O Caps como espaço potencial: diálogos com a teoria winnicottiana

The Caps as a potential space: dialogues with Winnicottian theory

André Brazão dos Santos Sidnei José Casetto Sobre os autores

RESUMO

Apoiada no movimento de redemocratização e da Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica constituiu a base para o modelo utilizado em serviços substitutivos, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), um dispositivo de promoção de saúde mental. Por seus objetivos e funções, viu-se a possibilidade de relacionar o Caps com o conceito de espaço potencial de Winnicott, definido como uma área intermediária entre as realidades psíquica e compartilhada, na qual se pode ser criativo ao invés de somente adaptado. Procurou-se investigar se o Caps possui características de um espaço potencial no sentido winnicottiano. A pesquisa adotou a abordagem qualitativa, caracterizada como uma pesquisa em psicanálise, trabalhando com dados secundários. Selecionaram-se 14 trabalhos, incluindo dissertações, teses e artigos científicos publicados nos últimos dez anos. Na análise dos dados, procurou-se detectar a presença de condições do espaço potencial, como o holding, o handling e a apresentação de objetos, em atividades ou aspectos do funcionamento do Caps, como o acolhimento, o dispositivo Técnico de Referência, a provisão ambiental e o suporte institucional. Por fim, concluiu-se que, apesar de haver fatores que limitam a potencialidade do serviço, o manejo dos profissionais e a ambiência oferecem condições de o Caps operar como um espaço potencial.

PALAVRAS-CHAVES
Centros de Atenção Psicossocial; Saúde mental; Winnicott

ABSTRACT

Supported by the redemocratization movement and the Health Reform, the Psychiatric Reform constituted the basis for the model used in substitute services, like the Psychosocial Care Center (CAPS), a device for the promotion of mental health. Due to its objectives and functions, we saw the possibility of relating CAPS with Winnicott’s concept of potential space, an intermediate area between psychic and shared realities, where one can be creative, not just adapted. We tried to investigate whether the CAPS has characteristics of a potential space in the Winnicottian sense. The research adopted a qualitative approach and was characterized as a research in psychoanalysis, working with secondary data. 14 works were selected, including dissertations, theses, and scientific articles from the last ten years. In analyzing the data, we sought to detect the presence of conditions in the potential space, like the holding, handling, and presentation of objects, in activities or aspects of the functioning of the CAPS, such as reception, the Technical Reference device, environmental provision, and the institutional support. Finally, we concluded that, although there are factors that limit the potential of the service, the management of professionals and the ambience offer conditions for the CAPS to operate as a potential space.

KEYWORDS
Mental health services; Mental health; Winnicott

Introdução

O campo da saúde mental no Brasil, na forma como o conhecemos hoje, foi constituído a partir de processos que transformaram o modo de fazer saúde no País. A Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica e o Movimento pela Luta Antimanicomial possibilitaram mudanças profundas na assistência ao sofrimento mental grave, começando por restituir aos sujeitos o direito de viver e tratar-se em liberdade.

O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) é um recurso resultante desse movimento, constituindo-se em um serviço de caráter aberto e comunitário, propondo-se a uma atenção humanizada e centrada no usuário. No combate ao estigma e ao preconceito, o serviço tem como base pensar o território, a comunidade e a rede social dos usuários, fazendo parte da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas11 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA. Brasília, DF: MS; 2015., uma política em consolidação que vem sofrendo ataques, sobretudo na última gestão do governo federal (2019-2022). O Caps faz parte da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que estabelece os pontos de atenção no território, articulando ações e serviços de saúde em níveis de complexidade diferenciados.

Espaço potencial

Viver em sociedade requer de todos habilidades adaptativas que envolvem percepção e entendimento do que sentimos em relação aos outros e do que estes demandam de nós. A psicanálise, a psicologia e as ciências sociais percorreram e construíram uma pluralidade de teorias acerca do indivíduo e de seu ‘mundo interno’, do coletivo e de nosso ‘mundo externo’. Contudo, neste trabalho, tomamos a perspectiva de um outro território, considerando a potência de um lugar que não está dentro nem fora de nós, mas no entre, em uma terceira área do existir humano.

Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês, descreveu os fenômenos transicionais – presentes na fase primordial do desenvolvimento humano que “pertencem ao domínio da ilusão que está na base do início da experiência”22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(30) – como eventos de uma área intermediária. Essa ilusão e a posterior desilusão ativamente coordenada por uma mãe suficientemente boa representam o movimento do bebê de um estado de fusão com ela a um estado da mãe como separada e exterior. O primeiro momento representa a experiência da onipotência, um estado de soberania sobre o mundo recém-conhecido, um realizar mágico, pois se o bebê ‘fantasia’ o seio, a mãe responde ativamente, e o seio ele tem. Em seguida, constitui-se a possibilidade de viver a experiência do fracassar diante das imposições que o mundo externo trará na sequência do viver humano. Após o primeiro desses momentos e para viabilizar o seguinte, com um manejo eficiente, nasce um intermediário, constituindo um espaço potencial22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975..

Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(139–140) entende que o

bebê tem experiências maximamente intensas ‘no espaço potencial existente entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente percebido’, entre extensões do eu e o não-eu.

A formação de uma personalidade integrada e a saúde mental do indivíduo, ao que parece, encontram sua base de origem no sucesso ou fracasso dos fenômenos transicionais, no surgimento ou não de uma confiança no relacionamento e no ambiente.

