Legislativo e Executivo na pandemia de Covid-19: a emergência de uma conjuntura crítica federativa?

Assis Luiz Mafort Ouverney Fernando Manuel Bessa Fernandes Sobre os autores

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o papel desempenhado pelo Congresso Nacional, e suas relações com o Poder Executivo, na formulação de políticas como resposta aos desafios da pandemia de Covid-19 no Brasil. A análise foi realizada a partir do olhar teórico do Neoinstitucionalismo Histórico, em especial, do conceito de conjuntura crítica. Partiu-se da hipótese de que o vácuo deliberado de coordenação produzido pelo Poder Executivo Federal na condução das ações de combate à pandemia poderia impul- sionar a atividade de formulação legislativa do Congresso. Esse movimento ampliaria as possibilidades de aprovação de uma pauta de projetos mais alinhada aos posicionamentos dos estados e municípios. Tal dinâmica poderia impulsionar uma conjuntura crítica federativa, alterando as características do modelo federativo brasileiro construído nas últimas três décadas. Foram analisadas as normativas aprovadas no primeiro período legislativo do Congresso Nacional (fevereiro a julho de 2020), no âmbito da primeira onda da pandemia. Os resultados mostram que o Congresso obteve maior autonomia da formulação de políticas ante o Executivo, posicionamento este que resultou na aprovação de um conjunto expressivo de matérias no campo federativo, caracterizando a emergência de uma conjuntura crítica, embora de sustentabilidade ainda incerta, a depender do comportamento de diversas variáveis.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Federalismo; Poder Legislativo; Instituições

A pandemia de Covid-19 e as pressões por maior coordenação federativa

A rápida a ampla difusão da pandemia de Covid-19 resultou em pleitos crescentes para a capacidade do País de construir políticas públicas integradas e em tempo oportuno, o que conduziu, necessariamente, a demandas expressivas sobre a administração pública, os diversos atores sociais e as instituições nacionais.

No campo institucional, a agenda de combate à Covid-19 tem produzido dois tipos de pressão sobre o arcabouço federativo brasileiro: 1) impulsionou a demanda pela formulação de políticas e a implantação de novos mecanismos regulatórios das relações intergovernamentais; e 2) intensificou a demanda por mediação institucional na defesa das prerrogativas constitucionais e dos recursos fiscais e financeiros das esferas da federação, em especial, no que tange às competências comuns.

Ao longo das últimas três décadas, demandas dessa natureza, no setor saúde, passaram a ser conduzidas a partir da dinâmica de federalismo integrado e cooperativo estabelecida na Constituição de 1988 e nas Leis Orgânicas da Saúde. Nesta, a formulação das políticas nacionais prioritárias, desde então, contava com a atuação expressiva do Ministério da Saúde em parceria com as entidades de representação dos gestores estaduais e municipais - Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), respectivamente, - para conduzir as decisões relativas à ampliação da rede de serviço de saúdes, à implementação de novos programas, à política de informação em saúde, à contratação e fixação de profissionais, entre outras11 Fleury S. Democracia e Inovação na Gestão Local da Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2014..

Entretanto, essa dinâmica de construção conjunta foi esvaziada já nos primeiros meses da pandemia, em virtude do posicionamento autocrático e negacionista do Presidente Jair Bolsonaro, criando um vácuo federativo deliberado que resultou em um duplo deslocamento nas funções de coordenação de políticas no Brasil: de um lado, os governadores e prefeitos assumiram o protagonismo na condução das ações de combate à pandemia em seus territórios; de outro, o Congresso ampliou seu papel na formulação de políticas e na garantia dos recursos para estados e municípios.

Esse duplo deslocamento pode produzir mudanças na trajetória recente tanto das relações entre os poderes quanto entre as esferas da federação. Nas últimas três décadas, antes da pandemia, o Poder Executivo federal construiu capacidades expressivas não só para influenciar a agenda legislativa a seu favor como também para induzir padrões nacionais de políticas perante estados e municípios22 Abrúcio FL. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Rev Sociol Polít. 2005 [acesso em 2021 mar 15]; 24:41-67. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/7zWs4By9mFRYQPskSGLSDjb/abstract/?lang=pt
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3 Ouverney AM, Fleury S. Polarização federativa do SUS nos anos 1990: uma interpretação histórico-institucionalista. Rev Adm Pública. 2017 [acesso em 2021 mar 15]; 51(6):1085-1103. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/8DJ5NZFqrVBr6dS3TTtGMTJ/abstract/?lang=pt
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-44 Arretche M. Democracia, Federalismo e Centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; Fiocruz; 2012.
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Dessa forma, é possível que, diante do isolamento do governo, o Congresso tenha obtido maior autonomia para a formulação de políticas? Caso sim, esse novo posicionamento representou uma aproximação maior aos estados e municípios, favorecendo a aprovação de projetos alinhados a seus interesses e necessidades conjunturais? Diante disso, tais mudanças seriam profundas o suficiente para produzir o início de uma conjuntura crítica federativa, alterando o atual padrão de federalismo no Brasil?

