Análise do financiamento federal do Sistema Único de Saúde para o enfrentamento da Covid-19

Analysis of the federal funding of the Unified Health System to fight the COVID-19

Francisco Funcia Luís Paulo Bresciani Rodrigo Benevides Carlos Octávio Ocké-Reis Sobre os autores

RESUMO

O objetivo deste artigo é o de analisar o financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 em 2020 e durante o primeiro quadrimestre de 2021 – períodos caracterizados como da primeira e da segunda ondas. Realizou-se pesquisa documental com levantamento de dados disponíveis em sítios eletrônicos oficiais. A pandemia se instalou no Brasil em fevereiro de 2020, no contexto do subfinanciamento crônico do SUS, que se aprofundou com o estrangulamento de dotações verificado a partir da Emenda Constitucional 95/2016, que definiu o teto das despesas primárias e o congelamento do piso federal do SUS até 2036, no mesmo valor do piso de 2017. Essa medida constitucional viabilizou o aprofundamento da política de austeridade fiscal pela via da redução das despesas primárias e da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto. Tais objetivos condicionaram também o financiamento federal para o combate à pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021, cuja execução orçamentária e financeira pode ser caracterizada como reativa e retardatária. Essa forma de execução comprometeu o atendimento das necessidades de saúde da população, além de prejudicar a gestão do SUS nas esferas de governo subnacionais.

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Único de Saúde; Financiamento da saúde; Covid-19; Economia da saúde; Gasto público com saúde

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the federal funding of the Unified Health System (SUS) to fight the COVID-19 pandemic in 2020 and during the first four months of 2021 – periods characterized as the first and second waves. Documentary research was carried out, with data available on official websites. The pandemic took hold in Brazil in February 2020, in the context of the chronic underfunding of SUS, which deepened with the strangulation of appropriations verified from the Constitutional Amendment 95/2016, which defined the ceiling on primary expenditure and the freezing of the federal floor of SUS until 2036, at the same value as the 2017 floor. This constitutional measure made it possible to deepen the fiscal austerity policy by reducing primary expenditure and public debt in relation to the Gross Domestic Product. These goals also conditioned federal funding to combat the COVID-19 pandemic in 2020 and 2021, whose budget and financial execution can be characterized as reactive and delayed. This form of execution compromised meeting the health needs of the population, in addition to harming the management of SUS in subnational government spheres.

KEYWORDS
Unified Health System; Health financing; COVID-19; Health economics; Public expenditures on health

Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de financiamento federal do enfrentamento da pandemia da Covid-19 até o primeiro quadrimestre de 2021. Segundo Arretche11 Arretche M. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: Barreira MCR, Carvalho MCB, organizadores. Tendências e Perspectivas na Avaliação de Políticas e Programas Sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP; Cenpec; 2001. p. 43-56., é possível que, durante a implantação de políticas públicas, ocorrências como a instabilidade política e econômica ou restrições orçamentária e financeira, dentre outras, inviabilizem a consecução dos objetivos planejados ou resultem numa revisão de prioridades. Com isso, é possível deduzir que uma das condicionalidades para a gestão das políticas públicas nas áreas sociais no Brasil está relacionada ao financiamento, que se materializa na alocação de recursos nos orçamentos anuais das três esferas de governo.

O financiamento das políticas públicas no Brasil está centralizado na União em razão do pacto federativo vigente a partir da Constituição Federal (CF) de 198822 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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: após a arrecadação dos tributos de competência da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, ocorrem as transferências intergovernamentais obrigatórias para formar a receita disponível – que expressa a capacidade de financiamento das políticas públicas em cada ente da Federação após essas transferências.

Essa receita disponível está centralizada na esfera federal (58%), seguida da estadual (25%) e municipal (17%)33 Associação Nacional dos Auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil; Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital. A Reforma Tributária Necessária. Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira. Brasília, DF: Anfip; Fenafisco; São Paulo: Plataforma Política Social; 2018.. Quando se analisam as fontes dos recursos que financiam as despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) no Brasil, Silveira et al.44 Silveira FG, Noronha GS, Funcia FR, et al. Os fluxos financeiro no financiamento e no gasto em Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2020. apuraram que 56% são federais, 32% estaduais e 11% municipais, o que confirma a centralização do financiamento das políticas públicas na União, como citado anteriormente.

