Vulneração social e problemas ético-políticos transversais à saúde bucal na Atenção Primária à Saúde

Social vulnerability and ethical-political problems across oral health in Primary Health Care

Doris Gomes Leandro Ribeiro Molina Mirelle Finkler Sobre os autores

RESUMO

A partir de um levantamento de problemas éticos, base para a construção e validação de um Inventário de Problemas Éticos na Atenção Primária à Saúde Bucal, objetivou-se aprofundar a análise daqueles problemas considerados transversais à assistência e relacionados ao contexto de vulneração social. O levantamento foi resultado de uma pesquisa qualitativa, com participação de 14 profissionais de equipes de saúde bucal no contexto da Atenção Primária à Saúde na região metropolitana de Florianópolis-SC, com dados coletados por meio de entrevistas, submetidos à análise de conteúdo e interpretados à luz da bioética clínica amplificada e outros referenciais da bioética social. Dentre os diferentes problemas ético-políticos desvelados, os relacionados à compreensão/comunicação com usuários e à violência estrutural e narcodependência são discutidos sob olhar sócio-histórico da realidade brasileira, buscando ampliar sua compreensão para a qualificação da atuação profissional. Tal análise conclui pela necessidade de uma mudança cultural em direção a uma clínica ampliada que busque problematizações interdisciplinares voltadas ao enfrentamento dos contextos de vulneração social e programática, construindo vínculos potencializadores de empoderamento e diálogo, sensibilizados por valores solidaristas e pela reflexividade ética do trabalhador da saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Ética; Bioética; Saúde bucal; Atenção Primária à Saúde; Vulnerabilidade social

ABSTRACT

From a base survey of ethical problems for construction and validation of an Inventory of Ethical Problems in Primary Care for Oral Health, the objective was to deepen the analysis of those problems that are transversal to care and related to the context of social vulnerability. The survey was the result of qualitative research, with participation of 14 oral health professionals in the context of Primary Health Care in the metropolitan region of Florianópolis-SC, Brazil, and the data collected through interviews were submitted to content analysis and interpreted in the light of amplified clinical bioethics and other references of social bioethics. Among the different ethical-political problems unveiled, those related to understanding/communication with patients and the structural violence and narco-dependence are discussed under a socio-historical perspective of Brazilian reality, seeking to broaden their understanding for the qualification of the professional performance. This analysis concludes by the need for a cultural change towards an expanded clinic that seeks interdisciplinary problematizations aimed at coping with social and programmatic vulneration contexts, building empowerment and dialogue potentiating links, sensitized by solidarity values and the ethical reflexivity of the health worker.

KEYWORDS
Ethics; Bioethics; Oral health; Primary Health Care; Social vulnerability

Introdução

Distinta do campo biomédico hospitalocêntrico, a Atenção Primária à Saúde (APS) caracteriza-se pela predominância de tecnologias relacionais (não-materiais), com mudanças nos processos de trabalho em busca da qualificação e humanização da assistência. Pela importância que adquire na estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), conflitos persistentes entre trabalhadores, gestores, usuários, famílias e comunidades geram problemas éticos importantes, muitas vezes invisibilizados por estarem emaranhados ao cotidiano da clínica e da gestão. Desperta-se, então, a necessidade de desvelamento destes problemas e de construção de espaços coletivos de reflexividade ética, voltados ao reposicionamento ético-político dos trabalhadores, corresponsabilizando-os pela defesa dos direitos humanos e sociais enquanto cidadãos, usuários e trabalhadores11 Zoboli ELCP. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma Bioética clínica amplificada. Mundo saúde. 2009; 33(2):195-204.,22 Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Vulneração programática como categoria explicativa dos problemas éticos na atenção primária à saúde. Trab. educ. saúde. 2018; 16(3):935-53..

A construção de uma ética aplicada aos problemas concretos e cotidianos do SUS dá origem a um ramo da bioética social denominado bioética clínica amplificada11 Zoboli ELCP. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma Bioética clínica amplificada. Mundo saúde. 2009; 33(2):195-204. – ancorada teoricamente na bioética deliberativa de Diego Gracia e na ética do cuidado, tanto quanto em preceitos epistemológicos da saúde coletiva33 Junges JR, Zoboli ELCP. Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas. Ciênc. Saúde Colet. 2012; 17(4):1049-60.. Partindo desse referencial, um grupo de pesquisadores tem se empenhado em traçar perfis confiáveis das questões éticas que permeiam a APS, através da construção e validação de um Inventário de Problemas Éticos na Atenção Primária à Saúde (IPE-APS)44 Junges JR, Zoboli ELCP, Schaefer R, et al. Validação da compreensibilidade de um instrumento sobre problemas éticos na atenção primária. Rev. Gaúcha Enferm. 2014; 35(1):148-56.,55 Junges JR, Zoboli ELCP, Patussi MP, et al. Construção e validação do instrumento “Inventário de problemas éticos na atenção primária em saúde”. Rev. Bioét. 2014; 22(2):309-17.. Seguindo diversos estudos de validação do IPE-APS que já foram desenvolvidos em diferentes realidades de trabalho, buscou-se construir um IPE-APS específico dos problemas éticos vivenciados na Saúde Bucal (SB). Como primeira etapa desta construção, foi desenvolvido um levantamento de problemas éticos junto aos profissionais da SB, incluindo Cirurgiões-Dentistas (CD), Auxiliares de Saúde Bucal (ASB) e Técnicos de Saúde Bucal (TSB) em uma região metropolitana do sul do Brasil, dando origem ao IPE-APS-SB66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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O levantamento apontou 32 problemas éticos, corroborando as assertivas de que:

  1. A constituição dos problemas éticos na clínica de SB está naturalizada nas relações e circunstâncias comuns e cotidianas da atenção à saúde, não pautadas em situações limite, emergenciais ou dilemáticas11 Zoboli ELCP. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma Bioética clínica amplificada. Mundo saúde. 2009; 33(2):195-204.,66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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  2. Os problemas éticos na SB, estando entrelaçados a questões organizacionais, estruturais e de poder, assumem características de problemas ético-políticos66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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  3. O aparato institucional, bem como a estrutura dos serviços de saúde, não potencializa apoio aos trabalhadores nas situações de conflitos éticos, no âmbito legal, institucional, nem na construção de espaços voltados à percepção, análise e solução de tais problemas no cotidiano11 Zoboli ELCP. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma Bioética clínica amplificada. Mundo saúde. 2009; 33(2):195-204.,66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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  4. Esses problemas não desvelados ou não sendo trabalhados coletivamente no serviço, transformam-se em sofrimento moral e precarização subjetiva do trabalhador da saúde22 Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Vulneração programática como categoria explicativa dos problemas éticos na atenção primária à saúde. Trab. educ. saúde. 2018; 16(3):935-53.,77 Gomes D, Ramos FRS. Solidariedade, aliança e comprometimento do profissional da saúde nas práticas do Sistema Único de Saúde (SUS): um debate bioético. Interface. 2015; 19(52):9-20.;

  5. A deliberação coletiva precisa ser mais bem compreendida no conjunto dos mecanismos de controle social, como participação democrática e cogestão em equipe, confluindo para um novo patamar deliberativo ético-político junto ao planejamento estratégico situacional;

  6. No processo de desvelamento dos problemas éticos na clínica de SB, foram identificados problemas transversais à assistência odontológica, distintos dos problemas estruturais ou administrativos do sistema de saúde66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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    ,88 Vidal SV, Motta LCS, Gomes AP, et al. Problemas bioéticos na Estratégia Saúde da Família: reflexões necessárias. Rev. Bioét. 2014; 22(2):347-57..

A identificação de problemas transversais, não restritos ou circunscritos ao campo da SB, percebidos pelos profissionais como causadores importantes de falhas na produção do diálogo e do vínculo com o usuário, foi marcantemente relacionada a territórios-comunidades específicos. Atribui-se uma vulneração de comunidades como uma vulnerabilidade concreta a sujeitos, consubstanciada em desigualdades socioeconômicas e culturais, que caracterizam indivíduos e grupos vulnerados99 Sotero M. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética. Rev. Bioét. 2011; 19(3):799-817.. Além disso, somam-se as falhas encontradas na concretização das políticas públicas voltadas à equidade e no predomínio de uma racionalidade instrumental que inviabiliza ou dificulta a comunicação.

Considerando os problemas ético-políticos transversais apontados pelos profissionais no referido levantamento de problemas éticos, este manuscrito tem por objetivo aprofundar um debate acerca da vulneração social suscitada no desvelamento destes problemas, buscando ampliar sua compreensão para a qualificação da atuação profissional.

Material e métodos

A primeira etapa para construção de um IPE-APS voltado à SB consistiu em um levantamento de problemas éticos66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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. Esta pesquisa descritiva foi de abordagem qualitativa, feita na região metropolitana de Florianópolis-SC. Iniciou-se com a autorização da Secretaria Municipal de Saúde de todos os quatro municípios envolvidos e a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com parecer número 1.789.872. A coleta dos dados foi conduzida entre dezembro de 2016 e 2017 pela pesquisadora principal que é cirurgiã-dentista, profissional há 19 anos da APS, doutora em Filosofia da Enfermagem e em Odontologia. As entrevistas semiestruturadas foram guiadas por um roteiro previamente elaborado a partir dos problemas éticos do IPE-APS referência, gravadas e, posteriormente, transcritas. A seleção dos participantes deu-se a partir da indicação das coordenações de SB dos municípios, seguindo o método bola de neve, no qual os participantes iniciais foram solicitados a indicar novos participantes, até atingir o critério de saturação ou repetição dos dados.

Foram entrevistados 14 profissionais da APS (12 mulheres e 2 homens), dos quais nove atuam no modelo Estratégia Saúde da Família (ESF) (4 CD, 2 TSB, 3 ASB) e cinco no modelo tradicional (3 CD e 2 ASB). Os participantes foram convidados via contato telefônico ou pessoalmente, sem nenhuma recusa, manifestando consentimento livre e esclarecido após conversa acerca dos objetivos e procedimentos de pesquisa. Tinham idades variadas e atuavam há mais de um ano na função. Cada profissional foi entrevistado uma única vez, em ambiente reservado, com duração média de 30 minutos. As entrevistas foram submetidas à Análise de Conteúdo1010 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70: 2016.. Desvelou-se uma importante dimensão política nos problemas éticos levantados, reconfigurados em 32 problemas e seis categorias, já apresentados e discutidos66 Gomes D, Zoboli ELCP, Finkler M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da atenção primária à saúde. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 1]; 29(2):e290208. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010373312019290208.
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Na configuração dos problemas éticos, alguns foram considerados transversais à assistência odontológica, não contidos nas questões de funcionamento, estrutura e organização do sistema de saúde. Por essa característica de transversalidade, buscou-se um aprofundamento na sua análise à luz da bioética clínica amplificada e outros referenciais da bioética social, bem como sob olhar sócio-histórico da realidade brasileira, agrupando-os em duas categorias interconectadas: 1. Problemas relacionados à cognição de usuários socialmente vulnerados; 2. Problemas relacionados à violência estrutural e narcodependência.

Resultados e discussão

Problemas relacionados à cognição/compreensão e comunicação com usuários socialmente vulnerados

Não sei se chega a ser um problema ético, mas é da comunidade, da compreensão sabe, o paciente não entender, no entendimento e na comunicação, complica bastante. (CD6).