O presente artigo busca respostas para essas questões a partir da análise dos resultados de um levantamento da legislação aprovada pelo Congresso Nacional, no primeiro período legislativo de 2020 (fevereiro a julho). O estudo emprega o referencial do Neoinstitucionalismo Histórico, no âmbito da pesquisa ‘Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Pandemia de Covid-19’, desenvolvida pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Federalismo cooperativo, a esfera federal e o papel do Congresso

O federalismo cooperativo na Constituição de 1988

A Constituição de 1988 definiu um modelo federativo cooperativo, com três esferas autônomas e um conjunto amplo de competências comuns, colocando os entes subnacionais como atores importantes. O objetivo dessa configuração, tanto no âmbito da repartição de competência quanto no da distribuição de recursos, consistia em resgatar o papel de estados e municípios na federação, espaço este suprimido pelo regime militar no Brasil.

No campo da gestão de políticas, desde os anos 1990, a natureza cooperativa, com competências comuns, foi aprofundada em áreas como saúde, educação, assistência social, meio ambiente e segurança. Foram institucionalizados processos de pactuação e organização do trabalho coletivo, envolvendo um amplo arcabouço de dispositivos, tais como instâncias colegiadas, planos pactuados de gestão, convênios, transferências intergovernamentais, entre outras.

Assim, nessas áreas, definidas nos arts. 23 e 24 da Constituição55 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., mesmo diante da inércia do governo federal, os entes subnacionais possuem prerrogativa constitucional de ação, não só no campo da gestão, mas também em termos de iniciativa legislativa. É o caso, em especial, da proteção à saúde da população (art. 24, XII). Embora esses artigos não tenham sido regulamentados desde então, para definir com clareza as prerrogativas de cada ente, também não foram suprimidos, o que garante a prerrogativa do exercício das responsabilidades dos entes subnacionais para proteger e cuidar de suas respectivas populações.

A esfera federal e o papel do Congresso

Nesse modelo de federalismo, a esfera federal possui um papel extremamente relevante, uma vez que cabe a ela instituir as regras gerais que regulam as relações intergovernamentais, construir o arcabouço institucional para dirimir conflitos setoriais e possibilitar negociações (comissões etc.), estabelecer canais para formulação de políticas (grupos de trabalho etc.), implantar áreas técnicas para apoiar estados e municípios, entre outras66 Elazar D. Exploring Federalism. Tuscaloosa: University of Alabama Press; 1987..

O papel da esfera federal é exercido não só pela estrutura constituída do Poder Executivo (Presidência da República, ministério, autarquias, empresas públicas etc.), mas também pela atuação das instituições do Congresso (Senado e Câmara do Deputados) e do Judiciário (Supremo Tribunal Federal - STF), entre outras.

Em geral, em federações com expressivo leque de competências comuns, predomina a definição de padrões nacionais na formulação de políticas, a partir da ênfase conferida a processos de decisão conjunta e formação de consensos entre a esfera federal e os entes subnacionais77 Broschek J. Historical Institutionalism and the Varieties of Federalism in Germany and Canada. Journal Federalism. 2011 [acesso em 2021 mar 15]; 42(4):662-687. Disponível em: https://academic.oup.com/publius/article-abstract/42/4/662/1859652
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. No caso brasileiro, o governo federal manteve expressivas capacidades de indução de programas setoriais, além de elevado sucesso em aprovar projetos no Legislativo, tomando-o um ator central na definição de padrões nacionais de políticas públicas nas três últimas décadas.

Assim, instâncias de pactuação e de defesa dos interesses das esferas estadual e local são dispositivos institucionais estratégicos, por permitirem garantias de equilíbrio federativo nos momentos de distribuição de atribuições em novas políticas e em situações de conflito sobre prerrogativas de ação e de alocação de recursos financeiros.

O papel fundamental dessas instâncias consiste em preservar o pacto federativo original inscrito na Constituição, e promover ajustes de atualização desse em contextos não previstos inicialmente. Nesse sentido, a regulação de direitos originários de autonomia e das prerrogativas de exercício das competências de cada esfera, em uma federação, é de responsabilidade do Congresso (em especial, do Senado) e do STF.

No caso do Congresso, por meio da representação política dos deputados, e, principalmente, dos senadores eleitos, garante-se a defesa dos interesses das unidades da federação no processo legislativo, quando se regulamentam as disposições maiores definidas na Constituição sobre a divisão de poderes e a distribuição de recursos tributários.

Cabe ao Senado, como casa da federação, apreciar todos as iniciativas legislativas (projetos de lei, propostas de emenda à Constituição, Medidas Provisórias - MP etc.) provenientes da Câmara dos Deputados e da Presidência da República que contenham disposições que afetem as prerrogativas de ação dos estados, e de suas unidades constituintes, bem como sua parcela de recursos no total da arrecadação de tributos.

Em especial, no campo federativo, o art. 52 da Constituição de 198855 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. destaca seu papel nos assuntos de natureza fiscal, financeira e orçamentária, tais como autorizar operações externas de natureza financeira, estabelecer limites globais para o montante da dívida consolidada, para as operações de crédito externo e interno e para o montante da dívida mobiliária, além de avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos estados e do Distrito Federal (DF) e dos municípios.

