SUS na mídia em contexto de pandemia

Maria Ligia Rangel-S Gabriela Lamego Marcele Paim Antonio Brotas Arthur Lopes Sobre os autores

RESUMO

A pandemia da Covid-19 produziu novas demandas por serviços nos sistemas de saúde no mundo inteiro. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a ser objeto do interesse dos meios de comunicação, que realizaram esforços de cobertura das ações governamentais e da capacidade do sistema no controle da pandemia. Este estudo objetiva analisar matérias do jornal ‘Folha de São Paulo’ (FSP), quanto aos sentidos produzidos sobre o SUS na pandemia de Covid-19. Foram analisadas 231 matérias, dentre as 524 publicadas no período de janeiro a maio de 2020, obedecendo aos critérios de inclusão estabelecidos. O corpus foi categorizado em quatro sentidos: SUS constitucional, SUS problema, SUS em disputa e SUS atuante. A diversidade de sentidos atribuídos ao SUS aponta a necessidade da ampliação de captura das dimensões do SUS.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Meios de comunicação de massas; Hermenêutica; Saúde coletiva

Introdução

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)11 Organização Pan-Americana da Saúde. Histórico da pandemia de COVID-19. OPAS. [acesso em 2022 jul 22]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19.
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e, em março do mesmo ano, frente à propagação mundial do novo Coronavírus, reconheceu a pandemia de Covid-19. Desde então, mais do que uma crise sanitária, a Covid-19 vem causando uma grande crise global com impactos sociais, econômicos, culturais, ambientais e comunicacionais.

A pandemia foi acompanhada, desde seu início, pela rápida propagação de desinformação, tornando essencial a difusão de informações confiáveis. A cobertura jornalística, e de outros meios de comunicação, assume um papel essencial, na medida em que potencialmente influencia a percepção das pessoas sobre a saúde e, portanto, seus comportamentos de prevenção e busca por serviços nesta área22 Taberner JS, Leite PC, Cutait MM, et al. A influência da mídia nos atendimentos cardiológicos de urgência: O caso Bussunda. Rev Assoc Med Bras. 2007 [acesso em 2021 jul 22]; 53(4):335-7. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ramb/a/CvT6r8MNbbWdsvWtvvWGGLH/.
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. Assim, a cobertura jornalística deveria ser parte dos esforços para o enfrentamento da pandemia.

No Brasil, a comunicação jornalística sobre saúde afeta a forma como a população percebe seu direito a um sistema de saúde universal e gratuito33 Cardoso JM, Rocha RL. Interfaces e desafios comunicacionais do Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2022 jul 22]; 23(6):1871-1879. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/pTXBdCDZGJGbpX93xQd3gGK/.
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, potencialmente possibilitando à população maior entendimento sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), saúde pública e processos de saúde-doença.

Nessa perspectiva, para compreender a atuação dos meios de comunicação na disputa de sentidos sobre a saúde, torna-se relevante estudar narrativas e práticas midiáticas em torno da saúde, considerando os sentidos que produzem, argumentos aos quais recorrem, fontes que utilizam e imagens que constroem, ou seja, o entendimento da mediação dos meios de comunicação.

Esta investigação tem por objetivo identificar e analisar os sentidos produzidos pela ‘Folha de São Paulo’ (FSP) sobre o SUS na pandemia de Covid-19, em um corpus constituído pelas publicações realizadas entre os meses de janeiro e maio de 2020. Trata-se de um jornal de grande circulação nacional, que impacta na discussão pública no Brasil44 Folha é o jornal mais nacional do país e o de maior audiência e circulação. A Folha de São Paulo. 2021 mar 27. [acesso 2022 jul 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/folha-e-o-jornal-mais-nacional-e-o-de-maior-audiencia-e-circulacao.shtml.
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. Assim, o Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), através do seu Eixo Mídia e Saúde, cujas pesquisas integram o projeto ‘Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia de Covid-19 (2020-2022)’, investigou as narrativas divulgadas nos quatro meses iniciais do advento da Covid-19 no País.

Perspectivas teóricas

Para a análise dos sentidos, recorre-se, neste estudo qualitativo, a uma revisão de literatura, observando-se que várias perspectivas analíticas permitem explorar os sentidos da narrativa jornalística: a análise interpretativa, em que o leitor se põe no lugar do autor do texto, observando seus movimentos e as questões que o texto busca responder, na direção ao seu horizonte de expectativas55 Gadamer HG. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes; 1997. da análise do enredo, dos recursos de linguagem que compõem a narrativa, da interação autor-leitor, e da análise dos argumentos estruturados no texto, sendo este o seu locus privilegiado66 Ricouer P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2009.. No trabalho de interpretação dos sentidos, afirma Ricoeur66 Ricouer P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2009., o que se quer compreender em um texto não é o evento, mas a sua significação, isto é, se todo discurso é um ato, um evento, o que se pode dele apreender e compreender é a significação ou o sentido e não a intenção. Ainda, segundo Critelli77 Critelli DM. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: Brasiliense; 1996.(132), o sentido é, “[...] mais um rumo que apela, uma solicitação que se faz ouvir, um apelo obstinado que se insinua e persegue”. Difere do significado pois, este “[...] é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco [...]”, enquanto o texto “[...] fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos [...]”88 Saramago J. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras; 1999.(135).

