Sindemia: tautologia e dicotomia em um novo-velho conceito

Diego de Oliveira Souza Sobre o autor

RESUMO

No bojo da mais grave pandemia em décadas, o termo ‘sindemia’ ressurgiu como uma alternativa para melhor denominar o caráter assumido pela Covid-19. Os autores que defendem esse conceito argumentam que ele confere maior amplitude analítica, o que permite apreender as interações sinérgicas entre doenças e as suas origens sociais. O objetivo deste ensaio consistiu em analisar esse conceito à luz do materialismo histórico-dialético. Para tal, dialoga-se, sobremodo, com a corrente da saúde coletiva que se desenvolveu sob influência do marxismo. Assim, a categoria determinação social do processo saúde-doença é chamada ao debate quando se revela a sua maior amplitude ante o conceito de sindemia. Constatou-se que o conceito ora em análise é tautológico e reproduz velhas dicotomias do modelo biomédico, mesmo querendo criticá-lo.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Processo saúde-doença; Pandemias; Sindemia

Prólogo de uma reflexão

Os termos epidemia e pandemia são insuficientes para explicar a interação que certas doenças estabelecem na sociedade? Esses termos dão conta de apreender o caráter interativo dos vários eventos de saúde, a exemplo do acúmulo da carga de doenças, com os fatores sociais, políticos, econômicos etc.? O termo sindemia é, então, uma alternativa mais adequada? Casos como o da Covid-19 não são, portanto, uma pandemia e, sim, uma sindemia?

Diante dessas questões, este ensaio possui o objetivo de analisar o conceito de sindemia, submetendo-o ao crivo teórico do materialismo histórico-dialético e, desse modo, confrontando-o com o universo categorial e conceitual da saúde coletiva. Com isso, buscamos pôr à prova a pertinência desse conceito diante de conceitos já utilizados. É ocioso dizer que, enquanto ensaio, trata-se de uma reflexão teórica preliminar, não exaustiva, mas que mantém o rigor no que diz respeito a ideias, categorias, conceitos e bibliografia evocados no debate.

Antes de seguirmos à análise, é preciso deixar claro em que consiste o conceito de sindemia. Introduzido no debate da saúde pública, na década de 1990, pelo antropólogo médico Merrill Singer, o conceito buscou atingir uma dimensão analítica mais ampla da epidemia de HIV/Aids que assolava os Estados Unidos da América (EUA) desde a década de 1980, até então negligenciada pela saúde pública hegemônica, porque centrada na ideia preconceituosa de grupos de riscos ou apenas em aspectos biológicos.

A discussão veio a público pela primeira vez, de forma mais sistematizada, no artigo ‘Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology’11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, no qual Singer, de forma acertada, identifica que a epidemia de HIV/Aids se mostrava uma crise sanitária que não poderia ser explicada pelo velho viés biologicista da saúde pública. O debate sobre as características do vírus e o que ele provoca no organismo humano era e é imprescindível, mas insuficiente. Para o autor11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, insuficientes também eram as formas de descrever e enfrentar a crise no âmbito populacional, pois as noções de endemia, epidemia e pandemia (que também estavam sendo aplicadas para o caso do HIV/Aids) não implicavam o instrumental necessário para alcançar a efetiva dinâmica social da crise.

Essa dinâmica peculiar, consoante Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, soergue-se da interação sinérgica que o HIV/Aids estabelece com os vários elementos do caos de algumas cidades dos EUA. Essa interação está marcada por um mosaico de condições endêmicas já estabelecidas, desde doenças até um amplo conjunto de questões político-econômicas e fatores sociais, incluindo desemprego, pobreza, problemas habitacionais, desnutrição, problemas ambientais e de mobilidade, falta de acesso a serviços de saúde, uso de álcool e drogas, além de outros problemas ligados à juventude11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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.

