Dos corpos como objeto: uma leitura pós-colonial do ‘Holocausto Brasileiro’

Rodrigo Matos-de-Souza Ana Carolina Cerqueira Medrado Sobre os autores

RESUMO

A lei da reforma psiquiátrica brasileira reconfigurou o modelo assistencial em saúde mental no País, tendo como principal repercussão a mudança do regime asilar de tratamento para o tratamento em meio comunitário, realizado, sobretudo, nos diversos tipos de Centros de Atenção Psicossocial. A exigência de mudança do modelo assistencial foi encabeçada pelo Movimento da Luta Antimanicomial, que denunciou a corrupção do sistema hospitalocêntrico (soberano antes da reforma psiquiátrica) e a violação dos direitos humanos nos manicômios. A título de exemplo, no Hospital Colônia, localizado em Barbacena (MG), morreram cerca de 60 mil pessoas, fato retratado no livro ‘Holocausto Brasileiro’, de Daniela Arbex. Neste ensaio, abordaremos a obra de Arbex à luz do debate pós-colonial e biopolítico, que entende que os modos de produção do mal banal encontraram nas sociedades colonizadas uma forma de ação, perpetuação e naturalização da despersonalização do humano, aproximando-o da noção de objeto. O presente trabalho questiona o tratamento dado, no passado, à loucura dentro dos manicômios, como uma espécie de manifestação do mal banalizado no contexto colonial brasileiro, ao mesmo tempo em que conjectura a retomada do discurso manicomialista, agora com nova roupagem, nas políticas públicas brasileiras.

PALAVRAS-CHAVE
Colonialismo; Hospital psiquiátrico; Saúde mental

Introdução

O livro ‘Holocausto Brasileiro’, da jornalista Daniela Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013., publicado em 2013, conta a história do Hospital Colônia, localizado em Barbacena (MG). Nesse hospital morreram cerca de 60 mil pacientes, vítimas de todo tipo de maus-tratos e descasos: exposição ao frio - muitos não dispunham de roupas, quartos, camas ou lençóis para dormir, permaneciam ao relento, mesmo durante a noite; alimentação racionada - alguns comiam ratos e bebiam do esgoto que cortava os pavilhões; espancamentos e estupros; ‘tratamentos’ violentos, à base de eletrochoque - às vezes, com carga elétrica tão forte, que derrubava a energia da cidade. Ademais, mulheres que engravidaram no Hospital Colônia tiveram seus bebês roubados; os corpos dos pacientes mortos eram vendidos para as faculdades de medicina e, quando não foi mais possível vendê-los, eles foram derretidos em ácido, para que os ossos pudessem ser comercializados.

O Hospital Colônia foi uma lucrativa máquina de matar loucos, que percebia seus lucros na medida em que novos internos chegavam, incluindo-se crianças. Era mais um aparelho da chamada ‘indústria da loucura’, que descreve o período da ditadura militar, no Brasil, em que os hospitais psiquiátricos recebiam diária por cada paciente internado. Isso fez com que o número de leitos em tais hospitais saltasse de 14 mil, no início da ditadura, para cerca de 70 mil, em 197022 Martins MER, Assis FB, Bolsoni CC. Ressuscitando a indústria da loucura?! Interface (Botucatu) [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 21]; (23):e190275. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e190275.pdf.
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. Uma nódoa indelével e vergonhosa da história do Brasil e da psiquiatria, que nos lembra de que somos capazes da barbárie, tão normalizada pelo projeto da modernidade, produzindo corpos humanos desumanizados, despersonalizados, e sobre os quais a soberania do Estado avança no direito de deixar morrer e poder matar.

Nosso intuito, neste ensaio, é analisar como as marcas do projeto de modernidade/colonialidade se expressam na estrutura manicomial. Assim, buscamos uma melhor compreensão de como os horrores executados em arranjos societários constituídos estruturalmente de forma segregada (como é o caso do Hospital Colônia) foram e ainda são capazes de produzir um corpo que vale menos, que pode ser obliterado, arrancado de sua humanidade e convertido em uma sombra, quando sobrevive.

Pensar o Hospital Colônia dentro desse marco, da necropolítica33 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018., pode colaborar para que uma sociedade como a nossa consiga se enxergar como marcada pela colonialidade dos saberes, das práticas e dos corpos44 Mignolo WD, Walsh C. On decoloniality: concepts, anatilics, praxis. Durhan and London: Duke University Press; 2018., e quiçá, desta forma, consiga encontrar um caminho para sair dessa grande noite55 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019..

O lager como recurso ou a colonialidade no Hospital Colônia

Quando o psiquiatra italiano Franco Basaglia, após sua visita ao Hospital Colônia de Barbacena (MG), disse “Estive hoje em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo, presenciei uma tragédia como esta”11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(207), avivou no espectro da psiquiatria uma metáfora que veio sendo utilizada de muitas formas, desde a segunda metade do século XX; uma metáfora do horror, que espelha o pior do humano, confrontando-o com seu duplo, cuja consciência moral desgastada pela eficiência do bom funcionário, de forma banal e ordinária, foi, por isso mesmo, capaz de produzir as maiores atrocidades, apenas para bater uma meta de produção, ser eficiente no sentido estrito da administração.

A metáfora concentracionária encontrou muitos caminhos66 Adorno TW. Educação após Auschwitz. In: Adorno TW. Educação e Emancipação. São Paulo, Brasil: Paz e Terra; 2012. p. 119-138.

7 Arendt H. Algumas questões de filosofia moral. In: Arendt H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras; 2004. p. 112-212.