A política pública de saúde é uma das mais relevantes dentre as políticas setoriais que integram o conjunto das políticas sociais de qualquer país. Isso porque a ‘saúde’ não se restringe a uma abordagem de ‘ausência de doença’ – para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “saúde” expressa “um estado de completo bem-estar físico, mental e social [...], sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”55 Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO). [acesso em 2017 abr 2]. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html.
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. Tal concepção está presente na CF de 198822 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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: a saúde é um direito de cidadania, que deve ser garantido por políticas públicas integradas, isto é, “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, e cujas ações são de relevância pública (artigos 196 e 197)22 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Os princípios e diretrizes constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), que norteiam a política de saúde no Brasil, são: universalidade e integralidade no acesso às ações e serviços públicos de saúde, com descentralização das ações para os estados e os municípios, garantida a autonomia relativa de gestão, e com a participação da comunidade, o que tem ocorrido principalmente por meio das conferências de saúde e pelos conselhos de saúde, ambos de caráter deliberativo, como estabelece a Lei nº 8.142/9066 Brasil. Lei nº 8142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Dez 1990. [acesso em 2019 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm.
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Essa descentralização tem impactado mais os orçamentos municipais do que os estaduais, considerando o quão distante do respectivo piso mínimo legal está a aplicação efetiva municipal: enquanto os estados têm aplicado em média em torno de 13% da receita de impostos e de transferências de impostos, i.e., próximo do piso de 12% estabelecido pela Lei Complementar nº 141/2012, as despesas com ASPS nos municípios correspondem em média a cerca de 25%, muito acima do piso77 Funcia FR. Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos. In: Seminário Saúde sem dívida e sem mercado; 2017 jun 28; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; Centro de Estudos Estratégicos; 2017..

Essa situação é um indicativo de que não há espaço fiscal para a alocação adicional de recursos próprios no orçamento municipal do SUS, na medida que, pelo conceito citado da OMS, é necessário o financiamento de ações para efetivar outras políticas públicas que contribuem positivamente para as condições de saúde da população.

Mas a responsabilidade constitucional do financiamento do SUS é tripartite, portanto, conjunta da União, dos estados, incluído o Distrito Federal, e municípios, com regras específicas para calcular os respectivos valores da aplicação mínima, ou pisos, desde 200022 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Para Funcia e Bresciani88 Funcia FR, Bresciani LP. A Gestão Recente do Sistema Único de Saúde: Financiamento Restringido. In: Anais do Encontro Nacional de Administração Público da Anpad; 2019 maio 16-18; Ceará. Fortaleza: Anpad; 2019. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MjYwNzM=.
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(5), “houve uma consolidação do perfil do financiamento do SUS a partir de 2015 em torno de 43% de gastos da União, 26% dos Estados e do Distrito Federal e 31% dos Municípios”; entretanto, na comparação entre 2011 e 2017, “houve redução do índice da participação federal [...], aumento da esfera municipal [...] e estabilidade da estadual”.

Nessa perspectiva, a realização de estudos sobre o financiamento federal do SUS, especialmente para o combate à pandemia da Covid-19, é relevante, pois é o ente da federação que, diante da centralização da competência de tributar e da redução da sua participação no conjunto das despesas com ASPS, deveria alocar recursos orçamentários adicionais para viabilizar a efetivação da política de saúde – nenhuma despesa pública pode ser realizada se não houver programação orçamentária e financeira para esse fim.