A população desse Centro de Saúde entende as orientações, alguma dificuldade, mas menos do que noutra experiência que eu tive… lá tinha problema cognitivo mesmo, sabe quando você fala e a pessoa te olha, parece que você está falando inglês. (CD5).

Uma determinada área de fragilidade social, ela é vista dessa forma, e naturalmente até como uma forma de agir, de que forma que a gente vai abordar essa área já que ela tem uma vulnerabilidade social maior, não como uma forma de preconceito, mas como uma forma de enfrentamento. (CD1).

Os problemas percebidos por alguns profissionais como cognitivos – que assumem a forma de baixa compreensão, entendimento e comunicação na relação trabalhador-usuário – caracterizam-se como problemas transversais à assistência, em indivíduos pertencentes a determinados territórios considerados socioeconômico e culturalmente vulnerados ou segregados, subsumidos à escassez de valores humanizadores que passam por acesso à cultura, educação, informação, capacidade de pensamento prospectivo e reflexividade crítica. São entendidos não como de responsabilidade ou culpa individualizada, mas como parte de uma realidade específica, resultado de importantes desigualdades socioeconômicas e culturais, demandando retrabalho e causando sofrimento ao profissional, especialmente pela dificuldade de uma comunicação ativa. Busca-se compreender o problema, considerando a persistência no atendimento público, de uma escuta profissional classista, que se interessa pelo que quer ouvir, onde o usuário ‘SUS-dependente-pobre’ teria menos estudo, menor conhecimento dos seus direitos, não precisaria ser ouvido ou ter sua vontade respeitada, devendo ‘obedecer’ sob a coação da urgência, da falta de opção e da fila de espera. Sob o signo da humanização em saúde voltada à excelência clínica profissional, especialmente incorporada nos novos processos de trabalho da ESF, aponta-se como desafio a corresponsabilização do trabalhador com o usuário-família-comunidade, com compartilhamento de saberes e fazeres, eliminação de práticas discriminatórias, construção do vínculo, autonomia e escuta às singularidades.

Assim, a dificuldade detectada de compreensão e entendimento do sujeito-usuário que obstaculiza a comunicação, suscita a formulação de estratégias de enfrentamento para além das relações contratuais instrumentais ainda hegemônicas no modelo biomédico. A profunda desigualdade socioeconômica e cultural brasileira fazem com que a dialogicidade e o senso de comunidade (solidariedade) formadores da identidade cidadã, percam força para uma cultura hegemônica (ideologia da modernidade), que inferioriza e violenta silenciosamente grupos subjugados, ocasionando um abismo social e ético que leva à necessidade do seu desvelamento, bem como de uma discriminação positiva que garanta uma cidadania jurídica e política.

A noção de calculabilidade, raciocínio prospectivo, autocontrole e trabalho produtivo que fundamentam modernamente o reconhecimento social e a autoestima – tendo por base o self pontual construtor desta concepção contingente e historicamente específica de ser humano –, precisa ser superada por novos valores e novas escalas valorativas, colocando na pauta bioética a necessária compreensão deste fenômeno. A internalização de valores socialmente dados funciona como uma forma mascarada de dominação e faz parte de um condicionamento pré-reflexivo automático, emotivo, espontâneo, ‘inscrito no corpo’, de ações, escolhas (gosto ou estética) e disposições (vontades ou desejos) hierarquizantes (classificadores). A interrogação sobre a valoração hierárquica naturalizada nos pactos democráticos liberais do capitalismo avançado e periférico, acompanhada da construção de novos valores e valoração, passa pelo desmascaramento da ‘ideologia da igualdade de oportunidades’ ou ‘ideologia do desempenho’ – pautada na tríade meritocrática da qualificação, posição e salário –, desvelando o abismo existente entre classes e estamentos sociais, na busca de uma real universalidade inclusiva1111 Souza J. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: LeYa: 2018..

Segundo Jessé Souza1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017., o cerne da questão encontra-se na necessidade de superação do modus operandi escravista do Brasil-colônia, responsável pela coisificação ou animalização de pessoas, não ultrapassado por ações afirmativas e inclusivas no modelo capitalista realizado no País. Além da negação do capital econômico desde o princípio da vida, o capital cultural é também cotidianamente negado às classes empobrecidas. Manteve-se como pilar da sociedade brasileira um racismo e uma inferiorização pré-reflexivos, invisibilizados por rígida hierarquização valorativa que atua como dominação simbólica subpolítica.

A fraca reação da sociedade a esta realidade segregadora, hegemonizada pela concepção racista de mundo, atua nestas populações retirando sua autoconfiança e autoestima, transformada em carência cognitiva e afetiva, e inaptidão para a competição social, acompanhadas de alta taxa de analfabetismo funcional e cultural. A própria culpabilização do indivíduo por seu fracasso social, partindo-se de uma autopercepção da ignorância e da preguiça como adjetivos individuais, acompanhada do desprezo social, conforma uma gama de indivíduos considerados menos dignos, representantes do que há de mais vazio e mais baixo na escala valorativa do ocidente, colocados numa posição em relação a qual todas as outras classes e estamentos sociais podem diferenciar-se positivamente1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017..

Sob o discurso do acesso universal ao conhecimento e, por conseguinte, à ascensão socioeconômica por meio de mérito pessoal, oculta-se o monopólio que as classes dominantes têm sobre a aquisição destes requisitos culturais. Estímulos da capacidade intelectiva e da autoestima desde a infância, ou sua negação, favorecem indivíduos ao sucesso ou insucesso na escola e na carreira. A falácia da meritocracia esbarra na necessidade de esforço, concentração, disciplinamento, autocontrole e tempo disponível para a construção de conhecimentos, além de investimento para o desenvolvimento do interesse em um futuro bem-sucedido (capacidade de formulação de um pensamento prospectivo), não pautado no esforço próprio, mas no privilégio herdado de quem pode comprar tempo livre e tem prestígio social desde o berço, investidos nesta conquista1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017..

