Erro diagnóstico subsidia pacote de reformas que mina a Estratégia Saúde da Família

Misdiagnosis subsidizes a package of reforms that undetermines the Family Health Strategy

Ricardo Donato Rodrigues Sobre o autor

RESUMO

Este ensaio aborda o diagnóstico desfavorável à Estratégia Saúde da Família, que subsidiou um pacote de reformas implantado pelo Ministério da Saúde em 2019. Com o objetivo de revisar tal diagnóstico sob a hipótese de erro na sua formulação, foi realizada análise documental do acervo do governo federal sobre o tema. A hipótese inicial foi confirmada com respaldo em bibliografia pertinente, referenciada no texto. Evidenciaram-se erros técnicos na avaliação da eficiência e produtividade da Estratégia Saúde da Família. Também foram detectados erros no campo histórico especialmente quanto à desconsideração dos resultados positivos alcançados no âmbito dos cuidados primários, das políticas de incentivo implantadas com tal propósito e das características inerentes aos desafios de um processo ainda inconcluso de reforma sanitária - questão invisível naquele diagnóstico. Como conclusão, este ensaio refuta o diagnóstico do Ministério da Saúde e recomenda que o processo de avaliação da Estratégia Saúde da Família seja refeito à luz dos princípios do planejamento estratégico-situacional.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à; Saúde; Estratégia Saúde da Família; Diagnóstico da situação de saúde; Reforma dos serviços de saúde

ABSTRACT

This essay addresses the diagnosis unfavorable to the Family Health Strategy that subsidized a package of reforms implemented by the Ministry of Health, in this context, in 2019. In order to review this diagnosis, under the hypothesis of an error in its formulation, a document analysis was performed of the federal government’s collection on the subject. The initial hypothesis was confirmed with support in pertinent bibliography, referenced in the text. Technical errors were evidenced in the evaluation of the efficiency and productivity of the Family Health Strategy. Errors in the historical field were also evidenced, especially regarding the disregard of the positive results achieved in this context of primary care, of the incentive policies implemented with such purpose and of the characteristics inherent to the challenges of a still unfinished process of health reform - an invisible issue in that diagnosis. In conclusion, this essay refutes the Ministry of Health’s diagnosis and recommends that the evaluation process of the Family Health Strategy be remade in a participatory manner, in light of the principles of strategic-situational planning.

KEYWORDS
Primary Health Care; Family Health Strategy; Diagnosis of health situation; Health care reform

Introdução

Este ensaio aborda o diagnóstico desfavorável à Estratégia Saúde da Família (ESF) que subsidiou o pacote de reformas11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 15 de maio de 2019. Institui o Programa “Saúde na Hora”, que dispões sobre o horário estendido das Unidades da Saúde da Família. Diário Oficial da União. 17 Maio 2019.

2 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Carteira de Serviços. Consulta Pública. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2019 set 18]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/carteira_servico_da_APS_consulta_SAPS.pdf
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3 Brasil. Ministério da Saúde. Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde (CaSAPS); Versão Profissionais de Saúde e Gestores. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2020 out 13]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/casaps_versao_profissionais_saude_gestores_completa.pdf
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4 Brasil. Medida Provisória nº 890, de 1º de agosto de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde, e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial da União. 1 Ago 2019.

5 Brasil. Lei nº13958, de 18 dez 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União. 19 Dez 2019.
-66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2919. Institui o Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União. 13 Nov 2019.
implantado pelo Ministério da Saúde (MS) em 2019. Com o objetivo de revisar tal diagnóstico sob a hipótese de erro na sua formulação, foi realizada análise documental do acervo do governo federal sobre o tema. A hipótese inicial foi confirmada com respaldo em bibliografia pertinente, referenciada no texto.

Chama atenção que o pacote de mudanças guarda fina sintonia com novas ‘Propostas de Reformas do Sistema Único Brasileiro’ firmadas pelo Banco Mundial77 Banco Mundial. Propostas de Reformas do Sistema Único da Saúde. [acesso em 2019 nov 29]. Disponível em: http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-do-SUS.pdf
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,88 Setor Saúde. Setor Saúde no Brasil e no mundo. Banco Mundial apresenta propostas para reforma do SUS. [acesso em 2019 jun 6]. Disponível em: https://setorsaude.com.br/banco-mundial-apresenta-propostas-para-a-reforma-do-sus/
https://setorsaude.com.br/banco-mundial-...
. Nesse contexto, não deve causar surpresa que, fazendo eco ao discurso do Banco Mundial, o MS tenha considerado necessário implantar um novo modelo de financiamento para a Atenção Primária à Saúde (APS)66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2919. Institui o Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União. 13 Nov 2019. para corrigir supostas ineficiência e baixa produtividade do modelo anterior, particularmente da ESF99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
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. Sua tese nessa área1010 Harzheim E. Novo Modelo de Financiamento da Atenção Primária à Saúde. 2019. [Vídeo YouTube] [2h 53 min]. Publicado pelo Canal Câmara dos Deputados. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9bvLgxBIiOc-
https://www.youtube.com/watch?v=9bvLgxBI...
, aprovada na Comissão Intergestores Tripartite à revelia do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em desacordo com a Lei Orgânica da Saúde que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS)1111 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Lei nº 8.142. Dispões sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras proviências. In: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Legislação do SUS. Brasília, DF: Conass; 2003. p. 38-39., deu margem à criação do Previne Brasil66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2919. Institui o Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União. 13 Nov 2019., em sucessão a outro programa denominado Médicos pelo Brasil (PMB).