Dessa compreensão da complexidade da produção e análise dos sentidos em uma narrativa, busca-se, neste estudo, o conteúdo proposicional, o ‘dito’ do discurso sobre o SUS no texto jornalístico, olhando para onde aponta, qual é a direção do horizonte de expectativa do leitor. São sentidos que se apresentam, com maior evidência, em seu conteúdo proposicional, que ‘saltam aos olhos’ do leitor, como objeto principal, núcleo semântico, e sustentado por tal/is ou qual/is argumento/s. Parte-se do entendimento do texto jornalístico como discurso, ao refletir sobre os ditos e os não ditos na linguagem, ou ainda, o que se privilegia e o que se silencia99 Cavalcante CC. Os sentidos do Sistema Único de Saúde na mídia impressa do Ceará um estudo do jornal O Diário do Nordeste. 2014. [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz; 2014..

Ademais, uma revisão da literatura científica sobre o SUS compôs a referência para a análise dos sentidos, compreendendo significação como sentido e referência66 Ricouer P. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 2009.. Com foco nos avanços, dificuldades e retrocessos no processo de Reforma Sanitária no Brasil, ao longo dos 30 anos de criação do SUS, foram elencadas três categorias que definem o SUS nessa literatura:

  1. O SUS constitucional, em que o conteúdo proposicional da narrativa evidencia o SUS como direito da sociedade, conquistado mediante lutas sociais que se inscreveram na Carta Constitucional de 1988, portanto, uma política de Estado1010 Teixeira CF, Souza LEP, Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS): a difícil construção de um sistema universal na sociedade brasileira. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 121- 137.,1111 Ciarlini ALA. Direito à saúde e respeito à Constituição. In: Santos NR, Amarante PDC, organizadores. Gestão pública e relação público privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 87-100. [acesso em 2020 jul 31]. Disponível em: http://idisa.org.br/img/File/GC-2010-RL-LIVRO%20CEBES-2011.pdf#page=24.
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    apontando para um horizonte de sentido do SUS como direito universal à saúde e de um SUS que é estratégico para o enfrentamento dos problemas de saúde da população1212 Santos NR. Desenvolvimento do SUS, rumos estratégicos e estratégias para visualização dos rumos. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2022 jul 22]; 12(2):429-435. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2007.v12n2/429-435/pt.
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  2. O SUS que apresenta problemas e desafios, em que a narrativa destaca um sistema que convive historicamente com desafios da gestão1414 Mendes A, Weiller JAB. Renúncia fiscal (gasto tributário) em saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde debate. 2015 [acesso em 2021 out 10]; 39(105):491-505. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2015.v39n105/491-505/pt.
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    , sub-financiamento1212 Santos NR. Desenvolvimento do SUS, rumos estratégicos e estratégias para visualização dos rumos. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2022 jul 22]; 12(2):429-435. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csc/2007.v12n2/429-435/pt.
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    ,1414 Mendes A, Weiller JAB. Renúncia fiscal (gasto tributário) em saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde debate. 2015 [acesso em 2021 out 10]; 39(105):491-505. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2015.v39n105/491-505/pt.
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    e mesmo o desfinanciamento1515 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública: austeridade versus universalidade. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 out 10]; 43(5):58-70. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2019.v43nspe5/58-70/pt.
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    , gerando distorção do princípio da universalidade e restringindo-o a atender aos pobres1616 Paim JS. O que é o SUS? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.,1010 Teixeira CF, Souza LEP, Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS): a difícil construção de um sistema universal na sociedade brasileira. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 121- 137. e o acesso desigual aos seus serviços1717 Cordeiro HA, Conill EM, Santos IS, et al. Por uma redução nas desigualdades em saúde no Brasil: qualidade e regulação num sistema com utilização combinada e desigual. In: Santos NR, Amarante PDC, organizadores. Gestão pública e relação público privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 129-151. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: http://idisa.org.br/img/File/GC-2010-RL-LIVRO%20CEBES-2011.pdf#page=24.
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  3. Um SUS que é um campo de disputa, em que o núcleo semântico da narrativa se refere à disputa de poder em torno do modelo de atenção, ainda tensionado pelo tradicional modelo privatista-hospitalocêntrico e o sanitarista, que antecederam a criação do SUS1818 Teixeira CF, Vilasbôas ALQ. Modelos de atenção à saúde no SUS: transformação, mudança ou conservação? In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 287-301., assim como do modelo de gestão1919 Ibanez NE, Vecina Neto G. Modelos de gestão e o SUS. Ciênc. Saúde Colet. 2007 [acesso em 2021 dez 31]; 12(supl):1831-1840. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232007000700006&lng=en&nrm=iso.
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    ,2020 Mendes JMR, Garcia MLT, Oliveira EFA, et al. Gestão na saúde: da reforma sanitária às ameaças de desmonte do SUS. Text. Cont. 2011 [acesso em 2021 out 10]; 10(2):331-344. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3215/321527169011.pdf.
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    e relação público-privado.

Optou-se ainda, neste estudo, por observar e capturar novas categorias contendo definições emergentes para o SUS.