A revolução burguesa brasileira, amalgamada a forças retrógradas, foi incapaz de fomentar a democracia liberal, condenando o país ao subdesenvolvimento interno e a uma subserviência cega ao capital externo, permitindo às elites nacionais manterem seus privilégios excludentes1313 Fernandes F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1981.. O antigo ódio devotado aos escravos é, na sociedade moderna, transformado em ódio ao pobre, considerado um sub-cidadão. Um fenômeno denominado por Adela Cortina como ‘aporofobia’, uma herança histórica que se mantém à custa da desumanização, camada considerável de seres humanos não tratados como pessoas concretas, mas identificados a um grupo: um refugiado, um mendigo1414 Soares FJP. Aporofobia e a ética da corresponsabilidade e da hospitalidade cosmopolita em Adela Cortina. RBB, Rev. Bras. Bioét. 2018 [acesso em 2021 set 1]; 14(e10):1-13. Disponível em: https://doi.org/10.26512/rbb.v14i0.16729.
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Justifica-se, assim, uma violência institucional, estrutural e policial intimidadora: matar pobre e preto não é socialmente percebido como um ato criminoso, mas naturalizado, como direito de classe, para manutenção do patrimônio e livre consumo. Desnuda-se a face estruturalmente violenta da sociedade brasileira, tornando a meritocracia ficção, e as leis, junto com o conhecimento para o desempenho produtivo, inacessíveis aos pobres. O aprendizado social e moral em direção a uma sociedade inclusiva é transformado em uma ânsia competitiva por ascensão social, especialmente ampliada nas sociedades hedonistas contemporâneas, onde o conhecimento (especialmente técnico e hiper especializado) é buscado como competência necessária ao desempenho produtivo e ao poder, além de fator de ‘embranquecimento’. Assim, cresce o preconceito que marginaliza e oprime, junto com os ressentimentos de classe, construídos sobre perdas de direitos constitucionais e humanos, conformando uma violência simbólica que se concretiza quotidianamente nas estatísticas oficiais1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017..

Na mesma mão da invisibilidade desta realidade segregadora, um processo massivo e contundente de (des)informação assume cada vez mais seu viés de parcialidade a favor dos interesses econômicos da elite financeira nacional/internacional (mercado), especialmente desenvolvido através da grande mídia jornalística, televisiva e de conglomerados na internet, associada, também, a um movimento religioso neopentecostal. Seu poder ideológico-político realiza-se na intimidação, docilização e alienação social, política e cultural, onde o discurso da competência determina quem tem o direito de comunicar (especialista) e quem tem a obrigação de ouvir por nada saber. Esta indústria cultural, base da sociedade do espetáculo, construída sobre clichês, estereótipos, vantagens pessoais e chavões, evita qualquer tipo de racionalidade plural que permita a união entre verdade e justiça, prevalecendo interesses individuais narcisistas, em relações contratuais de comercialização de todos os aspectos da vida, inclusive da saúde1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017.,1515 Chauí M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2014..

A ideologia da competência (cada um por si e por seu mérito), somada à alienação sociopolítica e à indiferença ao outro e ao social, inviabiliza a democracia participativa e a cidadania, asseguradas pela efetivação real de direitos sociais1515 Chauí M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2014.. A ideia de comunidade e espaço comum (público), acesso a conhecimento, emancipação e transformação dos sujeitos, que tornam os membros da sociedade com poder equivalente, é sopesada pela neocolonização da esfera pública pelo dinheiro. A alienação de si mesmo na relação com o todo é sustentada subjetivamente pelo medo, insegurança e pânico; criminalização de protestos e movimentos sociais organizados; e ‘normalização’ de hierarquias e obediências voltadas à docilização e segregação social de parcela ‘indesejada’ da população. Biopolíticas segregadoras de populações estigmatizadas como marginais e violentas se constroem associadas a um racismo de Estado ou tanatopolítica, potencializadores da morte física ou cidadã do indivíduo pertencente a uma raça inferior, com uma cultura de menor valor – onde encaixam-se os usuários e traficantes de drogas ilícitas, jovens em conflito com a lei, moradores de rua, crianças abandonadas, indígenas, negros e pobres de periferia, entre outros convexos da população ‘normal’ ou ‘de bem’, produtiva e sadia1212 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Lisboa/Portugal: Leya; 2017.,1616 Caponi SN. Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa. Saude soc. 2018; 27(2):298-310.. Mantém-se a aparência de direitos garantidos na lei, enquanto são negados na prática.

Na saúde, quando se trata o usuário de forma desigual, não inclusiva e desumana, naturalizam-se modos racistas e aporofóbicos de agir. Análoga à categoria de vulneração social, delineia-se a vulneração programática da rede de saúde que envolve os copartícipes do cuidado, o usuário e o profissional. Esta vulneração se refere às consequências estruturais no âmbito do próprio sistema de saúde que leva uma automatização no cuidado; fragmentação no acesso às redes de atenção, causando descontinuidade do atendimento e falta de motivação do usuário; além de uma forte sensação de fragilização nos profissionais, derivada da impotência para solucionar casos e da falta de protagonismo no atendimento22 Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Vulneração programática como categoria explicativa dos problemas éticos na atenção primária à saúde. Trab. educ. saúde. 2018; 16(3):935-53.. Os problemas de cognição do usuário vulnerado diminuem o potencial de clínica ampliada, planejamento estratégico e deliberação ético-política na atenção à saúde. Estimular mudanças relacionais potencializadoras de autonomia, sensibilizadas pela capacidade de reflexividade ética do trabalhador e pautadas em novos valores de libertação, solidariedade crítica e empreendedorismo social99 Sotero M. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética. Rev. Bioét. 2011; 19(3):799-817. para além das relações contratuais instrumentais do modelo biomédico, coloca na pauta bioética a necessária compreensão deste fenômeno.