Este último, foi instituído inicialmente às custas de Medida Provisória44 Brasil. Medida Provisória nº 890, de 1º de agosto de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde, e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial da União. 1 Ago 2019. convertida em Lei55 Brasil. Lei nº13958, de 18 dez 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União. 19 Dez 2019. após sua aprovação pelo Congresso Nacional. Apesar de apresentado pelo MS com o objetivo de preencher lacunas deixadas pela desativação do Programa Mais Médicos1212 Brasil. Presidência da República. Lei nº 1.2871 de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos. Diário Oficial da União. 23 Out 2013. [acesso em 2020 mar 7]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
,1313 Brasil. Ministério da Saúde. Mais Médicos: Conheça o Programa. [acesso em 2020 mar 7]. Disponível em: http://www.maismedicos.gov.br/conheca-programa
http://www.maismedicos.gov.br/conheca-pr...
, o PMB carrega em sua estrutura um dispositivo favorável à privatização da saúde no País sob o manto de uma organização social autônoma batizada com o nome de Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps)44 Brasil. Medida Provisória nº 890, de 1º de agosto de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde, e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial da União. 1 Ago 2019.,55 Brasil. Lei nº13958, de 18 dez 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União. 19 Dez 2019.,1414 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 10.383. Institui o Serviço Social Autômo para o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde - ADAPS. Diário Oficial da União. 20 Mar 2020..

Ao lado do congelamento dos gastos orçamentários por 20 anos, inclusive os referentes à saúde, em decorrência da Emenda Constitucional 95 (EC 95)1515 Brasil. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Dez 2016. e da Política Nacional de Atenção Básica 20171616 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União. 21 Set 2017., o PMB afeta gravemente a ESF1717 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde. Contribuição dos pesquisadores da Rede APS ao debate sobre as recentes mudanças na política de atenção primária propostas pelo MS. Rio de Janeiro: Abrasco; 2019. [acesso em 2019 dezembro 6]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/eventos/congresso-brasileiro-de-ciencias-sociais-e-humanas-em-saude/contribuicao-dos-pesquisadores-da-rede-aps-ao-debate-sobre-as-recentes-mudancas-na-politica-de-atencao-primaria/43125/
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, modelo preferencial de APS adotado pelo MS1818 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorganização do modelo assistencial. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 1997.,1919 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde. Portaria nº 648/GM. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2006.. Nesse cenário, o PMB compromete o exitoso processo de reorientação do modelo assistencial brasileiro em curso até 2016.

A propalada assertiva do MS ao anunciar que a ESF era ineficiente e pouco produtiva vem ao encontro da presunção de certos veículos de comunicação que retratam o SUS como um poço de ineficiência. Ou seja, o MS passou a flertar com matérias que desacreditam o SUS, alardeadas sem moderação por boa parte da mídia comercial. Entretanto, o Ministério não levou em conta que, com recursos orçamentários insuficientes, i.e., menos de 4% do Produto Interno Bruto (PIB), o SUS oferece cobertura universal à população do País sem qualquer distinção, sendo responsável exclusivo pelo atendimento clínico a mais de 150 milhões de brasileiros. Também é responsável pela vigilância epidemiológica, pela vigilância sanitária e demais programas e ações de saúde pública que alcançam a população brasileira em seu conjunto2020 Temporão JG. Panorama histórico-político do SUS: a construção de um sistema de saúde universal. 2020. [Youtube] [1h 4min]. Publicado pelo Canal casafuerj. [acesso em 2020 jul 22]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wH4338JsJaw
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.

Apesar de subfinanciado ao longo dos anos, o SUS faz muito. Poderia fazer mais e muito melhor se parte dos recursos da saúde, do próprio orçamento da União e de outros órgãos governamentais não fosse canalizado para o setor privado em desfavor da rede pública, com severa repercussão no âmbito da ESF. O governo brasileiro e o próprio MS beneficiam continuadamente uma pujante rede assistencial privada, desde hospitais considerados filantrópicos até empresas que comercializam planos de saúde, por meio de invejáveis contratos de prestação de serviços, generosa política de isenção fiscal e outras benesses2121 Brasil. Tribunal de Contas da União. Relatório Sistêmico da Fiscalização da Saúde - FISCSAÙDE 2017-2018. Brasília, DF: TCU; 2019. [acesso em 2020 out 20]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C79E6EBAE41D3DF70588C0D898C73822.proposicoesWebExterno1?codteor=1853413&filename=Tramitacao-PFC+175/2018
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22 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. BNDES aprova R$20,4 milhões para reforma de hospital em SP. Rio de Janeiro: BNDES; 2018. [acesso em 2020 agosto 8]. Disponível em: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/bndes-aprova-r-20-4-milhoes-para-reforma-de-hospital-em-sp
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23 Brasil. Ministério da Saúde. Programa de Desenvolvimento do Sistema único de Saúde. São Paulo: Rev Saúde Pública. 2011; 45(4):808-811.

24 Brasil. Senado Federal. Portal de Notícias. Aprovado repasse de R$2 bilhões para santas casas e hospitais filantrópicos. [Brasília DF]: Agência Senado; 2010. [acesso em 2020 agosto 8]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/31/aprovado-repasse-de-r-2-bi-para-as-santas-casas-e-hospitais-filantropicos
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25 Ocké-Reis CO. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 mar 18]; 23(6):2035-2042. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232018000602035&lng=pt
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-2626 Machado FG. Os gastos públicos e privados com Saúde das Famílias brasileiras de 2000 a 2015. [monografia]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catariana; 2015. [acesso em 2019 agosto 14]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/158347/Monografia.%20do%20Felipe%20Galv%C3%A3o.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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. Entretanto, com base em seu diagnóstico relâmpago, a equipe que assumiu o MS em 2019 entendeu que o modelo de financiamento do SUS era a mãe de muitas das supostas mazelas da APS, especialmente no âmbito da ESF.