A confiança que surge de uma provisão ambiental suficientemente boa, por meio da sustentação materna e de adaptações progressivamente menores às necessidades do bebê, permite a ele enfrentar o choque da perda da onipotência, rumo à independência, rumo ao encontro com outros objetos. O ambiente e o cuidador, então, tornam-se fidedignos ao sujeito, e a credibilidade conquistada com a sustentação (holding), o manejo (handling), a apresentação de objetos e o espelhar possibilita um ambiente seguro para a espontaneidade. A criança pode olhar para mãe e ver a si no olhar dela, fazendo uso desse espelho como forma de constituir um self e “descobrir um modo de existir como si mesmo”22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(161).

Segundo Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975., nós experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, nesta região intermediária entre a nossa realidade psíquica interna e a realidade compartilhada com os outros. Para além disso, o autor defende que “o lugar em que a experiência cultural se localiza está no ‘espaço potencial’ existente entre o indivíduo e o meio ambiente (originalmente, o objeto)”22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(141), portanto, são os fenômenos transicionais que inserem o sujeito na experiência cultural.

Fundamental no desenvolvimento do sujeito, a figura materna, que aos poucos diminui sua adaptação ativa à fantasia onipotente do bebê, deve resistir à agressividade que surge nele diante de sua insatisfação, sobrevivendo a esses ataques, uma vez que tal ‘sobrevivência’ irá conferir à sua existência valor de objeto externo, fora do controle onipotente22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.. Contudo, é preciso destacar a indicação do autor de que não há raiva na destruição do objeto a que se está referindo, embora se possa dizer que exista alegria pela sua sobrevivência. Essa fantasia de que o objeto está sendo ‘destruído’ passa a ser essencial para que o sujeito tenha o sentimento de que o objeto é real, fortalecendo a percepção de constância objetal, e permitindo que a realidade deixe de ser uma experiência subjetiva, processo fundamental para a integração de sua personalidade.

Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975. aponta que o uso do objeto tem função fundamental no desenvolvimento humano, pela concepção dos fenômenos transicionais. Para o bebê (se a mãe proporcionar as condições), todo o objeto é um objeto ‘descoberto’, parte do seu viver criativo, que fornece uma cadeia de significados para a experiência do existir. Contudo, um bebê que não tem a oportunidade desse viver, não conseguindo construir uma área própria do brincar, pode não criar vínculos com a herança cultural ou deixar suas próprias contribuições para ela.

Em circunstâncias favoráveis, o espaço potencial se preenche com os produtos da própria imaginação criativa do bebê. Nas desfavoráveis, há ausência do uso criativo de objetos, ou esse uso é relativamente incerto22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(141).

O fracasso da provisão ambiental primária tem consequências diretas no modo como o sujeito se estrutura diante do mundo, visto que a falha o expõe ao traumático e à angústia constante de não conseguir confiar ou encontrar fidedignidade em suas relações objetais. Como exemplo, e nessa perspectiva, os sujeitos diagnosticados com esquizofrenia, subjetivamente invadidos pelo mundo externo, experimentariam o fracasso dessa área intermediária. Com sintomas dissociativos, tais sujeitos alucinam diante da incapacidade de transitar entre o que é interno e aquilo que deveria se manter externo a ele. Uma possível consequência disso é o sentimento de descontinuidade: “a loucura aqui, significa simplesmente uma ruptura do que possa significar, na ocasião, uma continuidade pessoal da existência”22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(136).

Sem desconsiderar outros fatores, a contribuição da teoria winnicottiana amplifica a questão da saúde mental para além da saúde, inserindo-a no complexo universo do viver. O brincar, a criatividade e a experiência cultural, segundo Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975., são características basilares da experiência contínua do viver humano. Expressas por meio de um espaço potencial constituído, formam uma malha psíquica capaz de conter a integralidade da personalidade e conduzir os sujeitos para um viver menos defendido. Dessa forma, uma provisão ambiental precária não afeta apenas a saúde; afeta o viver22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975..

Essa ideia permitiu colocar o espaço potencial ao teste de realidades macroambientais, como o Caps, referência no atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental grave. Em uma relação direta com a teoria winnicottiana e o manejo multiprofissional nesse serviço de saúde, torna-se interessante refletir sobre esse espaço de atenção e se há condições que permitiriam considerá-lo um espaço potencial.

As possíveis condições para um espaço potencial

A teoria winnicottiana oferece a oportunidade de refletir sobre o espaço potencial como um território intermediário no qual se possa produzir saúde mental. A partir disso, perguntamo-nos se o Caps apresenta condições de um espaço potencial no sentido winnicottiano. Nessa direção, descrevemos a seguir algumas condições que entendemos serem basilares para formação do espaço potencial.

Como primeiro conceito de destaque, o holding tem a característica de marcar a experiência do bebê com o sentimento de previsibilidade e estabilidade; um suporte físico e psíquico fundamental para esse processo de formação da personalidade. Em um movimento sutil e em longo prazo, a figura materna possibilita ao bebê que ele consiga enfrentar o mundo exterior, amparado pela relação de confiança que estabeleceu no momento de dependência com a mãe. Assim, a confiança permite que a experiência seja contínua, sem rupturas, afastando o bebê de uma vivência instável, passível de desencadear angústias intensas em uma fase muito precoce do desenvolvimento.

Confiança, fidedignidade, estabilidade, continuidade: substantivos femininos que marcam o discurso winnicottiano sobre a figura materna. O holding estabelece para nós a primeira condição que visamos buscar no Caps, na verificação da ideia de que o serviço pode atuar como um espaço potencial no sentido winnicottiano. Adotamos, como hipótese, que o acolhimento poderia corresponder ao holding no espaço institucional, uma vez que constitui a primeira relação do sujeito com o serviço, uma oportunidade para o estabelecimento de um vínculo entre ambos.