Compreendendo essas dificuldades funcionais de comunicação com indivíduos e grupos em vulneração, vincula-se a necessidade de uma mudança cultural. Para romper muros invisíveis de alienação que dificultam ou impossibilitam a comunicação do profissional que não tem tempo ou vontade para construir uma escuta levando em conta o indivíduo em seu contexto de vida e suas singularidades; do usuário que tem entendimento simplificado de algo prescrito por uma linguagem técnica; ou do usuário portador de um analfabetismo funcional e cultural, faz-se necessário romper com:

  1. O modus operandi contratual do tipo liberal apoiado na racionalidade instrumental da biomedicina no ambiente da atenção público-estatal – mesmo que o contrato apareça ao mundo moderno como única relação possível entre indivíduos, mantendo o interesse econômico acima da cooperação, solidariedade e competência comunicativa;

  2. A culpabilização do usuário como construtor de barreiras à comunicação dialogada, onde predominam valores de hierarquização entre dominador e dominado, sábio e não sábio, com mera prescrição e manipulação da decisão;

  3. O descompromisso e a indiferença com o outro vulnerado como meio de evitar re-trabalho e sofrimento moral99 Sotero M. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética. Rev. Bioét. 2011; 19(3):799-817..

Problemas ético-políticos relacionados à violência estrutural e narco dependência

Infelizmente a violência bate na nossa porta vez ou outra. Recentemente a gente teve um problema com um paciente usuário de droga. Estava sob efeito psicoativo. Eu estava sem auxiliar, então não existiu acolhimento. Quando fui buscar o prontuário de papel, virei as costas, ele veio com bastante agressividade pra cima de mim. Pegou uma caneta Bic que estava na minha mesa e falou: ‘eu podia te matar com isso’, e botou para perto do meu pescoço, eu falei: ‘calma, vou te atender, cê vai sair daqui sem dor’. [...] ele saiu dali sem dor, mas a polícia veio e eu tive que tomar outra decisão: vou fazer o boletim de ocorrência? Contra essa pessoa que entrou aí vulnerável, com dor? (CD2).

A gente também atende presidiários em final de pena, muitos deles fazem trabalho aqui na UBS, nas creches… mas olha que coisa estranha: na hora que eles vão ser atendidos por nós, a comunidade solicita que eles sejam algemados. (CD2).

Às vezes até o paciente vem mais agressivo ou faltando o respeito, mas mesmo assim, a gente sempre tenta baixar a poeira. Às vezes vem alterado, sobre o efeito de drogas. (CD6).

A criança não queria ser atendida, daí a dentista falou: ‘eu só vou fazer se tu deixar’. Daí o pai achou ruim., se alterou bastante... é uma pessoa que a gente conhece, ele é drogado. (ASB4).

Apesar de ainda haver demanda por maior produção técnico-científica sobre a temática da violência e políticas públicas relacionadas, há muitos anos esse tema tem ganhado considerável visibilidade no Brasil, especialmente devido aos seus impactos socioeconômicos, inclusive no setor saúde. Mesmo ainda subnotificado, o fenômeno já é reconhecido como questão de saúde coletiva, além de importante indicador de qualidade de vida e Índice de Desenvolvimento Humano1717 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.,1818 Minayo MCS, Souza ER, Silva MMA, et al. Institucionalização do tema da violência no SUS: avanços e desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):2007-16.. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinala mudanças no perfil da violência, destacando grupos sociais mais vulneráveis como: pessoas com deficiências, crianças e adolescentes, idosos e mulheres1919 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência: homicídios por armas de fogo, 2016. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Cidadania, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Governo da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude (SNJ); Flacso Brasil; 2016.,2020 Budó MLD, Silva SO, Schimith MD, et al. Violência e vulnerabilidade: um panorama da produção científica. Saúde (Sta Maria). 2010; 36(1):15-22..

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o País ocupa o quinto lugar global em feminicídios resultantes da discriminação, violência sexual e machismo. Nos adolescentes, associa-se ao atraso escolar e antecedentes criminais, tráfico e uso de drogas, abuso de álcool, gravidez em meninas adolescentes, e praticada por familiares2121 Silva Filho CC. Educação para a paz na formação em saúde: diálogos e utopias em Paulo Freire. [tese]. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; 2017. 297 p.. Cita-se também a presença de conflitos em áreas de fronteiras agrícolas e disputas de terra. Além de preocupante seletividade racial nos homicídios por arma de fogo, com aumento entre negros mais que em brancos, manifestando estereótipos, preconceitos e racismo institucional2222 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, et al. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev. bras. epidemiol. 2017; 20(supl1):142-56., onde prevalece a masculinidade violenta, disponibilidade de armas, coerção e domínio de territórios na disputa pelo comércio ilegal de drogas, associado à impunidade2222 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, et al. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev. bras. epidemiol. 2017; 20(supl1):142-56.. Essa violência afeta diretamente a qualidade de vida e as condições de saúde das pessoas, quando do convívio cotidiano com assaltos, tiroteios, assassinatos e agressões, fazendo emergir, também, a capacidade de resiliência do trabalhador da saúde diante dos desafios de promover o cuidado2323 Santos MS, Silva JG, Branco JGO. O Enfrentamento à violência no âmbito da estratégia de saúde da família: desafios para a atenção em saúde. Rev Bras Promoç Saúde. 2017; 30(2):229-38.,2424 Marinho F, Passos VMA, França EB. Novo século, novos desafios: mudança no perfil da carga de doença no Brasil de 1990 a 2010. Epidemiol. Serv Saúde. 2016; 25(4):713-24..