A Câmara dos Deputados, por sua vez, apesar de não ser esse seu campo primordial de atuação, também possui prerrogativas institucionais de expressiva relevância no âmbito das relações federativas. Esse mesmo papel tende a ser exercido pelas bancadas estaduais no âmbito da Câmara de Deputados, em virtude da própria pressão dos governadores e da base eleitoral de origem em cada uma das unidades da federação.

Comissões permanentes no âmbito da Câmara dos Deputados possuem competência para apreciar e alterar iniciativas legislativas da própria casa, do Senado e do Presidente da República, com conteúdo de natureza federativa. É o caso da Comissão de Constituição e Justiça, que cuida de temas como emendas à constituição, em especial, os relacionados aos direitos e garantias fundamentais e à organização do Estado e dos Poderes da República.

Entretanto, a literatura brasileira sobre as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo mostra que o primeiro tem tido expressivo sucesso em pautar a agenda legislativa, aprovando percentual significativo de propostas de seu interesse, que afetam, inclusive, aspectos do balanço da distribuição de prerrogativas e recursos entre as esferas da federação44 Arretche M. Democracia, Federalismo e Centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV; Fiocruz; 2012.,88 Figueiredo A, Limongi F. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV; 1999.,99 Diniz S. Interações entre os poderes executivo e legislativo no processo decisório: avaliando sucesso e fracasso pr esidencial. Dados. 2005 [acesso em 2021 mar 15]; 48(2):333-369. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/SymzMgnnK9R8pQLcMvB7jFC/?lang=pt
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Essa capacidade de direcionar a agenda congressual para resultados desejados pela União é atribuída à existência de um conjunto de dispositivos legais e institucionais que conferem ao Poder Executivo competências de formulação, controle de espaços decisórios, da direção e do ritmo da dinâmica legislativa.

Entre os dispositivos recorrentemente citados como estratégicos, para redistribuir poder em favor do Executivo, encontram-se as prerrogativas de emitir MP com força de lei, solicitar tramitação em caráter de urgência para suas propostas e editar matérias com exclusividade sobre temas como a organização da administração pública, além de questões fiscais e orçamentárias.

Além disso, a própria configuração interna de organização do Congresso favoreceria a dominância do Executivo por concentrar poder na direção das duas casas e nas lideranças partidárias que controlam um conjunto de dispositivos para regular as bancadas e ditar o ritmo e a direção dos trabalhos, tais como definição de pauta, distribuição de comando das principais comissões, emprego de pedidos de urgência, controle sobre destaques e votações nominais, entre outros.

Em síntese, somando-se as prerrogativas de atuação legislativa do Executivo com a dinâmica centralizada de operação do Congresso, a capacidade de criar constrangimentos para a cooperação das bancadas é expressiva.

A questão central abordada neste artigo é saber se essa dinâmica se mantém nesse contexto de reduzida capacidade de articulação do governo federal e recuo em suas funções de coordenador nacional das políticas de combate à pandemia de Covid-19. Caso não, que implicações isso pode ter para o federalismo brasileiro?

Metodologia da pesquisa

As análises contidas no presente artigo são resultado de estudos realizados no âmbito da pesquisa ‘Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Covid-19’1010 Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Estudos Estratégicos. Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Covid-19. Projeto de Pesquisa: 2020. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020., do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, que abrange a análise da produção normativa dos três poderes da República e dos governadores dos estados, assim como de mídia e discursos dos principais atores relacionados com o tema da pandemia de Covid-19 e seus impactos nas relações federativas.

Abordagem conceitual e hipótese

A análise das relações entre a evolução da pandemia e a dinâmica do federalismo no Brasil, em especial, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), foi realizada a partir do olhar teórico e conceitual do Neoinstitucionalismo Histórico1111 Immergut E. The Theoretical Core of the New Institutionalism. Politics Society. 1998 [acesso em 2021 mar 15]; 26(1):5-34. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0032329298026001002
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, sobretudo, do conceito de conjuntura crítica.

Conjunturas críticas podem ser definidas como períodos de expectativas de transformações significativas nos rumos da sociedade, de uma instituição específica ou de uma política, desencadeadas por crises políticas e econômicas externas ou por mudanças expressivas na correlação de forças existente. Nesses momentos, atores ampliam seu espaço político e buscam introduzir alterações nas regras de acesso e exercício do poder, conformar um novo pacto e projetar seu legado1212 Capoccia G, Kelemen D. The Study of Crititcal Juncture: Theory, Narrative, and Counterfactuals in Historical Institutionalism. World Politics. 2007 [acesso em 2021 mar 15]; 59(3):341-369. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/world-politics/article/study-of-critical-junctures-theory-narrative-and-counterfactuals-in-historical-institutionalism/BAAE0860F1F641357C29C9AC72A54758
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Assim, conjunturas críticas são situações em que a influência de fatores estruturais de natureza econômica, política, organizacional e cultural sobre a ação dos atores políticos é expressivamente afrouxada. Nestas, há um leque mais amplo de escolhas, e a ação dos principais atores envolvidos adquire maior capacidade de transformação sobre a trajetória precedente da política pública1313 Collier R, Collier D. Shaping the political arena: critical junctures, the labor movement and regime dynamics in Latin America. Princeton: Princeton University Press; 1991..