8 Agamben G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo; 2008.

9 Didi-Huberman G. Cascas. São Paulo: Editora 34; 2017.

10 Mèlich J-C. La Lección de Auschwitz. Barcelona: Herder; 2004.
-1111 Matos-de-Souza R. As lições do lager: experiências com o mal e (de)formação nas narrativas de Lanzmann e Semprun. In: Moraes DZ, Cordeiro VM, Oliveira OV. Narrativas Digitais, História, Literatura e Artes na Pesquisa (Auto)Biográfica. Curitiba: Editora CRV; 2016. p. 129-144., sua experiência - como sabemos hoje - teve como laboratório as colônias do Oriente, da África e das Américas, nas quais havia corpos que valiam menos, importavam menos, objetos que eram no projeto da racionalidade moderna, que os traduzia como periferias do humano33 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.. Lugares nos quais uma política com o corpo do outro podia ser experimentada. No entanto, e de forma ambivalente, é justamente quando o sujeito moderno é vítima dos padrões de sua experiência colonial, que essa representação emerge como a potência que o caráter exemplar tem. O lager, o campo de concentração, é a prática colonial que chega à metrópole, para daí se difundir como standard, do que não podemos mais fazer e do que será permitido, de agora em diante.

O fato de que as colônias podem ser governadas na ausência absoluta de lei provém da negação racial de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo. Aos olhos do conquistador, ‘vida selvagem’ é apenas outra forma de vida animal, uma experiência assustadora, algo radicalmente outro (alienígena), além da imaginação ou da compreensão. [...] Os selvagens são, por assim dizer, seres humanos ‘naturais’, que carecem do caráter específico humano, da realidade especificamente humana, de tal forma que, ‘quando os europeus os massacravam, de certa forma não tinham consciência de que cometeram um crime’33 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.(35-36).

As experiências latino-americana e brasileira, por mais distintas que sejam da experiência colonial do século XX no continente africano, guardam uma relação muito próxima, que não pode ser ignorada em uma análise biopolítica. Nossos Estados soberanos produziram um espaço diferente para o corpo diferente, para categorias diferentes de pessoas. Este lugar é chamado de muitas maneiras, ao longo do imenso território identitário chamado América Latina: villa, comuna, barriada, barrio nuevo, favela, invasão, cidade-satélite, periferia. E adquire modos variados dentro do Estado soberano: zona de conflito armado, camburão, delegacia, prisão, penitenciária, sistema socioeducativo, hospital, hospício, asilo. É nesses espaços - uma terceira zona, nas palavras de Mbembe33 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018. -, que os estatutos de sujeito e objeto se aproximam.

A experiência colonial em países como o Brasil jamais foi superada, mas ganhou em sofisticação, pois produziu um tipo de organização social na qual as zonas ricas e urbanizadas desempenham o papel de metrópoles, e as periferias, os lugares dos corpos menores, disponíveis para o abate, que podem ser descartados sem que isto abale a consciência moral do cidadão de bem. O Estado funciona como o garantidor do bem-estar da sociedade, das vidas que são consideradas vivíveis1212 Butler J. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2017. e, por sua vez, do cidadão, construindo espaços nos quais os corpos indesejados possam ser direcionados a lugares de higiene, imunizando a sociedade. Para tanto, este mesmo Estado assume uma competência médica capaz de restaurar o corpo adoecido com a remoção da causa do mal, expelindo os germes, amputando partes do corpo, restabelecendo o ideal de ordem e pureza sociais1313 Esposito R. Bios: Biopolítica e Filosofia. Belo Horizonte: Editora da UFMG; 2017..

Essa divisão do espaço em compartimentos é uma das características da ocupação colonial, que produz aquilo que Fanon1414 Fanon F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1968. chamou de cidade do colonizado.

A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a Medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada1414 Fanon F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1968.(29).

A cidade do colonizado não é complementar à do colono, nem contígua, muito menos um lugar de desejo; ela é tudo o que a cidade do colonizador não pode ser, obedecendo a um princípio de exclusão recíproca. A cidade do colonizado é o lager, o lager-experimento dos corpos descartáveis, substituíveis, desmembráveis, e que podem ser vendidos como objetos. O lager como metáfora concentracionária, colonial, higienista e ascética, na qual os sujeitos podem ser categorizados, uniformizados - muitas vezes, pela cor da pele -, distribuídos conforme o valor econômico que seus corpos traduziram e, de certa forma, representa o horror. O que encontra significado no Hospital Colônia, descrito por Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.:

Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazista de Auschwitz. A expressão ‘trem de doido’ surgiu ali. [...] Os recém-chegados à estação do Colônia eram levados para o setor de triagem. Lá, os novatos viam-se separados por sexo, idade e características físicas. Eram obrigados a entregar seus pertences, mesmo que dispusessem do mínimo, inclusive roupas e sapatos, um constrangimento que levava às lágrimas muitas mulheres que jamais haviam enfrentado a humilhação de ficar nuas em público. Todos passavam pelo banho coletivo, muitas vezes gelado. Os homens tinham ainda o cabelo raspado de maneira semelhante à dos prisioneiros de guerra11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(27-28).