Material e métodos

A metodologia consistiu na análise documental de textos publicados no site da FSP. Para a busca, foi utilizado o descritor “SUS”, no período de 01 de novembro de 2019 a 06 de maio de 2020, quando foi iniciado o estudo. Foram encontrados 702 textos e foi identificado que a primeira publicação do referido jornal sobre o novo coronavírus, nesse corpus, se deu em 22 de janeiro de 2020. Todos os textos anteriores a essa publicação foram excluídos do estudo, totalizando 524 para a investigação. Procedeu-se a leitura integral destes, seguida da aplicação de um instrumento de produção de dados, utilizando a plataforma Google Forms e contendo 13 perguntas norteadoras, com o objetivo de identificar, no dito do discurso, ou conteúdo proposicional, os sentidos atribuídos ao SUS e orientar a análise.

Foram incluídos todos os textos que sugeriam a atribuição de sentido ao SUS, ainda que este não fosse o objeto principal da publicação, utilizando-se como critérios de exclusão: aqueles que não sugeriam sentido sobre SUS; outros que apenas citavam o SUS sem desenvolver uma narrativa; e ainda os que abordavam o SUS fora do contexto da pandemia, painel do leitor e matérias duplicadas.

Após o preenchimento dos formulários, as respostas foram compiladas na ferramenta Data Studio do Google para a análise e, mediante uma primeira leitura, foram identificados os sentidos primeiros, ou seja, aqueles encontrados como objeto central do texto, correspondendo a uma das categorias oriundas da literatura de referência. Além deles, foi identificado mais um sentido nas narrativas em contexto de pandemia, que refere ao SUS de forma atuante, que busca soluções, mobiliza atores e atrai cooperação da sociedade.

Assim, adotou-se para uma leitura aprofundada, as seguintes categorias: a) o SUS constitucional, referente ao direito universal à saúde definido na Constituição Federal, e entendido como estratégico para o enfrentamento da pandemia; b) o SUS problema, devido ao subfinanciamento, ineficiência na gestão, desigualdade de acesso, à ameaça de colapso; c) O SUS em disputa entre entes federativos e políticos, em disputa de poder, na tensão entre os segmentos público e privado do sistema de saúde e; d) SUS atuante, que emergiu dos dados como categoria empírica, expressando o esforço de profissionais e gestores no combate à pandemia, com destaque às ações concretas do SUS nos âmbitos dos diversos níveis de atenção, da criatividade, inovação e cooperação com a iniciativa privada. Ou seja, publicações que mostraram o SUS combatente, atuante, que vai à luta.

A metodologia contemplou ainda a validação das categorias entre os pesquisadores, de modo a confirmar ou redesignar o texto a uma outra categoria, de acordo com o sentido interpretado pelos pesquisadores em diálogo. Assinala-se que os textos são repletos de sentidos, dos quais os predominantes foram categorizados.

Para a análise dos sentidos nos textos, observou-se, além do conteúdo proposicional, dispositivos verbais, e buscou-se interpretar o horizonte de expectativas para onde o texto apontava.

Resultados

Do conjunto de 524, 231 textos atenderam aos critérios estabelecidos e foram analisados, a partir das quatro categorias já mencionadas.

A distribuição temporal dos textos jornalísticos é mostrada no gráfico 2: 1,3% em janeiro; 3% em fevereiro; 48,7% em março; 41,8% em abril; e 5,2% em maio. Observa-se que o maior número de publicações ocorreu no período após o anúncio da declaração oficial da pandemia pela OMS, que desencadeou acontecimentos políticos, econômicos e sociais.

Gráfico 1
Percentual de matérias conforme os sentidos

Gráfico 2
Publicações conforme categorias em função do tempo

SUS constitucional

A categoria SUS constitucional corresponde a 19% (44) do conjunto de textos analisados, referindo-se ao (i) direito universal à saúde e ao (ii) caráter estratégico do SUS para fazer frente à pandemia, em, respectivamente, 32 e 12 textos.

No contexto da emergência sanitária, em alguns artigos, ex-ministros, empresários e organizações (não governamentais e partidárias) são as vozes que, na narrativa, exaltam a relevância das redes e dos profissionais de saúde, mantendo um SUS vivo. Destaca-se, na matéria intitulada ‘Luzes de esperança em meio a pandemia’2121 Boudunki N. Luzes de esperança em meio a pandemia. A Folha de São Paulo. 2020 mar 30. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nabil-bonduki/2020/03/luzes-de-esperanca-em-meio-a-pandemia.shtml.
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, o trecho a seguir:

O papel do poder público tem sido reconhecido mesmo pelos economistas liberais, mostrando que precisamos de um Estado que funcione bem e não de um Estado mínimo. O SUS tornou-se um xodó nacional, saudado como o único sistema universal de saúde em países capitalistas com mais de 100 milhões de habitantes.

Outras matérias alertam para o esquecimento do SUS ao longo dos anos e que este se mostra, na crise sanitária, como o principal recurso do País para o controle da pandemia, como se vê no artigo ‘Miopia orçamentária’, assinado por Delfim Neto2222 Netto AD. Miopia orçamentária. A Folha de São Paulo. 2020 maio 6. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2020/05/miopia-orcamentaria.shtml.
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, ex-ministro da economia durante a ditadura militar:

Temos um dos melhores seguros saúde do mundo - o SUS, universal e pago por todos. Espalhado pelo território nacional, é responsabilidade de todos os níveis de governo. Infelizmente, falhamos na tarefa mais urgente: a de equipá-lo adequadamente, importando, enquanto havia disponibilidade, o que fosse necessário.