Muitos especialistas da área de economia da saúde têm demonstrado a existência de um subfinanciamento crônico do SUS desde a sua criação na CF de 1988: trata-se de um processo caracterizado como “insuficiência de recursos para cumprir com seus objetivos constitucionais”99 Marques RM, Piola SF, Ocké-Reis CO. Desafios e perspectivas futuras no financiamento do SUS. In: Marques RM, Piola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde, Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desenvolvimento; OPAS, OMS Brasil; 2016. p. 247-258. [acesso em 2022 maio 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_saude_brasil_organizacao_financiamento.pdf.
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Essa situação foi agravada pela política econômica recessiva adotada no Brasil desde 2015 e aprofundada pelas medidas de austeridade fiscal, que focam a redução das despesas federais, após a promulgação da Emenda Constitucional 95/201622 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Pelas novas regras constitucionais, a aplicação mínima federal em ASPS foi congelada no valor de 2017, sendo estabelecido um ‘teto’ financeiro para o pagamento de todas as despesas primárias da União equivalente aos valores de 2016, o que inclui o pagamento de despesas do Ministério da Saúde (MS). Até 2036, a atualização anual desses valores ocorrerá somente pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Índice de Preços ao Consumidor Amplo. Rio de Janeiro: IBGE; 2021. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/9256-indice-nacional-de-precos-ao-consumidor-amplo.html?=&t=o-que-e.
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Desde então, está ocorrendo uma redução na alocação de recursos orçamentários federais para o financiamento do SUS, o que podemos denominar ‘desfinanciamento’ do SUS, na medida que aprofunda o processo de subfinanciamento crônico citado anteriormente. Essa situação reforça o argumento de Santos e Funcia1111 Santos L, Funcia FR. Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Rev Eletr. Dom. Saúde do Idisa. 2020 [acesso em 2020 jul 31]; (21). Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-21-maio-2020.
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sobre o ‘desinteresse governamental federal’ em garantir do direito à saúde estabelecido na CF de 198822 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Ou seja, o ‘congelamento’ do piso federal do SUS passou a valer constitucionalmente no cenário em que os gastos consolidados eram baixos e insuficientes para atender às necessidades de saúde da população, cenário que pode ser ilustrado de duas formas. Na primeira delas, pelo gasto consolidado em saúde das três esferas de governo, que foi de R$ 265 bilhões em 20171212 Brasil. Ministério da Saúde. Sistemas de Informação de Orçamento Público de Saúde. [acesso em 2018 dez 27]. Disponível em http://portalms.saude.gov.br/repasses-financeiros/siops/indicadores.
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, equivalente a cerca de R$ 3,60 per capita por dia. Na segunda, pela comparação internacional das despesas com saúde pública, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto o Brasil aplicou 3,96% em 2018, o Reino Unido – escolhido para comparação pelo National Health Service ser também de acesso universal, como o SUS – aplicou 7,86%1313 Organização Mundial da Saúde. Domestic general government health expenditure (GGHE-D) as percentage of gross domestic product (GDP) (%). [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: http://apps.who.int/gho/data/node.main.GHEDGGHEDGDPSHA2011?lang=en.
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É nesse cenário que vai ocorrer o desfinanciamento do SUS sob a égide da Emenda Constitucional 95/201622 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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. No período de 2017 a 2019, que antecedeu os ‘anos Covid-19’, houve tanto a queda do piso federal do SUS per capita a preços de 2019 (de R$565 em 2017 para R$558 em 2019) como da despesa federal empenhada com ASPS (de R$594 em 2017 para R$583 em 2019)1414 Benevides R, Ocké-Reis C, Funcia FR. Brasil. Gasto público consolidado per capita em 2019. Brasília, DF: Canal Câmara dos Deputados; 2021. Vídeo: 3h 17m 15s. [Youtube]. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B3O0_tjtd9I.
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Material e métodos