O ‘trem de doido’ - versão brasileira das ferrovias do holocausto, o constrangimento, a triagem, o banho e a humilhação compõem o panorama que aproxima a experiência do Hospital Colônia da experiência concentracionária dos campos nazistas, de sua ética soberana no domínio dos corpos. Ao avivar a metáfora do lager, comparando o Hospital Colônia de Barbacena (MG) à experiência concentracionária de Auschwitz (campo de concentração localizado na Polônia), Franco Basaglia recorreu à sua experiência imediata de europeu, de sujeito com idade suficiente para ter visto as barbáries ocorridas em seu continente, apenas duas décadas antes do evento do Hospital Colônia começar a emergir como um problema na sociedade brasileira. Nós, sujeitos do complexo contexto no qual hoje, em pleno século XXI, ainda persistem lógicas de segregação e colonização, precisamos avançar nesse recurso, pensando o lager a partir de outros modelos, tão aterrorizadores quanto Auschwitz, e que são produzidos no dia a dia de nossos aglomerados urbanos, de nossa vida cotidiana nas cidades do colonizador e do colonizado, e que naturalizam o terror, de muitas formas.

O que surpreendeu Basaglia foi a existência, em plena América Latina, de um campo de concentração nos moldes nazistas. Entretanto, a possibilidade de imaginar esta experiência distante de nosso contexto evidencia o lugar de onde parte o célebre psiquiatra para compreender a divisão geopolítica latino-americana, a de que, por aqui, essa é uma experiência estranha, fora dos padrões, surpreendente. Basaglia partiu de um olhar estrangeiro, ingênuo, que não tinha a exata dimensão do que era, e do que é a América Latina. Pois quem vive em nosso contexto tem na pele, no imaginário e no modus vivendi a segregação marcada como uma escara, sobretudo aqueles que fogem do padrão masculino-branco-heterossexual-rico. E todos nós, em comparação com o psiquiatra europeu, ainda carregamos a marca de latino-americanos. Uma marca de nosso processo de constituição de uma sociedade que naturalizou o lugar do corpo que vale menos, no qual se pode interpelar um corpo que se apresente fora do lager (da cidade do colonizado, da favela, da condição de sujeito saudável ou qualquer outra representação higienizada que imprima um fora e um dentro do que pode ser aceitável) como um germe a ser combatido, revistado, conduzido e, no caso do Hospital Colônia, levado, internado, apagado da própria existência como sujeito:

[...] a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos [...] a estimativa é de que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou-se o destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoólatras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos indesejados, inclusive os chamados insanos11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(25-26).

A racionalidade moderna, ao estabelecer seus padrões do que é aceitável enquanto conceito possível, operou uma drástica seleção, por exclusão, do que seria aceito como humano. Como diria Chatelet1515 Châtelet F. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1994., se a razão ainda não encontrou a idade da razão, a razão moderna flertou, em suas operações de distinção, com tudo o que a própria modernidade qualificou como barbárie. A loucura, como representação e modo de existência historicamente menor, sempre afrontou os padrões da razão médica e da racionalidade científica moderna, que pareceram sempre entender que havia um lugar para o louco, que, recorrendo a Lapoujade1616 Lapoujade D. Las existencias menores. Buenos Aires: Cactus; 2018.(83), podia existir “[...] seguramente, mas não desta maneira, nem dessa maneira, nem de nenhuma maneira...” [tradução nossa]. No entanto, a linha entre o que é considerado normal ou anormal em uma sociedade é muito tênue e, como no caso do Hospital Colônia de Barbacena (MG), esta linha pôde ser facilmente borrada, para caber quem, naquele momento, resolveu afrontar os padrões estabelecidos.

Os indesejados do Hospital Colônia, os anormais, viventes naquele lugar de expurgo, passaram por inúmeros outros sujeitos desligados de suas consciências morais, que viam aqueles encaminhados para o hospital como não iguais, destituídos da condição de pessoas, objetos que, quando incomodaram, foram prontamente encaminhados para tal lugar, do qual as chances de saída eram mínimas. A síntese de Arendt1717 Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras; 2013. sobre a banalidade do mal encontra no Hospital Colônia algo que a torna mais aguda. Se a despersonalização dos judeus nos campos de concentração passava por uma difícil relação de proximidade, e desligar a humanidade de um vizinho, ou até de um parente, pode ser um exercício de sofrimento profundo1111 Matos-de-Souza R. As lições do lager: experiências com o mal e (de)formação nas narrativas de Lanzmann e Semprun. In: Moraes DZ, Cordeiro VM, Oliveira OV. Narrativas Digitais, História, Literatura e Artes na Pesquisa (Auto)Biográfica. Curitiba: Editora CRV; 2016. p. 129-144., à estrutura asilar chegavam os indesejados que, uma vez por lá, eram transformados em sombras despersonalizadas, às quais o mínimo controle sobre o próprio corpo era negado.

Banalidade do mal no/na Colônia

Em seu livro sobre Eichmann, o exemplar funcionário do regime nazista capturado pela polícia secreta israelense e levado a julgamento, Hannah Arendt1717 Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras; 2013. colocou em disputa o conceito de banalidade do mal, a partir da imagem do burocrata que, ao obedecer às ordens, foi responsável direto pelo extermínio de milhares de pessoas.

A figura sem brilho de Eichmann descrita por Arendt é um excelente exemplo de como sujeitos premiados pela execução de atrocidades podem banalizar o mal ao ponto de não se perceberem como agentes da maldade, os técnicos que negam qualquer responsabilidade, pois estão cuidando apenas de fazer seu trabalho da melhor maneira possível. E, ao mesmo tempo, nos dá, junto com os personagens do julgamento de Nuremberg, a dimensão de como a consciência moral havia perdido espaço para a obediência ao regime, sendo substituído por um pensamento burocrático e uma consciência burocrática1818 Matos-de-Souza R. Antes de Auschwitz: ensaio sobre Autobiografia e Formação em Elias Canetti [tese] [internet]. Salvador: Universidade do Estado da Bahia; 2015. [acesso em 2020 jan 15]. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3598826.
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(145-146).