Já o artigo ‘Suspender confinamento antes da hora pode inviabilizar programa de testes, diz OCDE’2323 Pinto AES. Suspender confinamento antes da hora pode inviabilizar programa de testes, diz OCDE. A Folha de São Paulo. 2020 abr 20. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/suspender-confinamento-antes-da-hora-pode-inviabilizar-programa-de-testes-diz-ocde.shtml.
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destaca a história e o acúmulo de experiência do SUS, que o torna um sistema potente a ser fortalecido.

Mas, a posição do Presidente da República de negar a pandemia e desresponsabilizar o Estado pelo seu enfrentamento torna-se um fato de grande repercussão no jornal, a exemplo da matéria de 12/02/2020, intitulada ‘Providência diante de crise é atenuar arrogância e Bolsonaro faz o oposto, diz Ciro’2424 Linhares C. ‘Providência diante de crise é atenuar arrogância e Bolsonaro faz o oposto’, diz Ciro. A Folha de São Paulo. 2020 mar 12; Política. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/providencia-diante-de-crise-e-atenuar-arrogancia-e-bolsonaro-faz-o-oposto-diz-ciro.shtml.
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, na qual o ex-ministro Ciro Gomes tece críticas em relação à conduta do atual Presidente da República, no que se refere às respostas dadas à crise de saúde e econômica engendrada pela pandemia Covid-19, ao passo que nomeia o SUS, de forma a exaltá-lo, juntamente com as universidades, para conter o vírus no País.

Destaca-se ainda o texto intitulado ‘Fortalecimento do Estado depois da pandemia não está garantido’2525 Bucci MPD. Fortalecimento do Estado depois da pandemia não está garantido. A Folha de São Paulo. 2020 abr 20. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/fortalecimento-do-estado-depois-da-pandemia-nao-esta-garantido.shtml.
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que discute as perspectivas do SUS no período pós crise sanitária, reconhecendo que a

[...] pandemia de coronavírus produziu um consenso incomum em torno da importância de sistemas nacionais de saúde e da ampliação de investimento públicos. Atual revalorização de políticas públicas, no entanto, pode ser interrompida com retorno de discursos contra o Estado.

O caráter estratégico do SUS é relacionado à esperança no seu potencial para enfrentar a crise e é realçado em notícias que reconhecem a importância do SUS no controle da pandemia da Covid-19, inscrevendo-o numa lógica de incitação à sua defesa, reforçando assim a sua relevância e a necessidade do fortalecimento da rede de atenção à saúde, destacando o SUS como uma ‘vantagem’ frente à emergência sanitária mundial.

Essa narrativa se faz presente na mídia estudada no período de janeiro a maio de 2020, com o maior pico do período estudado no dia 25/03/2020, quando quatro textos jornalísticos foram publicados com ênfase neste conteúdo. Destaca-se, entre elas, o artigo ‘A pandemia é uma oportunidade para acelerar ou aniquilar o projeto autocrático’2626 Mendes CH. A pandemia é uma oportunidade para acelerar ou aniquilar o projeto autocrático. A Folha de São Paulo. 2020 mar 25. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2020/03/a-pandemia-e-uma-oportunidade-para-acelerar-ou-aniquilar-o-projeto-autocratico.shtml.
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, em que o autor tece críticas à Jair Bolsonaro, sobretudo à sua gestão e postura negacionista, afirmando que “A crise é factual, visível e infecciosa demais. Demanda ciência e cientistas, Estado e SUS, inteligência e honestidade”2626 Mendes CH. A pandemia é uma oportunidade para acelerar ou aniquilar o projeto autocrático. A Folha de São Paulo. 2020 mar 25. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2020/03/a-pandemia-e-uma-oportunidade-para-acelerar-ou-aniquilar-o-projeto-autocratico.shtml.
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, posicionado, dessa forma, o SUS como necessário para fazer efetivo enfrentamento contra a atual crise sanitária.

Desse modo, o SUS, tal como inscrito na Constituição Federal de 1988, um direito de todos e um dever do Estado, ganha visibilidade na mídia no período da pandemia, deixando, no horizonte de expectativa, que sua existência e fortalecimento são necessidades da sociedade brasileira.

SUS problema

O sentido do SUS problema e seus desafios ficaram evidentes nos textos que associavam o SUS a falhas, má gestão ou ineficiência, colapso, além dos já estabelecidos na literatura, subfinanciamento e desigualdade, que se configuram como desafios para o enfrentamento da pandemia. Esse sentido foi interpretado em 87 (37,7%) textos, o maior número dentre os que compõem o corpus desta pesquisa.

O significante colapso aparece indexado ao SUS de modo recorrente, surgindo, pela primeira vez na linha do tempo, em um artigo publicado em 27/02/2020, intitulado ‘O que acontece agora que o Brasil tem seu primeiro caso de coronavírus?’2727 Varella D. O que acontece agora que o Brasil tem seu primeiro caso de coronavírus? A Folha de São Paulo. 2020 fev 27. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2020/02/o-que-acontece-agora-que-o-brasil-tem-seu-primeiro-caso-de-coronavirus.shtml.
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, na chegada do vírus ao País. Desde então, já se questiona a capacidade de infraestrutura do SUS para atender a toda a população, tanto no nível hospitalar quanto nos serviços da rede atenção básica, cuja capilaridade é insuficiente para dar resposta à crise sanitária, ressentindo-se o País das condições necessárias de resposta à emergência sanitária, cujo controle está condicionado ao número de doentes graves e à adoção de um conjunto de medidas de prevenção nesse cenário.