Processos de trabalho em condições materiais e humanas negativas na saúde podem gerar situações degradantes e humilhantes, com reflexos sobre a saúde do trabalhador e a relação profissional-usuário2525 Almeida NR, Bezerra Filho JG, Marques LA. Análise da produção científica sobre a violência no trabalho em serviços hospitalares. Rev. bras. med. trab. 2017; 15(1):101-12.. Com locus nas atitudes de trabalhadores para com usuários, a violência é potencializada pela sobrecarga de trabalho, dificuldade e demora no acesso e falhas no acolhimento e escuta profissional2020 Budó MLD, Silva SO, Schimith MD, et al. Violência e vulnerabilidade: um panorama da produção científica. Saúde (Sta Maria). 2010; 36(1):15-22.,2525 Almeida NR, Bezerra Filho JG, Marques LA. Análise da produção científica sobre a violência no trabalho em serviços hospitalares. Rev. bras. med. trab. 2017; 15(1):101-12., corroborando os achados desse levantamento na SB. Ainda, constata-se que a violência praticada por usuários e acompanhantes aos trabalhadores acontece principalmente nos ambientes de urgência e emergência, predominando a agressão verbal, seguida de assédio moral, agressão física, assédio sexual e discriminação racial. A agressão verbal pode ocasionar sofrimento significativo e sentimentos como tristeza e raiva, problemas de saúde, diminuição do desempenho e satisfação no trabalho, entre outros.

Os trabalhadores da saúde acabam encarando a violência de maneira reduzida ou simbólica, localizada na esfera domiciliar e no foro íntimo das pessoas violentadas, levando a um julgamento de culpabilização do violentado e a uma atuação restrita, enquadrando-se aqui, também, os profissionais de saúde que sofrem violência2020 Budó MLD, Silva SO, Schimith MD, et al. Violência e vulnerabilidade: um panorama da produção científica. Saúde (Sta Maria). 2010; 36(1):15-22.. Para além dessa explicação localizada nos temperamentos e ações individuais ou no uso privado de substâncias como álcool e drogas, a complexidade da violência e de sujeitos caracterizados como ‘potenciais’ pode apontar uma profunda relação com a estrutura socioeconômica, política e ideológica, além de fenômeno histórico e cultural. Oriunda de mecanismos de controle social que ‘coisificam’ o outro, prevalece na sociedade moderna, especialmente na brasileira, a cultura de poderes autoritários construídos sobre o medo, a obediência e a legitimação, gerando silêncios que diminuem a cidadania2626 Lazari AH, Hungaro AA, Okamoto ARC, et al. Famílias em território vulnerável e motivos para o não uso de drogas. Rev. eletrônica enferm. 2017 [acesso em 2021 set 1]; (19):a11. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v19.38380.
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Já no início do século XX, a vida foi recebendo um embasamento jurídico voltado a transformá-la em mercadoria econômica. A saúde adquire contorno de um gigantesco, rentoso e narcísico mercado consumidor. A noção jurídica de responsabilidade vinculada ao livre-arbítrio é substituída pelo grau de perigo que os indivíduos representam à sociedade: os sujeitos antes considerados loucos ou anormais passam a representar um risco1515 Chauí M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2014.. Com o assenso das políticas neoliberais, em sequência à reestruturação produtiva e financeirização do capital iniciados na década de 1960, subsume-se ainda mais a organização da sociedade à supremacia do mercado financeiro, sob a pecha da globalização, e intensifica-se a judicialização das relações sociais. A padronização das vidas exige que todo cidadão seja tratado como empresa, com base nas relações – ‘transações’ – contratuais. As novas subjetividades capitalísticas naturalizam a estratégia Biopolítica de poder sobre o corpo, as ideias e a vida, atingindo espaços cada vez mais amplos de normalização, chegando às categorias de exclusão-inclusão2727 Shramm FR. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Rev. Bioét. 2014; 22(1):10-7.. A discriminação negativa e segregacionista de indivíduos e grupos vulnerados é camuflada pelo caráter formal e abstrato do Direito que confere cidadania ‘para todos’.

As profundas desigualdades sociais que refletem situações de vulneração associadas ao desemprego; terceirizações e perda de direitos trabalhistas; privação de condições materiais de vida; infraestrutura precária como a ausência de saneamento básico; privatização de espaços públicos; e diminuição de acesso a bens e serviços; entre outros, caracterizam os territórios de risco, estereotipados por preconceitos de cunho racista e invisibilizados pela ideologia ‘universalizante’ do empreendedorismo e da meritocracia, orientadora de sucesso para poucos. O risco social apontado pela etnia, classe, escolaridade, gênero, faixa etária e território2828 Lemos FCS, Bicalho PPG, Alvarez MC, et al. Governamentalidades neoliberais e dispositivos de segurança. Psicologia & Sociedade. 2015; 27(2):331-39., concretiza-se por separações territoriais e no aparato tecnológico de hiper proteção aos ‘homens de bem’ (com incremento da segurança privada e estratégias de proteção espacial, como condomínios fechados). O Estado como locus legitimamente aceito da violência física e simbólica, volta-se à garantia de uma violência socialmente permitida e consentida aos ‘anormais’, improdutivos, sub-humanos ou sub-cidadãos (pobres, ‘bandidos’, ‘drogados’, ‘vagabundos’, ‘diferentes’, ‘vermelhos’, ‘terroristas’), que permanecem em ‘estado de exceção’1515 Chauí M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2014.,2929 Reishoffer JC, Bicalho PPG. Insegurança e produção de subjetividade no Brasil contemporâneo. Fractal rev. psicol. 2009; 21(2):425-44..