Essa administração do mal banal, cuja colagem aparece repetidas vezes nos discursos contemporâneos da boa administração, da eficiência, e que demonstra a total incompreensão do outro como humano, no Hospital Colônia, ganhava contornos terríveis ao equiparar o lugar de tratamento a um espaço para o confinamento de animais, no qual leito e curral se equivaliam:

Em 1930, com a superlotação da unidade, uma história de extermínio começou a ser desenhada. Trinta anos depois, existiam 5 mil pacientes em lugar projetado inicialmente para 200. A substituição de camas por capim foi, então, oficialmente sugerida pelo chefe de Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais, José Consenso Filho, como alternativa para o excesso de gente. A intenção era clara: economizar espaço nos pavilhões para caber mais e mais infelizes. O modelo de leito chão deu tão certo, que foi recomendado pelo Poder Público para outros hospitais mineiros em 195911 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(26).

O Hospital Colônia e os ‘outros hospitais mineiros’ fizeram o estado de Minas Gerais referência nesse tipo de solução, marcada pela violência de Estado para com sua população e cujas marcas hoje podem ser reconhecidas como racismo, machismo, homofobia, ódio à diferença, todas essas fobias e medos em seu caráter estrutural, expondo uma necropolítica que se destacava até mesmo nas estatísticas: as internações nos hospitais psiquiátricos mineiros aconteciam em número superior ao dobro do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 3 internações por cada 1000 habitantes11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013..

Para tanto, o referido hospital não fazia distinção, esticava as bordas até de concepções inventadas pela modernidade, como a infância, dispensando às crianças ‘tratamento’ afim ao dado aos adultos, com os quais conviviam nos mesmos pavilhões, sendo alvos das mais abjetas violações. Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. relata a história de Luiz Pereira de Melo, internado aos 16 anos no Hospital Colônia por ‘esquisitice’, timidez ou pobreza - ‘males’ dos quais padecia a maioria dos internos do hospital -, não se sabia ao certo, e que perdeu as contas de quantos anos passou enclausurado. Crianças com epilepsia, hidrocefalia, deficiência física ou mesmo aquelas que não tinham diagnóstico, como Luiz, perderam suas infâncias no Hospital Colônia, submetidas a camisas de força, eletrochoques e lobotomias.

Quando a sociedade civil consegue entrar no Hospital Colônia, através da imprensa, com uma equipe de reportagem da revista ‘O Cruzeiro’, em 1961, é que o lager se apresenta em toda sua magnitude representacional, e a imagem que muitos já haviam visto, como produto de uma guerra, não encontra expressão compatível na realidade objetiva. As primeiras impressões só fazem paralelo possível com o uso de recurso literário - “o Inferno de Dante”11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(74) -, e metafórico - a “sucursal do inferno”11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(172):

Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo [fotógrafo de O Cruzeiro] viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nos banheiros coletivos, havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante. Dentro da cozinha, a ração do dia era feita em caldeirões industriais. Antes de entrar nos pavilhões, o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame. Entrou com facilidade no lugar usado como necrotério. Deparou-se com três cadáveres em avançado estado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata.

Dentro dos pavilhões, promiscuidade. Crianças e adultos misturados, mulheres nuas à mercê da violência sexual. Nos alojamentos, trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima de mortos-vivos. O mau cheiro provocava náuseas. [...] Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer. A miséria humana escancarada diante de sua máquina11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(171-172).

Felizardo e Oliveira1919 Felizardo JT, Oliveira JL. As análises de Hannah Arendt acerca dos campos de concentração e suas relações com o "holocausto brasileiro". Mental [internet]. 2017 [acesso em 2019 out 14]; 11(21):431-444. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272017000200009.
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também tecem aproximações entre o livro de Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. e a obra de Hannah Arendt, encontrando semelhanças entre os campos de concentração nazista e o regime de vida dos internos do Hospital Colônia. Comum a ambos os espaços, temos o terror totalitário, que promove a interseção entre o aniquilamento da identidade e a condenação ao esquecimento:

As mulheres andavam em silêncio na direção do Departamento A, conhecido como Assistência. Daquele momento em diante, elas deixavam de ser filhas, mães, esposas, irmãs. As que não podiam pagar pela internação, mais de 80%, eram consideradas indigentes. Nesta condição, viam-se despidas do passado, às vezes, até mesmo da própria identidade. Sem documentos, muitas pacientes do Colônia eram rebatizadas pelos funcionários. Perdiam o nome de nascimento, sua história original e sua referência, como se tivessem aparecido no mundo sem alguém que as parisse11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(29-30).

O Hospital Colônia e os campos de concentração também tinham como afinidade a fabricação de cadáveres, não importando se em morte ou em vida1919 Felizardo JT, Oliveira JL. As análises de Hannah Arendt acerca dos campos de concentração e suas relações com o "holocausto brasileiro". Mental [internet]. 2017 [acesso em 2019 out 14]; 11(21):431-444. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272017000200009.
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, já que as fronteiras entre morte e vida eram eclipsadas em tais espaços. Como exemplo: Silvio Savat, criança fotografada dormindo no Hospital Colônia com o corpo cheio de moscas, chegou a ser confundido pelo fotógrafo Luiz Alfredo, de ‘O Cruzeiro’, com um defunto. Como assevera Arendt2020 Arendt H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012.(593): “a desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos”.