A ameaça de um colapso do SUS2828 Colluci C. ‘SP terá que fazer uma gestão de leitos de UTI para que o sistema não entre em colapso’, diz David Uip. A Folha de São Paulo. 2020 mar 19. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/sp-tera-que-fazer-uma-gestao-de-leitos-de-uti-para-que-o-sistema-nao-entre-em-colapso-diz-david-uip.shtml.
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ocupou um espaço significativo nas narrativas produzidas acerca da pandemia do Covid-19, nos primeiros cinco meses de notícias veiculadas na FSP. Os termos ‘colapso’ e ‘sobrecarga’ foram mencionados como referências ao sistema de saúde e estiveram presentes em grande parte dos textos.

Os argumentos utilizados nesses textos são, principalmente, as altas taxas de ocupação de leitos hospitalares em municípios brasileiros e a importância da adoção de estratégias necessárias para mitigar o colapso do sistema: o isolamento social, o aumento do número de testes, a abertura de novos leitos e a compra de equipamentos de proteção individual e outros necessários para a atenção hospitalar dos casos mais graves, como os respiradores.

Algumas notícias2929 Cancian N. SP, Rio, DF, Ceará e AM podem entrar em fase de aceleração descontrolada do coronavírus. A Folha de São Paulo. 2020 abr 4. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/sp-rio-ceara-df-e-am-podem-entrar-em-fase-de-aceleracao-descontrolada-do-coronavirus-diz-ministerio.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...

30 Pasquini P. UTIs de hospitais públicos de SP chegam perto da capacidade total. A Folha de São Paulo. 2020 abr 17; Saúde. [acesso 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/utis-de-hospitais-publicos-de-sp-chegam-perto-da-capacidade-total.shtml.
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-3131 Canzian F. No ritmo atual, as UTIs podem lotar na segunda quinzena de maio. A Folha de São Paulo. 2020 abr 8. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/no-ritmo-atual-utis-podem-lotar-na-primeira-quinzena-de-maio.shtml.
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abordam a dimensão econômica do colapso do sistema de saúde, ressaltando a necessidade de maior aporte de recursos financeiro para o SUS, previsões dos gastos com a atenção de alta complexidade aos pacientes com Covid-19 e os impactos futuros do coronavírus no sistema público de saúde.

Ainda, o sentido do colapso do SUS foi acionado em um terceiro grupo de textos que abordaram grupos sociais historicamente vulneráveis ou que terão acentuada essa situação em um contexto de falência do sistema, por dependerem exclusivamente do SUS, ou ainda, abordaram como a pandemia contribuirá para o acirramento das desigualdades na sociedade brasileira, como é caso das empregadas domésticas e dos entregadores de serviço de delivery.

O SUS é um dos melhores sistemas de saúde do mundo, porém não aguentará a quantidade de pessoas que precisarão dele. As domésticas não têm opção, como alguns profissionais, de trabalhar em home office. Isolamento social é privilégio3232 Rara P. Quem cuida de quem sempre esteve no lugar de cuidar. A Folha de São Paulo. 2020 mar 25. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/quem-cuida-de-quem-sempre-esteve-no-lugar-de-cuidar.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/20...
.

Enfim, na maioria dos textos que compõem o corpus da pesquisa, a ameaça de colapso é acompanhada, nas narrativas, de manifestações de diferentes atores sociais em defesa do SUS: sua valorização como um direito universal à saúde; o reconhecimento do seu subfinanciamento histórico; e da necessidade de esforços conjuntos para o fortalecimento do sistema, em um contexto de pandemia e diante de uma ameaça real de colapso. Em 13/04/2020, em matéria que reúne entrevistas, intitulada ‘Coronavírus deixará herança amarga para ser resolvida, dizem especialistas’3333 Cucolo E. Coronavírus deixará herança amarga para ser resolvida, dizem especialistas. A Folha de São Paulo. 2020 abr 13. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/coronavirus-deixara-heranca-amarga-para-ser-resolvida-dizem-especialistas.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
, um representante de organização humanitária afirma que

[...] será necessário rever um modelo de ajuste fiscal que reduziu políticas de assistência social e recursos para educação e saúde. Em relação a esse último ponto, ela afirma que o SUS (Sistema Único de Saúde), que atende cerca de 75% da população brasileira, corre o risco de colapsar por conta da crise atual e ficará sobrecarregado posteriormente por conta dos milhares de procedimentos que estão sendo adiados.

O subfinanciamento do SUS aparece em 22 textos analisados como problema crônico desde a implantação do sistema, e que vem se agravando ao longo dos anos, acentuado pela Emenda Constitucional 95. Como consequência, diante da pandemia da Covid-19, o SUS apresenta limitações de seu potencial em responder às demandas sanitárias da população brasileira, a exemplo do artigo ‘Coronavírus chega ao STF e se acumula a outras crises já instaladas no País’3434 Machado E. Coronavírus chega ao STF e se acumula a outras crises já instaladas no país. A Folha de São Paulo. 2020 mar 19. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/coronavirus-chega-ao-stf-e-se-acumula-a-outras-crises-ja-instaladas-no-pais.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020...
.