Uma conjuntura crítica caracteriza-se pela emergência de vias institucionais alternativas igualmente possíveis, encerrando-se quando há a afirmação de uma delas como a via hegemônica que desencadeará a implementação de mecanismos institucionais da uma nova ordem para regular a dinâmica de definição dos rumos da política pública, a distribuição de prerrogativas e responsabilidades, a alocação de recursos, entre outros. Configura-se, nesse caso, emergência de uma trajetória dependente1414 Mahoney J. Path Dependence in Historical Sociology. Theory Society. 2000 [acesso em 2021 mar 15]; 29(4):507-548. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/226486834_Path_Dependence_in_Historical_Sociology#:~:text=They%20are%20path%20dependent%3B%20the,properties’%20(Mahoney%202000)%20
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A pesquisa parte do pressuposto de que as fases de emergência da pandemia, ao ampliar a pressão sobre os atores, pode disparar uma conjuntura crítica, ampliando os espaços para novos posicionamentos dos atores e alterando a dinâmica federativa prévia.

A análise do papel de ser desempenhado pelo Congresso nesse contexto partiu da seguinte hipótese: o federalismo de competências comuns, associado ao posicionamento do Presidente da República, que atua na contramão da academia, da sociedade e dos governadores, favorece o conflito ao invés da negociação e busca de consenso. Nessa conjuntura, o Legislativo tende a assumir maior protagonismo e autonomia, acionando suas prerrogativas de defesa do modelo federativo brasileiro, o que amplia as possibilidades de aprovação de uma pauta mais alinhada às necessidades e ao posicionamento dos estados e municípios. Essa dinâmica pode disparar o início de uma conjuntura crítica federativa.

Coleta, sistematização e análise dos dados

Tal hipótese orientou o trabalho de coleta, sistematização e análise dos dados realizado, no caso do presente artigo, majoritariamente por meio de pesquisa documental, a partir de consulta aos sites do Congresso. A pesquisa tomou como ponto de partida o site da Câmara dos Deputados sobre as propostas aprovadas por esta casa relativas à pandemia de Covid-191515 Brasil. Câmara dos Deputados. Combate ao Coronavírus. Brasília, DF: Agência Câmara; 2020. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/procorona/parlamentares.html
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. Nessa relação, constam tanto as propostas próprias quanto às elaboradas pelo Senado e pela Presidência da República.

Segundo o site1515 Brasil. Câmara dos Deputados. Combate ao Coronavírus. Brasília, DF: Agência Câmara; 2020. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/procorona/parlamentares.html
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, em 2020, foram apresentadas 1.774 propostas relacionadas com a pandemia de Covid-19 pelos deputados da casa e 82 pela Presidência da República. Entre as propostas da Câmara dos Deputados, a maioria se concentrou nas áreas de saúde (309), trabalho, previdência e assistência (303), economia (256), cidades e transportes (151), educação (148), administração pública (133) e consumidor (132).

Para o presente estudo, foram selecionadas as que completaram todo o ciclo de tramitação legislativa, ou seja, foram transformadas em norma vigente, na forma de leis ordinárias, leis complementares, emendas constitucionais, decretos legislativos, entre outros. Até dezembro de 2020, haviam sido 66 propostas já sancionadas ou promulgadas, além de 3 aprovadas na Câmara e no Senado que aguardavam análise de veto.

As informações relativas a elas foram inseridas em um banco de dados organizado em uma planilha do Microsoft Excel®, com cada normativa em uma linha, sendo inseridas em torno de 20 variáveis para caracterização das mesmas nas colunas, buscando realizar uma descrição básica de cada norma (tipo de norma, número, tipo de proposta de origem, autoria, objeto regulado pelo texto, partido do autor, entre outras) e permitir uma análise de sua dinâmica de tramitação (relator, partido do relator, data da apresentação da proposta, data de aprovação na Câmara dos Deputados, data de aprovação no Senado, data de sanção/promulgação, entre outras). Todas as informações foram obtidas nas fichas de tramitação dos projetos na Câmara dos Deputados e no Senado1616 Brasil. Câmara dos Deputados. Propostas Legislativas. Brasília, DF: Agência Câmara; [2021?]. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada
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,1717 Brasil. Senado Federal. Pesquisa de Matérias. Brasília, DF: Agência Senado; [2021?]. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias
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Finalmente, cada norma ainda foi classificada quanto ao possível impacto federativo de seu conteúdo e quanto às seguintes áreas temáticas, definidas na pesquisa:

  • Regulação e Gestão Territorial: envolve ações e medidas, normas, decretos e/ou leis que regulamentam os processos de isolamento e flexibilização, incidindo sobre a organização de serviços, comércio, transportes etc.;

  • Políticas e Serviços de Saúde: abrange as ações, programas e, especialmente, políticas públicas e serviços de saúde;

  • Emprego, Renda, Finanças Públicas e Gestão: guarda conexão com ações, programas e/ou políticas públicas de geração de emprego, garantia de renda, regras fiscais e orçamentárias e organização da administração pública.