Os anos de 2020 e 2021 foram marcados pela Covid-19 no Brasil e no mundo, o que significa dizer que encontrou a estrutura do SUS condicionada pelo processo de subfinanciamento crônico agravado pelo desfinanciamento decorrente da Emenda Constitucional 95/201622 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)1515 Organização Pan-Americana da Saúde; Organização Mundial da Saúde. Folha informativa sobre COVID-19. [acesso em 2020 jul 31]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875.
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, a OMS comunicou o estado de emergência de saúde pública de importância internacional em decorrência da doença causada pelo novo coronavírus no final de janeiro de 2020, sendo o primeiro caso oficial de Covid-19 no Brasil anunciado na segunda quinzena de fevereiro de 2020. A caracterização da Covid-19 como pandemia ocorreu na primeira quinzena de março/2020 e, posteriormente, nesse mesmo mês, o governo federal decretou estado de calamidade pública. Por fim, a primeira morte por Covid foi oficialmente anunciada em março de 2020, conforme a Agência Brasil1616 Agência Brasil. Primeira morte por covid-19 no Brasil aconteceu em 12 de março - Até este fim de semana, acreditava-se que havia sido em 16 de março. Agência Brasil. 2020 jun. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-06/primeira-morte-por-covid-19-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marco.
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O período de análise de 2020 e 1º quadrimestre de 2021 foi escolhido pela ocorrência de duas ‘ondas’ da Covid-19 no Brasil, a segunda (em 2021) com mais casos e mortes em comparação à primeira, ocorrida em 2020. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) alertou, em 2020, que, após “o pico nos meses de julho a setembro”, houve “piora da situação no mês de novembro com o início de um crescimento de casos evidente em quase todos os estados”1717 Conselho Nacional de Saúde. Estamos vivendo uma segunda onda de Covid-19 no Brasil. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1507-estamos-vivendo-uma-2-onda-de-covid-19-no-brasil-questiona-live-do-cns-que-ocorrera-proxima-quarta-9-12.
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. Ainda segundo o CNS, “especialistas concluíram que podemos estar vivendo uma 2ª onda sem que a primeira tenha terminado”1818 Conselho Nacional de Saúde. Covid-19 no Brasil volta a crescer indicando segunda onda sem que primeira tenha terminado. [acesso em 2021 dez 17]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1537-covid-19-no-brasil-volta-a-crescer-indicando-2-onda-sem-que-primeira-tenha-terminado-conclui-live-do-cns.
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Consideraram-se as informações disponíveis nos anexos da Resolução nº 6631919 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 663, de 30 de setembro de 2021. Dispõe sobre a reprovação do Relatório Anual de Gestão 2020 do Ministério da Saúde e a indicação de medidas corretivas de gestão. Diário Oficial da União. 30 Set 2021. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/2084-resolucao-n-663-de-30-de-setembro-de-2021.
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do CNS, de 2021, que deliberou sobre o parecer conclusivo referente ao Relatório Anual de Gestão (RAG) 2020 do MS. O CNS é uma das instâncias deliberativas do SUS no âmbito federal, além da Conferência Nacional de Saúde, realizada ordinariamente a cada quatro anos, nos termos da diretriz constitucional de participação da comunidade no SUS e da legislação setorial específica – Lei nº 8.080/902020 Brasil. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. [acesso em 2019 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm.
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, Lei nº 8.142/9066 Brasil. Lei nº 8142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Dez 1990. [acesso em 2019 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm.
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e Lei Complementar nº 141/20122121 Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Jan 2012. [acesso em 2019 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm.
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. O CNS tem responsabilidade estabelecida pela Lei Complementar nº 141/20122121 Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Jan 2012. [acesso em 2019 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm.
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para deliberar sobre o parecer conclusivo do RAG do MS.

Analisaram-se, também, duas edições de 2020 do ‘Boletim Cofin/CNS’ – a de 30/06/20202222 Funcia F, Benevides R, Ocké-Reis. Boletim Cofin/CNS 2020/06/30. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2020. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
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e a de 31/12/20202323 Funcia F, Benevides R, Ocké-Reis. Boletim Cofin/CNS 2020/12/31. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2021. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
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– e a edição de 31/05/20212424 Funcia F, Benevides R. Boletim Cofin/CNS 2021/05/31. In: Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 17, de 26 de julho de 2021. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1920-recomendacao-n-017-de-26-de-julho-de-2021.
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. Esse Boletim foi concebido e desenvolvido para subsidiar a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) no processo de monitoramento e avaliação do financiamento e da execução orçamentária e financeira das ações e serviços de saúde para o enfrentamento da pandemia realizadas pelo MS.

As três edições citadas foram escolhidas por apresentarem dados e informações correspondentes ao período de crescimento do número de casos e mortes por Covid-19 em 2020 e 2021 e à situação de encerramento do ano de 2020, possibilitando uma avaliação retrospectiva.

Resultados e discussão

A Lei Orçamentária de 2020 da União não previa recursos para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, uma vez que essa necessidade surgiu a partir de fevereiro de 2020, portanto, depois de feita a programação das despesas com ASPS no orçamento federal. A combinação do reconhecimento do estado de calamidade pública com a flexibilização das regras fiscais para o exercício de 2020 pelo Congresso Nacional permitiu a alocação de recursos orçamentários, principalmente por meio da abertura de créditos adicionais extraordinários para o MS, a maior parte para as modalidades ‘aplicação direta’ e ‘transferências para estados, Distrito Federal e municípios’.