A matéria intitulada ‘Incentivar o isolamento social significa valorizar a vida, a saúde e o respeito’3535 Teixeira RR, França-Junior I. Incentivar o isolamento social significa valorizar a vida, a saúde e o respeito. A Folha de São Paulo. 2020 mar 26. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/incentivar-o-isolamento-social-significa-valorizar-a-vida-a-saude-e-o-respeito.shtml.
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, publicada em 26/03/2020, registra:

Sabemos que o SUS, a princípio um trunfo, padece de subfinanciamento crônico, agravado pelo recente desfinanciamento, comprometendo áreas estratégicas. Para aumentar a testagem, precisamos fortalecer a atenção básica, as vigilâncias epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional para o atendimento dos doentes.

Ainda com relação aos problemas do SUS evidenciados pela FSP, a questão da desigualdade é relacionada às dificuldades de acesso ao sistema de saúde por grupos populacionais distintos - a população negra, idosos e os mais pobres, que, nesse contexto, se tornam ainda mais vulneráveis; à distribuição desigual dos serviços de saúde nas regiões brasileiras, sudeste-norte, e nas cidades, entre o centro e a periferia.

Interessante notar que, ainda que se observe o sentido de SUS problema, no horizonte de expectativa, parece estar não uma perspectiva de que o mesmo é ineficiente, mas, ao contrário, o que se percebe é uma crítica ao subfinanciamento que restringe a atuação do sistema.

SUS em disputa

As disputas que permeiam o processo de construção e fortalecimento do SUS, com seus avanços e retrocessos, ganham relevo e se acentuam no corpus analisado. A disputa de poder que envolve esse processo foi observada em um conjunto de narrativas que mostram tensões entre gestores dos diversos níveis da federação. Este sentido esteve presente em um total de 30 (13%) dos textos estudados.

Como exemplo dessa disputa de narrativas sobre as ações do SUS frente à pandemia, há a matéria ‘Mandetta diz que quarentena total será desastre e critica carreatas’3636 Onofre R, Garcia L. Mandetta diz que quarentena total será desastre e critica carreatas. A Folha de São Paulo. 2020 mar 28. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/mandetta-diz-que-quarentena-total-e-desastre-e-critica-carreatas.shtml.
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, de 28/03/2020, em que o então ministro descarta o isolamento vertical (restrito a grupos de risco) e o lockdown, “interdição total do sistema econômico e social, adotado em países como a Itália”, classificando-o como um desastre para todo o País, ao mesmo tempo em que critica as carreatas dos apoiadores do presidente contrários a qualquer medida restritiva.

A tensão que se dá em torno do tratamento medicamentoso, como no caso da Cloroquina, defendida por Bolsonaro e criticada por Mandetta, é também mostrada na FSP, na mesma matéria, em que este último afirma: “Cloroquina não é panaceia. Não é o remédio que veio para salvar a humanidade”3636 Onofre R, Garcia L. Mandetta diz que quarentena total será desastre e critica carreatas. A Folha de São Paulo. 2020 mar 28. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/mandetta-diz-que-quarentena-total-e-desastre-e-critica-carreatas.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
.

No que concerne à comparação entre os sistemas de saúde público e privado, o SUS é referido, geralmente, em uma lógica discursiva que constrói a imagem do sistema privado mais eficiente, com mais recursos e com menos problemas do que o SUS. As comparações são feitas, frequentemente, utilizando métricas quantitativas em relação ao número de leitos, ocupação de vagas, ou insumos, enquanto as tensões são noticiadas em contextos de disputa por financiamento, por insumos, pela relevância na oferta de serviços de saúde e em torno da proposta da fila única, bem como da tomada compulsória de leitos e equipamentos da iniciativa privada para o SUS.

Na notícia publicada em 06/05/2020, intitulada ‘Teich critica ‘tomada’ de UTIs da rede privada e pede solução com cooperação’3737 Coletta RD, Cancian N. Teich critica ‘tomada’ de UTIs da rede privada e pede solução com cooperação. A Folha de São Paulo. 2020 maio 6. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/teich-critica-tomada-de-utis-da-rede-privada-e-pede-solucao-com-cooperacao.shtml.
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, o então Ministro da Saúde posiciona-se contra ao caráter coercitivo em relação à aquisição de leitos provenientes da iniciativa privada, em vista que “Com a falta de leitos de UTI na rede pública, hospitais privados em alguns pontos do País têm sido obrigados pela Justiça a abrir vagas a pacientes do SUS sem qualquer remuneração”, pontua.

O sentido do SUS em disputa revela conflitos internos ao governo, em que grupos que ocupam o poder de comando do País são representantes dos interesses privados no setor saúde. De um lado, defender o SUS (Mandetta), ou defender o setor privado (Teich), são duas faces de um mesmo problema: a valorização do SUS em momentos de crise sanitária, para assistir populações pobres. De um lado, um ministro vestiu, literalmente, a ‘camisa’ do SUS e acabou derrotado, enquanto, de outro lado, o ministro que o substituiu, saiu em defesa do setor privado, que não deveria ser coagido a abrir vagas para atender aos ‘pacientes do SUS’.

SUS atuante

O sentido SUS atuante surge, no corpus, em um total de 70 (30,3%) textos, relacionado com o contexto da pandemia da Covid-19, e enfatizam as ações de luta, de criatividade, inovação e que despertam a esperança e a cooperação da sociedade e até mesmo do setor privado. São matérias que destacam ações e esforços dos profissionais e gestores do SUS no combate à pandemia.

