
http://www.americalatina.net.br/requiem-...
.

Assim, os EUA “desafiam e boicotam qualquer tipo de acordo multilateral ou regional, qualquer bloco ou instituição que represente ou se apoie no multilateralismo”33 Fiori JL. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. J. Humanit. Aff. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jun 15]; 1(1):42-45. Disponível em: https://www.manchesteropenhive.com/view/journals/jha/1/1/article-p42.xml.
https://www.manchesteropenhive.com/view/...
(44). Com essa nova mudança “arriscam sacrificar o multilateralismo e aprofundam a crise de legitimidade e de eficácia das organizações multilaterais”2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.(37).

No que concerne à OMS, aqui considerada como um espaço sociopolítico de embates, negociações e enfrentamentos, sua atuação também é afetada, pois, mantidos os princípios sobre os quais a ONU foi estabelecida, prevalece o propósito da cooperação internacional em estreita consonância com o estatuto da soberania e da autodeterminação dos seus Estados-Membros. Como prática do direito das organizações internacionais, vale lembrar o caráter não mandatório das resoluções, recomendações e políticas preconizadas pela organização, mesmo diante de emergências internacionais como pandemias, por mais aprimorados que sejam os procedimentos e os protocolos adotados. Portanto, a decisão de ‘delegação de autoridade’ e de assignação de recursos à OMS, a partir de aportes financeiros voluntários dos Estados nacionais, tem como base o compromisso ético assumido no imediato pós-guerra em uma concepção tradicional (‘westfaliana’) de soberania1111 Fiori JL. Dialética da Guerra e da Paz. In: José Luís Fiori, organizador. Sobre a Guerra. Petrópolis: Vozes; 2018. p. 75-102.,2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020..

Usualmente, porém, a soberania nacional é reivindicada toda vez que interesses nacionais são contrariados, o que significa que a OMS está submetida, permanentemente, às pressões geopolíticas e de distintos atores, públicos e privados; ao mesmo tempo que é fortemente cobrada pelos governos nacionais por qualquer ação que não atenda às demandas particulares que lhe são apresentadas constantemente. Com o aumento de epidemias e de pandemias nas últimas décadas, que requerem sua atuação imediata (ou mediadora), em um cenário mundial ‘sem ordem’, com grandes polarizações políticas, estressado por conflitos variados e sob forte escrutínio midiático, qual seria a atuação considerada ‘ideal’?

Uma análise rápida dos principais eventos epidêmicos ou pandêmicos das últimas décadas (quadro 4), e seus resultados em termos das ações da OMS e as críticas/reivindicações recebidas, mostra claramente que uma atuação rápida e enérgica poderá ser considerada exagerada (como na pandemia de H1N1 em 2009); e uma ação mais cautelosa, e levando em conta as críticas anteriores (como na atual pandemia Covid-19), está sendo questionada como insuficiente, hesitante e particularista. Chama a atenção que alguns autores atribuem à pandemia de Covid-19 o desencadeamento de uma crise sanitária e política4444 Fidler DP. The dangerous COVID-19 quest for WHO reform. East Asia Forum. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.eastasiaforum.org/2020/05/10/the-dangerous-covid-19-quest-for-who-reform/.
https://www.eastasiaforum.org/2020/05/10...
, como se essas crises já não estivessem em curso. Outros expressam a vontade de ver uma OMS com maior autoridade sobre os Estados e até mesmo com poder de aplicação de sanções4545 Nay O, Kieny MP, Marmora L, et al. Comment: The WHO we want. Lancet [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 11]; 395(10240):1818-1819. Disponível em: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(20)31298-8.pdf.
https://www.thelancet.com/pdfs/journals/...
, o que denota desconhecimento de seus preceitos fundacionais, além de advogarem que “a organização deveria ser primariamente focada no mandato de uma agência técnica em saúde, livre de considerações políticas, tal qual fundada em 1948”4242 Oanh H. COVID-19 demands a stronger commitment to multilateralism. East Asia Forum. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 7]. Disponível em: https://www.eastasiaforum.org/2020/05/12/covid-19-demands-a-stronger-commitment-to-multilateralism/.
https://www.eastasiaforum.org/2020/05/12...
(1819), como se essa dissociação fosse possível e ignorando as contínuas controvérsias que acompanham a sua história.