Porém, enquanto o número de casos e mortes provocadas pelo Covid-19 crescia significativamente, como se deu até meados de 2020 e voltando a crescer a partir do final daquele mesmo ano, a prioridade governamental era o atendimento político para a construção de uma base parlamentar de apoio, o que retardou, inclusive, a alocação de recursos financeiros destinados ao combate à pandemia para envio aos fundos estaduais e municipais de saúde. Sobre tais fatos, duas matérias publicadas na mídia servem de exemplo: (i) “Covid-19: Pazuello adia decisão sobre entregar R$10 bilhões a gestores do SUS ou Centrão”2525 Covid-19: Pazuello adia decisão sobre entregar R$ 10 bi a gestores do SUS ou Centrão. O Estado de São Paulo. 2020 jun 18. [acesso em 2020 jun 26]. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,covid-19-pazuello-adia-decisao-sobre-entregar-r-10-bi-a-gestores-do-sus-ou-centrao,70003337686.
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; e (ii) “Major Olímpio diz que governo está fazendo ‘toma lá dá cá’ com dinheiro do combate à Covid-19”2626 Major Olímpio diz que governo está fazendo ‘toma lá dá cá’ com dinheiro do combate à Covid-19. Portal G1. Blog da Natuza Nery. 2020 jul 24. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/natuza-nery/post/2020/07/24/major-olimpio-diz-ter-recebido-do-governo-oferta-de-liberacao-de-recursos-da-covid-19.ghtml.
https://g1.globo.com/politica/blog/natuz...
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De fato, segundo Funcia et al.2222 Funcia F, Benevides R, Ocké-Reis. Boletim Cofin/CNS 2020/06/30. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2020. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
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, dos R$39 bilhões disponíveis para o enfrentamento da Covid-19 pelo MS, a maior parte estava sem uso no orçamento até 30.6.2021, sendo 73,5% para aplicação direta do MS, 65,6% para transferência financeira aos municípios e 58,7% para transferência financeira aos estados e Distrito Federal. As causas disso podem estar relacionadas, de maneira combinada, à inexistência de uma coordenação nacional para articular o enfrentamento da Covid-192727 Massuda A, Malik AM, Vecina Neto G, et. al. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPE.BR. 2021 [acesso em 2021 dez 27]; 19(esp):735-744. Disponível em: http://cebes.fw2web.com.br/wp-content/uploads/2021/10/FGV-EAESP-Falta-de-coordenacao-no-Ministerio-da-Saude-foi-determinante-para-colapso-do-SUS-durante-a-pandemia.pdf.
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e à demora no acréscimo de recursos orçamentários para o MS2323 Funcia F, Benevides R, Ocké-Reis. Boletim Cofin/CNS 2020/12/31. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2021. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
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. Ou seja, a combinação de elementos de ‘negacionismo’ da doença com austeridade fiscal condicionou negativamente o enfrentamento da pandemia.

O primeiro recurso alocado ao MS para o enfrentamento da pandemia ocorreu por meio da Medida Provisória nº 924, de 13.3.2020, que autorizou o remanejamento orçamentário entre dotações do próprio Ministério, ou seja, mais de 30 dias após a divulgação internacional da existência do novo coronavírus, foi autorizada a retirada de recursos que seriam destinados a outras ações e serviços para o atendimento às necessidades de saúde da população, cuja programação foi baseada na situação epidemiológica e sanitária existente antes da Covid-19. A tabela 1 ilustra essa situação.

Tabela 1
Ministério da Saúde: Ações orçamentárias para enfrentamento da Covid-19 com recursos aprovados por Medida Provisória (posição em 31/12/2020)

Inicialmente, é oportuno destacar que esse ‘remanejamento orçamentário’ autorizado pela Medida Provisória nº 924, de 13.3.2020, comprometeu a execução orçamentária de outras despesas ASPS, conforme apontamentos e indicações de medidas corretivas do parecer conclusivo deliberado pelo CNS sobre o RAG 2020 do MS, cuja reprovação foi expressa na Resolução nº 663, de 30 de setembro de 2021. Essa situação ficou evidenciada também a partir da análise do cumprimento da aplicação mínima legal em ASPS: foram computadas despesas executadas para o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

A partir das informações da tabela 1, é possível constatar que quatro Medidas Provisórias não foram convertidas em Lei pelo Congresso Nacional no prazo previsto de 120 dias das respectivas edições, levando à perda dos saldos de recursos não empenhados. Trata-se de mais uma evidência de que não houve priorização governamental junto aos parlamentares para essa conversão, o que estava em consonância com a prática do negacionismo, em combinação com a lógica da austeridade fiscal com foco na redução das despesas primárias.

