O acadêmico de Medicina frente à população em situação de rua: Trabalho Colaborativo como ferramenta

Elisabete D’Oliveira Paula Sousa Magda de Souza Chagas Sobre os autores

RESUMO

Trata-se do relato de experiência de uma acadêmica de Medicina da Universidade Federal Fluminense, bolsista do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde/Interprofissionalidade, atuando integrada ao Consultório na Rua de Niterói (RJ), Brasil entre abril de 2019 e março de 2020. Objetivando-se o reconhecimento de desafios, limites e potencialidades da Educação Interprofissional e do Trabalho Colaborativo, utilizou-se como ferramenta metodológica a narrativa construída por meio de 44 relatórios enviados aos preceptores e tutores do Programa, partilhando-se não apenas o que o campo prático como espaço físico trouxe à luz, mas também o que ganhou vida por meio da intersubjetividade no encontro com diversos personagens. A oportunidade de acompanhar o Consultório na Rua possibilitou à estudante conhecer mais sobre esse serviço essencial para garantia da equidade na saúde da população em situação de rua, levando ao aperfeiçoamento e desenvolvimento de habilidades e ferramentas que irão compor um trabalho centrado na formação de vínculos positivos com usuários do serviço, na oferta do cuidado integral e nas práticas colaborativas em saúde. Concluiu-se que, apesar das inúmeras barreiras, a Educação Interprofissional e o Trabalho Colaborativo constituem importantes instrumentos na formação acadêmica, destacando-se na produção de serviços de saúde de alta qualidade, sobretudo na oferta do cuidado integral às pessoas em vulnerabilidade.

PALAVRAS-CHAVE
Atendimento integral à; saúde; Assistência centrada no paciente; Educação Interprofissional; Pessoas em situação de rua

Introdução

Sabe-se que é ainda reduzido o conhecimento que se tem acerca da predisposição dos alunos em aprender sobre a População em Situação de Rua (PSR), mesmo diante de currículos voltados para contextos de vulnerabilidade11 Feldman CT, Stevens GD, Lowe E, et al. Inclusion of the homeless in health equity curricula: a needs assessment study. Med Educ Online. 2020 [acesso em 2021 maio 6]; 25(1). Disponível em: https://doi.org/10.1080/10872981.2020.1777061.
https://doi.org/10.1080/10872981.2020.17...
. No entanto, a necessidade de se estar apto para acolher esse grupo é essencial para todos os profissionais, sobretudo para aqueles que atuarão em um sistema de saúde que tem como alguns dos princípios a universalidade e a equidade, como o Sistema Único de Saúde (SUS), onde a Educação Interprofissional (EIP) e o Trabalho Colaborativo (TC) são fundamentais.

Em 23 de julho de 2018, o Ministério da Saúde publicou o edital nº 10 com a finalidade de promover a seleção de projetos para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), em sua edição Interprofissionalidade, que fomentassem a “qualificação dos processos de integração ensino-serviço-comunidade, de forma articulada entre o [...] SUS e as instituições de ensino [...]”22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Edital nº 10, 23 de julho 2018. Seleção para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde PET-Saúde/Interprofissionalidade - 2018/2019. Brasília, DF: Diário Oficial da União. 24 Jul 2019. (ed. 141, seção 3, página: 78). [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/33889041/do3-2018-07-24-edital-n-10-23-de-julho-2018-selecao-para-o-programa-de-educacao-pelo-trabalho-para-a-saude-pet-saude-interprofissionalidade-2018-2019-33889037.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
(78)
, promovendo a “[...] EIP e as Práticas Colaborativas em Saúde”22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Edital nº 10, 23 de julho 2018. Seleção para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde PET-Saúde/Interprofissionalidade - 2018/2019. Brasília, DF: Diário Oficial da União. 24 Jul 2019. (ed. 141, seção 3, página: 78). [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/33889041/do3-2018-07-24-edital-n-10-23-de-julho-2018-selecao-para-o-programa-de-educacao-pelo-trabalho-para-a-saude-pet-saude-interprofissionalidade-2018-2019-33889037.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
(78)
e “mudanças curriculares alinhadas às Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para todos os cursos de graduação na área da saúde”22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Edital nº 10, 23 de julho 2018. Seleção para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde PET-Saúde/Interprofissionalidade - 2018/2019. Brasília, DF: Diário Oficial da União. 24 Jul 2019. (ed. 141, seção 3, página: 78). [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/33889041/do3-2018-07-24-edital-n-10-23-de-julho-2018-selecao-para-o-programa-de-educacao-pelo-trabalho-para-a-saude-pet-saude-interprofissionalidade-2018-2019-33889037.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
(78)
e que articulassem