A segunda condição a destacar, o conceito de handling pode nos ajudar a pensar em outros aspectos do Caps. Nas palavras do próprio Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(25), por meio do handling, a mãe suficientemente boa

efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração.

É nesse aspecto de adaptação ativa, assim como em sua diminuição gradativa, conforme o crescimento da autonomia, que parece se encontrar o aspecto central do handling. Por isso a importância de considerar o ambiente no seu aspecto dinâmico.

Em um serviço como o Caps, o Técnico de Referência (TR) e a equipe que assegura o projeto terapêutico singular de um paciente são quem manejam (handling) o cuidado daquele sujeito marcado pelo sofrimento. Ao auxiliar o usuário a lidar com os impasses que surgem da relação de convivência entre aqueles que habitam o espaço (técnicos, equipe, usuário e familiares), ao indicar um grupo ou convidar o usuário para uma oficina, os profissionais promovem uma experiência do sujeito no serviço, com vistas ao viver criativo no tratamento.

Por último, o conceito winnicottiano de apresentação de objetos. Segundo o autor, é por meio de objetos que os fenômenos transicionais exercem uma função importante de continuidade da experiência, promovendo uma separação da relação mãe-filho, permitindo que ambos possam ressurgir como objetos distintos. Dessa forma, os objetos passam a existir, e existindo, o bebê pode fazer uso deles. No caminho para pensarmos o Caps como um ambiente propício, vale considerar se esse lugar, assim como um espaço potencial, possibilita ao usuário a oportunidade de desenvolver vínculo com o serviço e utilizar objetos derivados dessa relação, que suportem seus ataques agressivos. Como vimos, segundo Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975., é apenas devido ao sucesso da destruição do objeto e de sua sobrevivência agora como algo externo que o bebê pode tirar vantagem do uso dos objetos. Desse modo, a forma como agressividade é recebida é fator fundamental na construção de um ambiente fidedigno para o usuário.

Em resumo, considerando que os elementos de sustentação (holding), manejo (handling) e apresentação de objetos surgem como condições do espaço potencial no sentido winnicottiano, o objetivo deste trabalho foi investigar se o Caps, a partir dos dados analisados, na perspectiva de usuários e técnicos, apresenta tais condições.

Material e métodos

Este trabalho, que adota a abordagem qualitativa, configurou-se como uma “pesquisa em psicanálise”, no sentido amplo proposto por Figueiredo e Minerbo33 Figueiredo LC, Minerbo M. Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo. J. psicanal. 2006 [acesso em 2022 out 19]; 39(70):257-278. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.
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, correspondendo a trabalhos de produção de conhecimento que mobilizem conceitos psicanalíticos para a investigação de fenômenos sociais e subjetivos. Este tipo de pesquisa guarda diferença com a “pesquisa com o método psicanalítico”, a qual exige a adoção da epistemologia psicanalítica, assim como formação em psicanálise dos pesquisadores.

Utilizamos dados secundários, via publicações já realizadas: dissertações, teses e artigos científicos com depoimentos de usuários e técnicos do Caps, nos quais a temática central se ocupa de algum aspecto da relação serviço-usuário. Por esse motivo, aproximamo-nos da pesquisa de revisão narrativa, com a diferença importante que procuramos informar a metodologia utilizada na busca de referências e os critérios para a seleção dos trabalhos44 Rother ET. Editorial: Revisão sistemática x Revisão Narrativa. Acta Paul Enferm. 2007; 20(2):v-vi..

Quanto ao período das publicações, escolhemos concentrar nossas buscas nos trabalhos publicados entre os anos de 2010 e 2020. Supusemos que trabalhos recentes poderiam nos oferecer uma proximidade maior com a realidade atual dessa dinâmica usuário-serviço.

Para a busca de trabalhos, foram escolhidas as bibliotecas virtuais científicas em saúde e, também, os bancos de dados bibliográficos das universidades. Por buscarmos falas de usuários e técnicos no território brasileiro, o portal SciELO Saúde Pública e a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) foram escolhidos para a busca dos artigos científicos, uma vez que há a divulgação constante da produção nacional. Com relação às teses e dissertações, utilizamos os bancos de dados da Universidade Federal de São Paulo, da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade Estadual de São Paulo e da Universidade de São Paulo. Essa escolha deveu-se à necessidade de viabilizar a pesquisa no prazo existente e, também, à opção de circunscrever geograficamente os estudos, no caso, o estado em que estavam inseridos os pesquisadores.

A busca teve como resultado um total de 786 artigos contemplados pelas palavras-chave utilizadas (espaço potencial, saúde mental, Caps, Winnicott, percepção, narrativas, usuário, técnico, serviço, equipe, institucional, confiança), sendo que, por meio da leitura dos títulos, verificando sua proximidade com o nosso problema de pesquisa, e quais trabalhos continham transcrições de falas dos usuários e/ou dos profissionais, selecionamos 96 deles. Em seguida, a partir da leitura dos resumos, definimos três critérios de aproximação: 1) trabalhos que abordassem aspectos que relacionamos com as condições do espaço potencial, como acolhimento, TR, manejo da agressividade; 2) que falassem especificamente de Caps; e 3) que abordassem assuntos relativos ao serviço ou aos usuários. Dessa organização, emergiram quatro temáticas mais recorrentes nos trabalhos, que, somadas, agruparam 83 artigos, como demonstrado no quadro 1 a seguir:

Quadro 1
Temáticas mais recorrentes

Desse modo, por abordarem de forma mais substancial temas fundamentais para esta pesquisa, realizamos o cruzamento das quatro categorias acima com os critérios de aproximação e estabelecemos três níveis de gradação: vermelho para aqueles que atendiam todos os critérios, laranja para aqueles que não atendiam a um critério, e amarelo para aqueles que não atendiam dois ou mais dos critérios elaborados. Após esse trabalho de análise, chegamos a um total de 14 artigos com a gradação vermelha, que selecionamos para a discussão do trabalho. Entre eles, há uma tese, cinco dissertações e oito artigos científicos.