Nessa mesma tabela, em 31.12.2020, consta a existência de saldos ou recursos não empenhados, no valor de R$21,6 bilhões, referentes às Medidas Provisórias nº 1.004, de 24.9.2020, e nº 1.015, de 17.12.2020, ambas destinadas a despesas com vacinas para proteção da população contra a Covid-19. Apesar da flexibilização das regras fiscais, esses créditos foram abertos somente no último quadrimestre de 2020, o maior deles somente na segunda quinzena de dezembro de 2020, o que possibilitou a reabertura desses créditos para execução em 2021 dos respectivos saldos existentes para a mesma finalidade originalmente autorizada.

Se esses aspectos analisados anteriormente revelam que a utilização dos recursos para enfrentamento da Covid-19 pelo MS foi lenta e gradual, os gráficos 1 a 4 ilustram essa revelação a partir da execução orçamentária e financeira dos recursos destinados ao enfrentamento da Covid-19 durante o período de abril a dezembro de 2020.

O gráfico 1 apresenta essa execução com os valores consolidados de todas as modalidades de aplicação que integravam a ação orçamentária 21C0 no órgão MS, criada para a alocação de recursos destinados ao enfrentamento da pandemia.

Gráfico 1
Ministério da Saúde: execução orçamentária e financeira da ação orçamentária 21C0 (Enfrentamento da Covid-19) – Total consolidado (em R$ bilhões)

Gráfico 2
Ministério da Saúde: execução orçamentária e financeira da ação orçamentária 21C0 (Enfrentamento da Covid-19) – Aplicação direta (em R$ bilhões)

Gráfico 3
Ministério da Saúde: execução orçamentária e financeira da ação orçamentária 21C0 (Enfrentamento da Covid-19) – Transferência estados/Distrito Federal (em R$ bilhões)

Gráfico 4
Ministério da Saúde: execução orçamentária e financeira da ação orçamentária 21C0 (Enfrentamento da Covid-19) – Transferência a municípios (em R$ bilhões)

O gráfico 2 ilustra a execução orçamentária e financeira dos recursos alocados para a aplicação direta pelo MS ao enfrentamento da Covid-19, a maior parte destinada para a compra de materiais, medicamentos, vacinas e insumos diversos de forma centralizada para distribuição para estados, Distrito Federal e municípios.

Os gráficos 3 e 4 apresentam os recursos orçamentários destinados às transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos estaduais e municipais de saúde com a finalidade de financiar as ações de combate à Covid-19.

Esses gráficos revelam que, durante o período de crescimento do número de casos e de mortes em decorrência da Covid-19, i.e., abril a julho de 2020, contraditoriamente, houve uma baixa execução orçamentária e financeira dos recursos alocados para esse fim, em termos consolidados, na ação orçamentária (gráfico 1) e nas três modalidades de aplicação que dispunham da maior parte dos recursos para as despesas ASPS de enfrentamento da pandemia (gráficos, 2, 3 e 4), o que está em consonância com os exemplos das matérias jornalísticas citadas anteriormente.

Na medida que o empenho em cada modalidade de aplicação ocorreu majoritariamente a partir de julho e a liquidação desses empenhos, a partir de agosto de 2020, é possível concluir que a maioria das despesas com ASPS para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 foi executada depois que o pico dos casos e de mortes de 2020 já tinha sido atingido.

No caso da modalidade de aplicação direta do MS (gráfico 2) dos cerca dos R$11 bilhões autorizados para empenhos até 30.6.2021, aproximadamente R$8 bilhões não tinham sido utilizados. Esses recursos deveriam ter sido ser destinados, por exemplo, para compras centralizadas de medicamentos, materiais e equipamentos – que, pela escala ampliada, possibilitariam preços mais vantajosos e redução de fraudes – para distribuição às unidades de saúde estaduais e municipais e/ou para parcerias para o desenvolvimento e produção de vacinas a fim de iniciar o processo de imunização no final de 2020, como ocorreu em outros países.