suas ações com as de outros projetos que contribuem para fortalecer mudanças na formação de graduação em consonância com as complexas necessidades em saúde requeridas para o SUS22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Edital nº 10, 23 de julho 2018. Seleção para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde PET-Saúde/Interprofissionalidade - 2018/2019. Brasília, DF: Diário Oficial da União. 24 Jul 2019. (ed. 141, seção 3, página: 78). [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/33889041/do3-2018-07-24-edital-n-10-23-de-julho-2018-selecao-para-o-programa-de-educacao-pelo-trabalho-para-a-saude-pet-saude-interprofissionalidade-2018-2019-33889037.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
(78)
.

O Consultório na Rua (CnaR), que integrou o PET-Saúde/Interprofissionalidade por meio da preceptoria de graduandos, compõe a Rede de Atenção Psicossocial e segue fundamentos e diretrizes definidos pela Política Nacional de Atenção Básica33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012. [acesso em 2021 fev 14]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/manual_cuidado_populalcao_rua.pdf.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco...
. Tal serviço é essencial para a garantia do acesso equânime à saúde pela PSR. Tendo como um dos focos a atenção integral, a equipe do CnaR (eCnaR) pode ser composta por: a) enfermeiro, psicólogo, assistente social e terapeuta ocupacional; b) agente social, técnico ou auxiliar de enfermagem, técnico em saúde bucal, cirurgião dentista, profissional/professor de educação física e profissional com formação em arte e educação; e c) médico. A eCnaR pode ser estruturada em três distintas modalidades: I) constituída minimamente por quatro profissionais e obrigatoriamente formada por dois dentre os trabalhadores citados no item ‘a’ e os demais profissionais citados nos itens ‘a’ e ‘b’; II) constituída por no mínimo seis profissionais, sendo obrigatoriamente três dentre os citados no item ‘a’ e os demais, nos itens ‘a’ e ‘b’; III) formada pela II acrescida do médico44 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.029, de 20 de maio de 2014. Amplia o rol das categorias profissionais que podem compor as Equipes de Consultório na Rua em suas diferentes modalidades e dá outras providências. Diário oficial da União. 21 Maio 2014..

Com a finalidade de aproximar o acadêmico deste mundo, a realização de atividades voltadas para populações em situação de vulnerabilidade e a partilha de vivências são práticas indispensáveis à formação de futuros profissionais. Desse modo, este relato de experiências da integração de uma aluna de Medicina ao CnaR tem como objetivos produzir reflexões sobre a educação e o TC, destacar desafios e limites no exercício da interprofissionalidade, sobretudo diante de populações em vulnerabilidade, e identificar potencialidades na educação e no trabalho interprofissional.

Metodologia

Este trabalho relata experiências da acadêmica de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) vivenciadas entre abril de 2019 e março de 2020, ao acompanhar o serviço oferecido pela eCnaR de Niterói como estagiária bolsista do PET-Saúde/Interprofissionalidade, sendo assistida por preceptores/profissionais do serviço e por tutores/professores da UFF. O CnaR de Niterói, que tem como público-alvo a PSR daquele município, integrou o Programa por meio dessa preceptoria de graduandos da UFF dos cursos de Medicina, Educação Física e Serviço Social, com um preceptor bolsista e dois voluntários.

O trabalho realizado no CnaR de Niterói desenvolveu-se por intermédio de duas equipes formadas por um coordenador, um médico, um psicólogo, dois enfermeiros, dois técnicos de enfermagem, três assistentes sociais, um agente redutor de danos, um dentista e dois motoristas responsáveis pelo transporte da equipe e de usuários por meio de duas unidades móveis disponibilizadas ao serviço, importantes para melhor desenvolvimento das ações planejadas. Sendo o trabalho essencialmente itinerante o principal campo de atuação foi o espaço da rua, embora não único, e a interação da acadêmica de Medicina não se restringiu às relações estabelecidas com preceptores e outros discentes; foi também construída com a eCnaR, com diversos usuários dessa estratégia e com trabalhadores de outros serviços.

Utilizaram-se como base para a composição desta narrativa 44 relatórios reflexivos, escritos e enviados semanalmente ao preceptor e aos tutores do Programa. A releitura desses relatos possibilitou a renovação do olhar cada vez que eram contemplados, permitindo o acréscimo de novas ideias acerca das histórias narradas pelos usuários do serviço que, de forma ora delicada, ora brusca, foram também compondo a história da acadêmica.