Nesse cenário, o diagnóstico desfavorável à ESF, que subsidia um pacote de reformas que impacta os eixos estruturantes desse modelo de atenção, deve merecer cuidadosa revisão, em especial, pela celeridade e radicalidade desse processo de reforma, bem como pelo acúmulo de uma consistente bibliografia de natureza técnica contrária ao pacote, referenciada neste texto.

Com o objetivo de revisar tal diagnóstico em razão da hipótese de erro justificada pelos particularidades delineadas acima, este ensaio empreendeu uma análise documental do acervo ministerial a respeito das reformas, incluindo: descrição impressa das reformas; debates na Câmara Federal e no âmbito da gestão do SUS disponíveis na internet; exposições em eventos científicos e entrevistas igualmente disponíveis na internet; e portarias e outros instrumentos legais para implantação de tais reformas, conforme referências apresentadas neste texto.

A hipótese inicial foi confirmada com respaldo em bibliografia pertinente ao conteúdo do pacote de reformas, igualmente referenciada. Evidenciaram-se erros técnicos na avaliação da eficiência da ESF, bem como erros no campo histórico: subtração das políticas voltadas para o desenvolvimento da ESF, dos avanços alcançados até 2015 e dos desafios inerentes a um processo inconcluso de reforma sanitária. A tais omissões, é acrescido o erro na avaliação referente ao modelo de gestão do SUS.

Em razão do exposto, o tópico referente a discussão e resultados compreende, neste ensaio, dois subtópicos em diálogo permanente: erro diagnóstico no âmbito técnico e erro diagnóstico no âmbito histórico.

Erro diagnóstico no âmbito técnico

O diagnóstico de baixa eficiência da ESF apresentado pelo MS merece reparo. A explanação divulgada pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps) do MS atribuiu tal diagnóstico de ineficiência ao que considerou gastos excessivos com internações por condições sensíveis à APS, que, em 2016, teriam custado cerca de dois bilhões de reais aos cofres do SUS99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
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Tal diagnóstico, entretanto, colide com o conceito de eficiência que remete, necessariamente, a uma operação aritmética2727 Donabedian A. Garantía y Monitoría de la Calidad de Atención Médica: um texto introductorio. Octavio Gomes Dantés traductor. México: Instituto Nacional de Salude Pública; 1990.,2828 Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Eficiência em saúde. In: Brasil. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009., isto é, remete a uma fração, cujo numerador representa o montante de recursos dispendidos e o denominador o(s) procedimento(s) realizado(s). O resultado dessa operação afere o custo de tal(ais) procedimento(s). Quanto menor o investimento necessário para obter o resultado pretendido maior a eficiência.

Nesse caso, a avaliação do MS teria que especificar o montante de recursos financeiros dispendidos e definir com precisão o(s) procedimento(s) realizado(s) no âmbito da ESF. Ainda assim, o resultado da operação seria uma primeira constatação, isto é, um dado inicial, insuficiente para orientar o desenvolvimento seguro de um plano de ação consequente. Para tanto, seria indispensável identificar as influências ou fatores que interferem e condicionam tal resultado.

Desse modo, não bastaria quantificar os gastos com o universo de pessoas internadas por condições sensíveis para caracterizar tal ineficiência da ESF. Seria obrigatório identificar corretamente a procedência institucional do paciente para não onera-la indevidamente. Não poderiam ser incluídos nessa conta aqueles pacientes internados por uma condição sensível à APS que, direta ou indiretamente, contratam planos de saúde mas que, por uma ou outra razão, acabam atendidos ou internados na rede SUS, no contexto de um processo denominado ‘universalização excludente2929 Faveret Filho PS. Políticas de Saúde em Perspectiva Comparada: Brasil, Estados Unidos e Inglaterra. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; Instituto de Economia Industrial; 1992.. Da mesma forma, seria indispensável quantificar precisamente o número de pacientes internados em razão de condições sensíveis provenientes dos territórios correspondentes às equipes de Saúde da Família (eSF).

Seria igualmente necessário considerar as características socioculturais dessa população internada, o estágio prévio das respectivas condições mórbidas arroladas, as especificidades fisiopatológicas envolvidas em cada caso e a ocorrência de respostas falhas ou desfavoráveis, quando não, iatrogênicas, a uma terapia corretamente indicada.

Ademais, não poderia ser contabilizada nessa conta a internação de uma pessoa por uma condição sensível à APS que, mesmo diante de alguma instabilidade clínica, ainda poderia continuar recebendo cuidados em regime extra-hospitalar caso não enfrentasse condições socioeconômicas ou ambientais tão desfavoráveis3030 Mendonça CS, Lenz MLM, Oliveira VB. Uso do indicador internação por condições sensíveis à atenção primária na avaliação de condições de saúde. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 422-432.. É bem mais fácil não precisar internar um paciente com insuficiência cardíaca que tem acesso fácil à sua casa, quando sua moradia não se encontra em local de elevados índices de violência, onde é mais comum escutar boa música do que estampidos à sua porta.