A leitura dos textos foi feita de forma integral, um por vez, começando pelos textos provenientes de artigos, passando para as dissertações e terminando com a tese. Quanto ao fichamento dos trabalhos, agrupamos os dados simultaneamente em uma planilha exclusiva do texto e em uma compartilhada com toda a base de dados. Na primeira, trechos relevantes do trabalho foram destacados e comentados. Na segunda, formando um painel para a discussão, inserimos, texto a texto, passagens que suscitaram temáticas que emergiram da pesquisa. Assim, os textos foram tecendo a discussão ainda no painel, uma vez que encontravam ressonância entre eles, e isso se refletia nos dados agrupados.

A partir de cada leitura, observamos que os dados, por meio de uma cuidadosa interpretação analítica, assumiram a condição de descobertos e inventados, assim como na lógica do paradoxo elaborado por Winnicott na construção teórica dos objetos transicionais33 Figueiredo LC, Minerbo M. Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo. J. psicanal. 2006 [acesso em 2022 out 19]; 39(70):257-278. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.
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. Dos dados obtidos nos trabalhos publicados, conseguimos produzir novos dados, a partir de outro olhar sobre o texto e de depoimentos, interrogando e interpretando-os pela perspectiva deste trabalho, que, de certa forma, concedeu a eles a oportunidade de serem recriados.

A análise dos dados encontrados nesta pesquisa partiu de três elementos centrais na teoria winnicottiana. Os conceitos de holding, handling e apresentação de objetos estabeleceram um norte para a construção da discussão em torno dos dados, organizando o processo em três eixos principais, todos capilarizados pelas temáticas que surgiram do processo de análise. Contudo, é importante destacar que as possíveis condições do espaço potencial não se apresentarão de maneira estanque, havendo articulação entre elas.

Resultados e discussão

Holding e acolhimento

Como discutido anteriormente, a previsibilidade e a estabilidade são características singulares do processo de holding materno. Em saúde mental – e, principalmente, na rotina do Caps –, a literatura mostrou que o acolhimento sustenta o potencial de um cuidar primeiro, diante de um sujeito acometido por uma ruptura na experiência do viver55 Ballarin MLGS, Ferigato SH, Carvalho FB, et al. Percepção de profissionais de um CAPS sobre as práticas de acolhimento no serviço. Mundo da Saúde. 2011; 35(2):162-168.,66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p.. A tecnologia do acolhimento, para Lessa66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p., é a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental para a pessoa que busca o serviço em sofrimento psíquico. Dessa forma,

o usuário é acolhido por meio de uma escuta atenciosa à sua demanda e, posteriormente, participa da elaboração de um Projeto Terapêutico Singular (PTS) específico para as suas necessidades caso seja inserido no serviço66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p.(25).

Enquanto escuta qualificada, Ballarin et al.55 Ballarin MLGS, Ferigato SH, Carvalho FB, et al. Percepção de profissionais de um CAPS sobre as práticas de acolhimento no serviço. Mundo da Saúde. 2011; 35(2):162-168. afirmam que o acolhimento implica uma postura profissional empática e humanizada, direcionada às demandas do usuário.

Apesar de pertencer ao início da experiência do usuário no Caps, os dados mostram que as consequências desse primeiro contato podem repercutir no decorrer de sua experiência no serviço. Para além de um contato inicial, segundo Lessa66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p.(28),

O acolhimento é um dispositivo transversal na conduta terapêutica, pois não é tido apenas como uma parte do processo de cuidado (triagem). Ele perpassa todo o trajeto terapêutico do CAPS.

Na perspectiva da autora, o acolhimento deveria ser constante, uma concepção que convida a imaginar como esse dispositivo transversal poderia ser materializado no serviço. Dessa forma, é fundamental entendermos as forças que atuam nessa tecnologia leve77 Merhy EE, Franco TB. Por uma Composição Técnica do Trabalho Centrada nas Tecnologias Leves e no Campo Relacional. Saúde debate. 2003; 27(65). que é amplamente defendida por profissionais, possibilitando assim que um bom manejo ajude a estabelecer um caminho potente no tratamento do usuário. Aliás, a noção de tecnologia leve como aquela que se constitui em ato na relação de cuidado, não preexistindo a ela, mas sendo recriada em cada situação singular por seus participantes, poderia ser considerada um conceito da saúde coletiva que estaria em ressonância com estes de Winnicott que estão sendo citados.

Diante dos dados e da discussão, o acolhimento surge como uma tecnologia do cuidado que, por definição institucional e ação dos profissionais em saúde mental, é sustentado em um modelo usuário-centrado. Ao permitir ser acessado pelo usuário, o profissional auxilia na sustentação do sofrimento por meio do ato de acolher, oferecendo um ambiente fidedigno e confiável. Se entendemos o holding como um conjunto de cuidados físicos e emocionais que sustentam a experiência do viver, parece-nos, a partir dos dados, que o acolhimento se estabelece como uma ferramenta que, potencialmente, pode favorecer que o Caps seja vivido como um espaço potencial no sentido winnicottiano.