Para se produzir o cuidado, não basta que o profissional esteja disponível apenas para escutar histórias de adoecimento. Porque não escutar histórias de vida? Conhecer as memórias do paciente é também se deixar envolver por suas narrativas, não somente as de doença, mas também as de superação, conflitos, sonhos... e, assim, ser capaz de compreendê-lo melhor. As narrativas realizam “mediações entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ ao ‘eu’ na relação ser-no-mundo”55 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2014 [acesso em 2021 maio 16]; 9(4):1065-76. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232014000401065&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
(1068)
, sendo assim, é possível chegar, por meio da escuta, a diagnósticos mais precisos e propor projetos terapêuticos singulares mais eficazes - às vezes, para alguns sujeitos, a escuta é o próprio tratamento, ou pelo menos seu início.

Relato de experiência e reflexões

Começo recordando-me da fala de um aluno de Medicina que dizia que se quisesse cuidar do paciente, seria enfermeiro. Perguntei-me o porquê de tamanho distanciamento do ato de cuidar. Está a condição de ser médico oposta ao cuidado? Essa ação é exclusiva do profissional de enfermagem? O cuidar é ‘função’ de um e não de outro? Pertence a um, mas não ao outro? Quem produz o cuidado? O que ele tinha em mente quando se referia ao cuidado? Qual era, para ele, a definição? Tal visão parecia limitar não apenas o cuidado e toda dimensão que carrega, mas também a atuação dos médicos, além de reduzir a prática dos enfermeiros ao exercício do cuidado em seu sentido mais restrito, excluindo também o paciente desse processo de produção do próprio cuidado.

A Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 3, de 20 de junho de 2014, que institui as DCNs do Curso de Graduação em Medicina, enfatiza a importância da formação de médicos com princípios humanísticos, reflexivos, críticos e éticos que sejam capazes de atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, assumindo, dentre outros, o compromisso com a defesa da saúde integral do ser humano e tendo a transversalidade em sua prática66 Brasil. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_RES_CNECESN32014.pdf?query=classificacao.
https://normativasconselhos.mec.gov.br/n...
. Nesse prisma, o graduando será formado de modo a considerar as diversidades do sujeito, trabalhando interprofissionalmente para a concretização do acesso universal e equânime à saúde, com base na reflexão sobre sua própria prática e na troca de saberes com outros profissionais da área da saúde e de outras áreas do conhecimento66 Brasil. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. [acesso em 2022 jul 4]. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_RES_CNECESN32014.pdf?query=classificacao.
https://normativasconselhos.mec.gov.br/n...
.

Um profissional do CnaR certa vez me indagou a respeito do que escrevia em meus relatórios entregues semanalmente ao preceptor e aos tutores do PET-Saúde/Interprofissionalidade. Disse-lhe que eram reflexões acerca da minha atuação e formação como estudante e futura médica. O profissional perguntou-me, então: “Como futura médica ou profissional de saúde?”. Disse-lhe com firmeza que como profissional de saúde sempre, mas que, diante de situações como a anteriormente apresentada sobre a atuação médica, era esse o profissional, mais do que qualquer outro na minha visão, o que precisava repensar a forma como acolhe a PSR e a qualidade do cuidado que a ela oferece. Situações como essa e tantas outras por mim vividas são algumas das que fortaleceram minha resposta.

Considerando as competências e habilidades necessárias para a formação dos profissionais de saúde, a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 569, de 8 de dezembro de 2017, que expressa pressupostos, princípios e diretrizes comuns para as DCNs dos cursos de graduação para a área da saúde, destaca a necessidade de “[...] abordagem do processo de saúde-doença em seus múltiplos aspectos de determinação [...]”77 Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União. 26 Fev 2018. [acesso em 2022 ago 4]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso569.pdf.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
por meio da inserção de estudantes, desde o início da formação, em cenários diversificados de prática do SUS, com base na “[...] perspectiva colaborativa e interprofissional”77 Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União. 26 Fev 2018. [acesso em 2022 ago 4]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso569.pdf.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
, levando a mudanças na “[...] lógica da formação dos profissionais e na dinâmica da produção do cuidado em saúde”77 Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União. 26 Fev 2018. [acesso em 2022 ago 4]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso569.pdf.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
.

Durante o estágio, procurava sempre me aproximar dos usuários e escutar atentamente suas histórias de vida, que traziam muita tristeza, medo, solidão, mas também momentos felizes, construção de novos laços ou restabelecimento dos perdidos e esperanças. Em alguns momentos, quando sentia que já não havia o que ser feito, a escuta, ferramenta valiosa, tornava-se a única que poderia continuar utilizando, ouvi de uma usuária do CnaR: “Só de a senhora ter me dado atenção já valeu muito! Fez muita coisa!”. Inicialmente, ela estava agitada e chorava muito. Mas, apesar da extrema dificuldade para se estabelecer a princípio um diálogo, pude oferecer-lhe um pouco do que ela precisava naquele momento, que era ser de fato ouvida. Nesse dia, percebi que pude fazer com que alguém em situação de rua não se sentisse invisível.