É mais fácil não precisar internar uma pessoa com diabete, que tem sua alimentação servida à mesa em vez de servida no lixão, na marmita ou no embornal. É mais fácil não ter que internar uma pessoa com asma que vai para uma casa bem arejada do que para um cubículo sem janelas. É mais fácil não ter que internar uma criança bem nutrida com diarreia que vai para uma casa asseada, servida de água potável, rede de esgoto e coleta de lixo, com algum adulto para cuidar dela, do que para um ambiente às avessas disso. Exemplos não faltam. Enfim, não dá para colocar tudo isso na mesma conta. Não dá para comparar as taxas de internação por condições sensíveis no Brasil com aquelas encontradas em cenários diferentes. No Reino Unido, na França, na Holanda ou na Bélgica não há de ser comum viver tão mal, com tantos problemas à porta, com tantos problemas no bolso.

Sem essas e outras informações relevantes, sem considerar a diferença que faz investir em euro ou libras esterlinas e subfinanciar a saúde em Real, sem considerar o contexto real das comunidades, sem considerar ‘a pessoa real’, de que falava o então Secretário da Atenção Primária1010 Harzheim E. Novo Modelo de Financiamento da Atenção Primária à Saúde. 2019. [Vídeo YouTube] [2h 53 min]. Publicado pelo Canal Câmara dos Deputados. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9bvLgxBIiOc-
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, não é correto firmar diagnóstico de ineficiência da ESF. Caso contrário, pode-se chegar a conclusões equivocadas por mero açodamento.

A segunda parte do diagnóstico firmado pelo MS para propor o novo modelo de financiamento da APS também está a merecer reparo. Baixa produtividade da ESF foi o bordão que passou a ser apregoado pelo MS. A confusão entre constatação e diagnóstico se repete nesse campo da produtividade. Aí começa outro imbróglio.

Segundo o Ministério, a baixa produtividade da ESF traduziria, fundamentalmente, a desassistência a 30 milhões de brasileiros pobres que não estariam cadastrados pelas 43 mil eSF existentes no País. Segundo o Ministério (nos termos proferidos pelo Secretário de Atenção Primária em Audiência Pública na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal - disponível on-line conforme referência indicada abaixo)

[...] das 64 milhões de pessoas no Brasil que recebem benefício do Bolsa Família, BPC ou um Benefício Previdenciário de até dois salários mínimos... não estão cadastradas na atenção primária... não têm aceso a esses serviços [...]1010 Harzheim E. Novo Modelo de Financiamento da Atenção Primária à Saúde. 2019. [Vídeo YouTube] [2h 53 min]. Publicado pelo Canal Câmara dos Deputados. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9bvLgxBIiOc-
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Correto seria afirmar, no entanto, que os Cadastros de Pessoa Física (CPF) referentes a pobres que recebem Bolsa Família, Benefício Social Continuado (BPC) ou até dois salários mínimos da previdência social, encontrados nos respectivos bancos informatizados, não constavam do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab). A essa altura, um sistema também informatizado3131 Harznheim E. APS: prioridade 1 do Ministério da Saúde [DVD]. In: 15º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade; 2019 jul 10-13; Cuiabá. São Paulo: TV MED; 2019..

Ainda que o sistema de cadastro à disposição das eSF nos respectivos ambientes de trabalho estivesse em fase mais adiantada de implantação haveria que ser tomada especial cautela com essa modalidade de banco de dados e conferência entre eles para estimar o contingente de pobres supostamente sem cobertura assistencial3232 Harzheim E. Nova Proposta de Financiamento da Atenção Primária no SUS. COSEMS SP. 2019 out 21. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: http://www.cosemssp.org.br/noticias/confira-a-integra-da-apresentacao-da-proposta-do-novo-modelo-de-financiamento-da-atencao-primaria-no-sus/
http://www.cosemssp.org.br/noticias/conf...
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Vale chamar atenção, em primeiro lugar, para as barreiras de acesso a esse mundo digital. Em muitos cantões deste país não há equipamento ou sua manutenção adequada. Em outras localidades, não há rede para transmitir dados. Entretanto, é preciso deixar claro que essas e outras questões de infraestrutura não esgotam o problema. Seria imperioso considerar também o quantitativo e as políticas de pessoal, as condições e os processos de trabalho. Não é difícil perceber que podem faltar familiaridade, treinamento e suporte técnico para lidar com essas tecnologias. Portanto, há pessoas sob cuidado das eSF que podem não constar no Sisab. Enfim, não é certo considerá-las não cadastradas, muito menos, desassistidas.

Há muitas outras interferências no registro de pessoas cadastradas. O então Secretário de Atenção Primária afirmou que “não existe APS sem muvuca”3131 Harznheim E. APS: prioridade 1 do Ministério da Saúde [DVD]. In: 15º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade; 2019 jul 10-13; Cuiabá. São Paulo: TV MED; 2019.. Imagine como deve ser o registro de dados em cenário de ‘muvuca’. O cadastramento domiciliar também é afetado em tal ambiente.

A pessoa não cadastrada previamente na sua residência por um agente comunitário de saúde, é cadastrada somente quando procura a unidade básica para atendimento clínico. Quantas informam o respectivo CPF? Quantos beneficiários do Bolsa Família, do Benefício de Prestação Continuada e dos que recebem até dois salários mínimos de Benefício da Previdência Social não sabem informar o próprio CPF e por isso, apesar de atendidos, caem no rol dos 30 milhões de pobres que a Saps contabilizou na lista de desassistidos? Que outras informações deixam de ser registradas sobre outros membros da família, sobre crianças e adolescentes sob cuidado em creches, escolas e unidades de reinserção social? Enfim, quantos cadastros realizados no nível local deixam de ser reconhecidos no Sisab?