O autor11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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exemplifica como pode ocorrer o comportamento sindêmico do HIV/Aids: a pobreza predispõe à desnutrição; esta, por sua vez, pode se associar ao estresse crônico e a doenças previamente estabelecidas, comprometendo o sistema imunológico. Some-se a isso uma série de fatores socioeconômicos que aumentam a probabilidade de abuso de drogas e exposição ao HIV. Substâncias de abuso contribuem para o aumento do risco de exposição à Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) que podem, por sua vez, ser um cofator de infecção pelo HIV. Desenvolvendo-se a Aids, danifica-se ainda mais o sistema imunológico, aumentando da suscetibilidade a doenças oportunistas, como a tuberculose, com maiores chances de óbito.

Constitui-se uma dinâmica interativa que, ainda segundo Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, escapa aos conceitos de endemia, epidemia e pandemia. O autor11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, então, argumenta que inaugura uma nova perspectiva epidemiológica, capaz de chegar ao âmago das doenças e condições sociais que constituem as sindemias no interior das cidades.

Recentemente, com o caso da pandemia de Covid-19, diversos autores22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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3 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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4 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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5 Ribeiro SP, Reis AB, Dáttilo W, et al. From Spanish Flu to Syndemic COVID-19: longstanding sanitarian vulnerability of Manaus, warnings from the Brazilian rainforest gateway. An. Acad. Bras. Cienc. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; 93(supl3):e20210431. Disponível em: http://doi.org/10.1590/0001-3765202120210431.
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-66 Cunha AR, Velasco SFM, Hugo FN, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on the provision of dental procedures performed by the Brazilian Unified Health System: a syndemic perspective. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (24):e210028. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210028.
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lançaram mão desse conceito na tentativa de realizar uma abordagem mais ampla da crise sanitária. Estabelecemos um diálogo crítico com esses autores, inclusive Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, exibido em mais três seções. Na primeira, apresentamos uma breve descrição do debate sobre o suposto caráter sindêmico da Covid-19. Na segunda, argumentamos que esse entendimento é uma tautologia. Na última seção, demonstramos seu caráter dicotômico. Para tal, nas últimas duas seções, trazemos à tona a perspectiva da determinação social da saúde (ou determinação social do processo saúde-doença), construída pela saúde coletiva em diálogo com as ciências sociais e humanas, em especial, com o materialismo histórico-dialético77 Souza DO. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serv. Soc. Soc. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; (137):174-191. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.207.
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.

Covid-19: pandemia ou sindemia?

Certamente, após a discussão inicial desenvolvida no contexto da epidemia de HIV/Aids, o momento de maior visibilidade do conceito de sindemia ocorreu em face da pandemia de Covid-19. Foi Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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quem reascendeu o debate por meio de um comentário publicado na revista ‘The Lancet’, no qual defende que a Covid-19 não se constituiu como uma pandemia, mas como uma sindemia. Para o autor22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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, há duas categorias diferentes de doenças interagindo dentro de populações específicas: de um lado, a Covid-19 de natureza infecciosa e, de outro, as Doenças e Agravos Não Transmissíveis (Dant) que predispõem os indivíduos às formas graves de Covid-19 ou que se agravam por causa dela.

Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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prossegue destacando que essas condições estão se acumulando dentro de grupos sociais, provocando um aumento da carga de doenças determinadas pelos padrões de desigualdade previamente estabelecidos na sociedade. Isto é, a agregação dessas doenças sobre um fundo de disparidades sociais e econômicas exacerbam os efeitos adversos de cada doença isoladamente. Devido a isso, o autor22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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é taxativo ao dizer que a Covid-19 não é uma pandemia e, sim, uma sindemia.

O comentário de Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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repercutiu no debate acadêmico, passando a fundamentar algumas análises e reflexões. Vale a pena destacar a ponderação de Mendenhall33 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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que, mesmo reconhecendo a pertinência do debate de Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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, faz algumas ressalvas, porquanto argumenta que não se pode considerar a Covid-19 como sendo sindêmica em qualquer país. Para esse autor33 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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, de fato, a Covid-19 é uma sindemia no contexto analisado por Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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, considerando as condições sociais dos EUA e as fragilidades das medidas de enfrentamento da doença adotadas pelo governo daquele país. Contudo, em países com outras condições sociais e que tiveram medidas mais rígidas de combate à Covid-19, obtendo êxito no controle da crise sanitária, não se pode falar em sindemia.