O território era dinâmico: moldava-se de acordo com pessoas, horários e acontecimentos diários. As atividades ocorriam predominantemente no espaço da rua, embora hospitais, abrigos, ocupações, Unidades Básicas de Saúde e outros onde a PSR pudesse ser encontrada também eram locais de atuação da equipe. O público era diversificado, sendo abordados jovens, adultos, idosos, homens, mulheres, gestantes, famílias, usuários ou não de álcool e outras drogas, desempregados e trabalhadores autônomos, pessoas há muitos anos ou poucos dias nas ruas, com e sem educação formal, com e sem religião, dentre tantos outros. Cada um com necessidades ou demandas diferentes - doenças físicas, transtornos mentais, ausência de documentos, procura por trabalho ou abrigo, necessidade de pré-natal etc. - com sentimentos compartilhados ou não e com uma atitude singular frente à sua condição socioeconômica e diante da eCnaR.

Durante esse período, pôde-se perceber a importância de não se desperdiçar o momento em que a própria pessoa ansiava por mudanças em sua vida, pois esse era o cenário mais favorável e dotado de maior potencial para transformações profundas e duradouras no indivíduo. Percebia-se que um dos pontos-chave do serviço era trabalhar na construção da autonomia do usuário. Em diversos momentos, ouvi a frase “Nós não precisamos de médico. Não estamos doentes!”. Nesse contexto, outro desafio era despertar nesse sujeito o desejo de autocuidado a partir de ações que envolvessem a promoção e a recuperação da saúde e a prevenção de agravos.

Em alguns momentos, senti-me angustiada quando surgiam demandas que dificilmente poderia ajudar a resolver como estudante e estagiária, ainda sem a autonomia e experiência necessárias para conduzir o caso com a equipe. Creio que aquele sentimento também fazia parte do aprendizado e que a sensação de impotência diante da complexidade de um caso pode estar presente em alguns momentos, até mesmo em profissionais experientes, sendo o TC essencial para a superação dessas adversidades.

Diante dos cenários expostos, sei que, mesmo após formada, nem sempre terei as ferramentas necessárias para a resolução dos inúmeros e intrincados problemas que se apresentarão. Sei também que essa é uma ansiedade que me convida a refletir sobre esse grupo em situação vulnerável e reforça a profissional que almejo me tornar e a qualidade de serviço que desejo oferecer. Esse modo de pensar e fazer o trabalho médico pautado no cuidado compartilhado acompanhou-me durante toda a formação e embora tenha passado a utilizar o termo TC com maior propriedade após minha participação no PET-Saúde, seu sentido já estava presente em mim e foi crescendo a cada experiência.

Ao conviver com a equipe e os usuários do serviço, pude confirmar algumas ideias que já possuía a respeito dos objetivos da estratégia CnaR e do TC em saúde, sobretudo, pude acrescentar novos e valiosos conhecimentos. Sei que ainda há muito o que ler, conhecer, vivenciar e aprender, mas não há dúvidas de que a experiência foi rica, provocou reflexões críticas e contribuiu profundamente, não apenas para minha formação médica e profissional como também para meu crescimento como indivíduo e ser social.

Mas afinal, quem é essa PSR? Onde pode ser encontrada? Quem são os sujeitos que a compõem? É possível responder, ao menos em parte, a estes questionamentos dando-se visibilidade à PSR mediante diagnósticos, censos, cartografias, mapeamento de área etc. Esses diferentes mecanismos auxiliam a equipe na identificação dessas pessoas, onde costumam ficar, como se relacionam com a comunidade e demais atores que as rodeiam33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012. [acesso em 2021 fev 14]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/manual_cuidado_populalcao_rua.pdf.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco...
. Saber quantos indivíduos compõem essa população e onde encontrá-los é fundamental para a aplicação de políticas de saúde pública e criação de estratégias que deem visibilidade a esses sujeitos. Porém, tão importante quanto, é o trabalho realizado no âmbito de cada serviço, à medida que procura resoluções para necessidades e demandas de cada indivíduo e grupo populacional.

