O conflito público-privado no SUS: a atenção ambulatorial especializada no Paraná

The public-private conflict in SUS: specialized outpatient care in Paraná

Michele Straub Rogerio Miranda Gomes Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque Sobre os autores

RESUMO

O conflito fundamental da saúde em sociedades capitalistas - direito social versus mercadoria - também se expressa no interior do Sistema Único de Saúde (SUS). Este trabalho analisou a relação público-privado na oferta de serviços ambulatoriais especializados pelo SUS no estado do Paraná, no período de 1995 a 2015, em comparação com a realidade nacional. Realizou-se um estudo descritivo, com procedimentos selecionados, a partir da coleta de dados no Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA), por meio da plataforma do Datasus Tabnet On-line nos anos de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015. Os resultados demonstram que a atenção ambulatorial especializada, secundária e terciária, sofreu ampliação nas duas décadas, acompanhando a expansão do SUS. O percentual de participação privada é, em geral, minoritária nos serviços de média complexidade e majoritária nos de alta complexidade, sendo que, no Paraná, o grau de privatização é consideravelmente maior que no âmbito nacional. Assim, diferentemente do preconizado constitucionalmente, em vários serviços e áreas do SUS, o público é que assume o papel de complementar ao privado. Discutem-se os possíveis impactos da privatização interna do SUS sobre seus limites em se constituir como sistema universal, integral e igualitário.

KEYWORDS
Unified Health System; Privatization; Health facilities; proprietary; Secondary care; Tertiary healthcare

ABSTRACT

The fundamental conflict of health in capitalist societies – social right versus commodity – is also expressed within the Unified Health System (SUS). This research analyzed the public-private relationship in the provision of specialized outpatient services by the SUS in the state of Paraná, from 1995 to 2015, in comparison with the national reality. A descriptive study was carried out, with selected procedures, with data collected in the Outpatient Information System (SIA) through the Datasus Tabnet On-line platform in the years 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 and 2015. The results demonstrate that specialized outpatient care, secondary and tertiary, has expanded over the past two decades, following the expansion of SUS. The percentage of private participation is, in general, minority in the medium complexity services and majority in the high complexity services, and in Paraná the degree of privatization is considerably higher than at the national scope. Thus, differently from what is constitutionally recommended, in various services and areas of the SUS, it is the public that assumes the role of complementing the private. The possible impacts of the internal privatization of SUS on its limits on constituting itself as a universal, comprehensive and equal system are discussed.

KEYWORDS
Unified Health System; Privatization; Health facilities; proprietary; Secondary care; Tertiary healthcare

Introdução

A relação público-privado no interior do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS) foi objeto de importantes polêmicas no momento da constituição do sistema brasileiro11 Bahia L, Scheffer M. O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 mar 8]; 42(esp3):158-171. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v42nspe3/0103-1104-sdeb-42-spe03-0158.pdf
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,22 Celuppi IC, Geremia DS, Ferreira J, et al. 30 anos de SUS: relação público-privada e os impasses para o direito universal à saúde. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 mar 8]; 43(121):302-13. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v43n121/0103-1104-sdeb-43-121-0302.pdf
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. Passado o momento inicial, contudo, com o texto constitucional e os rumos que tomam a reforma sanitária brasileira, desenvolve-se certa naturalização da complementariedade privada no SUS.

Atualmente, o tema da privatização da saúde tem sido objeto de estudos principalmente em duas esferas: a da saúde suplementar, o subsistema privado ‘externo’ ao SUS33 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 23(6):1723-28. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1723.pdf
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,44 Paim J, Travassos C, Almeida C, et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. The Lancet. 2011 [acesso em 2020 jul 12]; 377(9779):1778-1797. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(11)60054-8/fulltext
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e a relativa às apresentações da dinâmica privada no interior dos serviços públicos, seja por meio da manutenção das características do modelo assistencial médico-privatista mercantil55 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 ago 13]; 23(6):1707-1714. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1707.pdf
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, seja por meio das formas privadas de gestão, como o gerencialismo, as Organizações Sociais, fundações públicas de direito privado etc.66 Mendes A, Carnut L. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde Soc. São Paulo. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 27(4):1105-1119. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v27n4/1984-0470-sausoc-27-04-1105.pdf
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7 Andreazzi MFS, Bravo MIS. Privatização da gestão e organizações sociais na atenção à saúde. Trab. Educ. Saúde. 2014 [acesso em 2020 jul 12]; 12(3):499-518. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/tes/v12n3/1981-7746-tes-12-03-00499.pdf
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-88 Contreiras H, Matta GC. Privatização da gestão do sistema municipal de saúde por meio de Organizações Sociais na cidade de São Paulo, Brasil: caracterização e análise da regulação. Cad. Saúde Pública. 2015 [acesso em 2020 jul 12]; 12(3):499-518. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v31n2/0102-311X-csp-31-02-00285.pdf
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. Poucos têm sido os autores e estudos atuais que problematizam as implicações da privatização por meio da contratação de serviços privados pelo SUS11 Bahia L, Scheffer M. O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 mar 8]; 42(esp3):158-171. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v42nspe3/0103-1104-sdeb-42-spe03-0158.pdf
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,99 Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 34(7):e00067218. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n7/1678-4464-csp-34-07-e00067218.pdf
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.