Mendenhall33 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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cita o exemplo da Nova Zelândia, onde os números de casos e óbitos foram controlados de forma rápida com medidas rígidas de isolamento social que, combinadas a um contexto de substantiva proteção social (incluída a saúde), resultaram em um cenário sanitário e social mais ameno do que a maioria dos países. A África Subsaariana também é citada como exemplo, pois a Covid-19, similarmente, mostrou-se, à época, com números mais brandos nessa região, creditados às medidas sociais e sanitárias adotadas localmente, mais efetivas do que em outros países, até mesmo de capitalismo avançado, como EUA e Reino Unido. Por esse motivo, Mendenhall33 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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argumenta que a Covid-19 não é uma sindemia global, mas apenas se revela assim em alguns países, naqueles nos quais o contexto social, cultural, político e econômico resultou em medidas ineficazes de enfrentamento da doença, atuando negativa e reciprocamente com ela.

Outros autores procuraram fortalecer o entendimento da Covid-19 como sindemia, buscando evidências. Para Fronteira et al.44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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, três dimensões definem o status de sindemia: a concentração de doenças; a interação entre as doenças; e as forças sociais em larga escala que as originam. A partir disso, esses autores44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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investigaram se essas dimensões estão presentes no contexto da Covid-19, chegando à conclusão de que, realmente, trata-se de uma sindemia.

Com efeito, Fronteira et al.44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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destacam que a Covid-19 tem provocado uma carga maior de doenças em vários países, a exemplo daqueles que enfrentam epidemias sazonais de dengue ou que possuem altos indicadores de Dant. A sobreposição entre as doenças faz com que, por exemplo, a dengue seja negligenciada, o que pode produzir um número maior de casos e óbitos por essa doença. Apontam, ainda, a influência que o medo em se infectar tem exercido na saúde mental ou na diminuição da procura por assistência de saúde para outros problemas, agravando-os. Outras situações sinérgicas são exemplificadas por meio da relação entre isolamento social e violência doméstica, ou, ainda, entre a infodemia (a propagação exacerbada de desinformação) e o número de casos e óbitos de Covid-1944 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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Outra forma por meio da qual se buscou evidenciar a existência do caráter sindêmico foi pela investigação de casos particulares. Para Ribeiro et al.55 Ribeiro SP, Reis AB, Dáttilo W, et al. From Spanish Flu to Syndemic COVID-19: longstanding sanitarian vulnerability of Manaus, warnings from the Brazilian rainforest gateway. An. Acad. Bras. Cienc. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; 93(supl3):e20210431. Disponível em: http://doi.org/10.1590/0001-3765202120210431.
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, o caso de Manaus, Brasil, revela a sinergia entre condições sanitárias precárias preexistentes, relaxamento do isolamento social, novas variantes do Sars-CoV-2 e ausência de medidas de enfrentamento que deveriam ter sido tomadas no curso do que eles chamam de sindemia. Esses autores55 Ribeiro SP, Reis AB, Dáttilo W, et al. From Spanish Flu to Syndemic COVID-19: longstanding sanitarian vulnerability of Manaus, warnings from the Brazilian rainforest gateway. An. Acad. Bras. Cienc. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; 93(supl3):e20210431. Disponível em: http://doi.org/10.1590/0001-3765202120210431.
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comparam o caso da Covid-19 em Manaus com a ‘gripe espanhola’ provocada pelo H1N1 em 1918, quando condições semelhantes interagiram para provocar um cenário crítico, inclusive com uma segunda onda ainda mais letal. Com isso, analogamente, a análise também pode retroagir, no sentido de classificar essa gripe, naquela ocasião, como sindêmica.