Esse sentido está entre os mais presentes nos textos analisados, especialmente quanto à indexação do SUS ao significante ‘luta’, entendida como disputa entre diferentes projetos do SUS na sociedade3838 Souza LEPF, Paim JS, Teixeira CF, et al. Os desafios atuais da luta pelo direito universal à saúde no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2019 [acesso em 2021 out 10]; 24(8):2783-2792. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2019.v24n8/2783-2792/pt/.
https://www.scielosp.org/article/csc/201...
, bem como remete ao contexto de mobilizações coletivas. O mesmo sentido aparece em um conjunto de textos que trazem narrativas construídas para informar acerca das ações, já efetivamente implementadas ou em curso de execução, direcionadas ao fortalecimento do SUS nos diversos níveis de atenção. Caracteriza-se, desta forma, pela presença de dispositivos, sobretudo verbais, nos textos que o compõem, tais quais ‘comprar’, ‘adquirir’, ‘testar’ ‘trabalhar para’, ‘garantir’, ‘ampliar’, ‘parceria’, ‘contratar’, ‘novos testes’ e ‘novos leitos’.

‘Tudo o que você precisa saber sobre o novo coronavírus Sars-CoV-2’3939 Tudo o que você precisa saber sobre o novo coronavírus Sars-CoV-2. A Folha de São Paulo. 2020 jan 22. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/01/veja-o-que-se-sabe-ate-agora-sobre-o-coronavirus-chines.shtml.
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é o título da primeira matéria que evidencia esse sentido. Publicada em 22/01/20, um dia após a OMS sinalizar o caráter de alto risco da pandemia, informa acerca do que já se sabia até então sobre o novo vírus, e menciona o SUS em meio aos esforços da gestão em adquirir insumos e medicamentos para os hospitais públicos.

No noticiamento das iniciativas resultantes da cooperação entre os subsistemas público e privado, universidades e sociedade civil, os textos mostram ações de cooperação, em narrativas que traduzem o caráter complementar da participação da iniciativa privada no SUS. São também destacadas doações e trabalhos voluntários direcionados ao fortalecimento dos hospitais públicos, a disponibilização e expansão de leitos SUS provenientes de hospitais filantrópicos e Santa Casas, e a incitação ao apoio e fortalecimento do SUS pelo setor produtivo brasileiro, nomeadamente das indústrias e universidades.

A criatividade, a improvisação e a solidariedade surgem para cooperar na resposta às necessidades e demandas por equipamentos. A exemplo da notícia do dia 01 de abril de 2020, sob o título ‘Máscaras de mergulho serão usadas no tratamento de pacientes com coronavírus’4040 Trindade L. Máscaras de mergulho serão usadas no tratamento de pacientes com coronavírus. A Folha de São Paulo. 2020 abr 1. [acesso em 2021 out 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/mascaras-de-mergulho-serao-usadas-no-tratamento-de-pacientes-com-coronavirus.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
, em que se anuncia o uso de máscaras de mergulho adaptadas para encaixe de respiradores artificiais, a fim de serem usadas no tratamento da Covid-19, concretizada através da cooperação entre entidades privadas.

Ainda, produziram-se notícias sobre novas ferramentas, serviços e insumos lançados pela gestão do SUS, estadual ou federal, de forma inovadora e criativa, para responder aos desafios engendrados pela pandemia. A exemplo de matérias sobre serviços de ligações automáticas e do aplicativo Coronavírus SUS criados pelo Ministério da Saúde (MS), como também sobre novo kit de diagnóstico Covid-19, desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Há, na produção do sentido SUS atuante, um certo ineditismo da cobertura jornalística sobre o sistema. Não é comum que a experiência de luta cotidiana dos trabalhadores do SUS ganhe alguma visibilidade nas mídias. Em grande parte, o SUS tem se sustentado, ao longo dos anos, pelo esforço militante de gestores e profissionais de saúde, que dão continuidade à ininterrupta luta pela Reforma Sanitária Brasileira, iniciada na década de 1970.

Discussão

Estudos dedicados à cobertura jornalística têm apontado a sistemática associação do SUS a falhas33 Cardoso JM, Rocha RL. Interfaces e desafios comunicacionais do Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018 [acesso em 2022 jul 22]; 23(6):1871-1879. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/pTXBdCDZGJGbpX93xQd3gGK/.
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,4141 Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2014 [acesso em 2022 jun 20]; 21(1). Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/39MMgrRqVhbvWsVFzNzQ4hN/abstract/?lang=pt.
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, estimulando e mantendo a percepção de um SUS ineficiente ao longo dos seus 30 anos de existência. Alguns estudos4242 Castanheira D, Faulhaber C, Gerschman S. O papel da mídia na construção da agenda governamental para o SUS no Rio de Janeiro. RECIIS (Online). 2018 [acesso em 2021 out 10]; 12(3):292-309. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1455/2227.
https://www.reciis.icict.fiocruz.br/inde...
,4343 Menezes K. As representações do SUS na mídia. Rep. Soc. Com.: dial. constr. 2015; (117).
apontam que publicações jornalísticas sobre o SUS destacam a insuficiência de respostas aos problemas de saúde da população e a incompetência das autoridades sanitárias brasileiras.