É nesse contexto de pulsão de morte que o Hospital Colônia aprofunda sua condição de lugar de degradação, de extermínio e de gestor de corpos, cujos valores estavam tanto em vida, no lucro com os pacientes, quanto na morte, com o comércio dos cadáveres. A narrativa que expõe o comércio cadavérico se inicia com a apresentação do personagem, o professor da faculdade de farmácia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Ivanzir Vieira, falando do percurso que fazia a pé, de sua casa até a universidade, quando notou, pelo comportamento dos alunos que passavam pelo local, e pela falta do aglomerado de estudantes na porta da escola, que algo de estranho estava se passando. De dentro do prédio vinha um odor putrefato, que se assemelhava ao de centenas de ratos mortos. Ao adentrar o pátio interno, encontrou a origem do forte cheiro: dezenas de cadáveres esquálidos, seminus, dispostos nas posições mais grotescas, ocupavam todo o espaço interno da faculdade. O professor começou a se perguntar o porquê de tantos, das posições em que estavam dispostos, quando apareceu um funcionário da faculdade de medicina e o informou que as aulas haviam sido suspensas, que uma caminhoneta havia chegado na madrugada, oferecendo os corpos à instituição por cerca de um milhão de cruzeiros (algo próximo a R$ 364, nos dias de hoje) e que, caso a universidade não se interessasse, já havia comprador para o lote no Rio de Janeiro. O professor se espantou com o fato de a universidade comprar cadáveres. Ele não sabia que só o Hospital Colônia havia vendido 1.823 corpos à instituição, entre 1960 e 1980. Embora nenhum daqueles corpos tivesse venda autorizada pelas famílias, havia também a comercialização de peças anatômicas (partes do corpo) e ossos11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013.(71-79). Assim, retomando as palavras de Arendt2020 Arendt H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012., o Hospital Colônia também assumia as feições de um campo de concentração, já que tornava, tal qual este,

[...] anônima a própria morte e, tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada - nem a morte - lhe pertencia, e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido2020 Arendt H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; 2012.(600).

Apesar da complacente banalidade do mal, da maioria dos funcionários, houve quem se opusesse à barbárie instituída no hospital. O livro destaca, entre outros, os psiquiatras Francisco Paes Barreto e Antônio Soares Simone, ambos retaliados pelas corporações médicas. Isto nos indica que o mal banal era o modus operandi da medicina da época. Será necessária a assunção de um novo modelo de cuidado, trazendo a reboque a assunção da humanidade, esta que, podemos dizer, chegou tardiamente para alguns e ainda não chegou para todos.

Entre a reforma e a contrarreforma psiquiátrica: avanços e retrocessos da necropolítica brasileira

Por conta de denúncias de corrupção e de graves violações aos direitos humanos nos hospitais psiquiátricos do País - como visto no panorama do Hospital Colônia apresentado por Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. -, a partir da década de 1980, começa uma guinada no modelo assistencial brasileiro, fruto do Movimento da Luta Antimanicomial, composto por profissionais de saúde mental, usuários do sistema psiquiátrico e seus familiares. Assim, em 2001, há a culminância do movimento reformista da psiquiatria no Brasil, pela instituição da Lei nº 10.216/012121 Brasil. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. 9 Abr 2001., que preconiza o tratamento em meio comunitário, a defesa dos direitos humanos e a desinstitucionalização da loucura. Para tanto, foram criados serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e, mais tarde, foi delineada a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), instituída pela Portaria nº 3.088/112222 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 27 Nov 2019., que afirma a importância do cuidado em rede para atingir a integralidade em saúde.

Contudo, apesar dos avanços respaldados nas pesquisas científicas que ratificam a importância do tratamento em meio comunitário2323 Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 23]; 35(11):e00129519. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678-4464-csp-35-11-e00129519.pdf.
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,2424 Onocko-Campos R. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocesso e desafios. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 25]; 35(11):e00156119. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678-4464-csp-35-11-e00156119.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678...
e nos depoimentos dos próprios usuários, quanto à melhoria do modelo de cuidado, o modelo instituído não é unanimidade e encontra-se sob ataque aos seus valores basilares. Em verdade, podemos dizer que os primeiros golpes à reforma já puderam ser sentidos quando as comunidades terapêuticas foram consideradas como pontos de atenção da Raps no atendimento às pessoas com uso abusivo de drogas2222 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 27 Nov 2019., mas elas mesmas retomavam o modelo asilar, se opondo à política de redução de danos preconizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, em sua maioria, eram instituições religiosas, algumas denunciadas por violações dos direitos humanos2525 Goiás. Ministério Público. Deflagrada operação em comunidades terapêuticas de Cristalina após denúncias de maus-tratos [internet]. Ministério Público do Estado de Goiás. 2019 Ago 1 [acesso em 2019 nov 10]. Disponível em: http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/deflagrada-operacao-em-comunidades-terapeuticas-de-cristalina-apos-denuncias-de-maus-tratos--2#.XeA5GJNKjIU.
http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/def...

26 Farias M. Dependentes químicos denunciam instituição filantrópica em Maceió [internet]. G1. 2013 Jun 13 [acesso em 2019 nov 10]. Disponível em: http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2013/06/dependentes-quimicos-denunciam-instituicao-filantropica-de-maceio.html.
http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2...
-2727 Conselho Federal de Psicologia. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas [internet]. Brasília, DF: CFP; 2018. [acesso em 2020 jan 15]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf.
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
. Por conta de tais características, as comunidades terapêuticas têm sido identificadas como ‘novos manicômios’2828 Belloni F, Antunes A. Os manicômios de hoje se chamam comunidades terapêuticas [internet]. [Rio de Janeiro]: Fiocruz; Escola Politécnica Joaquim Venâncio; [2016] [acesso em 2019 out 20]. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/os-manicomios-hoje-se-chamam-comunidades-terapeuticas.
http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/ent...
.