No SUS, os serviços de atenção ambulatorial especializada ofertados em muitos municípios e regiões são, em sua maioria, do setor privado (com ou sem fins lucrativos e filantrópicos). A oferta privada desses serviços acaba organizando sua demanda de acordo com os interesses do mercado e não conforme as necessidades de saúde da população, em contraste com o planejamento em saúde, processo agravado pela regulação historicamente frágil desse setor1010 Solla J, Chioro A. Atenção Ambulatorial Especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadoras. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-576.. Essa realidade tem implicações tanto no modelo assistencial, com dificuldades na constituição de Redes de Atenção, quanto nos custos do sistema. Apesar disso, muitas vezes, os serviços privados contratados ou conveniados ao SUS tornam-se permanentes, substituindo os serviços públicos em vez de complementá-los1111 Santos L. Dilemas, desafios e limites do SUS. In: Oliveira NA, organizador. Direito Sanitário: oportuna discussão via coletânea de textos do ‘blog Direito Sanitário: saúde e cidadania’. Brasília, DF: Anvisa; Conasems; Conass; 2012. p. 250-252..

O objetivo deste artigo foi analisar a relação público-privado na oferta de serviços ambulatoriais especializados pelo SUS no estado do Paraná, no período de 1995 a 2015, em comparação com a realidade nacional, a partir de dados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) - Datasus1212 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informações Ambulatoriais. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em 2018 fevereiro 19]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-ambulatorial-sia-sus/
https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-in...
. Partiu-se do pressuposto de que, em formações sociais capitalistas, como a nossa, há um conflito em torno do acesso à saúde: direito social ou mercadoria. Essa contradição, no caso brasileiro, também se desenvolve no interior do SUS.

Material e métodos

No SUS, a atenção especializada diferencia-se em média e alta complexidade, sendo a primeira o nível de produção de serviços de apoio diagnóstico e terapêutico com menor densidade tecnológica ou, ainda, com menor valor financeiro. Já a alta complexidade compreende ações e serviços de saúde de maior incorporação tecnológica e alto custo1010 Solla J, Chioro A. Atenção Ambulatorial Especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadoras. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-576..

A coleta de dados ocorreu no SIA1212 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informações Ambulatoriais. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em 2018 fevereiro 19]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-ambulatorial-sia-sus/
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por meio da plataforma do Datasus Tabnet On-line nos anos de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015. No SIA, os dados relativos a um ano completo estão disponíveis apenas a partir de 1995, razão pela qual esse foi o primeiro ano da série histórica analisada. O intervalo temporal de 4 anos foi um mecanismo utilizado para viabilizar a análise dinâmica diante da grande quantidade de dados em um período de 20 anos.

A fim de evidenciar a tendência do desenvolvimento da relação público-privado no SUS no Paraná, analisou-se a prestação dos serviços pela natureza do prestador (público ou privado) e pelo regime: federal, estadual ou municipal; além dos vários regimes existentes no setor privado (com ou sem fins lucrativos, filantrópicos, entre outros). Além disso, procedeu-se à comparação com a tendência desses serviços em âmbito nacional. Dada a grande variedade de procedimentos nesse âmbito da assistência, foi necessário realizar um recorte. Objetivando apreender as dinâmicas predominantes, foram selecionados alguns dos grupos de procedimentos mais realizados, que recobrem a maior parte dos serviços executados pelo SUS na média e alta complexidade.

Optou-se por selecionar para a coleta a produção ambulatorial ‘por tipo de atendimento’, pois os dados nessa categoria estavam disponíveis a partir do ano de 1994 e contemplariam todos os anos da pesquisa. Posteriormente, realizou-se a seleção do ‘estado do Paraná’ para as coletas do estado, e, para a coleta do Brasil, a seleção de ‘Brasil por região e Unidade da Federação’. Dentro dele, optou-se pela coleta de dados por tipo de prestador conforme regime. Diante da grande quantidade de dados e das limitações de espaço, neste artigo, serão apresentadas apenas algumas das tabelas e dos gráficos construídos. Outros dados serão expostos na forma de texto.

Resultados

Média complexidade: predomínio público, com importante presença privada

Para análise da prestação de serviços de média complexidade pelo SUS no Paraná, nos anos de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015, foram selecionados os seguintes procedimentos: exames de patologia clínica; radiodiagnóstico; endoscopia digestiva; mamografia; ultrassonografia e consultas médicas especializadas. Deve-se destacar que os exames de patologia clínica e os exames de radiodiagnóstico incluem procedimentos de baixa, média e alta complexidade, porém, essa discriminação não é feita pelo SIA SUS. Sabendo desse limite, optou-se por analisá-los neste item de procedimentos de média complexidade.

De forma geral, os procedimentos de média complexidade tiveram uma importante ampliação no período analisado, como parte da ampliação da assistência à saúde com o desenvolvimento do SUS.

PATOLOGIA CLÍNICA

Os exames de patologia clínica são os exames complementares mais extensivamente realizados na atenção à saúde. Os dados apontam um aumento da realização desses procedimentos da ordem de 314% no Paraná, e de 229% no Brasil, entre 1995 e 2015. Pode-se verificar que, nesses exames, predominam os prestadores públicos durante todo o período, chegando a 62% no Paraná e a 60% dos exames realizados no País em 2015 (tabela 1).