Aí vem o ‘Saúde na Hora’11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 15 de maio de 2019. Institui o Programa “Saúde na Hora”, que dispões sobre o horário estendido das Unidades da Saúde da Família. Diário Oficial da União. 17 Maio 2019.,99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
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- expressão a merecer cuidado especial ao ser enunciada para não correr o risco de vincular saúde da família à imagem de pronto atendimento -, modalidade assistencial dispensada à luz de uma lógica focal sob a responsabilidade do profissional médico.

Implantado sem repensar as linhas de cuidado nas redes de atenção e sem reforço dos respectivos quadros de pessoal, o Programa ‘Saúde na Hora’ potencializa a muvuca em desfavor do cuidado clínico longitudinal, da abordagem familiar e da abordagem comunitária, com nefastas consequências para a saúde de todos. A tensão aumenta, há stress, há burnout. Mas... cadastre! Qualquer deslize nessa hora, no entanto, pode ser menos um cadastrado no Sisab.

O número de pessoas cadastradas no Sisab de fato, não representa o universo sob cobertura proporcionada pelas eSF. A própria Saps apresentou números desiguais em três ocasiões diferentes: 80 milhões99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
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, 90 milhões1010 Harzheim E. Novo Modelo de Financiamento da Atenção Primária à Saúde. 2019. [Vídeo YouTube] [2h 53 min]. Publicado pelo Canal Câmara dos Deputados. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9bvLgxBIiOc-
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, 87 milhões3333 Harzheim. Novo financiamento da APS - Entrevista. 2019 [YouTube] [5 min]. Publicado pelo Canal Diário de um Posto de Saúde. [acesso em 2020 jan 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ze-jJ0RZOk8
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. Que fossem 90 milhões. Não se pode deixar de dizer: aí caberia mais do que a população da Inglaterra, da Alemanha, da França, de Portugal, da Espanha e de outras nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que foram arroladas para estabelecimento de comparações com a ESF.

E, lá, cadastramento é feito sem muvuca, sem subfinanciamento e sem desvio de recursos públicos para financiamento de empresas privadas. Não se trata de pequena diferença. Isso, sem esquecer a tamanha diferença de tamanho, do perfil socioeconômico e das condições concretas de vida da população coberta por eSF ou equipes da APS naqueles países e no Brasil. As condições de trabalho lá e cá são incomparáveis.

Não é demais lembrar que as eSF no Brasil não se limitam a prestar cuidados individuais na unidade básica à população, cadastrada ou não cadastrada, mas residente na microárea sobre a qual tem responsabilidades. Também prestam cuidados clínicos aos de fora de área. Muitos deles, fora de quase tudo, sob a ótica socioeconômica - uma razão a mais para, à luz dos atributos da atenção primária, as eSF lançarem mão da abordagem clínica centrada na pessoa, da abordagem familiar e da abordagem comunitária e suas tecnologias específicas no seu cotidiano de trabalho.

Não deve causar estranheza, no entanto, que o ambiente e o tempo nem sempre concorram para um registro mais adequado do cadastro individual de familiares e grupos comunitários sob cuidado com óbvias repercussões negativas no Sisab. Esse é mais um fator a sugerir que os números apresentados pela Saps realmente carecem de revisão.

Além disso, chama atenção que aquela dança contábil de cadastrados nada tem a ver com o ritmo de crescimento de cadastros desde os tempos do Siab. Em dezembro de 1998, ano da sua implantação, o Siab contabilizava cerca de 24 milhões de cadastros, número que ultrapassou a casa dos 90 milhões em dezembro de 2015, quando se encontrava em processo avançado de substituição pelo Sisab instituído dois anos antes3434 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Informática. [acesso em 2019 dez 5]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?siab/cnv/SIABFbr.def
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. Já o sistema e-gestor, contabilizava cerca de 127 milhões de cadastros em dezembro de 2015 e 134,5 milhões em dezembro de 20193535 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, e-Gestor AB. [acesso em 2019 dez 5]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml;jsessionid=6A52s-EMOUAD6TTgq0uf12EA
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.

E as diferenças não terminam aí. O Sisab lançou o Relatório de Cadastro de Pessoas, com dados agrupados por quadrimestre referentes ao ano de 20193636 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Cadastro individual. [acesso em 2020 ago 24]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/paginas/acessoRestrito/relatorio/federal/indicadores/indicadorCadastro.xhtml
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, cujos valores, considerados “sujeitos a alteração”3636 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Cadastro individual. [acesso em 2020 ago 24]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/paginas/acessoRestrito/relatorio/federal/indicadores/indicadorCadastro.xhtml
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(1)
, diferem de todos os outros mencionados até aqui. Importa realçar novamente que esse sistema, de fato, não capta todos os cadastros realizados no nível local, como atesta nota explicativa anexa ao mesmo relatório3737 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Técnica. [acesso em 2020 ago 24]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/resource/file/nota_tecnica_relatorio_cadastro_191219.pdf
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.

Ou seja, cadastros realizados por uma eSF, mas considerados inconsistentes no ‘e-gestor AB’, deixam de ser contabilizados no Sisab, a menos que reenviados com as correções necessárias, conforme orientação explícita emitida em fevereiro de 2020 pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde:

Para auxiliar os municípios no processo de monitoramento dos cadastros da população na Atenção Primária à Saúde (APS), estão disponíveis os relatórios que mostram registros inconsistentes. A pesquisa pode ser feita no ‘e-Gestor AB’, onde é informado o motivo pelo qual o cadastro não subiu para a base federal do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab)3838 Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Acompanhamento de cadastros inconsistentes no e Gestor AB. [acesso em 2020 agosto 24]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/acompanhamento-de-cadastros-inconsistentes-no-e-gestor-ab/
https://www.conasems.org.br/acompanhamen...
.