Para o presente artigo, foram selecionadas as 34 normativas aprovadas entre fevereiro e julho de 2020, abrangendo o primeiro período legislativo do Congresso Nacional, portanto, ainda no âmbito da primeira onda da pandemia.

A análise delas foi realizada em dois estágios. No primeiro, as 34 foram separadas em dois blocos - as de origem no Congresso e as de origem na Presidência da República -, para os quais foram comparadas 8 variáveis selecionadas. Já no segundo estágio, foram selecionadas as 14 normativas com impactos federativos para proceder a uma análise de conteúdo mais detalhada. Ao longo da próxima seção, são fornecidas também algumas informações sobre o conjunto das 66 normativas, mas apenas como elementos complementares da análise.

Resultados e discussão

Iniciativa e instrumentos

Conforme apresentado no quadro 1, a maior parte da legislação aprovada no período analisado teve origem na própria produção legislativa do Congresso, sendo que, das 34 normativas analisadas, apenas 8 (23,5%) foram enviadas pela Presidência da República.

Quadro 1
Características das leis aprovadas no Congresso Nacional relativas à pandemia de Covid segundo origem de autoria - fev. a jul./2020 - números absolutos (N=34)

Os instrumentos legislativos mais empregados foram o projeto de lei ordinária, pelo Congresso (21), e as MP, pelo Poder Executivo (6). Foram poucos os casos de normativas aprovadas originadas de projeto de lei complementar ou proposta de emenda à Constituição. Duas questões relevantes sobre esses dados iniciais merecem aprofundamento.

A primeira é sobre o papel desempenhado pelo Poder Executivo no processo legislativo ao longo da pandemia. À primeira vista, o reduzido número de normativas aprovadas de autoria da Presidência da República pode levar à conclusão de que houve pouca iniciativa do governo.

Na verdade, os números sobre a edição de MP mostram exatamente o contrário. Ao longo de 2020, segundo dados do Senado, o governo enviou ao Congresso 101 MP, portanto, um recorde nos últimos 20 anos1818 Brasil. Senado Federal. Em ano de pandemia, governo envia e ‘perde’ número recorde de MPs. Brasília, DF: Agência Senado; 2020. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/12/29/em-ano-de-pandemia-governo-envia-e-perde-numero-recorde-de-mps
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. A média anual de edição de MP desde o ano de 2001, quando foram estabelecidas novas regras para esse instrumento, foi de 50,9 MP e, em apenas duas outras oportunidades, ultrapassou-se o número de 70: em 2002, com Fernando Henrique (82 MP), e em 2004, com Lula (73 MP)1818 Brasil. Senado Federal. Em ano de pandemia, governo envia e ‘perde’ número recorde de MPs. Brasília, DF: Agência Senado; 2020. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/12/29/em-ano-de-pandemia-governo-envia-e-perde-numero-recorde-de-mps
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Somente no período analisado neste artigo, segundo dados da Câmara dos Deputados1515 Brasil. Câmara dos Deputados. Combate ao Coronavírus. Brasília, DF: Agência Câmara; 2020. [acesso em 2021 jan 10]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/procorona/parlamentares.html
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, foram editadas 67 MP com conteúdo relativo à pandemia de Covid-19. Portanto, a taxa de aprovação de MP do governo Bolsonaro, no período analisado, relativa à pandemia, foi de 8,9%, extremamente baixa, se considerarmos que essa, na média, variou de 90,4%, no primeiro governo Lula, até 47,1%, nos dois anos do próprio governo Bolsonaro.

Então, quais os motivos da baixa aprovação das MP no período analisado? Quatro fatores podem ser levantados para explicar a baixa taxa de sucesso do governo: as diferenças de posicionamento entre Congresso e governo na condução da pandemia, a dificuldade de articulação do governo, conteúdos com pouca adesão da sociedade e um posicionamento do Legislativo mais centrado em sua própria pauta de formulação.

A segunda questão se refere aos instrumentos legislativos empregados e seu possível impacto sobre o ordenamento jurídico vigente, em especial, sobre temas federativos. O uso majoritário de leis ordinárias indica que os assuntos regulamentados são de natureza cotidiana, com regras já definidas na Constituição, não sendo necessária uma regulamentação muito expressiva. Alterações mais expressivas, como as produzidas por emendas à Constituição, ocorreram apenas em duas situações: criação do ‘orçamento de guerra’ (EC 106/20) e postergação das eleições municipais (EC 107/20).

A análise dos instrumentos legislativos, portanto, indica poucas possibilidades de mudanças expressivas no modelo federativo brasileiro para o futuro, embora seja necessário um olhar mais detalhado sobre o conteúdo das normas. Isso porque, em determinadas situações, uma lei ordinária pode conter dispositivos que abrem precedentes jurídicos, passíveis de aprofundamentos em outras arenas, como a judiciária.