O tipo de interação analisada por Cunha et al.66 Cunha AR, Velasco SFM, Hugo FN, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on the provision of dental procedures performed by the Brazilian Unified Health System: a syndemic perspective. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (24):e210028. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210028.
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é mais específica, pois se dirige à interferência da Covid-19 nos serviços de atendimento odontológico, no Brasil. Os autores66 Cunha AR, Velasco SFM, Hugo FN, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on the provision of dental procedures performed by the Brazilian Unified Health System: a syndemic perspective. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (24):e210028. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210028.
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argumentam que o número de atendimentos básicos e especializados caíram mais de 40% em 2020 quando comparado a 2019. Os atendimentos não urgentes foram reduzidos em mais de 90%, sob efeitos das medidas de isolamento social. Assim, criou-se uma dinâmica prejudicial ao âmbito odontológico capaz de gerar uma carga de problemas de saúde bucal que se somam à Covid-19.

Convém destacar que, considerando os dois estudos mais específicos, tanto Ribeiro et al.55 Ribeiro SP, Reis AB, Dáttilo W, et al. From Spanish Flu to Syndemic COVID-19: longstanding sanitarian vulnerability of Manaus, warnings from the Brazilian rainforest gateway. An. Acad. Bras. Cienc. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; 93(supl3):e20210431. Disponível em: http://doi.org/10.1590/0001-3765202120210431.
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quanto Cunha et al.66 Cunha AR, Velasco SFM, Hugo FN, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on the provision of dental procedures performed by the Brazilian Unified Health System: a syndemic perspective. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (24):e210028. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210028.
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não colocam pandemia e sindemia como condições excludentes uma da outra. Em diversos momentos da investigação, reconhecem que existe uma pandemia; porém, destacam a dinâmica de interação entre o panorama social, doenças preexistentes e a Covid-19, destacando uma espécie de caráter sindêmico contido na pandemia. Esse entendimento se distingue da reflexão de Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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, para quem não há uma pandemia, mas apenas uma sindemia; ou do argumento de Mendenhall33 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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, que corrobora o pensamento de Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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sobre a existência de uma sindemia de Covid-19, todavia, salientando que ela não possui caráter global.

Em comum a todos esses autores, há o fato de eles se proporem a entender a Covid-19 para além do vírus ou de seus aspectos biológicos. Ao incorporarem o conceito de sindemia, revelam a preocupação com as origens sociais das doenças e como, ao mesmo tempo, elas criam outras contingências sociais. Sem dúvida, essa preocupação é legitima e contribui para a ampliação das perspectivas de enfrentamento. Contudo, questionamos se, realmente, é necessário um novo conceito para tal ampliação ou se a elaboração/aplicação desse conceito cai em uma redundância em face de um entendimento amplo de saúde outrora instituído. Sobre isso, versamos na seção seguinte.

A tautológica invenção do velho ou a reinvenção do novo

O cerne do conceito ora em análise, supostamente novo, está no entendimento da dinâmica social (sinérgica) que as doenças assumem no interior das populações específicas11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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. Ao trazer esse conceito para explicar a Covid-19, Horton22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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não deixa dúvidas: a consequência mais importante em entender essa doença como uma sindemia é para apreender as suas origens sociais, bem como o pouco alcance que medidas puramente biomédicas possuem ante grupos mais vulneráveis, a exemplo dos idosos, negros e minorias étnicas, bem como perante a situação dos trabalhadores essenciais, comumente mal remunerados e precarizados22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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.

Fronteira et al.44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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corroboram a dimensão social que se abre com esse conceito e afirmam que, a partir dele, há uma nova perspectiva de debate. Para esses autores44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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, a década de 1990 viu a introdução de uma abordagem inovadora para compreender a saúde como parte de uma síntese biocultural que abrange, com eminência, as forças sociais, políticas e econômicas relevantes em jogo, bem como as condições ambientais que podem levar ao desenvolvimento da saúde ou da doença.