Para concluir as considerações a respeito do banco de dados relativo ao cadastramento, importa realçar que seu tamanho não aprisiona a realidade. A gestão baseada em dados quantitativos não rompe os limites de um modelo ‘gerencialista’ e produtivista indiferente à complexidade que envolve a atenção à saúde. Para firmar um diagnóstico mais adequado nesse âmbito seria necessário adotar um modelo de gestão com um enfoque estratégico3939 Rivera JFU, organizador. Planejamento e Programação em Saúde - um enfoque estratégico. São Paulo: Cortez; 1989., capaz de mergulhar no território vivo, com seus personagens, suas histórias, suas organizações sociais e seu cotidiano vibrante, contexto no qual se torna possível reinterpretar dados reunidos em qualquer sistema de informação.

Erro diagnóstico no âmbito histórico

Ao se debruçar sobre a avalanche de dados para gerenciar a ESF, o alto escalão do Ministério borrou sua visão a respeito da história tecida no cenário da saúde do País. Tal descuido integra outra dimensão do erro diagnóstico incorporado ao discurso inflamado da Saps em defesa do seu pacote de reformas.

Não deveria causar surpresa, portanto, que, em algumas de suas apresentações, a Saps tenha verbalizado que o SUS não era gerido clinicamente. Entretanto, o modelo clínico-assistencial assentado na média e na alta complexidade - terminologia usada com naturalidade na burocracia da saúde em nível nacional - já era hegemônico neste país décadas antes da Constituição de 19884040 Mello CG. O pauperismo do Ministério da Saúde. In: Mello CG. Sistema de Saúde em Crise. São Paulo: CEBES; HUCITEC;1981. p. 69-71.,4141 Landmann J. Evitando a saúde & promovendo a doença. Rio de Janeiro: Achiamé; 1982.. Na realidade, o SUS nasceu sob o signo da falência do modelo biologicista, curativista, fragmentário e assistencialista que herdou. Uma herança que tem acompanhado sua história4242 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 545 de 20 de maio de 1993. Norma Operacional Básica - SUS 01/1993. [acesso em 2020 abril 6]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1993/prt0545_20_05_1993.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
,4343 11ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília 15 a 19 de dezembro de 2000: o Brasil falando como quer ser tratado: efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social: relatório final/Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. - Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001. 198 p.
.

Apesar do extraordinário capítulo escrito pela reforma sanitária brasileira com a unificação de uma rede pública de serviços regida pelos princípios constitucionais da universalidade, integralidade e participação social, é necessário levá-la adiante, com base no desenvolvimento de um modelo inclusivo e consistente de APS. Não se chega até aí com base em protocolos clínicos e carteiras de serviço baseados em uma lógica biomédica de matriz cartesiana. Não se chega até aí com ‘modelo seletivo de APS’4444 Testa M. Atenção Primária (ou Primitiva?) de Saúde. In: Testa M. Pensar em Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. p. 160-167.. Não se chega até aí com ‘APS pobre para os pobres’4545 Sonis A, Panaini JM. Atención Primaria. In: Sonis A, organizador. Medicina Sanitaria y Administracion de la Salud. 2. ed. Buenos Aires: El Atheneo; 1976. p 340-345. [Tomo II]. sem financiamento adequado e sem um plano de carreira de Estado que faça justiça ao trabalho nesse nível do sistema e valorize devidamente os profissionais que a ele se dedicam.

O caráter biotecnicista acima mencionado é um dos problemas da Carteira de Serviços do MS22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Carteira de Serviços. Consulta Pública. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2019 set 18]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/carteira_servico_da_APS_consulta_SAPS.pdf
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,33 Brasil. Ministério da Saúde. Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde (CaSAPS); Versão Profissionais de Saúde e Gestores. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2020 out 13]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/casaps_versao_profissionais_saude_gestores_completa.pdf
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, tema que foge ao escopo deste texto. Importa ressaltar, no entanto, que, implantada à luz do enviesado diagnóstico da Saps a respeito do modelo assistencial adotado no SUS99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
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, tal Carteira de Serviços passou a fazer parte do pacote do Ministério que está a ameaçar os avanços da ESF verificados até 2015.

Apesar dos obstáculos poderosos que desde sempre se viu na contingência de enfrentar, a ESF obteve inúmeros êxitos em quase trinta anos de existência, a começar pela cobertura de mais do que os 90 milhões de brasileiros arrolados pela gestão do Ministério em outubro de 2019 (44 milhões a menos que o total de pessoas cadastradas no e-Gestor no mesmo período)3535 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, e-Gestor AB. [acesso em 2019 dez 5]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml;jsessionid=6A52s-EMOUAD6TTgq0uf12EA
https://egestorab.saude.gov.br/paginas/a...
. Nenhum outro país, nem aqueles economicamente mais desenvolvidos, alcançou essa marca em tão pouco tempo e com tão poucos recursos. Seja como for, a ESF é um modelo exitoso de APS impulsionado por um conjunto de políticas públicas instituídas nos primeiro 15 anos deste século4646 Anderson MIP. Médicos pelo Brasil e as políticas de saúde para a Estratégia Saúde da Família de 1994 a 2019: caminhos e descaminhos da Atenção Primária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2019; 14(41):2180..

Os êxitos alcançados pela ESF transcendem a polêmica contábil que pretende dar conta da população sob cobertura assistencial. Seus êxitos também se revelam no impacto das ações implantadas na saúde das pessoas, suas respectivas famílias e na comunidade sob cuidado das eSF, mesmo diante das condições menos favoráveis de trabalho observadas aqui e ali.