Holding e dispositivo Técnico de Referência

O dispositivo TR surgiu na pesquisa como um exemplo de tecnologia leve fundamental para o serviço, provavelmente a mais importante. Mondoni88 Mondoni D. A função referência em Saúde Mental: entre a clínica e a administração. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2018. 141 p., a partir de 11 entrevistas realizadas com trabalhadoras dos 6 Caps III da cidade de Campinas, mostrou que as concepções do que é exercer a função de Referência Técnica do usuário são variadas e abrangentes. Ao que parece, as tarefas do cotidiano dentro do serviço, somadas aos endereçamentos dos usuários e às demandas do território, produzem uma série de compreensões do significado de atuar como um Profissional Referência (PR), termo utilizado pelo autor. Assim como o significado do dispositivo, o processo de escolher qual profissional do serviço assume como TR se mostrou poliforme nos dados pesquisados. Em um dos trabalhos, atuando em um Caps Adulto III do interior do estado de São Paulo, Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p. aponta que a maioria das definições eram feitas por afinidade com o caso, levando em consideração o caso do/a técnico/a que “já não tinha condição (pessoal, emocional, enfim, contratransferencial) para conduzir”99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.(27). Já no Caps III Capela do Socorro, na zona sul da cidade de São Paulo, Lessa66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p. explica que o profissional “é tido como referência técnica do usuário [...] a partir do momento em que realiza sua primeira escuta através do acolhimento”55 Ballarin MLGS, Ferigato SH, Carvalho FB, et al. Percepção de profissionais de um CAPS sobre as práticas de acolhimento no serviço. Mundo da Saúde. 2011; 35(2):162-168.(34). Contudo, a autora destaca que é possível haver a mudança do TR, pois há o entendimento de que cada sujeito porta uma singularidade, o que, às vezes, demanda uma revisão das ações.

Em grande parte dos serviços estudados, seja por falta de profissionais ou por escolha, a definição de uma função de referência individualizada foi a mais encontrada. Apesar de praticamente todos recomendarem o compartilhamento da função, Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p. mostra uma realidade comum ao serviço, o fato de que, “por insuficiência de funcionários, muitos usuários tinham apenas uma Referência Técnica, não sendo possível compor as duplas preconizadas [...]”88 Mondoni D. A função referência em Saúde Mental: entre a clínica e a administração. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2018. 141 p.(99). Nessa perspectiva, em um dos achados mais interessantes do trabalho de Mondoni88 Mondoni D. A função referência em Saúde Mental: entre a clínica e a administração. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2018. 141 p., o autor encontrou uma “forte tendência à individualização da função de referência a partir da nomeação do TR, e a consequente desresponsabilização do restante da equipe”88 Mondoni D. A função referência em Saúde Mental: entre a clínica e a administração. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2018. 141 p.(127).

Em contraste, nos serviços em que há a efetivação de miniequipes como referência do usuário, a sustentação nasce da ideia de descentralizar o cuidado e corresponsabilizar dois ou mais membros de uma mesma equipe. Nesse sentido, Lessa66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p. destaca que, no serviço estudado por ela, acontece a formação de conjuntos com quatro profissionais associados a “um número pré-determinado de usuários os quais são referenciados e acompanhados durante seu tratamento no CAPS”66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p.(33). Nessas miniequipes, parece que o manejo pode ser refletido, discutido e dialogado a partir da pluralidade dos discursos, proporcionando uma sustentação também a quem está diante do sofrimento do outro. Assim, por meio de suporte operacional, entendido como compartilhamento de funções, e psíquico, por encontrar amparo para lidar com os afetos suscitados na relação com o usuário, esta conformação do dispositivo TR parece favorecer a estabilidade ao sujeito em sofrimento.

Centrado na ideia de ofertar uma sustentação ao sujeito acometido por um sofrimento grave, a posição de referência, segundo Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.(103), depende da

Identificação do cuidador com o usuário, a exemplo da identificação da mãe com o bebê, [...] o que vai favorecer o sucesso ou não do processo de retomada do desenvolvimento emocional de cada assistido em CAPS.

Em síntese, os dados nos mostraram que há duas configurações principais para o dispositivo: a individual e a em equipe. Na primeira, destacam-se os relatos de sobrecarga no trabalho e falta de apoio dos outros membros do grupo; na segunda, vimos que os membros podem, de certa forma, revezar as atribuições do TR e compartilhar as responsabilidades da posição, o que pode ajudar a estabelecer condições para um suporte suficientemente bom.

Holding institucional

Em seu trabalho no Caps X, Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.(98) observou que

A carência de recursos institucionais, materiais e, principalmente, recursos humanos, sobrecarrega os profssionais de maneira a distanciar muitas de suas ações da clínica e daquilo que foi inicialmente proposto pela Reforma Psiquiátrica.

A própria pesquisadora diz que

Não atua mais em um CAPS Adulto e a decisão de saída foi impulsionada pela percepção desta de que a falta de condições institucionais para o desenvolvimento de estratégias clínicas estava aproximando-a de um estado de ‘cronificação’ [...]99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.(64).