A inclusão da saúde na agenda de segurança nacional (health security) dominou o debate da saúde global na década de 2010, ainda que seus antecedentes contemporâneos remontem aos anos 1980-90. Embora essa perspectiva continue presente nas agendas de vários países, simultaneamente, surge o discurso dos ‘riscos’ e ‘ameaças permanentes’ no mundo de hoje, contra os quais seria preciso se precaver. Na realidade, essa racionalidade defensiva foi gerada no pós-guerra fria e se consolida paulatinamente no novo século, sob a perspectiva das possíveis ameaças de variados tipos4848 Zylberman P. Crises sanitaire, crise politiques. Les tribunes de la santé. [internet]. 2012 [acesso em 2020 jul 23]. (34):35-50. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-les-tribunes-de-la-sante1-2012-1-page-35.htm.
https://www.cairn.info/revue-les-tribune...
, o que desemboca na ideia da ‘sociedade de risco’, conceito polêmico, mas muito citado, em que risco é entendido como “a previsão e controle das consequências futuras da ação humana”2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.(29). A construção de cenários sobre os ‘riscos mundiais’ é resultado da necessidade de securitização dos riscos ‘não asseguráveis’, como, por exemplo, os riscos catastróficos, que ultrapassariam o Estado territorial e sua capacidade de gestão, ainda que os efeitos sejam locais, sem que surjam mecanismos efetivos de governança global para gerenciá-los.

Contudo, o sentimento de vulnerabilidade aos riscos sanitários, sobretudo no caso de surtos, epidemias ou pandemias, não pode ser separado da sensação (política e cultural) de vulnerabilidade social, ou seja, “o risco não é independente, mas socialmente construído, e parte de um processo político no qual valores e interesses modelam os resultados”3232 Roemer-Mahler A. The rise of companies from emerging markets in global health governance: Opportunities and challenges. Review of International Studies [internet] 2014 [acesso em 2018 mar 23], 40(5):897-918. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/review-of-international-studies/article/rise-of-companies-from-emerging-markets-in-global-health-governance-opportunities-and-challenges/D3E562B5E7196322AB329709499B3E56.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
(1315). Outrossim, a forma como se responde aos riscos é ‘socialmente mediada’, em que muitos fatores a eles subjacentes não são passíveis de controle, resultando em permanente incerteza e vulnerabilidade. Portanto, nas sociedades contemporâneas, extremamente interdependentes e interconectadas, “os riscos são imprevisíveis, inevitáveis e catastróficos”, praticamente incalculáveis e consistem sempre em “desafios disruptivos”2828 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. Int. Aff. [internet]. 2017 [acesso em 2020 fev 27]; 93(6):1313-1337. Disponível em: https://academic.oup.com/ia/article/93/6/1313/4568585.
https://academic.oup.com/ia/article/93/6...
(1320).