Apesar das inúmeras dificuldades para a realização de um censo que reflita adequadamente o número de pessoas vivendo em situação de rua no país, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgou em 2020 nota técnica que apresenta a estimativa da PSR no Brasil no período de setembro de 2012 a março de 2020. O estudo evidenciou crescimento da PSR no decorrer dos anos analisados e uma aceleração recente desse aumento, além de maior concentração dessa população nos grandes municípios, onde o crescimento foi ainda mais intenso. Constatou-se que o número estimado de pessoas em situação de rua no Brasil era de 221,869 em março de 2020, apresentando características principalmente urbanas e predominância no Sudeste, onde mais da metade dessa população pode ser encontrada88 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nota Técnica nº 73 (Disoc): Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020). Brasília, DF: IPEA; 2020. [acesso em 2021 maio 16]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35812.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
.

São diversos os fatores que levam o sujeito a estar em situação de rua e, dentre eles, podem ser destacados conflitos familiares, uso prejudicial de álcool e outras drogas, desemprego e violência doméstica. Saber reconhecer essas particularidades a fim de desenvolver ações singulares, sem dúvida, demanda trabalho, mas, por meio da prática interprofissional vivenciada no próprio serviço produzido pela eCnaR, em conjunto com outros setores e profissionais, os serviços se tornam mais capacitados a alcançar esses indivíduos, e a oferta de uma saúde pública de qualidade torna-se cada vez mais palpável. Santos e Ceccim99 Santos CF, Ceccim RB. Encounters on the street: Possibilities of health in a street health care center. Interf. Commun Heal Educ. 2018 [acesso em 2021 maio 16]; 22(67):1043-52. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0228.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.02...
(1043)
destacam que:

[...] a presença do consultório na rua não é simplesmente técnica, trata-se de uma presença política na esfera dos direitos, da equidade e da justiça, assim como intervenção política e cultural, respeitando modos de vida, promoção da saúde e defesa da multiplicidade na cidadania.

Quando se fala em PSR, é preciso ter em mente que, embora as condições socioeconômicas sejam semelhantes, cada território é ímpar, pois é formado de pessoas com histórias e experiências distintas, ou seja, o “território não se reduz à sua dimensão material; ele é um campo de forças, uma teia ou rede de relações”1010 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 maio 16]; 43(esp6):70-83. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S60...
(74)
, necessitando, portanto, que cada profissional tenha um olhar diferenciado capaz de compreender integralmente a dinâmica dos processos que ocorrem no território, atuando de forma direcionada, tendo claros os objetivos a serem alcançados e promovendo a equidade; assim, serão maiores as possibilidades de sucesso. Entretanto, deve-se ter em mente que

o enfrentamento desses desafios exige dos sistemas de saúde um grande esforço no sentido de ofertar serviços de saúde coerentes com as demandas sociais e de saúde, assegurando boa resposta e fortalecendo a ideia de saúde como direito de todos, dever do Estado, e orientados pelas diretrizes do nosso Sistema de Saúde - o SUS1111 Costa MV, Peduzzi M, Freire Filho JR, et al. Educação Interprofissional em Saúde. Rede Unida. 2018 [acesso em 2021 mar 19]; 1(1):85. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2018/dezembro/12/Educacao-Interprofissional-em-Saude.pdf.
https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2...
(11)
.

Uma pessoa em situação de rua, como qualquer outra que viva regularmente em uma habitação, é atravessada não apenas pelo espaço físico que ocupa, mas também pelo que carrega de aspectos religiosos, culturais, sociais, políticos e tantos outros que vão construindo sua história. Incorporar as diversas dimensões do território e incorporar esse território vivo à dinâmica do cuidado é construir singularidade no encontro com o outro. Sendo assim,

[...] podemos entender o território como um composto formado por pelo menos três dimensões: 1 como espaço físico, constituído por ruas, casas, escolas, empresas, entre outros; 2 como dimensão simbólica, expressa por aspectos sociais, econômicos, culturais, religiosos, etc.; 3 como dimensão existencial, que diz respeito aos modos pelos quais o território ganha sentido a partir de cada história pessoal. Essas três dimensões correspondem aquilo que podemos chamar ‘território vivo’ ou o espaço, o tempo, a matéria com que se ‘produz subjetividades’. [...] Para um território vivo, composto pelas três dimensões citadas, é possível traçar o que chamamos de ‘Cartografia’, ou seja, um conjunto sempre dinâmico de ‘mapas psicossociais’1212 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde; Fundação Oswaldo Cruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde; Grupo Hospitalar Conceição, Centro de Educação Tecnológica e Pesquisa em Saúde - Escola GHC. Caminhos do Cuidado: caderno do tutor. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017. [acesso em 2021 mar 19]. Disponível em: http://repositorio.observatoriodocuidado.org/handle/handle/574.
http://repositorio.observatoriodocuidado...
(84)
.