A omissão ou ineficiência da instituição no suporte às equipes pode, segundo Lessa66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p., deixar os profissionais desamparados e surgir como oportunidade para o estabelecimento de crises no grupo de profissionais. Contudo, a autora entende que, assim como com os usuários, “a crise referente à equipe deve ser interpretada como um momento crítico, quiçá um pedido de socorro em que os atores do equipamento sinalizam por apoio (institucional)”66 Lessa FG. Acolhimento, vínculo e corresponsabilidade do cuidado: percepções sobre o retorno do usuário acolhido e não inserido em um CAPS III sob a ótica dos profissionais de saúde. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2020. 104 p.(73). Dessa forma, a construção de ambientes que favoreçam a manifestação de todos, como forma de garantir espaços de debate para os atores do serviço, mostra-se necessária, assim como um suporte mais efetivo por parte da gestão dos serviços.

Em articulação com a teoria winnicottiana, podemos notar que a dificuldade de estabelecer uma constância no ambiente parece contribuir para a dificuldade do sujeito em confiar no espaço. Em uma observação interessante, Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.(101) mostra que

[...] os profssionais eram capazes de identificar a sustentação de um setting estável e previsível como uma condição para o manejo clínico, seja no cotidiano ou nas situações de crise.

Por outro lado, a carência de um suporte institucional eficiente, devido a questões como um quadro de técnicos reduzido, sobrecarga emocional dos profissionais ou desencontros das equipes que trabalham em horários diferentes, dificultava o diálogo dos funcionários entre turnos, prejudicando a consistência das ações dos membros da equipe.

O holding promovido pela rede também parece ter relevância em relação ao usuário. Para além da influência institucional sobre o sujeito que permanece no Caps, pudemos perceber na pesquisa que o usuário sofre com a ausência do suporte da rede quando precisa cuidar de sua saúde fora do serviço de saúde mental99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p.,1010 Dahl CM. Experiência, narrativa e intersubjetividade: o processo de restabelecimento (“recovery”) na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento nos centros de atenção psicossocial. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2012. 191 p.,1111 Miranda L, Campos RTO. Balizamentos éticos para o trabalho em Saúde Mental: uma leitura psicanalítica. Revista Lat. Psicop. Fund. 2013; 16(1):100-115.. Em um grupo focal com usuários, Dahl1010 Dahl CM. Experiência, narrativa e intersubjetividade: o processo de restabelecimento (“recovery”) na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento nos centros de atenção psicossocial. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2012. 191 p. traz depoimentos que mostram como os serviços da rede negam atendimento e direcionam qualquer demanda dos usuários do Caps de volta ao serviço, como entendimento de que usuário deve ser atendido apenas no âmbito da saúde mental. Esses exemplos extraídos das pesquisas, somados à vivência do primeiro autor deste artigo no serviço, parecem indicar que a lógica do isolamento manicomial ainda está presente em alguns processos de trabalho da rede de saúde.

Desse modo, a provisão ambiental de profissionais e usuários parece relacionada com políticas diversas, responsáveis pela organização do trabalho das equipes, dos serviços e da rede.

Handling e a questão da agressividade

Os estudos apontaram múltiplos aspectos que podem afetar a sustentação do ambiente e o manejo dos profissionais. Contudo, os atos agressivos parecem provocar uma angústia acima de qualquer outro acontecimento, colocando equipe e usuários em conflito. Em sua dissertação, Ferreira1212 Ferreira PS. Os significados atribuídos pelos profissionais de Saúde Mental aos atos violentos e agressivos manifestados por pacientes de um dispositivo de atenção psicossocial do estado do Rio de Janeiro. [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2015. 98 p., por meio de entrevistas que realizou, percebeu dois modos pelos quais os profissionais significam o ato agressivo. Nos depoimentos, eles deram aos atos um contorno que impossibilita um manejo terapêutico, quando o ato é traduzido como violento, voluntário, ou, em oposição, entendido pelo profissional como desprovido de intenção, a ação sendo considerada de responsabilidade da patologia e não do sujeito. Segundo a autora,

Mais de um entrevistado mencionou que atos violentos e agressivos eram independentes da vontade dos pacientes e apontaram a patologia como uma possível causa dos acontecimentos1212 Ferreira PS. Os significados atribuídos pelos profissionais de Saúde Mental aos atos violentos e agressivos manifestados por pacientes de um dispositivo de atenção psicossocial do estado do Rio de Janeiro. [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2015. 98 p.(62–63).

Em outro olhar sobre o tema, Miranda e Campos1111 Miranda L, Campos RTO. Balizamentos éticos para o trabalho em Saúde Mental: uma leitura psicanalítica. Revista Lat. Psicop. Fund. 2013; 16(1):100-115. entendem que, uma vez iniciado o processo de análise, ou o cuidado com um TR, se pensarmos na realidade do Caps, o profissional precisa encontrar formas de sobreviver à agressividade expressa pelo usuário e continuar com o tratamento, pois só haverá possibilidade de simbolização se o analista sustentar a transferência que sobre ele recai.

Dependendo da leitura que é feita, o episódio da agressividade pode desempenhar um papel interessante se pensarmos em sua possibilidade de apresentar aquilo que não alcançou representação simbólica e expressão em palavras. No momento de crise, parece surgir uma oportunidade clínica, uma vez que a experiência de continuidade foi rompida e há elementos que forçaram sua presença por meio do ato de um ou mais sujeitos. Dessa forma, a crise que o ato agressivo promove nas relações dentro do Caps parece mostrar que o handling, quando efetuado de maneira apropriada, pode permitir um momento de produção subjetiva. Além disso, os reflexos desses momentos na equipe podem gerar uma crise que, quando suportada e elaborada, representa uma oportunidade para o crescimento da equipe e do serviço.