Tramitação, iniciativa e relatoria

Os trabalhos do Congresso em relação à pandemia de Covid-19 começaram no início de fevereiro com a análise e aprovação da Lei nº 13.979/20, que estabeleceu as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais é importante destacar as relativas ao distanciamento social, ao uso de máscara, à realização de testes, à proteção de trabalhadores, à flexibilização do regime de licitações e compras públicas, entre outras.

Ao longo do primeiro período legislativo, o Congresso discutiu e aprovou em média 5,6 propostas por mês, o corresponde a mais de 1 lei por semana. Das 34 normativas aprovadas no período, 20 foram apresentadas no mês de março, mostrando como o Congresso e os partidos reagiram rápido, impulsionando atividades de formulação. O trimestre de maio a julho foi o período no qual se concentrou a aprovação de 24 das 34 iniciativas, sendo que, em maio e junho, foram concluídas 15 leis.

Em média, o tempo de tramitação das propostas formuladas no Congresso foi de 64 dias, havendo propostas aprovadas tanto no mesmo dia, como a Resolução da Câmara nº 14, que estabeleceu o sistema de deliberação remota, assim como outras que tomaram mais tempo, quanto outras, como a Lei Ordinária nº 14.024/20, sobre a validade de receituário de uso contínuo, que levou 127 dias. O tempo de tramitação das propostas provenientes do Executivo foi semelhante ao do Congresso. É importante lembrar que a data de conclusão do processo legislativo é a de sanção/promulgação, o que inclui, nos casos específicos, o período de análise e aprovação pela Presidência da República, que foi de 23 dias, em média.

A iniciativa de apresentação partiu de 15 partidos diferentes (25), além da Presidência da República (8) e da Presidência da Câmara (1). Os partidos com mais propostas aprovadas foram PT, DEM e PP (3 cada); e PSDB, Rede, PL e PSD (2 cada). Entre os 10 partidos com 29 ou mais deputados na Câmara, que juntos possuem 381 deputados (de um total de 512), apenas PSL e Republicanos não tiveram projetos aprovados. A lista desses 10 partidos e suas respectivas bancadas é a seguinte: PSL (53), PT (52), PL (42), PP (41), PSD (35), MDB (34), Republicanos (33), PSDB (32), PSB (30) e DEM (29).

A distribuição de relatoria também contou com a atuação de 15 partidos, mas com uma proporção diferente, sendo MDB (4), DEM, PDT (3), Republicanos, PCdoB, Rede e PSDB (2) os partidos contemplados com mais projetos. Nesse caso, entre os 10 partidos com mais deputados, apenas PT e PSB não relataram projetos aprovados.

Áreas temáticas

A grande maioria das normativas aprovadas - 20 de um total de 34 - compreende iniciativas nas áreas de proteção de emprego e renda, política fiscal e administração pública, configurando certa especialização institucional no âmbito da estratégia nacional de combate à pandemia.

A proteção de emprego e da renda e a transferência de recursos a setores específicos da sociedade foram contemplados, em especial, por meio de sete leis aprovadas, com destaque para as que instituíram o Auxílio Emergencial (2/4/20 e 14/5/20), o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (19/5/20) e o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (7/720).

Nas finanças públicas, as duas iniciativas de maior relevância foram a criação do Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus (29/7/20) e a instituição do chamado ‘Orçamento de Guerra’, com impactos federativos analisados mais à frente.

O Congresso também aprovou legislação significativa nas áreas de políticas e serviços de saúde (7) e regulação da dinâmica social e econômica (5). No primeiro grupo, é importante destacar as que autorizam, em caráter emergencial, o uso de telemedicina, dispõem sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas e concedem prioridade para a realização de testes de diagnóstico da Covid-19 aos profissionais de saúde dedicados ao combate ao novo coronavírus.

No segundo grupo, cabe ressaltar as que definem como serviço essencial, no âmbito da pandemia, a proteção à mulher, idoso, criança ou adolescente em situação de violência, dispõem sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público e estabelecem o ‘Regime Jurídico Emergencial e Transitório’ das relações jurídicas de Direito Privado.

Das 34 propostas aprovadas no primeiro período legislativo, 14 possuem impactos federativos, sendo 12 de autoria do Congresso e 2 da Presidência da República. Os possíveis impactos dessas normativas sobre a dinâmica do federalismo brasileiro são analisados a seguir.

Leis com impactos federativos

Conforme apresentado no quadro 2, as regras de cunho mais geral estabelecidas nas primeiras semanas da pandemia - Lei Ordinária nº 1.3979/20 e Decreto Legislativo nº 02/20 - definem orientações sanitárias para a proteção da sociedade brasileira, tais como isolamento, uso de máscara, realização de testes, restrições de circulação, planejamento com base em evidências científicas, entre outras; e flexibilizam as regras fiscais, as metas do orçamento de 2020 e a aquisição de bens e serviços pelo Estado no mercado.