Entendemos que os movimentos reformistas, de maneira geral, não se dão sem tensões e concessões, muitas vezes, desvirtuando o idealizado. Contudo, algumas ações vão além do ‘ceder para conquistar’, se caracterizando como contracorrentes. Sobre isto, é importante termos em mente os sinais contrarreformistas na saúde mental:

Pode-se definir a contrarreforma, enfim, como um processo sociopolítico e cultural complexo, que evidencia uma correlação de forças e interesses que tensionam e até revertem as transformações produzidas pelas RP [Reformas Psiquiátricas] nas quatro dimensões propostas por Amarante: epistemológica, técnico-assistencial, político-jurídica e sociocultural2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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(4491).

Nesse sentido, uma das tentativas de deturpar a reforma psiquiátrica no Brasil foi, em 2015, a nomeação do diretor de um grande manicômio brasileiro para a Coordenação Nacional de Saúde Mental2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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,3030 Pitta AMF, Guljor AP. A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia em tempos de luta pelos direitos humanos. Cad. do CEAS [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 3]; (246):06-14. Disponível em: https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/525.
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. Após o golpe de 2016, que destituiu uma presidenta mais alinhada à esquerda e colocou no poder um governo neoliberal, outros ataques foram deflagrados. Em 21 de dezembro de 2017, foi lançada a Portaria nº 3.588/173131 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação nº 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 22 Dez 2017., que retoma práticas biomédicas na saúde mental. Entre os objetos de crítica à portaria estão as introduções do hospital dia, do hospital psiquiátrico e dos ambulatórios na Raps2424 Onocko-Campos R. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocesso e desafios. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 25]; 35(11):e00156119. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678-4464-csp-35-11-e00156119.pdf.
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,2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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,3030 Pitta AMF, Guljor AP. A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia em tempos de luta pelos direitos humanos. Cad. do CEAS [internet]. 2019 [acesso em 2019 set 3]; (246):06-14. Disponível em: https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/525.
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. Além da citada Portaria, outra afronta é a Lei nº 13.840/193232 Brasil. Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Diário Oficial da União. 6 Jun 2019., que traz mudanças substanciais no tratamento aos usuários de drogas, instituindo a abstinência e, até mesmo, a possibilidade de internação involuntária2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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. Nunes et al.2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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elencam outros ataques à política de saúde mental, como o reajuste do valor das internações em hospitais psiquiátricos, o edital para credenciamento de comunidades terapêuticas e a retomada da eletroconvulsoterapia (revogada).

Assim, gradativamente, o modelo reformista vai sendo substituído, na retomada de ações de saúde fragmentárias e centradas no hospital, que contrariam a integralidade do cuidado proposta pelo SUS. A escolha dos últimos anos para a política de saúde mental é resgatar velhos expedientes, ao passo que os serviços substitutivos permanecem subfinanciados, os componentes previstos pela rede não foram suficientemente implementados ou articulados e o desenvolvimento de recursos humanos na saúde mental permanece aquém do ideal2323 Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 23]; 35(11):e00129519. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678-4464-csp-35-11-e00129519.pdf.
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,2424 Onocko-Campos R. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocesso e desafios. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 25]; 35(11):e00156119. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n11/1678-4464-csp-35-11-e00156119.pdf.
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,2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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. É o futuro repetindo o passado, museu de grandes novidades, e, como suspeitam Martins, Assis e Bolsoni22 Martins MER, Assis FB, Bolsoni CC. Ressuscitando a indústria da loucura?! Interface (Botucatu) [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 21]; (23):e190275. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e190275.pdf.
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, e Nunes et al.2929 Nunes MO, Lima Júnior JM, Portugal CM, et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2019 dez 30]; 24(12):4489-4498. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019001204489.
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: a ressuscitação da indústria da loucura, que entendemos que agora se apresenta em novos moldes, com um protagonismo das comunidades terapêuticas.

Tais instituições vêm tentando assumir a centralidade no tratamento de usuários/dependentes de drogas no Brasil, o que fica ainda mais marcante ao analisarmos as ações dos primeiros anos do governo Bolsonaro. Segundo matéria da Agência Pública3333 Correia M. Entidades cristãs receberam quase 70% da verba federal para comunidades terapêuticas no primeiro ano de governo Bolsonaro [internet]. Pública - Agência de Jornalismo Investigativo. 2020 Jul 27 [acesso em 2020 ago 27]. Disponível em: https://apublica.org/2020/07/entidades-cristas-receberam-quase-70-da-verba-federal-para-comunidades-terapeuticas-no-primeiro-ano-de-governo-bolsonaro/.
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, as vagas financiadas pelo governo federal nas comunidades terapêuticas saltaram de 2,9 mil, no ano de 2018, para 11 mil, em 2019. Ademais, entre os recursos do Ministério da Cidadania para tais instituições, cerca de 70% são destinados àquelas de caráter religioso (católica e evangélica), ou seja, em torno de R$ 85 milhões. Mesmo as comunidades que violaram direitos humanos receberam verba federal, como o Centro de Recuperação Álcool e Drogas Desafio Jovem Maanaim. Outra ação do governo Bolsonaro em prol de comunidades terapêuticas foi a publicação da Resolução nº 3/20203434 Conselho Nacional de Política sobre Drogas. Resolução nº 3, de 24 de julho de 2020. Diário Oficial da União. 28 Jul 2020., do Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad), que regulamenta o acolhimento de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas.