A ampliação da oferta pública foi de 270% no Paraná e de 224% no Brasil. Nos procedimentos dessa natureza, predominam os serviços municipais, que, no Paraná, em 2015, responderam por 53% do total de exames realizados. Em âmbito nacional, os serviços municipais também lideram a produção pública, respondendo por 39% do total de exames realizados.

Os procedimentos privados, por sua vez, tiveram aumento no período de 416% no Paraná, e 236% no Brasil. Nestes, predominam os serviços com fins lucrativos, tanto no estado quanto no País, representando cerca de 23% do total de exames realizados no primeiro e 22% no segundo.

Percebe-se, portanto, que na realização de exames de patologia clínica pelo SUS, tanto no Paraná quanto no Brasil, predominam os serviços públicos. Porém, enquanto no País a presença pública tem se mantido relativamente estável, no Paraná ela tem decrescido, expressando a ampliação relativa da participação privada.

Tabela 1
Exames de patologia clínica, radiodiagnóstico, endoscopia digestiva e mamografia realizados no SUS nos anos de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015 no Paraná e no Brasil, por natureza do prestador (1/1000)

RADIODIAGNÓSTICO

Os exames de radiodiagnóstico também são largamente utilizados nos vários níveis da atenção à saúde. No SUS, esses procedimentos tiveram um aumento de 201% no Paraná e de 118% no Brasil, no período analisado. No estado, apesar de oscilações ao longo dos anos, o percentual de exames realizados por serviços públicos foi de 61% em 2015, muito próximo do de vinte anos antes. Já, no Brasil, a tendência é de aumento constante, ainda que leve, da participação pública, que alcançou 68% em 2015 (tabela 1)

No estado, a ampliação da oferta pública foi de 213%, enquanto no País foi de 178%. No universo público predomina a prestação municipal, tanto no Paraná (48% do total de exames) quanto no Brasil (47%).

Os procedimentos privados também tiveram aumento no período, em torno de 183% no Paraná, e de 50% no Brasil. Nesse universo, houve uma transição de dominância, outrora dos serviços com fins lucrativos para os filantrópicos - 20% do total de exames realizados em 2015 no estado, e 19% no País.

De forma geral, é possível afirmar que, tanto no Paraná quanto no Brasil, a realização de exames de radiodiagnóstico pelo SUS é majoritariamente pública. Esse predomínio público tem se aprofundado no plano nacional. Diferentemente, no Paraná, a presença pública é menor que na esfera nacional e tem se mantido relativamente estável.

ENDOSCOPIA DIGESTIVA

Outro importante grupo de procedimentos de apoio diagnóstico e terapêutico às ações de saúde é o das endoscopias digestivas. Na série analisada, houve uma elevação contínua de sua realização até o ano de 2011 no Paraná, e até 2007 no Brasil, a partir dos quais verifica-se sua redução (tabela 1). No cômputo geral do período, os dados apontam um aumento desses procedimentos da ordem de 17% no estado, e de 36% no País.

Predominam, no Paraná, os prestadores privados durante todo o período analisado, com pouca variação de sua participação percentual, que chega a 59% da produção em 2015. Diferentemente, no âmbito nacional, destacam-se os prestadores públicos, que vêm aumentando sua participação, chegando a 60% dos exames realizados no último ano da série.

Os procedimentos privados tiveram aumento de 17% no estado, enquanto no País decresceram 6,5%. Nos procedimentos dessa natureza (privados), sobrepujam, no caso paranaense, os serviços com fins lucrativos - 32% dos exames realizados -, enquanto no País predominam os filantrópicos - 20% dos exames realizados.

A ampliação da oferta pública foi de 22% no Paraná e de 96% no Brasil. No caso do primeiro, predominam os municípios com 28% dos exames realizados em 2015. Já na esfera nacional, entre o setor público, destaca-se o ente estadual, com 30% dos exames realizados no mesmo ano.

Percebe-se que, no caso do Paraná, ocorre certa estabilização relativa da participação minoritária do setor público na realização de endoscopias digestivas pelo SUS. Enquanto no Brasil, a esfera pública, além de majoritária, segue ampliando sua participação relativa.

MAMOGRAFIAS

O rastreamento precoce de algumas formas de câncer tem sido objeto de importantes ações pelo sistema público, a partir da criação do SUS. Este é o caso do câncer de mama. Verifica-se que houve um aumento substancial, de 17 vezes (1.700%) na realização desse procedimento no Paraná, e de 525% no Brasil, no período analisado. Nas duas esferas, contudo, entre 2011 e 2015, interrompe-se a tendência de ampliação que vinha desde 1995, havendo uma redução de 22% do estado, e de 7% no âmbito nacional (tabela 2).

Percebe-se que, tanto no caso paranaense quanto no Brasil, predominam os prestadores privados durante toda a série, chegando a 92% das mamografias realizadas no primeiro, e a 66% no segundo, em 2015.

No Paraná, o crescimento dos exames realizados por prestadores privados foi de 1.937%, enquanto no plano nacional foi de 447%. Entre os privados, destacam-se os serviços com fins lucrativos, com 60% da realização no estado, e 34% no País, em 2015.

Entre os exames realizados por prestadores públicos no Paraná, o aumento no período de 20 anos foi de 681%, enquanto no Brasil esse acréscimo foi de 770%. No setor público, tanto no estado quanto no País, predominam os prestadores municipais, levemente à frente dos estaduais. Contudo, em 2015, os municípios responderam por apenas 3,8% dos exames realizados no primeiro e por 17% no segundo.