Quadro 2
Conteúdo das leis aprovadas no Congresso Nacional relativas à pandemia de Covid com impactos federativos segundo área temática - março a jul/2020 (N=14)

Claramente, tais orientações se alinham às posições defendidas pelos governadores estaduais desde o início da pandemia e se distanciam do discurso negacionista do núcleo do governo. Em ambas as normativas, ressaltam-se a responsabilidade conjunta das três esferas da federação e a capacidade dos estados e municípios de adotarem medidas imediatas em seus respectivos territórios para combater a pandemia.

Os mesmos posicionamentos são observados nas 2 emendas constitucionais, 2 leis complementares e 4 leis ordinárias com impactos federativos em 2020, de forma mais específica, no campo das finanças públicas e administração pública.

A Emenda Constitucional nº 106 estabelece o chamado ‘Orçamento de Guerra’, em que são alocados os gastos específicos da pandemia, além de disposições para flexibilizar regras fiscais, financeiras e administrativas para a esfera federal, durante o estado de calamidade pública. Embora a flexibilização seja temporária e restrita à União, ampliando a capacidade de gasto da esfera federal, abre espaço fiscal para mais transferências a estados e municípios, inclusive por determinação de emendas orçamentárias do Legislativo.

A Emenda Constitucional nº 107 autorizou o adiamento das eleições locais de 2020 para os dias 15 e 29 de novembro, visando garantir a realização do pleito democrático com a ampliação do tempo para o planejamento das ações de proteção à saúde dos cidadãos. Também foram instituídos mecanismos on-line de justificativa de não comparecimento, reduzindo a circulação presencial dos eleitores, e reuniões on-line aos partidos para evitar aglomerações.

As Leis Complementares nº 172 e nº 173 possuem efeitos favoráveis aos entes subnacionais tanto por flexibilizar o uso de recursos já transferidos pela União quanto por definir novos recursos a serem transferidos, além de reduzir os encargos de dívida.

A primeira autoriza estados e municípios a transpor saldos financeiros de exercícios anteriores entre políticas locais e itens de despesa, no âmbito das ações e serviços do SUS, visando usar recursos já transferidos para ampliar a capacidade de resposta dos sistemas locais de saúde à pandemia.

A segunda criou a iniciativa mais relevante de apoio fiscal e financeiro aos estados e municípios em 2020, criando o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, composta por três linhas de ação: 1) suspensão dos pagamentos das dívidas dos estados e municípios com a União; 2) reestruturação de operações de crédito interno e externo de estados e municípios na instituições de crédito; e 3) transferência de recursos financeiros da União aos estados, DF e municípios para ações de combate à pandemia. Os valores do apoio da União definidos no texto da Emenda Constitucional nº 173 são de R$ 60 bilhões, somando transferências (R$ 30 bilhões) e suspensão de pagamentos (R$ 30 bilhões).

As quatro leis ordinárias restantes na área de finanças públicas e gestão caminham também no sentido de flexibilizar as amarrar fiscais e orçamentárias da União e viabilizar a transferência de valores aos entes subnacionais e seus parceiros estratégicos. A Lei Ordinária nº 13.983/20 promove adequações na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020, define regras mais flexíveis para a União executar o orçamento, em termos dos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e ainda estabelece as emendas parlamentares impositivas.

As Leis Ordinárias nº 13.995/20 e nº 14.017/20 também representam aportes adicionais de recursos da União para os entes subnacionais ao estabelecer, respectivamente, a transferência de recursos para o setor filantrópico que presta serviços ao SUS e para aplicação, pelos governos estaduais e municipais, em ações de apoio ao setor cultural.

Finalmente, as quatro normativas aprovadas no campo das políticas de saúde, com efeitos federativos, abrangem iniciativas em temas variados, com impactos diferenciados sobre as responsabilidades de estados, DF e municípios.

A Lei Ordinária nº 13.992/20 também incide sobre setor filantrópico, suspendendo por 120 dias, a contar de 1º de março, a obrigatoriedade da manutenção das metas quantitativas e qualitativas contratualizadas no SUS. Isso viabiliza, mesmo em casos de dificuldades de obtenção das metas, a permanência do pagamento da produção do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (Faec), de natureza federal, com base na média dos últimos 12 meses. Na prática, representa uma política de manutenção de renda do setor, visando maior sustentabilidade dos prestadores do SUS local e regional.

Por sua vez, a Lei Ordinária nº 14.021/20 institui uma política específica de proteção às comunidades indígenas, ao definir medidas para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19, além de criar o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, e estabelecer medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais. A coordenação das ações é de responsabilidades da União, em parceria com estados e municípios, o que favorece a concepção de federalismo de competências comuns, definido na Constituição de 1988.

Impactos sobre o federalismo brasileiro - A emergência de uma conjuntura crítica?

Os resultados do levantamento da legislação aprovada pelo Congresso no primeiro período legislativo de 2020 permitem responder de forma afirmativa às duas primeiras questões levantadas na introdução deste artigo. Sim, o Congresso obteve mais autonomia da formulação de políticas, e esse novo posicionamento representou maior aproximação às necessidades e interesses dos estados e municípios, como resultado do esvaziamento deliberado do papel do Poder Executivo federal na função de coordenador das ações nacionais de combate à pandemia de Covid-19.