Handling e a permanência no espaço

Ao participar do cotidiano de um Caps III, como estagiário, o primeiro autor deste artigo presenciou diversas situações nas quais os profissionais se queixavam do “excesso de permanência” de um determinado usuário no serviço. Ocorria de uma referência dizer que o sujeito não podia ficar dormindo ou “sem fazer nada” no ambiente e retirá-lo do Hospital Dia. Essa questão apareceu na pesquisa e ganhou relevância para entendermos como os atores se relacionam com o espaço.

Em uma primeira abordagem do tema, a compreensão que os dados trazem é de que a equipe aceita bem a permanência do usuário por um tempo determinado. Questões como agressividade, vinculação com o serviço e postura ativa diante das atividades propostas parecem ser centrais para diminuir ou aumentar a receptividade dos profissionais. Os trabalhos de Apollonio99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p. e Mondoni88 Mondoni D. A função referência em Saúde Mental: entre a clínica e a administração. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2018. 141 p. trouxeram relatos positivos acerca de usuários que trabalham, passam o dia em oficinas e em outras atividades organizadas para eles.

Contudo, conhecer as condições de alta vulnerabilidade em que muitos usuários vivem sugere que o ato de dormir na unidade, por exemplo (mesmo considerado o efeito colateral de sonolência da medicação), mais do que apenas uma ausência de ação, pode marcar a confiança do sujeito em um local no qual se sente protegido e seguro. Isso não impede que um desconforto com essa atitude, dependendo do caso, possa acometer grande parte da equipe. Após décadas do início do processo da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, a presença prolongada de um usuário no espaço de um serviço substitutivo como o Caps parece despertar fantasmas do modelo antigo. Nesse caso, as imagens das pessoas abandonadas pelos diversos manicômios do País são fáceis de encontrar e estão presentes na memória daqueles profissionais que participaram desse processo.

Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(102) afirma que “uma provisão ambiental suficientemente boa, ou ‘ambiente expectável médio’, capacita o bebê à loucura específica permitida aos bebês”. Assim, o sofrimento estaria profundamente ligado a uma falha ou pausa no amadurecimento emocional, que, mesmo no sujeito adulto, poderia ser (re) tomada em um ambiente suficientemente bom. Dessa forma, ao dormir no espaço, ou criar laços sociais nele, o usuário não estaria experimentando um espaço no qual possa construir novas possibilidades de si mesmo? O Caps pode ser um ambiente seguro que muitos brasileiros em sofrimento mental grave não têm em suas casas, sem que o sujeito necessariamente acabe se tornando institucionalizado pelo espaço?

Pensando nas condições para um espaço potencial, o fato de o usuário permanecer no espaço com o holding necessário pode significar um modelo de tratamento muito interessante na medida em que oferte uma ambiência suficientemente boa para que ele possa ressignificar seu processo de adoecimento, e, consequentemente, seu modo de viver. Quanto à ideia de institucionalização que angustia os técnicos, de certo modo, talvez o abandono do sujeito no espaço, sem o manejo ou sustentação, possa mesmo promover a institucionalização. Contudo, se o usuário puder constituir uma nova forma de se posicionar diante do que viveu em sua história ou construir outra experiência de ambiente, não estaria conquistando confiança para lançar-se em outras interações? A chave talvez esteja em fazer da experiência terapêutica uma via de acesso a outras e novas experiências, nos círculos próximos e na cidade. Trata-se, afinal, do desafio de toda proposta de cuidado em saúde: ser a mais efetiva, mas também a mais breve possível; não criar dependência, mas condições para maior autonomia.

A apresentação de objetos e a relação objetal com o outro: a terapêutica na identificação

O conceito winnicottiano de apresentação de objetos assumiu um papel importante no percurso da pesquisa, e, consequentemente da análise dos dados. A partir da teoria winnicottiana, é por meio de um holding e um handling suficientemente bons que o sujeito pode ser inserido gradativamente na realidade e iniciar o caminho em direção a uma relação saudável com os objetos. Nesse sentido, ser capaz de se utilizar dos objetos de uma maneira favorável parece marcar o processo de recuperação de um sujeito acometido por um sofrimento grave. Contudo, emergiu dos dados uma perspectiva não esperada, a ideia do outro usuário como um primeiro objeto apresentado pelo Caps ao sujeito, estabelecendo a hipótese de que esse encontro possa carregar um potencial terapêutico durante o tratamento no serviço. Em seu artigo, Nascimento et al.1313 Nascimento YCML, Brêda MZ, Albuquerque MCS. O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre. Interface. 2015; 19(54):479-90.(483) destacam o Caps como importante fonte de suporte e apoio emocional, uma vez que o ambiente tem presente

A compreensão de que todo ser humano é passível de adoecer e pessoas com problemas semelhantes podem ser exemplos de superação e motivação, mesmo as mais debilitadas possuem potencialidades a serem acessadas.

Assim, além de pensarmos o espaço ou a equipe técnica, a vinculação dos indivíduos com seus pares nesse espaço parece fundamental para que o sujeito possa ver a si mesmo no olhar do outro que sofre de forma semelhante a ele. Como consequência, essas relações podem auxiliar no estabelecimento de uma provisão ambiental satisfatória.

Fazendo uma analogia com o holding que uma miniequipe referência pode oferecer ao técnico mais ligado a um usuário, os usuários também parecem proporcionar uma sustentação em rede. Em algumas oportunidades, durante o estágio no serviço, o primeiro autor deste artigo pôde presenciar momentos em que os próprios usuários acolhiam um colega que estava em um estado emocional que demandava atenção. Sem hesitar, usuários acudiam outros usuários que choravam, tentavam apartar brigas ou defender seus pares diante do que entendiam ser um manejo injusto por parte de um membro da equipe.