Ora, o que para Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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e Fronteiras et al.44 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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é uma perspectiva inovadora, consiste, na verdade, em uma dimensão já debatida (com amplitude) desde a década de 1960, inicialmente, pela medicina social latino-americana e, posteriormente, pela saúde coletiva. Referimo-nos, sobretudo, à importância dada às forças sociais, políticas e econômicas como as responsáveis por criar uma dinâmica interativa capaz de produzir fenômenos de saúde, nesse caso, conforme os autores citados, uma sindemia.

A diferença é que a perspectiva da saúde coletiva observa essa dinâmica na totalidade do processo saúde-doença, não apenas em situações que configurariam uma sindemia. Um texto decisivo para entender o contra-argumento que estamos apresentando é o artigo de Asa Cristina Laurell88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25., ‘La salud-enfermedad como proceso social’, de 1982. Isso porque Laurell88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25. consegue demonstrar, de forma sistemática, como as doenças fazem parte de um processo mais amplo cuja raiz é de caráter social. Inclusive, a autora88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25. parte de perfis epidemiológicos em três países com relações sociais muito distintas, EUA, México e Cuba, a fim de demonstrar como esses perfis são reflexos de dinâmicas sociais específicas, com diferentes forças econômicas, políticas etc.

Na discussão de Laurell88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25. e, também, em vários outros autores dessa corrente/movimento, embora com diferenças entre eles, nunca se concebe a doença como fenômeno isolado, mas como componente de um processo saúde-doença. Este, por sua vez, embora possa se manifestar individual e biologicamente, é sempre determinado socialmente. Ou seja, em qualquer evento de saúde, do caso individual às pandemias, há sempre um caráter processual (logo, de múltiplas interações sinérgicas) no qual a pedra de toque é social (o que inclui a economia, a política, a cultura etc.)77 Souza DO. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serv. Soc. Soc. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; (137):174-191. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.207.
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.

Breilh99 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud Pública. 2013; 31(1):13-27. aprofunda o debate desse caráter processual consagrando a expressão ‘determinação social da saúde’. Ao explicar esse processo de determinação, Breilh99 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud Pública. 2013; 31(1):13-27. enfatiza a inseparabilidade das dimensões individual e coletiva (assim como o natural e o social), com destaque para a complexidade de movimentos (logo, interações) que se estabelecem entre os diversos elementos que estão implicados nessas dimensões (sejam doenças que se acumulam, sejam condições sociais, processos políticos etc.). Para o autor99 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud Pública. 2013; 31(1):13-27., as diversas partes que compõem o processo se movimentam e interagem em uma relação dialética entre universal, particular e singular. Nessa interação, a tendência central não é a de equilíbrio ou adaptação (seja do indivíduo, seja da população), mas a de transformações mútuas entre os agentes e os elementos implicados.

Por ser uma teoria materialista histórico-dialética, o ponto fulcral da determinação social da saúde não poderia ser outro senão a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25.. Nas palavras de Breilh99 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud Pública. 2013; 31(1):13-27.(21)

[...] el paradigma de la determinación social [...] se propone descifrar el movimiento de la vida, de su metabolismo histórico en la naturaleza, de los modos de vivir típicos (económicos, políticos, culturales) y del movimiento de los geno-fenotipos humanos, en el marco del movimiento de la materialidad social cuyo eje es la acumulación de capital, nombre que toma en nuestras sociedades la reproducción social.

Desse modo, a possibilidade de interações sinérgicas e de outras interações mutuamente transformadoras entre os elementos envolvidos já está pressuposta na compreensão de saúde como processo. Além disso, ao se reconhecer que esse processo é determinando socialmente, também fica presumido que diversas forças participam da origem das doenças, embora sejam determinadas reciprocamente por elas.