Além disso, na medida que cerca de R$27 bilhões, dos R$39 bilhões, eram recursos orçamentariamente alocados até 30.6.2020 para as modalidades de aplicação ‘Transferência a Estados e Distrito Federal’ e ‘Transferência a Municípios’2222 Funcia F, Benevides R, Ocké-Reis. Boletim Cofin/CNS 2020/06/30. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2020. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
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, o caráter retardatário, lento e gradual dessa execução prejudicou o financiamento dessas e de outras despesas com ASPS nos estados, Distrito Federal e municípios. Diante da necessidade da comprovação da existência de recursos orçamentários previamente à realização dos processos licitatórios para aquisição de medicamentos, materiais, serviços, equipamentos e obras, o enfrentamento da Covid-19 exigiu um esforço concentrado de ação desses entes subnacionais no período de abril a junho de 2020, enquanto a maior parte dos recursos do Fundo Nacional de Saúde para esse fim foi transferida nos meses de julho e agosto.

Em resumo, é possível concluir que o caráter reativo e retardatário da execução orçamentária e financeira dos recursos para o enfrentamento da Covid-19 pelo MS evidenciaram a combinação de falta de planejamento de gestão, expresso numa coordenação nacional mínima e insuficiente para a gravidade da situação sanitária, com interesses políticos e econômicos contrários ao interesse público, uma vez que houve a priorização tanto da negociação para obtenção de apoio parlamentar no Congresso como da manutenção da política de austeridade fiscal focada na redução das despesas primárias e da dívida pública e de negacionismo sanitário.

A omissão política e gerencial do MS no enfrentamento da pandemia da Covid-19 ocorreu também no enfrentamento da segunda onda da Covid-19 em 2021, que foi detectada pelos especialistas a partir de novembro de 2020. Primeiramente, não foi alocado nenhum centavo de recurso no MS para o enfrentamento da pandemia na Lei Orçamentária 2021 da União. Depois, durante o primeiro quadrimestre de 2021, enquanto o número de casos e mortes2828 Agência Brasil. Covid-19: Brasil tem 403,7 mil mortes e 14,6 milhões de casos. Agência Brasil. 2021 abr 30. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-04/covid-19-brasil-tem-4037-mil-mortes-e-146-milhoes-de-casos.
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cresceu muito mais do que na primeira onda de 2020, a execução orçamentária e financeira para as ações de enfrentamento da Covid-19 foi menor que a do último quadrimestre de 2020, à exceção da alocação para vacinas. Conforme análise de Funcia e Benevides2424 Funcia F, Benevides R. Boletim Cofin/CNS 2021/05/31. In: Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 17, de 26 de julho de 2021. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1920-recomendacao-n-017-de-26-de-julho-de-2021.
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, houve redução de 63% e de 17% dos recursos transferidos respectivamente para os municípios e para os estados e Distrito Federal. O documento dos autores subsidiou a avaliação do CNS sobre a prestação de contas do gestor federal do SUS no primeiro quadrimestre de 2021, que, por sua vez, resultou na Recomendação nº 0172929 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 17, de 26 de julho de 2021. Recomenda ao Exmo. Sr. Presidente da República a adoção de medidas corretivas urgentes que promovam a execução orçamentária e financeira do Ministério da Saúde com celeridade. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1920-recomendacao-n-017-de-26-de-julho-de-2021.
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, de 2021, do CNS.

Segundo Funcia e Benevides2424 Funcia F, Benevides R. Boletim Cofin/CNS 2021/05/31. In: Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 17, de 26 de julho de 2021. [acesso em 2021 out 31]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1920-recomendacao-n-017-de-26-de-julho-de-2021.
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, durante o primeiro quadrimestre de 2021, a primeira Medida Provisória (MP) para autorizar a abertura de créditos adicionais extraordinários para alocar recursos orçamentários para a realização de despesas com ASPS para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, exceto para a vacinação, ocorreu somente em 24.2.2021, pela MP nº 1032, no valor de R$2,9 bilhões, diante de um cenário instalado de segunda onda de casos e mortes em número superior ao da primeira onda de 2020. Enquanto a situação sanitária se agravava durante esse quadrimestre, houve somente duas novas autorizações para abertura de créditos adicionais extraordinários para alocação de recursos para o combate à pandemia: em 30.3.2021, no valor de R$5,3 bilhões, pela MP nº 1041, e em 16.4.2021, no valor de R$2,7 bilhões, pela MP nº 1043.