Apesar do expressivo volume de MP enviadas pelo governo, seu peso no conjunto da legislação aprovada no período analisado foi pequeno, o que é coerente com os constantes embates políticos observados entre os líderes das duas casas legislativas e o Presidente Jair Bolsonaro, resultado de concepções diferentes sobre a ação do Estado ante a pandemia.

Nesse caso, diante da incompatibilidade das agendas dos dois poderes, da atitude conflituosa do Presidente e da baixa capacidade de articulação política do governo, pouco adiantaram as prerrogativas de atuação legislativa do Executivo e a dinâmica centralizada de operação do Congresso, fatores apontados pela literatura nacional como responsáveis pelas elevadas taxas de sucesso legislativo dos governos.

O amplo leque de áreas em que o Congresso formulou e aprovou legislação, e a intensidade com que o fez, expressa na elevada taxa de aprovação mensal de leis, sugere que o Congresso se orientou muito mais pelas agendas dos diversos atores da sociedade do que pelas propostas do governo, buscando realmente maior protagonismo no cenário nacional.

Esse protagonismo também permitiu mais autonomia para dar voz às diferentes tendências existentes em sua composição, que refletem a natureza plural da sociedade brasileira, o que pode ser observado no amplo leque de partidos e bancadas que participaram da iniciativa e da relatoria das propostas.

Ademais, no âmbito desse conjunto de atores representados no Congresso, os estados e municípios foram contemplados com a aprovação de expressivo conjunto de medidas de apoio, sinalizando a existência de posicionamentos convergentes entre as lideranças das duas casas e dos partidos e os governadores, em especial, com relação à construção de agenda nacional de combate à pandemia de Covid-19.

Claramente, o cerne de ação das medidas aprovadas pelo Congresso com impactos federativos foi o núcleo da política liberal de austeridade e redução do gasto na área social do Ministro Paulo Guedes que visava, inclusive, à extinção de municípios de pequeno porte, sustentada em uma concepção hierárquica e competitiva de federalismo.

Nesse sentido, cinco estratégias foram adotadas para ampliar o volume de recursos disponíveis para sustentar a ação de estados e municípios no combate à pandemia: 1) a flexibilização de metas fiscais e limites de gastos estabelecidos pela LRF; 2) a suspensão das obrigações contratais de pagamento de dívida com a União e instituições credoras; 3) a transferência direta de recursos para estados e municípios para compensar perdas com arrecadação; 4) a flexibilização das regras de uso de recursos financeiros transferidos antes da pandemia e ainda não gastos; e 5) a transferência de recursos para parceiros estratégicos do SUS, como o setor hospitalar filantrópico.

A questão central, portanto, é a terceira e última que foi apresentada na introdução do artigo, ou seja, tais mudanças são profundas e duradouras o suficiente para produzir uma conjuntura crítica federativa, alterando o atual padrão de federalismo no Brasil?

A resposta é sim, porém menos pela vigência das normativas que flexibilizaram as regras fiscais e ampliaram o volume de recursos aos estados e municípios e mais pela cadeia possível de eventos que o conjunto da ação do Congresso, associada ao novo papel desempenhado pelos governadores, e prefeitos, pode gerar.

A maioria das normativas sobre o campo fiscal está fundamentada no art. 65 da LRF, que prevê a possibilidade de flexibilização de metas, limites e prazos em virtude do reconhecimento de situação de calamidade pública pelo Congresso Nacional. Portanto, as ‘novas regras’ são temporárias e reversíveis.

Entretanto, um posicionamento mais autônomo do Congresso ante o Executivo, associado à percepção da sociedade de que estados e municípios se encontram sobrecarregados no plano fiscal e financeiro, em virtude das responsabilidades assumidas, pode produzir um consenso sobre a necessidade de aprovação de um regime fiscal de transição, pós-pandemia, em que parte das ‘novas regras’ seja mantida.

Nesse caso, a urgência de implementação de uma política de pleno emprego para recompor a renda e estimular o crescimento econômico do País pode ser um fator que impulsione ainda mais o papel dos governadores na condução de uma agenda de investimentos regionais.

Da mesma forma, o esvaziamento do papal da União na formulação e indução de políticas pode gerar duas tendências permanentes, que consistem na ativação do papel das bancadas partidárias nessa função, como resposta a suas bases eleitorais e no protagonismo dos governadores, e dos consórcios de desenvolvimento regional, que estão criando complexos regionais de formulação e implementação de políticas, em associação com universidades e entidades da sociedade civil.

Entretanto, a concretização dessa cadeia de eventos depende de um amplo conjunto de fatores, tais como a mudança do governo nas eleições de 2022, com um novo posicionamento, a evolução das percepções da população sobre as questões econômicas e fiscais, a capacidade dos governadores de qualificar suas estruturas de gestão para exercer uma ova posição no plano de coordenação das políticas, entre outras. Dessa forma, a conjuntura crítica se abriu, mas sua sustentabilidade e seu potencial para gerar uma trajetória de dependência ainda são questões que aguardam uma resposta definitiva.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    07 Dez 2021
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