Percebe-se que, no caso do Paraná, a participação do setor público na realização de mamografias pelo SUS, sempre amplamente minoritária, vem tendo uma redução progressiva, com tendência de se tornar irrisória. No âmbito nacional, por sua vez, ocorre certa estabilização da participação minoritária do setor público em torno de um terço dos exames realizados.

Tabela 2
Ultrassonografias e consultas médicas especializadas realizadas no SUS nos anos de 1995/1999 e 2015 no Paraná e no Brasil, por natureza e regime do prestador (1/1000)

ULTRASSONOGRAFIAS

A realização de exames de ultrassonografia também tem se expandido de forma considerável como expressão da ampliação de acesso ao SUS, principalmente à Atenção Básica (AB). Percebe-se o aumento contínuo do número de exames no Paraná, no período, da ordem de 368%, enquanto no Brasil o aumento foi de 193%. Nesses procedimentos, os prestadores públicos ampliaram sua participação relativa tanto no estado quanto no País, chegando a 52% do realizado no primeiro, e a 60% no segundo, em 2015 (tabela 2).

A ampliação da oferta pública foi de 426% no Paraná e de 280% no Brasil. Nos procedimentos dessa natureza, predominam os de origem municipal, com 39% dos exames realizados no Paraná, e 38% da produção no País, em 2015.

Os procedimentos privados também tiveram aumento no período, de 319% no Paraná, e 117% no Brasil. Nesse regime, ainda predominam os serviços com fins lucrativos, mas que vêm tendo sua participação diminuída diante do crescimento dos filantrópicos. No estado, em 2015, os lucrativos lideraram a produção privada com 22% dos exames realizados, enquanto, no âmbito nacional, realizaram 18% dos exames, participação praticamente já alcançada pela ampliação progressiva dos filantrópicos.

De forma geral, é possível afirmar que, no Brasil, a realização de serviços de ultrassonografias pelo SUS é majoritariamente pública, enquanto no Paraná ocorre uma divisão praticamente igualitária entre a prestação pública e a privada.

CONSULTAS MÉDICAS ESPECIALIZADAS

A realização dos procedimentos de apoio diagnóstico e terapêutico está diretamente relacionada não somente à ampliação da AB, mas, também, à realização das consultas médicas especializadas. Pode-se verificar que, no período de 1999 (nesse procedimento, o SIA oferece dados somente a partir do ano de 1999) até 2015, estas cresceram 47% no Paraná e tiveram um decréscimo em torno de 6% no Brasil. Nessas consultas, predominam os prestadores públicos, com 62% das consultas realizadas no estado, e 80% das realizadas em âmbito nacional (tabela 2).

As consultas realizadas pela fração pública tiveram aumento de 17% no Paraná e 2% no Brasil, no período estudado. No regime público, os municípios foram os maiores prestadores, realizando 47% das consultas médicas especializadas no Paraná e 54% no Brasil, em 2015.

As consultas realizadas por prestadores privados tiveram crescimento de 150% no Paraná e decréscimo de 27% no Brasil. Nesse regime, tanto no estado quanto no País, ao longo da série, houve a transição de domínio dos serviços com fins lucrativos para os filantrópicos, que representaram 21% das consultas especializadas no Paraná e 14% no Brasil, em 2015.

É possível perceber que, tanto no Paraná quanto no Brasil, a oferta de consultas médicas especializadas pelo SUS acontece majoritariamente em serviços públicos. Porém, a participação relativa desse setor é maior em âmbito nacional do que no estado. Além disso, o predomínio relativo dos serviços públicos está diminuindo no Paraná, enquanto permanece praticamente estabilizado em nível nacional.

Alta complexidade: mais privada que pública

De forma geral, os procedimentos de alta complexidade tiveram importante incremento no período analisado, como resultado da ampliação de acesso à atenção à saúde, com o desenvolvimento do SUS. A seguir, é possível verificar como se manifesta essa expansão em alguns procedimentos selecionados.

Tabela 3
Exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética realizados no SUS nos anos de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015 no Paraná e no Brasil, por natureza do prestador (1/1000)

TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA

Diferentemente dos procedimentos anteriores, os exames de tomografia computadorizada são de desenvolvimento mais recente, sendo incorporados ao sistema público praticamente a partir da década de 1990. Os dados apontam um aumento do número de exames em torno de 634% no Paraná, enquanto no Brasil a ampliação foi de 480%, entre 1995 e 2015 (tabela 3).

Pode-se verificar que, nesses procedimentos, historicamente, predominam os prestadores privados. No Paraná, apesar de sofrer variações ao longo do período, esse setor conserva a posição majoritária, com 65% dos exames realizados em 2015. Já em âmbito nacional, o setor público tem ampliado seu peso relativo, levando-o, entre 2012 e 2015, a superar a prestação privada, com 55% dos exames realizados neste ano.

Os serviços realizados por prestadores privados tiveram um aumento de 700% no estado e 349% no País, no período estudado. Nesse regime, destacam-se, tanto no Paraná quanto no Brasil, os filantrópicos, respondendo por cerca de 37% dos exames realizados no estado, e por 28% dos realizados no País, em 2015.