Não faltam evidências sobre os benefícios da ESF no tocante à utilização da rede de serviços, à melhoria das condições de saúde da população e à redução das iniquidades nesta área, inclusive em termos de cor da pele. A redução das taxas de mortalidade infantil à medida do aumento da cobertura pela ESF é bem conhecida, assim como a redução das taxas de internação por condições sensíveis à APS3030 Mendonça CS, Lenz MLM, Oliveira VB. Uso do indicador internação por condições sensíveis à atenção primária na avaliação de condições de saúde. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 422-432.,4747 Sampaio LFR, Mendonça CS, Turci MA. Atenção primária à saúde no Brasil. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 50-65.

48 Mafra F. O impacto da atenção básica em saúde em indicadores de internação hospitalar. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2010. 129 p. [acesso em 2018 maio 10]. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9156/1/2011_F%c3%a1bioMafra.pdf
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
-4949 Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1902-1913.
. Obviamente, a ESF ainda não esgotou seu processo de desenvolvimento. São 26 anos desde 1994, quando foi estabelecida ainda como Programa Saúde da Família, no contexto do já mencionado subfinanciamento do SUS. Não é de se admirar que restem desafios pendentes nesse nível dos cuidados de saúde primários a serem enfrentados desde já.

No propósito de superar tais desafios, foi instituído em 2005 um primeiro modelo de avaliação da ESF: Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família (AMQ)5050 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família. Documento Técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2005. 110 p.. Constituído na perspectiva da avaliação formativa, o modelo autoaplicável, caracterizado por seu elevado potencial no campo da motivação humana para o trabalho, difere do modelo com poucas variáveis quantitativas instituído pelo MS em 2019 com propósitos gerenciais relacionados ao financiamento da ESF no contexto do Previne Brasil99 Harzheim. O SUS no Século 21: Desafios de Mudanças Necessárias. 2019. [Vídeo YouTube] [40 min.]. Publicado pelo Canal Fundação Fernando Henrique Cardoso. [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-LiEwg
https://www.youtube.com/watch?v=mf6C4-Li...
,5151 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.222 de 10 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os indicadores do desempenho no âmbito do Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União. 11 Dez 2019.
.

O conceito de avaliação formativa ganha visibilidade no campo da saúde em decorrência das particularidades do processo de produção nessa área, que envolve, necessariamente, profissionais com autonomia técnica e pessoas, famílias e comunidades com autonomia cidadã, condição que lhes confere poder de decisão, tornando-os gestores informais nesse campo. Eis uma das razões pelas quais é fundamental entender a importância da participação social na saúde tal como expressa a Constituição Federal de 1988 ao proclamar os princípios e diretrizes do SUS. Desprezar suas contribuições é um erro que certamente compromete a busca de solução para os desafios presentes.

O atributo ‘acesso’ é um desses desafios que mais frequentam a lista de problemas da ESF. Alguns gestores a desancam por essa razão. Mas é preciso dizer que isso não ocorre apenas por causa da cobertura assistencial proporcionada pelas eSF existentes. Afinal, os vazios assistenciais que ainda existem por aqui saltam aos olhos. Já era do conhecimento público que havia brasileiros que jamais tinham estado diante de um médico antes da implantação do programa ‘Mais Médicos’, instituído em 2013. Nem é preciso ir muito longe para encontrar problema dessa ordem. Basta observar a tal muvuca apregoada pela Saps para se chegar a essa conclusão e concordar com a insatisfação demonstrada por tantos com a demora no atendimento em cenários de sobrecarga de trabalho. Há equipes com quatro mil cadastrados. Outras com muito mais. É um ‘salve-se quem puder’.

A carência de profissionais especializados em Saúde da Família para atender às necessidades atuais e levar adiante o processo de expansão da cobertura assistencial da ESF é uma indiscutível barreira ao acesso da população à atenção primária. Há bibliografia robusta que revela sua continuidade, apesar da criação, em 1976, de três programas pioneiros de Residência em Medicina de Família e Comunidade (RMFC) no Brasil, bem como a criação de alguns outros programas no período que antecedeu a implantação da ESF. Esses programas foram capazes de formar especialistas em medicina de família e comunidade com reconhecida competência tanto no cenário nacional como no internacional, mas em número insuficiente para ofertar cuidados de saúde primários em larga escala.

O deficit de especialistas em medicina de família e comunidade e de especialistas em saúde da família ainda é um problema de grande relevância nos dias de hoje, apesar da benfazeja implantação em anos recentes de novos programas de residência médica e multiprofissional nessa área e do aumento da oferta de vagas em programas preexistentes.

Neste cenário, é lamentável que até hoje não tenha sido posta em prática a universalização dos programas de residência médica com regulamentação do percentual da distribuição de vagas por especialidade, bem como a expansão do programa de residência em medicina de família e comunidade como disposto no ‘Mais Médicos’1212 Brasil. Presidência da República. Lei nº 1.2871 de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos. Diário Oficial da União. 23 Out 2013. [acesso em 2020 mar 7]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
,1313 Brasil. Ministério da Saúde. Mais Médicos: Conheça o Programa. [acesso em 2020 mar 7]. Disponível em: http://www.maismedicos.gov.br/conheca-programa
http://www.maismedicos.gov.br/conheca-pr...
. Também não se pode deixar de mencionar que o aumento isolado da oferta de vagas não teria sido suficiente face à escassez de médicos de família e comunidade. Afinal a “ideologia da excelência tecnológica”5252 Landman JA. Outra Face da Medicina: Um estudo das ideologias médicas. Rio de Janeiro: Salamandra; 1984. p. 279-280.(279-80), convertida em verdadeiro paradigma de excelência médica, atraía, como ainda atrai, um batalhão de recém-formados para outras paragens.