Mesmo assim, a visão ‘apocalíptica da história’ estimula a elaboração de preparações (preparedness) para o enfrentamento dos inúmeros riscos que ameaçam a humanidade, ou seja, a construção de capacidades de previsão e controle4848 Zylberman P. Crises sanitaire, crise politiques. Les tribunes de la santé. [internet]. 2012 [acesso em 2020 jul 23]. (34):35-50. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-les-tribunes-de-la-sante1-2012-1-page-35.htm.
https://www.cairn.info/revue-les-tribune...
. Esse novo paradigma justifica a proliferação de afirmações de que as características inerentes aos processos pandêmicos seriam ‘esperadas’ ou, no mínimo, foram ‘advertidas’ por diferentes meios2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.,4949 Buss PM, Alcázar S, Galvão LA. Pandemia pela Covid-19 e multilateralismo: reflexões a meio do caminho. Estud. Avanç. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 10]; 34(99):45-64. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806-9592-ea-34-99-45.pdf.
https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806...
. Além disso, diante do imponderável, alega-se espanto com a quase total incapacidade da grande maioria dos Estados nacionais para enfrentar esses eventos. O problema é que os inúmeros ‘alertas’ de possibilidade de pandemias, feitos por distintos fóruns e organizações4949 Buss PM, Alcázar S, Galvão LA. Pandemia pela Covid-19 e multilateralismo: reflexões a meio do caminho. Estud. Avanç. [internet]. 2020 [acesso em 2020 jul 10]; 34(99):45-64. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806-9592-ea-34-99-45.pdf.
https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806...
, não foram considerados prioridade, “ocupando um lugar secundário frente às ameaças tradicionais”2727 Sanahuja JA. COVID-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. 2020. Madrid: Anuário CEIPAZ; 2020.(35)) e, na maior parte dos casos, não se traduziram em decisões de reforço efetivo de capacidades, seja nas organizações multilaterais, seja nos Estados nacionais.

De fato, no atual cenário mundial, a produção de riscos imprevisíveis, não asseguráveis, concretiza-se na inter-relação entre a sociedade, o Estado e a globalização contemporânea3030 Kamat S. The privatization of public interest: Theorizing NGO discourse in a neoliberal era. Rev. Int. Polit. Econ. [internet]. 2004 [acesso em 2020 jun 16]; 11(1):155-176. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969229042000179794.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
. De um lado, está a profunda interdependência e conectividade no sistema interestatal e suas pressões sobre: a) a economia (geradas principalmente pela financeirização e endividamentos); b) a sociedade e a política (desigualdades, precarização, destruição do tecido social e emergência de extremismos); e c) o meio ambiente (riscos tecnológicos, mudanças climáticas, deterioro de ecossistemas etc.). De outro lado, estão as crescentes limitações que as políticas de austeridade impuseram (e continuam impondo) aos Estados nacionais, seja no âmbito da economia, das políticas sociais ou da não distinção entre as éticas pública e privada. Sendo assim, as preparações para enfrentamento de riscos não encontram base material e social onde se ancorar e, portanto, não se concretizam.

Tampouco se efetiva a propalada cooperação no sistema interestatal, ao contrário, as disputas entre Estados por bens essenciais para a biossegurança na pandemia (a ‘nova pirataria’) proliferam sem controle e exacerba-se a sinofobia. Da mesma maneira, a falta de coordenação de ações (entre países e em um mesmo país) e de credibilidade nas lideranças, globais e nacionais, foi generalizada, com louváveis exceções. As diferentes formas de enfrentamento da Covid-19 em distintos países são ‘evidências’ desse processo; assim como o são as resistências às medidas de prevenção (distanciamento físico e social, lockdown, uso de máscaras etc.), pois exigem lideranças confiáveis (produto raro no ‘mercado’ hoje em dia) e coesão social (solidariedade e empatia) desvalorizadas pelo individualismo consumista.

Essas constatações evidenciam que a fragilização da OMS resulta de uma dupla dinâmica: ao assumir e incorporar os preceitos da nova ordem mundial neoliberal, para garantir sua sobrevivência, distancia-se gradualmente de abordagens de saúde coletiva, mais holísticas, e com enfoque de bem público, comprometendo sua atuação diante dos desafios contemporâneos à saúde, pois interioriza os problemas oriundos dessa opção e fica refém de atores poderosos focados em seus próprios interesses. Paralelamente, as pressões externas se intensificam, com as mudanças na ordem mundial e no multilateralismo pari passu ao/s enfrentamento/desdobramentos da mais devastadora pandemia de que se tem notícia na história da humanidade, não apenas pela especificidade do patógeno em questão (extremamente danoso), mas principalmente pela exacerbação de múltiplas crises simultâneas.

Os dilemas estão postos, e o desfecho de todo esse processo está em aberto.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2020
  • Aceito
    16 Ago 2020
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