No mesmo período, o setor público ampliou a sua oferta em cerca de 537% no estado e em 664% no Brasil. No Paraná, predomina a prestação de serviços municipais - em torno de 17% dos procedimentos, em 2015 -, enquanto no País prevalecem os serviços estaduais, com 34% dos procedimentos no mesmo ano.

Assim, percebe-se que, enquanto no Paraná a realização de exames de tomografia computadorizada pelo SUS têm ocorrido majoritariamente por meio de serviços privados - em torno de 2/3 dos exames realizados -, no Brasil, o crescimento da participação relativa pública levou-a a superar, nos últimos anos da série, a participação privada.

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA

Quanto ao exame de ressonância magnética, de inclusão bastante recente, pode-se perceber que o primeiro ano analisado situa-se no início da oferta desse procedimento pelo SUS. Por isso, os níveis tão expressivos de aumento - de 287 vezes (28.713%) no Paraná, e de 1.798% no Brasil -, entre 1999 e 2015, devem ser relativizados. Nas duas esferas, verifica-se o predomínio dos prestadores privados ao longo de todo o período. No Paraná, esse setor realizou 83% do total de exames, contra 68% no Brasil, em 2015 (tabela 3).

Na esfera privada, no Paraná, destacam-se os serviços com fins lucrativos, que vêm se expandindo e já realizaram 56% dos exames no estado. No País, esse formato também domina entre os privados, com 34% dos exames em 2015, seguidos pelos filantrópicos (27%).

Entre os serviços públicos, são os municípios os principais prestadores no Paraná, com 9,6% dos exames realizados em 2015, enquanto, no Brasil, a maior participação pública é dos serviços estaduais, com 23% dos exames no mesmo ano.

Constata-se, portanto, que, tanto no Paraná quanto no Brasil, a maior parte da oferta de exames de ressonância magnética pelo SUS acontece historicamente através de serviços privados, sendo que o peso relativo do setor público no estado é praticamente a metade do que ocorre no âmbito nacional, onde a participação pública abrange cerca de um terço dos procedimentos.

Tabela 4
Radioterapia, quimioterapia e terapia renal substitutiva realizadas no SUS nos anos de 1995 e 2015 no Paraná e no Brasil, por natureza e regime do prestador (1/1000)

RADIOTERAPIA E QUIMIOTERAPIA

Os procedimentos de radioterapia e quimioterapia pelo SUS tiveram um aumento de 185% no Paraná e de 126% no Brasil entre 1995 e 2015 (tabela 4).

Os dados mostram que, tanto no Paraná quanto no Brasil, predominam os prestadores privados ao longo de todo o período. No caso paranaense, essa participação majoritária do setor privado vem se ampliando notavelmente, ao ponto de, com 99% dos procedimentos realizados em 2015, praticamente abolir a prestação pública. No âmbito nacional, o peso relativo da prestação privada também se elevou, até praticamente se estabilizar em torno de 80% dos procedimentos.

Entre os serviços privados, os com fins lucrativos foram sendo superados pelos filantrópicos no papel de principais prestadores, realizando 66% dos procedimentos no estado, e 62% no Brasil, em 2015.

No Paraná, os procedimentos em serviços públicos tiveram redução de 93% no período analisado, até praticamente serem extintos. No País, os procedimentos realizados por prestadores públicos, com prevalência de serviços estaduais, embora tenham se ampliado em 76%, também tiveram queda relativa de sua participação (20% em 2015).

É possível perceber, portanto, como, tanto no Paraná quanto no Brasil, a oferta de radioterapia e quimioterapia pelo SUS acontece historicamente através de serviços privados. Enquanto no âmbito nacional ainda subsiste uma prestação pública bastante minoritária, com cerca de um quinto dos exames, no Paraná, esse procedimento realiza-se praticamente de forma exclusiva pelo regime privado.

TERAPIA RENAL SUBSTITUTIVA

A terapia renal substitutiva engloba procedimentos de hemodiálise e diálise peritoneal. Os dados apontam um aumento na realização desses procedimentos pelo SUS da ordem de 151% no Paraná e de 224% no Brasil no período. Em toda a série, tanto no Paraná quanto em nível nacional, ocorre amplo predomínio de prestadores privados, nunca inferior a 90%, sendo que, no primeiro, a prestação pública foi retraindo até ser abolida em 2015. No País, ainda subsiste uma prestação pública residual de 6% dos exames (tabela 4).

Entre os procedimentos realizados por prestadores privados - a totalidade, no caso paranaense -, a maioria foi executada por serviços com fins lucrativos - cerca de 84% no Paraná e 69% no Brasil, em 2015.

Os procedimentos realizados por prestadores públicos, extintos no Paraná, apesar da ampliação absoluta no nível nacional, viram sua participação relativa cair e estagnar em níveis irrisórios. Para efeito de análise, pode-se considerar a prestação de terapia renal substitutiva pelo SUS de atribuição essencialmente privada, tanto em âmbito nacional, quanto, principalmente, na realidade paranaense.

O gráfico 1 apresenta uma síntese da participação pública nos procedimentos selecionados da atenção ambulatorial especializada de média e alta complexidade pelo SUS, no ano de 2015, no Paraná e no Brasil.