Tendo-se conhecimento de que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”1313 Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO). 1946. [acesso em 2021 mar 19]. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html.
http://www.direitoshumanos.usp.br/index....
, e que as situações diariamente apresentadas aos profissionais são diversas e complexas, pergunta-se por que ainda há tantos médicos que têm como focos apenas o diagnóstico e o tratamento de doenças.

É importante destacar que, ainda que o ‘diagnóstico clínico’ seja o mesmo, o viver o adoecimento é singular a cada vivente; as marcas, as histórias e os contextos que cada um vivencia interferem nos modos de conduzir suas existências1010 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 maio 16]; 43(esp6):70-83. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S60...
(77)
.

Para Ferla e Toassi1414 Ferla AA, Toassi RFC. Formação interprofissional em saúde: um caminho a experimentar e pesquisar. In: Toassi RFC. Interprofissionalidade e formação na saúde: onde estamos? Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 7-13. (Série Vivência em Educação na Saúde). [acesso em 2021 mar 19]. Disponível em: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-vivencias-em-educacao-na-saude/vol-06-interprofissionalidade-e-formacao-na-saude-pdf.
http://historico.redeunida.org.br/editor...
(8)
, a

[...] superação da lógica queixa-conduta, bem visível na lógica assistencial predominante, incluiu também a identificação de necessidades de saúde singulares de pessoas e coletividades, em situações concretas de vida e trabalho, buscando ações que ampliem a autonomia e qualidade de vida de indivíduos e grupos.

Reconhecer as deficiências que impeçam a oferta de um serviço de qualidade é um dos passos necessários na caminhada em direção à sua superação. É impossível pensar que os mapas psicossociais abordados possam ser trazidos à luz por ações unicamente individualizadas e especializadas, pois cada profissional, atuando no campo da subjetividade, pode contribuir com visão diferenciada acerca do que é apresentado, ou seja, com uma contribuição que vai além de sua formação técnica inicial. “[...] O trabalho em saúde, para favorecer a produção do cuidado, precisa ser construído de modo coletivo e compartilhado [...]”1010 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 maio 16]; 43(esp6):70-83. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S60...
(74)
. Portanto,

[...] torna-se central o debate sobre as competências necessárias para atuar em consonância com as necessidades de cuidado a esta população e a habilidade de trabalho colaborativo e em rede1515 Machado MPM, Rabello ET. Skill for the work in the street offices. Physis. 2018 [acesso em 2021 mar 19]; 28(4):1-24. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280413.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201828...
(4)
.

Infelizmente, é grande o despreparo de inúmeros profissionais, sobretudo dos recém-formados, ao lidarem com situações e populações para as quais não foram preparados durante sua formação, como as populações em situação de vulnerabilidade. Embora algumas disciplinas tenham a proposta de aproximar o acadêmico desse mundo, percebe-se que são insuficientes. Os conteúdos humanísticos médicos - aqueles voltados para relações humanas no campo da intersubjetividade - são frequentemente disponibilizados aos alunos como disciplinas eletivas ou atividades complementares1616 Rios IC. Humanidades Médicas como Campo de Conhecimento em Medicina. Rev Bras Educ Med. 2016 [acesso em 2021 maio 6]; 40(1):21-9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v40n1e01032015.
https://doi.org/10.1590/1981-52712015v40...
.

Machado e Rabello1515 Machado MPM, Rabello ET. Skill for the work in the street offices. Physis. 2018 [acesso em 2021 mar 19]; 28(4):1-24. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280413.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201828...
sugerem que uma formação profissional com lacunas resultaria em ausência de competências necessárias para a sistematização do trabalho e afastaria os profissionais da realização de um trabalho que considera a construção de uma história com a PSR. Assim, quando se pensa em estratégias para fortalecimento do sistema de saúde, deve-se pensar também em formação profissional adequada à obtenção de tal finalidade. Nesse cenário, fazem-se necessárias reflexões acerca de quais seriam os modelos educacionais capazes de conduzir ao desenvolvimento dessas novas práticas profissionais1717 Costa MV. A potência da educação interprofissional para o desenvolvimento de competências colaborativas no trabalho em saúde. In: Toassi RFC. Interprofissionalidade e formação na saúde: onde estamos? Porto Alegre: Rede Unida; 2017. p. 14-27. (Série Vivência em Educação na Saúde). [acesso em 2021 mar 1]. Disponível em: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-vivencias-em-educacao-na-saude/vol-06-interprofissionalidade-e-formacao-na-saude-pdf.
http://historico.redeunida.org.br/editor...
.