A questão da responsabilidade do Estado pela saúde da população mostra-se presente neste corpus. Entretanto, cabe ressaltar que o período da emergência sanitária cursa com um governo que nega a pandemia e a ciência, não reconhece o direito à saúde e à vida e desmobiliza, desde seu início, qualquer ação de proteção e prevenção cientificamente comprovadas, seja individual ou coletiva4444 Recuero R. Desinformação, mídia social e COVID-19 no Brasil. Relatório, resultados e estratégias de combate. Pelotas: MIDIARS; 2021. [acesso em 2022 jun 20]. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/midiars/files/2021/05/Desinformac%CC%A7a%CC%83o-covid-midiars-2021-1.pdf.
https://wp.ufpel.edu.br/midiars/files/20...
. Essa postura, do ponto de vista ético, moral e sanitário, parece ferir, de algum modo, os interesses da FSP, que modifica sua narrativa sobre o SUS.

Nesse sentido, a cobertura da FSP abre espaço para narrativas em defesa do SUS constitucional, do direito à saúde, deixando clara as vantagens de um sistema universal de atenção à saúde, em especial em crises sanitárias de abrangência mundial, e dá lugar a vozes de profissionais e gestores de saúde que lutam com criatividade, buscando soluções e atraindo cooperação, solidariedade e o crescente reconhecimento da sociedade brasileira a esse grande sistema de saúde construído a duras penas em amplos e extensos processos democráticos.

A despeito da ausência de visibilidade do Conselho Nacional de Saúde e demais instâncias de gestão do SUS, mostra-se um SUS ativo, movido por atores que lutam para fazê-lo operar em resposta à emergência sanitária.

O início da cobertura jornalística da FSP acerca da pandemia Covid-19, ocorreu no mês de janeiro, acionando o sentido do SUS indexado ao significante luta. Talvez este possa ser considerado como ‘ponto de virada’ da visão do jornal, que se orienta para a ressignificação do SUS problema preponderante nesse jornal e já descrito na literatura4141 Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2014 [acesso em 2022 jun 20]; 21(1). Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/39MMgrRqVhbvWsVFzNzQ4hN/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/39MMgrRqV...
.

O que é problemático, nesse novo contexto, se relaciona à pandemia, evidenciando, de um lado, a ameaça de um SUS colapsado - sentido acionado em numerosas matérias - e, de outro lado, o SUS que vai à luta, referente às ações de gestores e trabalhadores do SUS para dar conta de enfrentar a pandemia.

De todo modo, a cobertura da FSP para o SUS, no contexto da pandemia, acionou o sentido de SUS problema, não mais mobilizando apenas o SUS colapsado, mas, dando visibilidade aos ricos e, por vezes, bem-sucedidos esforços realizados na sociedade para responder aos desafios impostos pela atual crise sanitária.

Considerações finais

O estudo mostra a diversidade de sentidos que são atribuídos ao SUS na sociedade brasileira, que são, de todo modo, repercutidos nos textos analisados. Se, em outras conjunturas, a grande mídia, como outros atores sociais, desvalorizaram o SUS, a emergência sanitária dada pela pandemia da Covid-19, com toda a dramaticidade e incertezas que a acompanharam, mobilizou outros olhares e perspectivas que reclamam pelo direito à saúde, a necessidade de investimentos e fortalecimento, e mesmo o seu reconhecimento como patrimônio nacional.

A valorização do SUS pela FSP como um sistema de direito universal à saúde, durante o período da pandemia do novo coronavírus, contribuiu para compreender a possibilidade de ampliação do escopo da visão da sociedade sobre o SUS através da mídia, deslocando o olhar de efeitos de problemas estruturais, para suas causas, como o subfinanciamento crônico. O estudo dos textos da FSP reafirmou o entendimento da importância da circulação de sentidos sobre o SUS na sociedade, aproximando-o ao projeto inscrito na Constituição de 1988, de caráter universal e participativo. Ao possibilitar a visibilidade à capacidade de resposta do sistema à pandemia, por sua capilaridade em todas as regiões do País; à estrutura de serviços diversificados para a assistência à saúde; e aos programas e políticas de saúde e sua vinculação com diversos segmentos sociais em defesa da cidadania e do SUS, a cobertura jornalística se mostra uma ação política, dinâmica, viva que exerce papel crucial.

Futuras investigações sobre a cobertura jornalística acerca do SUS no contexto da pandemia, e também frente a outras problemáticas sanitárias, são relevantes para produzir análises da mídia impressa brasileira, mostrando a pluralidade de sentidos acerca do SUS existente na sociedade. Ainda, ressalta-se a necessidade do jornalismo ampliar sua cobertura, de modo a ser capaz de capturar as diversas dimensões do SUS, para além das suas fragilidades, e oferecer à sociedade a visão desse grande empreendimento histórico, reconhecido como a política social em saúde mais inclusiva do mundo.

Agradecimentos

Agradecemos às pesquisadoras Daniela da Silva Baumgarten, Gessinayde da Silva Queiroz e Marta Cristina Rocha Costa pela colaboração na realização deste trabalho.

  • Suporte financeiro: Projeto Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia da Covid-19 (2020-2022), chamada MCTIC/CNPQ/FNDCT/MS/SCTIE/DECIT nº 07/2020, com suporte financeiro do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Ministério da Saúde (MS), através do processo CNPQ401744/2020-5
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2021
  • Aceito
    07 Jul 2022
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