Gráfico 1
Participação de prestadores públicos na realização de procedimentos selecionados da atenção ambulatorial especializada de média e alta complexidade pelo SUS no ano de 2015, no Paraná e no Brasil (%)

Discussão

O SUS entre o público e o privado

Os dados analisados permitem uma visão panorâmica da relação público-privado na oferta de procedimentos de atenção especializada pelo SUS no Paraná e no Brasil ao longo de duas décadas. De forma geral, podem-se identificar algumas tendências:

- A expansão importante, embora heterogênea, dos procedimentos selecionados de atenção especializada realizados pelo SUS ao longo do período analisado, acima do crescimento populacional, tanto no Paraná quanto no Brasil. Essa ampliação, permanente até 2011, contudo, é interrompida por uma retração, iniciada principalmente entre os anos de 2012 e 2015 em sete dos dez procedimentos analisados;

- A maioria dos procedimentos especializados de média complexidade analisados, assim como aqueles utilizados simultaneamente pela AB e pela atenção secundária, foi realizada majoritariamente por serviços públicos, tanto no Paraná quanto no Brasil. Isso, contudo, não suprime a importância do regime privado nesse âmbito, cuja participação varia entre 30 e 92% no estado e entre 14 e 67% no âmbito nacional;

- Já na esfera da alta complexidade, praticamente todos os procedimentos analisados foram realizados predominantemente por serviços privados, tanto no Paraná quanto no Brasil. A participação dos serviços públicos é bastante reduzida, tornando-se, mesmo, insignificante em alguns desses procedimentos. Ela varia entre 0 e 35% no estado, e entre 6 e 55% no País, a depender do procedimento;

- Entre os prestadores públicos da atenção ambulatorial especializada pelo SUS no Paraná, os serviços municipais foram os que mais ampliaram a participação, sendo, também entre os públicos, os principais prestadores. Já no âmbito nacional, embora os serviços municipais também venham ampliando sua presença, ainda dividem com os serviços estaduais o predomínio nas ações.

- Na prestação privada vem ocorrendo uma transição do predomínio dos serviços com fins lucrativos, outrora majoritários, para os classificados como filantrópicos. No âmbito nacional, já ocorre um equilíbrio, com cada um desses formatos liderando a produção em cinco dos dez procedimentos analisados. No Paraná, os serviços lucrativos ainda hegemonizam a produção em seis dos dez procedimentos analisados.

Essa ampliação dos serviços especializados ocorre em contexto de crescimento significativo da população brasileira e paranaense, com percentuais de 31,2% e 25%, respectivamente, no período, e de aumento da expectativa de vida, que, no âmbito nacional, passou de 68,5 anos para ambos os sexos, em 1995, para 75,5 anos para ambos os sexos em 20151313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tábuas Completas de Mortalidade 2015. [acesso em 2018 out 15]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2015/default.shtm
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. Além da mudança demográfica, desenvolve-se no Brasil uma transição epidemiológica contraditória, centrada em uma ‘tripla carga de doenças’, envolvendo doenças infectocontagiosas, crônico-degenerativas e causas externas, típica de formações sociais periféricas como a brasileira1414 Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017., os centros medianos de acumulação.

Nas últimas décadas, o SUS tem buscado responder a essas transformações por meio de importante expansão de serviços, principalmente os de AB, e os orientados pela Estratégia Saúde da Família (ESF), que atingem coberturas, respectivamente, de 73,6% e 62,5% da população em 20151515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Relatórios de Cobertura da Atenção Básica. [acesso em 2018 out 29]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml
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. Mas a ampliação ocorre, também, com serviços de outros níveis de atenção, como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), ambulatórios, hospitais, Centros de Atenção Psicossocial, aumentando, assim, o acesso à atenção especializada, com serviços de apoio diagnóstico e terapêutico1616 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, et al. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 jul 13]; 23(6):1751-1762. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1751.pdf
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. De fato, a constituição do SUS, nos moldes da seguridade social, superando o modelo do seguro social, do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), propicia uma expansão do direito à saúde sem precedentes na história do País, com repercussões notáveis em indicadores de acesso e qualidade da atenção.

A ampliação da principal porta de entrada do SUS repercute diretamente no aumento de determinados serviços e procedimentos, como os de patologia clínica, radiodiagnóstico, ultrassonografias, endoscopias digestivas e mamografias, que compõem protocolos e rotinas largamente utilizados na AB, além de induzir a expansão da rede de urgência e emergência44 Paim J, Travassos C, Almeida C, et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. The Lancet. 2011 [acesso em 2020 jul 12]; 377(9779):1778-1797. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(11)60054-8/fulltext
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,1717 Silva CR, Carvalho BG, Júnior LC, et al. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2020 jul 13]; 22(4):1109-1120. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1109.pdf
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e das consultas médicas especializadas, principal suporte especializado a esse nível de atenção. A conexão mais direta com a AB, o baixo custo e as políticas indutoras da municipalização contribuem para que a participação do regime público, sobretudo municipal, seja maior nesses procedimentos que nos de alta complexidade1717 Silva CR, Carvalho BG, Júnior LC, et al. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2020 jul 13]; 22(4):1109-1120. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n4/1413-8123-csc-22-04-1109.pdf
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Além da AB e da urgência/emergência, procedimentos específicos foram objeto de priorização pela Política Nacional de Saúde, compondo pactuações de metas e indicadores no último período, induzindo sua expansão. É o caso da mamografia como método para rastreamento de rotina na atenção à saúde da mulher.