Para a materialização desse modo de produzir saúde, é essencial que o profissional e o aluno ampliem seu olhar e enxerguem o indivíduo integralmente, compreendendo-o em suas diversas dimensões, pois esse sujeito não é apenas um ‘paciente do CnaR’ é uma pessoa com um nome, uma família, quer seja essa formada por laços sanguíneos ou não, que é ou não usuária de álcool e outras drogas, que é pai ou mãe, que é trabalhador ou desempregado, com ou sem transtorno mental, que sofreu preconceitos, que está longe de sua terra natal etc. Essa forma de ver o paciente em sua totalidade teve origem com o surgimento do modelo de atenção biopsicossocial, realçando uma atenção à saúde que tem a visão do sujeito em sua subjetividade, enxergando-o além de um organismo doente1616 Rios IC. Humanidades Médicas como Campo de Conhecimento em Medicina. Rev Bras Educ Med. 2016 [acesso em 2021 maio 6]; 40(1):21-9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v40n1e01032015.
https://doi.org/10.1590/1981-52712015v40...
.

Quando se tem como focos o conceito ampliado de saúde e seu acesso universal e equânime pela PSR, a formação de vínculos com toda a equipe é essencial para que os resultados planejados em conjunto com o usuário sejam alcançados. No entanto, essa aproximação com o serviço pode, inicialmente, ocorrer por meio da criação de laços apenas com determinado profissional, podendo ser o médico, o assistente social, o redutor de danos, o motorista ou qualquer outro que tenha clara sua participação na promoção de cuidado partilhado e que, portanto, seja capaz de enxergar essa possibilidade de trazer mais para perto de toda a equipe e do serviço esse indivíduo.

Permitir que as multiplicidades do plano do cuidado sejam experimentadas e agenciadas pelos múltiplos sujeitos em produção, remete ao entendimento de que cada sujeito é multidão e que nos constituímos na multiplicidade1818 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface - Comun Saúde, Educ. 2014 [acesso em 2021 maio 24]; 18(49):313-24. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000200313&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
(318)
.

Dessa maneira, segundo Ceccim1919 Ceccim RB. Interprofissionalidade e experiências de aprendizagem: inovações no cenário brasileiro. In: Toassi RFC. Interprofissionalidade e formação na saúde: onde estamos? Porto Alegre: Rede Unida; 2017. p. 49-67. (Série Vivência em Educação na Saúde). [acesso em 2021 maio 24]. Disponível em: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/serie-vivencias-em-educacao-na-saude/vol-06-interprofissionalidade-e-formacao-na-saude-pdf.
http://historico.redeunida.org.br/editor...
(52-53)
,

[...] não faz sentido, no mundo do cuidado e da cura, que mais importante que as necessidades dos usuários das ações de saúde, estejam as necessidades de manutenção do modo corporativo de atuar ou a primazia de preservação de fronteiras profissionais que resultem em desenhos de profissão, não de atenção integral à saúde.

O convívio com os usuários do CnaR e suas demandas exige que o trabalho seja realizado colaborativamente pelos profissionais e que esses tenham a capacidade de perceber as reais demandas e necessidades do sujeito, ainda que não sejam verbalmente exteriorizadas. Mas, infelizmente, há ainda um “[...] descompasso entre as ofertas de qualificação acadêmica e as reais demandas das ruas que se apresentam aos trabalhadores”1515 Machado MPM, Rabello ET. Skill for the work in the street offices. Physis. 2018 [acesso em 2021 mar 19]; 28(4):1-24. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280413.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201828...
(21)
. Segundo Merhy2020 Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver-SUS Brasil: caderno de textos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. p. 108-137. [acesso em 2021 maio 24]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/CadernoVER_SUS.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
(111)
,

[...] quanto maior a composição das caixas de ferramentas (aqui entendida como o conjunto de saberes que se dispõe para a ação de produção dos atos de saúde) utilizadas para a conformação do cuidado pelos trabalhadores de saúde, individualmente ou em equipes, maior será a possibilidade de se compreender o problema de saúde enfrentado e maior a capacidade de enfrentá-lo de modo adequado, tanto para o usuário do serviço quanto para a própria composição dos processos de trabalho.