Como Winnicott22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(125) argumenta,

o desenvolvimento da capacidade de usar um objeto constitui outro exemplo do processo de amadurecimento, como algo que depende de um meio ambiente propício.

Dessa forma, apesar de haver profissionais que podem achar que isso leva à dependência do espaço/instituição, como Mondoni99 Apollonio FT. A transferência na atenção psicossocial e a relação de dependência winnicottiana: uma articulação possível? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016. 135 p. observou, o espaço parece ampliar seu potencial terapêutico na medida em que propicia a espontaneidade do usuário. Assim, o convívio entre usuários, nos termos da apresentação de objetos, aponta para mais uma condição do Caps como espaço potencial.

Considerações finais

Espero que tenha chegado o momento em que a teoria psicanalítica comece a prestar tributo a essa terceira área, a da experiência cultural, que é um derivado da brincadeira. Os psicóticos insistem em nosso conhecimento dela, e sua importância cresce para nossa avaliação das vidas dos seres humanos, antes que de sua saúde22 Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.(142).

Décadas antes da Reforma Psiquiátrica ou do Movimento da Luta Antimanicomial, o psicanalista britânico falava sobre a importância de olharmos para o que o psicótico estava mostrando acerca de uma área intermediária, entre a subjetividade psíquica e a objetividade do mundo, que é a experiência cultural. Os depoimentos dos usuários atendidos pelos Caps, recolhidos na pesquisa, parecem também apontar para a importância desse lugar. Poderíamos, então, concluir que o Caps, na perspectiva de usuários e técnicos, apresenta condições de um espaço potencial no sentido winnicottiano?

Para a formação de um espaço potencial, segundo a teoria winnicottiana, o sujeito necessita de uma maternagem suficientemente boa, atuando por meio de adaptações ativamente coordenadas diante da imprevisibilidade do ambiente. Este primeiro holding é essencial para que o bebê faça a transição entre experiência de um estado de soberania sobre o mundo (onipotência), característico do estado fusionado com a mãe, para viver uma experiência externa à mãe, mas manejada por ela, como forma de evitar que eventuais fracassos em lidar com as demandas de um mundo externo possam se tornar traumáticos. Se o handling ocorre suficientemente bem, o mundo externo é suportado, e, assim, nasce um espaço potencial na vida do sujeito, por intermédio da confiança na provisão ambiental, abrindo espaço para um viver mais criativo e para o uso de sua personalidade integral.

Projetando este conceito sobre o Caps, a tecnologia do acolhimento demonstrou qualidades dignas de uma maternagem winnicottiana. Por ser esta ferramenta que acolhe o sujeito desde sua entrada no serviço, parece atuar recebendo o usuário em ‘seus braços’, e como se fosse um holding materno, procura dar suporte ao sujeito em sofrimento, oferecendo segurança para a experiência do tratamento. Por ser uma tecnologia leve e amplamente defendida nas diretrizes e na literatura em saúde mental, o acolhimento mostrou ser essencial para o holding que uma pessoa em sofrimento grave necessita ao buscar a atenção do serviço. Por consequência, um acolhimento bem estabelecido pode definir a qualidade da experiência que o usuário terá na instituição e no contato com os profissionais.

Com a responsabilidade de conduzir a etapa do acolhimento, o técnico que acolhe na maior parte das vezes é definido como TR. Assim como a mãe suficientemente boa, parece ser demandado que o profissional promova adaptações ativas às necessidades do usuário, mas que vá gradativamente diminuindo esse movimento adaptativo, como forma de permitir sua reinserção social de acordo com a evolução da capacidade do sujeito de lidar com as frustrações e desadaptações em seus movimentos de autonomia.

Os depoimentos colhidos na pesquisa mostraram que os profissionais têm dificuldade em permitir a presença do usuário por um tempo prolongado no espaço, pois a imagem deles dormindo ou apenas conversando durante o dia surge em algumas respostas carregadas de significados herdados do período manicomial.

Apesar disso, a presença do usuário no espaço, diante dos dados, mostrou potencialidade para o estabelecimento de laços sociais e do sentimento de pertencimento. O engajamento nas atividades, como cursos, grupos terapêuticos, oficinas, entre outros, aparece como ferramenta efetiva dentro dos projetos terapêuticos de muitos usuários. Assim, se o manejo puder ser feito para que o usuário possa ser criativo durante o tratamento, inclusive apropriando-se dele, o Caps pode tornar-se um referente de segurança, com o qual sempre se poderá contar.

Para a realidade brasileira atual, o Caps parece ser uma instituição muito oportuna para o cuidado em saúde mental, uma vez que apresentou exemplos importantes de como a provisão ambiental pode determinar um tratamento de qualidade, em um vínculo sólido, além de permitir uma experiência de continuidade ao usuário por meio da sustentação de um ambiente produtor de saúde. Por outro lado, vimos que, sem um holding institucional suficiente, o alcance da ação profissional pode se tornar menor. Ainda assim, as pesquisas examinadas demonstram que, apesar das dificuldades enfrentadas na instituição, alguns técnicos conseguem superar as dificuldades e oferecer um handling suficiente. Podemos imaginar o que conseguiriam fazer em condições melhores, sobretudo podendo contar com os recursos de toda a Raps, como os centros de convivência (infelizmente ainda inexistentes em muitas cidades ou bairros) e o apoio matriciado da atenção básica. De todo modo, o presente trabalho encontra indicativos de que o Caps, em condições favoráveis, pode operar como espaço potencial, contribuindo para o restabelecimento de um viver mais criativo em sociedade.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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