Não causa espanto que as primeiras ações do governo Bolsonaro relativas à política de saúde mental brasileira tenham se voltado para o que concerne ao tratamento do uso/abuso de drogas, ou melhor, para ações antidrogas, já que ele sempre assumiu pauta conservadora e governa de mãos dadas com a bancada evangélica, que, como vimos, tem muito interesse na expansão das comunidades terapêuticas. Quanto à sua posição sobre o restante da política de saúde mental, esta ainda é nebulosa, como tudo no governo, feito de ameaças e recuos. Contudo, dada a política de desmonte do SUS assumida por uma agenda neoliberal, bem como dado o ataque aos direitos humanos, aos estudos científicos e às minorias, além de dada a alardeada defesa da tortura, temos muito o que temer. Ademais, não podemos perder de vista a participação da psiquiatria na biopolítica/necropolítica, no controle dos corpos, sobremaneira em tempos de convulsão social:

Em momentos de crise econômica, a psiquiatria é acionada para controlar desordens, excluir os que incomodam e manter a ordem produtiva, além de geralmente ser acompanhada de outras leis repressivas. Fora assim na ‘Grande Internação’, na passagem do feudalismo à sociedade capitalista, como traz Foucault em ‘A História da Loucura’; foi assim no Brasil, na passagem da Colônia ao Império, bem como no aprofundamento liberal da ditadura militar22 Martins MER, Assis FB, Bolsoni CC. Ressuscitando a indústria da loucura?! Interface (Botucatu) [internet]. 2019 [acesso em 2019 nov 21]; (23):e190275. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e190275.pdf.
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(3).

Sobre isso, Freire3535 Freire P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979. constrói uma analogia para a sociedade brasileira, dizendo que nossa história pode ser explicada por um movimento dialético entre sociedade aberta (mais democracia) e sociedade fechada (menos democracia). O Brasil, ao longo de seu período republicano, passou por ditaduras militares, ditaduras civis e golpes de Estado. A recente jornada democrática brasileira pós-ditadura militar é um período ainda muito curto e, mesmo na vivência dessa experiência democrática, se dá em um amplo processo de negociação com estruturas pouco democráticas ou declaradamente simpatizantes do totalitarismo. A abertura do último período ditatorial também permitiu que vários setores da sociedade brasileira pudessem repensar práticas totalitárias em seus espaços de atuação, como aconteceu em relação ao aparato manicomial, pois se um valor incontornável de uma democracia é a vida conjunta entre os diferentes, a vida em conjunto precisa chegar para todos.

A ideia de história como estrutura linear, típica da narrativa historiográfica rankeana, com a qual somos solapados desde a mais tenra idade pelo processo de escolarização, talvez não consiga dar conta de um exercício de percepção histórica não linear, que concebe o tempo em movimentos de idas e vindas, no qual a história se produz como alerta de perigo, alerta de que os que sempre venceram estão, mais uma vez, ocupando seus postos triunfais, “em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”3636 Benjamin W. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense; 1994.(225), e reivindicam, outra vez, o domínio dos corpos, pois, no estado de exceção tornado normalidade88 Agamben G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo; 2008., no qual vivemos, é preciso ter a consciência de que a história “é objeto de uma construção, cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”3636 Benjamin W. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense; 1994.(229).

A provocação de Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013., de comparar nossa experiência asilar com a experiência concentracionária, opera, pela radicalidade, um exercício de se ver como outro, mas um outro capaz de cometer atrocidades, de ser algoz de seu próprio povo, de despersonalizar o humano, que, na acepção mais cordata, poderíamos dizer que é produzida por sujeitos que se descolaram de suas consciências morais e nos assombram quase diariamente com a expressão pública desse descolamento. E, se a luta pela reforma psiquiátrica pode ser entendida como um movimento de produção de uma consciência social sobre a condição humana do louco, as contrarreformas expressam os modos pelos quais os sujeitos desligados de suas consciências morais manifestam seus desejos de retomarem seus postos de dominadores dos corpos.

Considerações finais

“O repórter luta contra o esquecimento. Transforma em palavra o que era silêncio. Faz memória”3737 Brum E. Prefácio - Os loucos somos nós. In: Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. p. 13-17.(13). Conforme Eliane Brum3737 Brum E. Prefácio - Os loucos somos nós. In: Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. p. 13-17., no prefácio do livro de Daniela Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013., o ‘Holocausto Brasileiro’ é um resgate da memória, de uma página antes desbotada, amarelada, apagada da história do País. Mas não deve ser só labuta do repórter não esquecer, a luta contra o esquecimento deve ser uma batalha diária da sociedade. É preciso lembrar sobremaneira do nosso passado colonial, presente ainda em nossa colonialidade, que ecoa em práticas travestidas de cuidado em saúde, e que dividem a sociedade em cidade do colonizado, guetos, periferias, manicômios. Neste sentido, a inscrição no livro funciona como um phármakon3838 Derrida J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras; 2005., uma droga contra a banalidade do mal, contra o esquecimento. Por outro lado, o phármakon é também veneno, já que o recurso ao registro em escrita faz o rememorar prescindível. Cabe a nós, sabermos dosar a medida do remédio oferecido por Arbex11 Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013..