Percebe-se que a ampliação desse exame, assim como os procedimentos de radioterapia e quimioterapia pelo SUS, tem se desenvolvido quase integralmente por meio de serviços privados, fazendo com que a maior parte da linha de cuidado aos portadores de neoplasias, a segunda causa de mortes do País, esteja à mercê dos prestadores privados.

Cabe destacar, ainda, o predomínio dos serviços privados em outros procedimentos de alta complexidade, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, que, ao longo das últimas duas décadas, de exames ‘de exceção’, transitaram ao estatuto de rotina na investigação de várias patologias. No caso da terapia renal substitutiva, a privatização chega ao ápice, com apenas 6% de prestação pública no âmbito nacional - no Paraná, esse procedimento é integralmente privado.

A presença privada no SUS, apesar de importante em toda a atenção especializada, é consideravelmente maior, em alguns casos, exclusiva na alta complexidade, visto que se orienta pela lucratividade decorrente dos diferenciais de remuneração da tabela SUS segundo a densidade tecnológica, implicando uma seleção de demanda por determinados atos e condições de adoecimento1010 Solla J, Chioro A. Atenção Ambulatorial Especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadoras. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-576..

Fica cada vez mais evidente, também, o movimento de ‘filantropização’ do setor privado contratado pelo SUS, resultado tanto de mudanças nas legislações regulamentadoras desse formato institucional quanto da utilização crescente de artifícios legais para a conquista de isenções fiscais, financiamentos públicos e privilégios nos contratos com o SUS99 Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 34(7):e00067218. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n7/1678-4464-csp-34-07-e00067218.pdf
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,1818 Canabrava CM, Andrade EIG, Janones FA, et al. Sistema Único de Saúde e o terceiro setor: caracterização de entidades, não hospitalares, que possuem serviços em atenção básica de saúde em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2007 [acesso em 2020 jul 13]; 23(1):115-126. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v23n1/12.pdf
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Tem-se apontado na literatura que essa excessiva contratação privada pelo SUS vem ferindo tanto o planejamento ascendente e integrado quanto suas diretrizes e princípios, visto que limita a integração do cuidado, a longitudinalidade e o acesso dos usuários99 Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 34(7):e00067218. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n7/1678-4464-csp-34-07-e00067218.pdf
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,1919 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. 2017 [acesso em 2020 jul 2]; 33(2):e00197316. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v33s2/1678-4464-csp-33-s2-e00197316.pdf
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. Esse processo também amplia desigualdades de acesso por meio da utilização de serviços do SUS em procedimentos não cobertos ou autorizados por planos de saúde, estabelecendo uma dupla porta, que burla os mecanismos reguladores de acesso ao sistema99 Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 34(7):e00067218. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n7/1678-4464-csp-34-07-e00067218.pdf
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Além disso, esse processo pode contribuir para subordinar o sistema público a uma dinâmica mercantil, com excesso de intervenções e procedimentos desnecessários, implicando altos índices de medicalização e iatrogenia, além de aumento de custos1414 Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017..

Ademais, o predomínio privado na atenção especializada e hospitalar do SUS favorece a irradiação para os serviços públicos da plataforma gerencialista, alicerçada em parâmetros mercantis de desempenho e eficiência, cujo fundamento, a redução de custos, pode implicar comprometimento do acesso, da integralidade e aumento da exploração da força de trabalho em saúde, por meio da degradação das condições e dos vínculos de trabalho66 Mendes A, Carnut L. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde Soc. São Paulo. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 27(4):1105-1119. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v27n4/1984-0470-sausoc-27-04-1105.pdf
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,2020 Campos CMS, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde Soc. 2015 [acesso em 2020 jul 13]; 24(1):82-91. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24s1/0104-1290-sausoc-24-s1-00082.pdf
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Vários autores salientam que essa perspectiva decorre de uma tendência internacional de impor aos sistemas de saúde um ‘universalismo básico’, que reduz os serviços públicos a ações básicas de tratamento e prevenção, deixando a assistência especializada a cargo de prestadores privados2020 Campos CMS, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde Soc. 2015 [acesso em 2020 jul 13]; 24(1):82-91. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24s1/0104-1290-sausoc-24-s1-00082.pdf
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,2121 Rizzotto MLF, Campos GWS. O Banco Mundial e o Sistema Único de Saúde brasileiro no início do século XXI. Saúde Soc. 2016 [acesso em 2020 jul 12]; 25(2):263-276. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n2/1984-0470-sausoc-25-02-00263.pdf
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A redução considerável na realização da maioria dos procedimentos analisados no período entre 2012 e 2015 expressa as consequências para o SUS das recentes políticas de austeridade fiscal, instituídas a partir de 2014 e aprofundadas em níveis trágicos a partir de 2015, com os governos Temer e Bolsonaro.

O programa ultraliberal, deslocando o Estado do papel de provedor para o de regulador do acesso a serviços como saúde, previdência e educação, apresenta, atualmente, duas matizes entre as diferentes frações do bloco dominante. A escola hayekiana tem sua principal expressão política no ministro da economia, Paulo Guedes, defensor da securitização como meio de acesso, através da utilização do fundo público, modelo semelhante à proposta da Cobertura Universal em Saúde, defendida por instituições como o Banco Mundial e a Organização Mundial da Saúde (OMS)2222 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 ago 13]; 23(6):1763-76. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1763.pdf
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A outra vertente, mais discreta, possui entre seus principais defensores um grupo de empresários e banqueiros, tendo à frente Armínio Fraga Neto, ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso e fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Essa vertente reconhece o caráter concentrador de renda das isenções fiscais para seguros saúde e defende o ‘aperfeiçoamento’ do SUS por meio de supostos ganhos de eficiência advindos da privatização da gestão e da ampliação da contratação de serviços privados.