A ‘guerra às drogas’ adquire status de ameaça, desumaniza cidadãos e legitima a política de extermínio e violências2929 Reishoffer JC, Bicalho PPG. Insegurança e produção de subjetividade no Brasil contemporâneo. Fractal rev. psicol. 2009; 21(2):425-44.. A juventude, especialmente de periferia, negra e ‘drogada’, caracterizada como irrecuperável, justifica o racismo estatal que usa comumente da violência e técnicas psicológicas, médicas e policiais para ‘defender’ a sociedade. Vincula-se a drogadição à culpa dos ‘desviados’ nas classes mais abastadas, enquanto criminalizam-se os excluídos2929 Reishoffer JC, Bicalho PPG. Insegurança e produção de subjetividade no Brasil contemporâneo. Fractal rev. psicol. 2009; 21(2):425-44., ampliando a retirada de direitos ou negando atributos que possibilitam sua participação no jogo social3030 Castel R. La discriminación negativa: ciudadanos o indígenas? Barcelona: Hacer SL; 2010.. Ampliam-se as diferenças entre os que consomem e os que vendem, tipo de consumo (por preço, qualidade ou acesso à receita) e tratamento do Estado, quanto ao amparo legal de constituição jurídica de defesa ou eliminação. A abstinência às drogas transforma-se em obediência e alienação. A família tornada objeto de intervenção do mercado com seus valores insere os indivíduos no movimento do rebanho, unindo-os na cultura do consumo desenfreado, hiper-produtividade e colaboração1515 Chauí M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2014.,3131 Souza TPS. O nascimento da biopolítica das drogas e a arte liberal de governar. Fractal rev. psicol. 2014; 26(3):979-97.. A indústria da fé, da educação e da comunicação de massas, tornam-os adeptos de verdades absolutas que impossibilitam a reflexividade ética e/ou política.

A bioética, para não se tornar ela mesma uma forma de biopolítica, não pode limitar-se exclusivamente ao campo da consciência e reflexão individualizados e neutros, sem conexão com a dimensão macro de âmbito ético-político. Em oposição ao ideário neoliberal de eficiência produtiva e competitividade, subsumido ao imperativo absoluto do consumo narcísico-lucratividade, a bioética segue o desvelamento dos macroproblemas e conflitos coletivos. Uma bioética da resistência e atuante, deve propor alterações estruturais que envolvam a constituição socioeconômica da vida, portanto, a partir de sujeitos reflexivos da práxis coletiva e individual3232 Junges JR. O nascimento da bioética e a constituição do biopoder. Acta bioeth. 2011; 17(2):171-78.. Para desmistificar o cenário de produção e legitimação da violência como fenômeno natural, deslegitimando e desconstruindo as categorias violentas da biopolítica, significa ações concretas de ‘empoderamento’ e ‘libertação’ para o exercício da cidadania, possível pela e para a vida democrática3030 Castel R. La discriminación negativa: ciudadanos o indígenas? Barcelona: Hacer SL; 2010..

Assim, abre-se caminho às formas de resistência pautadas no imperativo moral e social da justiça, da solidariedade e da participação. Sobretudo para construção de um mínimo moral indispensável à vida social organizada, seguindo em direção à consideração aos máximos morais (felicidade), por sua relevância singular e social3333 Schramm FR. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Rev. Bioét. 2010; 18(3):519-35.. A disputa pelo poder entre classes – intrinsecamente ligada à questão da hegemonia – significa acesso à direção política, na arena das instituições políticas mediadas pela força, e ideológica, buscando consenso e consentimento na sociedade civil. Nesta disputa, a forma de quebrar ou diminuir a hegemonia está no potencial de participação consciente das pessoas em espaços democráticos de poder3434 Chaves SCL, Moysés S. Política e saúde: conceitos básicos e abordagens teórico-metodológicas para análise política em saúde bucal. In: Chaves SCL, organizadora. Política de saúde bucal no Brasil: teoria e prática. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 13-46.. O empreendedorismo meritocrático no sentido do acenso socioeconômico individual proclamado como única via ao sucesso, precisa estar subsumido a um empreendedorismo social, consciente, participativo, crítico e solidário, especialmente na produção no setor público da saúde.

Para o enfrentamento ao problema da violência, suscitam-se questões: Como se pode desencadear problematizações interdisciplinares para o enfrentamento da violência associada a diferenças de classe, empobrecimento e uso de drogas no cotidiano da atenção à saúde? Como os profissionais lidam com a exclusão social ou estigmatização dos usuários e suas famílias?

Na prática, o trabalho desenvolvido por profissionais da saúde em algumas áreas de vulneração social e na periferia torna-se inseguro, desmotivando a promoção de ações dentro da comunidade e restringindo o atendimento ao espaço físico da unidade de saúde2424 Marinho F, Passos VMA, França EB. Novo século, novos desafios: mudança no perfil da carga de doença no Brasil de 1990 a 2010. Epidemiol. Serv Saúde. 2016; 25(4):713-24.. Mesmo fugindo do paradigma biomédico tradicional e voltando-se à construção de estratégias de convivência com os agentes e situações de violência (criminal, policial etc.), aparecem como subprodutos desta realidade sofrimentos e sentimentos de medo, angústia, surpresa, amor, pena, ódio, amizade e solidariedade, podendo acarretar transtornos mentais e até mesmo físicos aos profissionais3535 Kebian LVA, Cecchetto F. Violência urbana, saúde e “sentimento”: percepção dos profissionais da estratégia saúde da família. Rev. baiana saúde pública. 2017; 41(1):224-35.,3636 Peixoto ALA, Vieira MLF, Costa ACS, et al. Dependência química pelo crack: vivências e percepções dos discentes do internato de um curso médico. Medicina (Ribeirão Preto). 2016; 49(1):35-44.. As situações concretas de contato com a violência sinalizam a importância de ir além dos conhecimentos clínicos, voltando-se, também, a outros conhecimentos para: acolhimento destas pessoas ‘estigmatizadas’, ampliando vínculo, laços sociais e relações de confiança; consciência sobre falhas no sistema de saúde que dificultam a real necessidade de atendimento deste usuário (vulneração programática22 Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Vulneração programática como categoria explicativa dos problemas éticos na atenção primária à saúde. Trab. educ. saúde. 2018; 16(3):935-53.); e conhecimento sobre o ambiente macro-estrutural de vulneração social, evidências epidemiológicas, condições de vida e trabalho das pessoas, para maior comprometimento do trabalhador, da gerência e da equipe de saúde.