Mas não só. Como atrair jovens médicos recém-formados para os programas de residência em medicina de família e comunidade se eles podem ingressar diretamente no mercado de trabalho representando a rede assistencial da Saúde da Família, cuja remuneração é cerca de quatro vezes maior do que a remuneração oficial dos programas de residência médica definida pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) em nível nacional? Como atrai-los para programas de residência médica implantados no tal ambiente de muvuca? Também é digno de nota que a complementação da bolsa de residência adotada em anos recentes por um número ainda reduzido de municípios tem contribuído para um preenchimento mais razoável das vagas ofertadas pelos mesmos.

À Comissão Nacional de Residência Médica cabe a responsabilidade de redefinir a bolsa dos residentes em medicina de família e dos programas de residência multiprofissional em saúde da família levando em conta os valores pagos pelo mercado.

Outro significativo desafio em termos da disponibilidade de pessoal diz respeito à formação de preceptores. Essa questão vai além do quantitativo insuficiente do quadro para fazer frente à demanda atual da área, pois, modo geral, tais preceptores acabam sobrecarregados ao se verem na contingência de assumir múltiplas atividades no cotidiano dos serviços, tanto em atividades de natureza assistencial como administrativa. Além disso, falta-lhes quase sempre o devido reconhecimento acadêmico, a menos que façam parte do corpo docente de uma instituição de ensino responsável por um programa de residência ou por atividades curriculares em APS-ESF. Haja fôlego!

Aí também é de responsabilidade do MS contribuir para a implantação de estratégias governamentais para reverter esse quadro, em parceria com o MEC.

Por essas e outras razões, sobretudo em relação à inexistência de um plano de carreira de Estado - com algumas exceções nesse terreno até certo ponto pantanoso -, ainda é possível verificar desafios nada triviais em termos de fixação profissional nos respectivos postos de trabalho. Possivelmente, o problema é ainda mais sério diante do contingente de profissionais de outras especialidades fora da APS inseridos nas eSF, que, por algum motivo, ainda não tiveram oportunidade de obter titulação na área.

Todos sabem que o tempo não tem sido generoso com os profissionais que atuam na ESF. Não é difícil entender que é necessário dispender considerável energia para organizar o processo de trabalho de modo consistente com a responsabilidade de implantar as atividades inerentes à APS e dar conta de seus atributos.

Nem sempre os gestores da saúde se sentem confortáveis diante de tal desafio. Não é de causar surpresa que muitos se agarrem à questão do acesso à consulta clínica individual, que lhes parece de mais fácil compreensão. Realmente, já não é tão fácil assim compreender que o modelo clínico-assistencial centrado no paradigma biotecnológico para abordar as questões de saúde no âmbito da APS constitui o caminho mais seguro para a promoção do desastre. Não é uma tarefa trivial para gestores e críticos menos afeitos à abordagem da pessoa, da família e da comunidade virar o disco, pois essas abordagens exigem lançar mão de um paradigma mais complexo5353 Rodrigues RD, Anderson MIP. Complexidade e integralidade na medicina de família e comunidade e na atenção primária à saúde: aspectos teóricos. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 81-92., de modo a não confundir a clínica das doenças com a clínica centrada nas pessoas, para não confundir abordagem familiar e abordagem comunitária com paternalismo, assistencialismo ou futilidades.

É, de fato, um grande desafio vencer preconceitos e maledicências a respeito da ESF. Entretanto, não foram e não serão capazes de silenciar as vozes que se levantam na defesa de um sistema público de saúde centrado nos princípios humanistas e solidaristas que presidiram a gestação do SUS. Sua implantação constitui um marco na história da reforma sanitária brasileira, cuja continuidade implica a reorientação do modelo assistencial ainda hegemônico no País. A ESF não deixará de fazer sua parte.

Comentários finais

O pacote de reformas do MS, formulado em torno de um diagnóstico distorcido, atropela importantes conquistas da saúde no Brasil e afronta as demais instâncias gestoras do SUS, representadas pelas Conferências e Conselhos de Saúde, canais legítimos da participação social nessa área. Em respeito à lei que rege a matéria, é obrigatório que os gestores do SUS nas três esferas de governo dialoguem com o controle social, cujas atribuições respondem pela efetiva participação social no sistema único, como dispõe a Constituição Federal5454 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.. As conquistas na saúde que vieram com o fim da ditadura instaurada em 1964 não aconteceram ao acaso. Resultaram de um processo participativo de reforma sanitária, cuja continuidade requer igual participação da sociedade civil organizada.

O segundo capítulo, ainda inconcluso desse processo, implica deslocar o modelo clínico-assistencial hospitalocêntrico da posição hegemônica que ainda ocupa na organização do SUS e substitui-lo por um modelo assistencial centrado no paradigma da integralidade biopsicossocial e espiritual, reverter o subfinanciamento do sistema único e implantar um plano de carreira de Estado.

Como conclusão, este ensaio refuta o diagnóstico firmado pelo MS e sua agenda tecnocrática de reforma construída entre pares que fragmenta a atenção primária, distorce seus princípios e mina a ESF, sua expressão mais completa. Por fim, recomenda que o processo de avaliação da ESF seja refeito à luz dos princípios do planejamento estratégico-situacional.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2020
  • Aceito
    04 Ago 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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