A repetição, em 2021, do caráter retardatário, lento e gradual da execução orçamentária e financeira ocorrida em 2020 evidencia a existência de uma espécie de ‘padrão’ de gestão orçamentária e financeira do MS para o enfrentamento da Covid-19 condicionada pelo binômio ‘negacionismo-austeridade fiscal’.

A reversão estrutural desse cenário depende da alteração da política econômica e da revogação da EC 95/20163030 Moretti B, Ocké C, Aragão E, et al. Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos. Carta Capital. 2020 mar 29. [acesso em 2020 jul 31]. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/mudar-a-politica-econo%CC%82mica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/.
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, o que pode ocorrer tanto pela aprovação do Congresso Nacional da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 36/2020 como pelo julgamento do Supremo Tribunal Federal das ações diretas de inconstitucionalidade referentes às Emendas Constitucionais 8622 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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e 9522 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil [Atualizada com as Emendas até 2021]. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. [acesso em 2017 mar 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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Medidas governamentais são necessárias, também, para aumentar a capacidade da arrecadação pública mediante uma reforma tributária mais centrada nos ganhos de patrimônio, renda e riqueza, desonerando, mesmo que gradativamente, a produção e o consumo, bem como uma gestão mais eficiente e eficaz da dívida ativa federal, que tem arrecadado menos de 1% do estoque em 20193131 Alves R, Alves H, Vignoli F, et al. Avaliação da dívida ativa da União e dos municípios do Grande ABC. 14ª Carta de Conjuntura do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS (Conjuscs). 2020. [acesso em 2021 dez 27]. Disponível em: https://www.uscs.edu.br/boletim/369.
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Considerações finais

O financiamento do SUS é caracterizado pelo subfinanciamento crônico do sistema desde a sua criação a partir da CF 88. Mas seu desfinanciamento se aprofundou com a promulgação da EC 95, instrumento da política de austeridade fiscal focado na redução tanto das despesas primárias da União como da dívida pública federal. Essa situação comprometeu negativamente o financiamento das políticas sociais antes da pandemia da Covid-19, inclusive da saúde.

No ano de 2020, mesmo com a flexibilização das regras fiscais aprovada pelo Congresso Nacional em razão do estado de calamidade pública decretado por ocasião da Covid-19, o governo federal retardou tanto a alocação de recursos orçamentários adicionais para o MS como foi responsável pela baixa execução desses recursos para o enfrentamento da pandemia.

O papel desempenhado pelo governo federal na gestão tripartite do SUS para o combate à Covid-19 em 2020 representou o descumprimento das diretrizes constitucionais e legais do SUS sob a ótica do planejamento ascendente, em consonância com o negacionismo que se observava na condução da resposta à pandemia. A execução orçamentária e financeira dos recursos federais do SUS para essa finalidade pode ser caracterizada como reativa e retardatária tanto em 2020 como em 2021, durante a segunda onda da Covid-19 que se instalou no Brasil no início de 2021, elevando casos e mortes em comparação ao ano de 2020.

O cenário de 2021 aprofundou o desfinanciamento federal do SUS, inclusive para as ações e serviços de saúde voltados ao enfrentamento da pandemia da Covid-19, em razão da retomada das regras fiscais flexibilizadas em 2020 e ausência de programação orçamentária para o enfrentamento da pandemia. A solução adotada foi tratar essa pandemia como uma despesa ‘imprevista e emergencial’ a ser financiada com recursos de créditos extraordinários.

Trata-se de procedimento que reproduziu o caráter reativo e retardatário da alocação de recursos e da execução orçamentária e financeira no combate à Covid-19 verificado em 2020, porque tais recursos são disponibilizados em ‘conta-gotas’, inviabilizando o planejamento tripartite do SUS, mas em consonância com a política econômica baseada na austeridade fiscal, cujas medidas são focadas no controle dos gastos públicos pelas regras da EC 95, inclusive aqueles destinados ao atendimento das necessidades de saúde da população.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2021
  • Aceito
    27 Jan 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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