Muitos sujeitos, ao longo da história do Hospital Colônia, entenderam o absurdo que se produzia ali, que os internos estavam sendo tratados fora do acordo civilizacional que chamamos de sociedade, e não chegavam a alcançar os direitos mínimos do que entendemos como os anseios de uma sociedade mais aberta (o Hospital Colônia, em sua longa existência, passou por ditaduras e também por períodos ditos democráticos). Foi no período da abertura do último regime militar que se criou um ambiente propício para que muitos profissionais de saúde, familiares de internos e ex-usuários de hospitais psiquiátricos se sentissem confortáveis para iniciar um movimento de resistência aos maus-tratos no ‘tratamento’ psiquiátrico brasileiro. Movimento que influenciou diretamente as políticas públicas das últimas décadas, funcionando como uma espécie de freio moral, que nos diz dos horrores que foram praticados no passado com seres humanos que dizíamos proteger. Hoje, com o avanço de políticas abertamente antidemocráticas, tem início um esgarçamento dos limites dessa tomada de consciência, e o freio tem se tornado cada vez mais difícil de ser acionado.

Ainda sobre nosso resgate à memória, é válido ressaltar que o movimento reformista da psiquiatria se deu em paralelo à democratização do País e ao delineamento do SUS. Neste sentido, não é mera coincidência que o ataque ao SUS e aos princípios da reforma psiquiátrica ocorra em concomitância ao ataque à democracia, no Brasil. Defender o SUS e a reforma psiquiátrica é reconhecer o acesso à saúde e a defesa dos direitos humanos como valores basilares da democracia. Produzir saúde é também combater as desigualdades sociais. Assim, não é possível assumir uma posição de neutralidade política. Urge a assunção de uma defesa obstinada de tais valores, asseverando que o SUS e a Raps são conquistas do nosso povo, são marcos da tomada de consciência, da compreensão da barbárie operada no Hospital Colônia como parte do projeto moderno de domínio dos corpos indesejados.

Por fim, abordar a história do ‘tratamento’ psiquiátrico no Brasil para retratar a banalidade do mal, a biopolítica e a necropolítica é apenas um recorte do que pode ser discutido sobre o tema em nosso país. Em tempos de pandemia de Covid-19, a necropolítica fica ainda mais explícita no Brasil. As palavras e as ações do presidente não deixam dúvidas de que, mais do que nunca, “[...] o biológico reflete-se no político [...]”3939 Foucault M. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 1985.(134), posto que não é apenas o vírus que nos ameaça, mas também o descaso gritante expresso nas declarações de Bolsonaro sobre a pandemia - “gripezinha”, “não sou coveiro”, “e daí?” -, no seu empenho em divulgar uma falaciosa cura da Covid-19 através da cloroquina e no seu menosprezo às recomendações da OMS. Assim, sem nenhuma sutileza, o governo federal escancara seu poder sobre quem pode viver e quem deve morrer, já que, em nosso país, é sabido que a pobreza é fator de risco para a Covid-194040 Dolce J. Desigualdade social é fator de risco para mortes de crianças e adolescentes por Covid-19 no país [internet]. Pública - Agência de Jornalismo Investigativo. 2020 Jun 9 [acesso em 2020 ago 27]. Disponível em: https://apublica.org/2020/06/desigualdade-social-e-fator-de-risco-para-mortes-de-criancas-e-adolescentes-por-covid-19-no-pais/.
https://apublica.org/2020/06/desigualdad...

41 Soares M. Dados do SUS revelam vítima-padrão de Covid-19 no Brasil: homem, pobre e negro [internet]. Época. 2020 Jul 3 [acesso em 2020 ago 27]. Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414.
https://epoca.globo.com/sociedade/dados-...
-4242 Pires LN, Carvalho L, Xavier LL. COVID-19 e desigualdade no Brasil. Cebes [internet]. 2020 [acesso em 2020 ago 27]. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/04/covid-19-e-desigualdade-no-brasil/.
http://cebes.org.br/2020/04/covid-19-e-d...
. Infelizmente, este não é um episódio isolado, já que a necropolítica, em nosso país, não é prerrogativa do governo Bolsonaro. A história do Brasil é fértil em holocaustos, desde sua colonização histórica, e a banalidade do mal também se reproduziu em inúmeros momentos da nossa história recente: Eldorado dos Carajás (PA); o massacre do Carandiru, presídio localizado em São Paulo (SP); a chacina do Cabula, bairro de Salvador (BA); a chacina de Costa Barros, bairro do Rio de Janeiro (RJ). Ainda a título de exemplo, no ano de 2019, seis crianças foram assassinadas pela polícia militar do Rio de Janeiro (RJ), com a anuência de um governador de inspiração protofascista, que declarou: “A polícia militar vai mirar na cabecinha”. Foram elas: Jenifer Gomes, 11 anos; Kauan Peixoto, 12 anos; Kauã Rozário, 11 anos; Kauê dos Santos, 11 anos; Ágatha Félix, 8 anos; Kethellen Gomes, 5 anos4343 Barbon J. Saiba quem são as seis crianças mortas pela violência no Rio de Janeiro em 2019 [internet]. Folha de São Paulo. 2019 Dez 31 [acesso em 2020 jan 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/12/saiba-quem-sao-as-seis-criancas-mortas-pela-violencia-no-rio-de-janeiro-em-2019.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
. A banalidade do mal é o modus operandi das instituições brasileiras, a necropolítica é a nossa política. Como nos diz Brum3737 Brum E. Prefácio - Os loucos somos nós. In: Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. p. 13-17.: “Agora, é preciso lembrar [...] porque o holocausto ainda não acabou”3737 Brum E. Prefácio - Os loucos somos nós. In: Arbex D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial; 2013. p. 13-17.(17).

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2020
  • Aceito
    07 Set 2020
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