Vale ressaltar que a pandemia de Covid-19 foi analisada pelo prisma da determinação social, tendo sido demonstrado, por exemplo, o papel do agronegócio na destruição da natureza e, consequentemente, na alteração do ciclo de algumas doenças que só circulavam entre animais silvestres, mas que, a partir das transformações ambientais, passaram a deslocar-se entre os humanos1010 Souza DO. A pandemia de Covid-19 para além das ciências da saúde: reflexões sobre sua determinação social. Cienc. Saúde. Colet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 25 (supl1):2.469-2.477. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.1.11532020.
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. Ou ainda, sobre a velocidade e alcance global do Sars-CoV-2 como reflexo da mundialização do capital, provocando acelerações e interconexões sociais que sejam compatíveis à rotação acelerada do capital, a exemplo do rápido trânsito de pessoas, objetos, ideias e costumes1111 Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante; 2020..

A esses processos, somem-se as questões de gênero, etnia, desigualdades sociais etc. que os próprios autores22 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10255):874. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6.
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3 Mendenhall E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. Lancet. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 396(10264):1731. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32218-2.
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4 Fronteira I, Sidat M, Magalhães JP, et al. The SARS-CoV-2 pandemic: A syndemic perspective. One health. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (12):100228. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100228.
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5 Ribeiro SP, Reis AB, Dáttilo W, et al. From Spanish Flu to Syndemic COVID-19: longstanding sanitarian vulnerability of Manaus, warnings from the Brazilian rainforest gateway. An. Acad. Bras. Cienc. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; 93(supl3):e20210431. Disponível em: http://doi.org/10.1590/0001-3765202120210431.
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-66 Cunha AR, Velasco SFM, Hugo FN, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on the provision of dental procedures performed by the Brazilian Unified Health System: a syndemic perspective. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2022 jul 24]; (24):e210028. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720210028.
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que adotam o conceito de sindemia apontam e, nesse ponto, com bastante razão. A questão é que essa condição não consiste em novidade e, portanto, não demandaria a invenção de um novo conceito para que seja depreendida da realidade. Ao contrário disso, o debate da saúde coletiva (aquela que se desdobrou da medicina social latino-americana) já apontava esse caráter, pois cunhou uma concepção ampla de saúde. Mesmo para fenômenos comumente analisados pela epidemiologia tradicional (para a qual a saúde coletiva coloca ressalvas), como as epidemias e as pandemias, a problematização da determinação social é cabível e capaz de desvelar sua processualidade heterogênea, inclusive repleta de interações sinérgicas.

A nosso ver, o conceito de sindemia acaba sendo até mais restritivo, pois apenas confere destaque às forças sociais, políticas, econômicas etc., assim como às diversas interações possíveis entre doenças, quando se trata de um contexto sindêmico. Ora, onde estariam essas forças e essas interações quando a situação não é sindêmica? Qualquer evento de saúde não seria resultado e, ao mesmo tempo, corresponsável por algum tipo de interação sinérgica?

O conceito assume um alcance ainda mais restrito quando é utilizado no sentido de mero sinergismo entre doenças, como já empregado por alguns autores1212 Novotny T, Hendrickson E, Soares ECC, et al. HIV/AIDS, tuberculose e tabagismo no Brasil: uma sindemia que exige intervenções integradas. Cad. Saúde Pública. 2017 [acesso em 2022 jul 2024]; 33(supl3):e00124215. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00124215.
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,1313 Cruz JPS, Tovilla-Zárate CA, González-Morales DL, et al. Risk of a syndemic between COVID-19 and dengue fever in southern Mexico. Gac. Med. Mex. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; 156(5):460-464. Disponível em: https://doi.org/10.24875/GMM.M20000449.
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. Nesses casos, destitui-se até mesmo a boa intenção da formulação original de Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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, uma vez que, nela, a ideia consiste em ir além dos parâmetros biomédicos, portanto, não sendo cabível essa centralidade nas doenças. Reduzir a sindemia a um sinergismo de doenças é uma apreensão parcial da proposta original, porque diminui o papel das interações sociais que estão nas origens dos eventos sanitários.

Apesar da boa intenção e da pertinência da contestação ao modelo biomédico, entendemos que sindemia é um novo-velho conceito se confrontado com o debate latino-americano; é uma tautologia que implica, inclusive, a restrição de uma concepção ampla de saúde.