A privatização direta, dada sua agressividade no desmonte do SUS, têm sido mais facilmente identificada como ameaça ao sistema público. A segunda forma, por sua vez, baseada em uma retórica de valorização e aperfeiçoamento do SUS, tem conquistado grande difusão nas últimas décadas. Isso é demonstrado nos múltiplos formatos de terceirização - Organizações Sociais, Parcerias Público-Privadas etc. - e na consolidação nos serviços públicos de diretrizes gerencialistas de natureza mercantil moldadas com roupagem técnica66 Mendes A, Carnut L. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde Soc. São Paulo. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 27(4):1105-1119. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v27n4/1984-0470-sausoc-27-04-1105.pdf
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Parte da naturalização dessa segunda forma de privatização, de contratação de serviços privados pelo SUS e terceirizações, deve-se ao histórico da presença majoritária de serviços privados no interior do sistema público, processo que se mantém, com algumas modificações, na transição do Inamps para o SUS99 Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 34(7):e00067218. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n7/1678-4464-csp-34-07-e00067218.pdf
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. Contribuem, também, de forma significativa, para essa transigência os limites impostos pela ofensiva mundial do capital sobre os direitos sociais - o neoliberalismo - em sua expressão brasileira, desde a criação do SUS.

A contratação de serviços privados pelo sistema público, entretanto, como se viu, não ocorre sem consequências. Além das implicações sobre a integralidade da atenção, em tempos de mundialização do capital sob o domínio do capital financeiro, a atividade de serviços e empresas privadas no interior do Estado acentua o direcionamento do fundo público para a esfera da acumulação, processo aprofundador da desigualdade social e produtor de retrocessos nos direitos sociais.

Considerações finais

A análise da atenção ambulatorial especializada no Paraná e no Brasil demonstra que esse nível da atenção sofreu ampliação importante nas duas últimas décadas, acompanhando a expansão do SUS, processo que passa a ser interrompido a partir de 2012 a 2015. Nos procedimentos analisados, tanto no estado quanto no âmbito nacional, a presença privada é, em geral, minoritária, embora importante, nos serviços de média complexidade e majoritária nos de alta complexidade. No Paraná, o grau de privatização é consideravelmente maior que no País.

Assim, diferentemente do preconizado constitucionalmente, em vários serviços e áreas fundamentais do SUS, os serviços públicos é que assumem o papel de complementares aos serviços privados. Mais estudos são necessários a fim de analisar esse processo em outros grupos de procedimentos, contribuindo para a compreensão dos impactos da privatização interna sobre os limites do sistema brasileiro.

Apesar de seus notáveis avanços para a ampliação do acesso e qualificação da assistência, o SUS ainda encontra limites para se efetivar como um sistema de fato universal, integral e igualitário. Os obstáculos remontam a importantes impasses que o atravessam desde a origem. Entre eles, dois dos mais determinantes são o subfinanciamento e a influência - em alguns âmbitos, como se pôde perceber, a supremacia - do setor privado11 Bahia L, Scheffer M. O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 mar 8]; 42(esp3):158-171. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sdeb/v42nspe3/0103-1104-sdeb-42-spe03-0158.pdf
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,33 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 23(6):1723-28. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-1723.pdf
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Em última instância, a coexistência dos serviços públicos e privados no interior do SUS expressa o conflito entre a dinâmica mercantil e a compreensão da saúde como direito humano.

Esse conflito, atualmente, encontra-se em níveis críticos, conforme demonstra a crise sociossanitária atual, não um efeito natural e inevitável da pandemia por Covid-19, senão resultado de ações deliberadas de desmonte das políticas de proteção social em andamento no mundo nas últimas décadas. Esse processo, que atingiu patamares dramáticos no Brasil nos últimos anos, soma-se à política governamental de utilização do negacionismo científico para manutenção selvagem dos lucros financeiro-empresariais, por meio do combate ao isolamento físico, da retirada de direitos trabalhistas e sociais e das liberdades democráticas.

O SUS tem contribuído para que a tragédia não seja maior. Ao mesmo tempo, explicitam-se suas fragilidades, resultantes do subfinanciamento crônico e agudo, derivado da Emenda Constitucional 95, e do desmantelamento de várias políticas nos últimos anos, como a desestruturação da AB e da ESF, além das tentativas permanentes de nacionalizar a terceirização da AB, de desvinculação orçamentária da saúde e educação, e de revogação da legislação da Reforma Psiquiátrica brasileira, entre outros.

Em cenário insólito, apesar de a crise sanitária contribuir para certa sensibilização da população para a importância do SUS, as investidas contra as políticas de proteção social e saúde avançam, como o demonstram a aprovação da EC 109/21, que restringe ainda mais os gastos com funcionalismo público em nome do ajuste fiscal, e o trâmite atual da Reforma Administrativa.

O pano de fundo em todos esses episódios, em última instância, é o conflito público-privado, manifestação da contradição capital-trabalho. O fortalecimento de uma reforma sanitária com vistas à conquista do direito universal à saúde deve necessariamente envolver o enfrentamento dessa contradição.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
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