O estudo realizado por Feldman et al.11 Feldman CT, Stevens GD, Lowe E, et al. Inclusion of the homeless in health equity curricula: a needs assessment study. Med Educ Online. 2020 [acesso em 2021 maio 6]; 25(1). Disponível em: https://doi.org/10.1080/10872981.2020.1777061.
https://doi.org/10.1080/10872981.2020.17...
sobre as necessidades de um currículo que incluísse pessoas em situação de rua destacou a importância da exposição a esses sujeitos como estratégia para que os alunos compreendam as iniquidades e os determinantes sociais em saúde, sendo a aprendizagem baseada na experiência com foco nesse grupo específico valiosa para a aquisição de conhecimentos que poderão ser utilizados diante de outros grupos em situação de vulnerabilidade. O estudo também ressaltou que os alunos sentem medo e ansiedade diante da perspectiva do trabalho no ambiente da rua e que a aprendizagem baseada em experiência, além de possibilitar o desenvolvimento de novas habilidades, também seria uma oportunidade para que os estudantes trabalhassem com uma variedade de profissionais de saúde e fossem expostos a outros ambientes de prática, preenchendo, dessa forma, a lacuna existente entre sala de aula e realidade11 Feldman CT, Stevens GD, Lowe E, et al. Inclusion of the homeless in health equity curricula: a needs assessment study. Med Educ Online. 2020 [acesso em 2021 maio 6]; 25(1). Disponível em: https://doi.org/10.1080/10872981.2020.1777061.
https://doi.org/10.1080/10872981.2020.17...
.

Observando-se o campo de atuação da eCnaR e as necessidades de saúde de seu público, abre-se um vasto leque que conduz o estudante de Medicina, antes habituado apenas aos ambientes de salas de aula, enfermarias e consultórios, a mergulhar no universo da interprofissionalidade em diferentes espaços. O aluno pode, por meio da participação em reuniões de equipe, dos trabalhos em campo, das visitas feitas aos abrigos e hospitais, dos projetos realizados com determinados grupos, como de gestantes, da conversa com os usuários etc., desenvolver de forma crescente o sentimento de que a responsabilização pelo paciente deve partir de todos aqueles que atuam no serviço, de modo que cada um contribua com a formação do projeto terapêutico que atenda às reais demandas e necessidades do cidadão. Porém, a realização de um trabalho compartilhado requer o empenho de cada profissional envolvido.

Considerações finais

Infelizmente, são inúmeras as barreiras a serem transpostas quando se fala em acesso equânime e universal aos serviços de saúde e na oferta de um serviço dotado de alta qualidade, sobretudo quando o sujeito em destaque é aquele em situação de maior vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua. Essas limitações têm início na formação acadêmica e se estendem para a atuação profissional, já que, durante o processo de formação, são poucas as oportunidades disponibilizadas ao estudante de Medicina que tenham por objetivo a familiarização com grupos como a PSR.

Além desse despreparo frente aos indivíduos em situação de maior vulnerabilidade decorrente da falta de visibilidade dada a essas pessoas durante o curso de Medicina, a ausência de uma visão do sujeito em sua integralidade reduz o cuidado e propõe, em diversos momentos, ações pouco resolutivas em relação às complexas e diversas necessidades e demandas de um grupo tão heterogêneo como o composto pelas pessoas em situação de rua. Reconhecer que essas pessoas existem e que são sujeitos dotados de singularidade, embora dividam o mesmo espaço - a rua -, são pontos-chave para a construção de estratégias orientadas para a superação dessa realidade.

Dentre algumas das estratégias para a adequada remoção desses obstáculos que se impõem diariamente estão a interprofissionalidade e o TC em saúde, uma vez que esses constituem importantes meios para a aquisição de novas habilidades e ferramentas no cuidado e na formação de vínculos positivos com os usuários dos serviços. Esse ato de cuidar, pertencente - ou que deveria pertencer - à ação de todo profissional da saúde, sem dúvida será melhor desenvolvido durante os processos de troca com alunos de diferentes cursos e no convívio com profissionais de diversas formações.

Certamente, são inúmeros os desafios a serem enfrentados para a adoção de uma EIP pelas universidades, como os orçamentários e políticos, a falta de espaços para acomodação dos alunos, o grande número de discentes por turma, o pouco interesse em lidar com populações em situação de maior vulnerabilidade, o despreparo de professores diante dessa nova forma de ensino-aprendizagem etc., e saber identificá-los é o primeiro passo para o início desse enfrentamento. Pensar em futuros médicos que valorizam outras profissões, que estejam abertos ao processo de troca com outros trabalhadores, que atuem além de sua formação técnica preestabelecida ou, em outras palavras, que promovam um Trabalho Colaborativo, é, antes, pensar em estudantes sendo preparados na imersão da lógica interprofissional.

  • Suporte financeiro: Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET Saúde/Interprofissionalidade 2019-2021 (Edital nº 10 de 23 de julho de 2018, Ministério da Saúde/Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde)
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2021
  • Aceito
    06 Abr 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br