A sindemia como dicotomia do processo saúde-doença: o biológico fora do social

A tentativa de cunhar um conceito para situações em que há uma sinergia capaz de imputar origens sociais às doenças representa uma dicotomia entre o biológico e o social. Isso porque essas origens sociais não são exclusividade das situações enquadradas como sindêmicas, mas um caráter ineliminável de qualquer fenômeno de saúde. A ideia de processo saúde-doença88 Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Rev. Latinoam. Salud. 1982; (2):7-25. pressupõe a indissociabilidade entre social e biológico e, portanto, entende que saúde e doença são dois momentos de um mesmo processo1414 Rezende ALM. Saúde: dialética do pensar e do fazer. 2. ed. São Paulo: Cortez; 1989.

15 Ferrara FA, Acebal E, Paganini JM. Medicina de la comunidad: medicina preventiva social y alternativa. Buenos Aires: Intermedica; 1976.
-1616 Souza DO. A saúde na perspectiva da ‘Ontologia do ser social’. Trab. Educ. Saúde. 2016 [acesso em 2022 jul 24]; 14(2):337-354. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00009.
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.

Quando Singer11 Singer M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994 [acesso em 2022 jul 24]; 39(7):931-948. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90205-4.
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defende que seu conceito é capaz de revelar como o social interage com as doenças, escapa ao seu entendimento o fato de a doença, enquanto parte de um processo, ser ela mesma um fenômeno social. O social, na concepção singeriana, é uma dimensão capaz de interagir sinergicamente com a doença, mas que lhe é externa. Em outra perspectiva, defendemos que, embora existam particularidades sociais que são exteriores ao processo saúde-doença, ele carrega consigo, internamente, o caráter social.

Vejamos que a Covid-19 não é meramente o vírus ou a fisiopatologia do indivíduo infectado, mas é isso somado à história social que lhe subjaz; isto é, as suas origens sociais, as repercussões econômicas que provoca ou as alterações nas relações pessoais que promove, entre diversas outras particularidades. Esses não são elementos externos que atuam sinergicamente com a doença, mas fazem parte da história da doença, são a doença em si, concebida como processo e para além da biologia.

Embora os defensores do conceito (sindemia) critiquem e tentem superar o modelo biomédico, acabam caindo na mesma dicotomia desse modelo, mesmo que avancem na apreensão de múltiplos aspectos interativos. Isso porque continuam entendendo o social de um lado e a doença (como fenômeno biológico) de outro. Eles tomam como ponto de partida uma separação existente a priori (social e biológico) que, finalmente, resolver-se-ia com o conceito sindêmico.

Trata-se de uma tendência que reproduz o viés positivista, pois nela primeiro se fragmenta para depois unir os pedaços no interior de teorias sofisticadamente pensadas, mas com pouco lastro na totalidade social. Revestidas pelo subterfúgio da interação, essas teorias passam a ser concebidas como a antítese do positivismo (na saúde, muito bem representado pelo modelo biomédico); porém, assumem essa posição sem se darem conta de que reproduzem um ponto de partida muito similar ao do modelo biomédico.

A nosso ver, o ponto de partida deve ser outro. Social e biológico não precisam ser unidos porque não estão separados na realidade. Como demonstra Lukács1717 Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013., o ser social é, ao mesmo tempo, ser natural (biológico), visto que, por intermédio da transformação da natureza não humana, o ser humano consegue transformar a si mesmo, individual e coletivamente, dando um salto ontológico rumo a uma nova esfera de ser. Trata-se de um contínuo processo de complexificação que se inicia com o ser inorgânico e o salto ontológico (a ruptura da estrutura qualitativa do ser, rumo a uma estrutura superior) que abre o caminho para a existência do ser orgânico (natureza). Do âmago desse ser (orgânico), a espécie humana se descola (ocorre um novo salto), graças à sua capacidade teleológica de transformar a natureza de forma direcionada a um fim. Daí o novo salto capaz de originar o ser social, sem fazer com que ele deixe de ser, concomitantemente, inorgânico e orgânico.