A formação deve proporcionar a compreensão dos transtornos biológicos, psicológicos e sociais envolvidos no consumo de drogas lícitas e ilícitas e nos processos sociais e individuais da medicalização, fazendo um debate que possibilite uma compreensão global do problema, tanto na perspectiva epidemiológica, quanto clínica3737 Barros JPP, Benício LFS. Eles nasceram para morrer: uma análise psicossocial da problemática. Rev. psicol. (Fortaleza, Online). 2017 [acesso em 2021 set 1]; 8(2):34-43. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/19313.
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. O desvelamento de conflitos socioeconômicos, culturais e morais, depende de uma capacidade reflexiva sobre a realidade instituída, com engajamento deliberativo-participativo voltado, também, ao planejamento situacional. Na SB, o domínio das manifestações da ingestão oral, pulmonar e nasal constante das drogas, exige conhecimentos diferenciados e cuidado clínico ampliado, demandando uma desalienação do próprio profissional3838 Di Fabio C, Cosso AA. Efectos de las adicciones en la práctica odontológica: un problema de salud pública. Rev. Fundac. Juan Jose Carraro. 2015; 20(40):20-28..

Um modelo de educação problematizador, sem redução dos saberes ao conhecimento estritamente biomédico, que não prepara o profissional para a identificação e notificação de violências, deve investir em capacitação diferenciada para o manejo dessas situações. A desconstrução de estereótipos culturalmente apreendidos, passa pelo reconhecimento das especificidades de cada pessoa ou grupo, onde a violência do ‘outro’ é percebida como ‘meu’ problema; pela importância das políticas públicas e posicionamentos ético-políticos de comprometimento com a coletividade; e pela construção de habilidades de negociação interpessoal (usuário e equipe de saúde)2121 Silva Filho CC. Educação para a paz na formação em saúde: diálogos e utopias em Paulo Freire. [tese]. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; 2017. 297 p.. Pauta-se, assim, a necessidade de políticas e intervenções intersetoriais e interdisciplinares, a partir de uma atuação na saúde em equipe e redes e de um debate bioético para além da biopolítica3333 Schramm FR. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Rev. Bioét. 2010; 18(3):519-35.. Neste caso, o pertencimento identitário a um coletivo de trabalho, tanto quanto a uma comunidade-território, respaldado em ações institucionais voltadas à remoção do sujeito de sua alienação e da precarização subjetiva, tendo em conta sua vulneração programática, pode ser o caminho para lidar com o sofrimento imputado pela violência no trabalho, em espaços reflexivos coletivos de pensar os problemas ético-políticos e o fazer emancipado.

Considerações finais

A busca por cidadania efetiva e o enfrentamento dos problemas de violência sociocultural, bem como o entendimento/compreensão do usuário fugindo de sua culpabilização, inferiorização ou estereotipação como subcidadão, localiza-o em contextos de vulneração social e programática que não afeta apenas usuários, mas também trabalhadores da saúde. Para além da configuração como problemas transversais à SB, os problemas ético-políticos discutidos nesse artigo, podem ser considerados transversais à atenção à saúde, corroborando resultados de outros estudos. Nesse sentido, sugere-se que mais pesquisas ampliem as análises e compreensão destes problemas, considerando as múltiplas perspectivas vivenciadas e compartilhadas por todos os integrantes das equipes multiprofissionais na APS, incluindo os profissionais dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica.

Para lidar com os problemas ético-políticos abordados é imprescindível apoio institucional para suporte aos profissionais de saúde, com ações direcionadas à educação permanente, dado que também é um dever ético dos profissionais de saúde se comprometer com a resolução destes problemas. O cuidado à saúde dos trabalhadores também é de extrema importância – a dimensão do sofrimento moral no cotidiano da atenção à saúde, bem como problemas relativos às condições e relações de trabalho não devem ser ignorados.

A análise destes dois fenômenos socioeconômicos e culturais, conclui pela necessidade de uma mudança substancial no serviço em direção a uma clínica ampliada, que busque problematizações interdisciplinares e interprofissionais, sensibilizadoras da reflexividade ética do trabalhador da saúde, embasados em valores solidaristas e comunitaristas.

Reforça-se, por fim, a responsabilidade do Estado na promoção dos direitos humanos, bem como a necessidade de se considerar referencias crítico-socias da bioética como subsídio para o planejamento das políticas públicas de saúde, lembrando a urgência de se constituir um Conselho Nacional de Bioética – projeto engavetado há quase duas décadas na Câmera Federal.

Em tempos de avanço de políticas neoliberais, com múltiplos retrocessos e retirada de direitos, além do aumento alarmante das iniquidades sociais, sobretudo agravadas pelo contexto da pandemia da Covid-19, o enfrentamento aos desafios discutidos passam necessariamente pela defesa dos valores democráticos e dos princípios constitucionais que determinam o dever do Estado em garantir acesso universal a serviços de saúde públicos e de qualidade, prioritariamente se comprometendo com a promoção da qualidade de vida das populações vulneradas.

  • Suporte financeiro: não houve
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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2021
  • Aceito
    23 Dez 2021
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