Essa complexificação dá origem a patamares superiores de existência, mas que sempre pressupõem a existência dos níveis inferiores. Assim, não existe ser social sem natureza; e, ao mesmo tempo, a existência do ser social significa uma ruptura dialética (ruptura-continuidade) de parte da natureza em relação ao seu modus operandi stricto, alçada a um novo modus operandi (social)1717 Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013..

Aqui entendemos a saúde humana como particularidade do ser social; e, como tal, ela carrega consigo a indissociabilidade entre natureza e sociedade que é peculiar a essa esfera de ser. Ainda que a saúde se expresse biológica e individualmente, ela se desenvolve dentro de um âmbito que já não é mais pura biologia. Portanto, o biológico (presente em estado puro na natureza) está imbricado com o social desde as origens deste último. Por sua vez, o processo saúde-doença é, sempre, uma articulação orgânica entre social e biológico77 Souza DO. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serv. Soc. Soc. 2020 [acesso em 2022 jul 24]; (137):174-191. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.207.
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,1616 Souza DO. A saúde na perspectiva da ‘Ontologia do ser social’. Trab. Educ. Saúde. 2016 [acesso em 2022 jul 24]; 14(2):337-354. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00009.
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.

Se o nosso ponto de partida é outro, o ponto de chegada também passa a ser outro. Como não partimos de um entendimento que separa biológico e social para uni-los em uma relação sinérgica (sindêmica), o nosso ponto de chegada consiste na possibilidade de reconstruir a processualidade entre universal-particular-singular em nível de concreto pensado e, com isso, abrir caminhos para intervenções transformadoras. Isso implica entender como a universalidade do modo de produção capitalista produz relações particulares de classe, gênero, étnicas etc.; como essas relações reverberam nas condições materiais de vida dos indivíduos (singularmente); por quais mediações essa processualidade se dá no tempo e nos diferentes espaços etc.

Obviamente, os mesmos princípios são válidos quando a particularidade analisada/enfrentada é uma pandemia ou uma doença que acomete o bairro, a fábrica ou o indivíduo. Ser capaz de fazer as conexões (depreender as interações) entre o singular, o particular e o universal é condição dada quando se trata de saúde ou de qualquer outra particularidade do ser social, entendendo este último como resultado de um salto ontológico desde o ser natural. Aí reside a chave heurística (e práxica) para intervir na saúde para além do instrumental biomédico, escapando de suas dicotomias.

Um breve epílogo ou um prólogo de reflexões ulteriores

Constatamos que a ideia de pandemia pode ser suficiente para explicar a história da Covid-19 em 2020/2021, desde que seja entendida para além de seus aspectos biológicos, como um processo determinado socialmente. Por isso, o conceito de sindemia é redundante em face das possibilidades que o debate sobre a determinação social do processo saúde-doença gerou há, no mínimo, 50 anos. Além disso, trata-se de conceito que restringe as possibilidades de entender a saúde em toda sua amplitude, porquanto confere eminência às forças sociais em situações particulares, quando elas, na verdade, estão presentes universalmente, inclusive de forma indissociável ante a dimensão biológica.

Por que, então, novos conceitos são forjados fora da América Latina para explicar processos que nós, latinos, já conseguimos explicar há tempos? Nessas reflexões finais, levantamos a hipótese de que essa condição se deve à posição periférica que ocupamos socialmente, envolvendo, inclusive, a colonização intelectual do debate. Isso implica que, por um lado, na Europa e nos EUA, o debate da saúde coletiva não reverbere de forma consistente e que, por outro, incorporemos aqui conceitos heterônimos a despeito dos conceitos elaborados pelas diversas correntes teóricas soerguidas do ‘solo’ latino-americano. Obviamente, a validade dessa hipótese e de outras possíveis razões para o problema apontado deve ser posta à prova em reflexões ulteriores.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2022
  • Aceito
    25 Maio 2022
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