Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado

Traditional life territories and the agribusiness sacrifice zone in the Cerrado

Raquel Maria Rigotto Valéria Pereira Santos André Monteiro Costa Sobre os autores

RESUMO

A imensa sociobiodiversidade do Cerrado brasileiro pode ser compreendida a partir dos modos de vida construídos pelo amplo leque de povos e comunidades tradicionais em suas relações com o bioma, do qual são guardiãs. Nas últimas décadas, projetos de desenvolvimento promovem ali acelerado avanço do agronegócio, expropriando terras, privatizando águas, contaminando o ambiente e ameaçando ou inviabilizando modos de vida tradicionais. Neste artigo, parte-se da percepção de mulheres de Campos Lindos/TO, sobre as consequências trazidas às suas vidas e saúde por empresas produtoras de soja. Em seguida, questiona-se a constituição do Cerrado como zona de sacrifício do desenvolvimento brasileiro, ao concentrar terras para a produção de 75% de quatro commodities agrícolas, desmatar mais de 50% da vegetação nativa, exaurir aquíferos e levar rios à morte, contaminar o ambiente com 73,5% dos agrotóxicos consumidos no País, trazendo implicações para o processo saúde-doença (como intoxicações agudas, malformações, cânceres, desnutrição, adoecimento mental) e para outros biomas do Brasil e países da América do Sul. Conclui-se perscrutando alternativas na perspectiva dos comuns, do decrescimento, dos direitos da natureza e do bem viver, instigando reflexões da saúde coletiva e da agroecologia sobre a contribuição dos saberes e fazeres tradicionais à saúde e à emancipação humana.

PALAVRAS-CHAVES
Pradaria; Agricultura industrial; Comunidades rurais; Saúde

ABSTRACT

The immense socio-biodiversity of the Brazilian Cerrado can be understood from the ways of life built by the wide range of traditional peoples and communities in their relations with the biome, of which they are guardians. In the last decades, development projects have promoted an accelerated advance in agribusiness, expropriating land, privatizing water, contaminating the environment and threatening or preventing traditional ways of life. In this essay, we start from the perception of women from Campos Lindos/TO, about the consequences brought to their lives and health by companies producing soybeans. Then we questioned the constitution of the Cerrado as a sacrifice zone for Brazilian development, by concentrating land for the production of 75% of four agricultural commodities, deforesting more than 50% of native vegetation, depleting aquifers and causing rivers to die, contaminating the environment with 73.5% of pesticides consumed in Brazil, with implications for the health-disease process (such as acute intoxications, malformations, cancers, malnutrition, mental illness) and for other biomes in Brazil and South American countries. We conclude by examining alternatives in the perspective of the common, of degrowth, of the rights of nature and of good living, instigating reflections from the Collective Health and Agroecology on the contribution of traditional knowledge and practices to health and human emancipation.

KEYWORDS
Grassland; Agribusiness; Rural population; Health

Introdução

Há pelos menos 13 mil anos, o Cerrado brasileiro é habitado por povos originários, presentes contemporaneamente em cerca de 80 etnias indígenas, aos quais se somam às pessoas pretas sequestradas em África e escravizadas no Brasil no período colonial, às vezes organizadas em quilombos. Ao longo da história, esses povos foram constituindo jeitos de viver em íntima relação com as características da porção do biodiverso bioma que ocupavam – em geral, a criação de gado, a caça e a extração de frutos e de ervas medicinais em terras comuns das chapadas, e a moradia em terras públicas nos baixões, onde a água possibilita a pesca e a agricultura de mandioca, arroz, milho, feijão, além da criação de galinhas e porcos11 Alves VEL. Mobilização e modernização no Cerrado piauiense: formação territorial no império do agronegócio. [tese]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2006..

No ciclo movente das águas e no desenho do relevo, foram se conformando comunidades tradicionais como os geraizeiros, retireiros, ribeirinhos, vazanteiros, quebradeiras de coco-babaçu, comunidades de fundo e fecho de pasto, entre muitas outras, que compõem o diversificado leque de camponeses e camponesas do Cerrado, legítimas guardiãs da biodiversidade e criadoras de um importante patrimônio ecológico e cultural, a despeito da imagem de ‘vazio demográfico’ e de ‘solo pobre’ muitas vezes atribuída ao bioma22 Action Aid. Impactos da expansão do agronegócio no Matopiba: comunidades e meio ambiente. Rio de Janeiro, 2017. [acesso em 2017 jul 16]. Disponível em: http://actionaid.org.br/publicacoes/impactos-da-expansao-do-agronegocio-no-matopiba-comunidades-e-meio-ambiente-2/.
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Se, por séculos, esses povos e comunidades tiveram que se defender de sesmeiros, bandeirantes, missões religiosas e latifundiários, a partir da metade do século XX, é o próprio Estado brasileiro que, sob a influência de grandes atores econômicos mundializados e norteado pela ideologia do desenvolvimento, acelera e acirra o processo de expropriação dos territórios construídos pelos povos do Cerrado. É que, ao agronegócio, interessam as grandes extensões de terras semiplanas das chapadas, que facilitam a mecanização dos cultivos e, sobretudo, interessam as fartas águas subterrâneas do Cerrado, a exemplo dos aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia.

Nesse processo, chegamos às primeiras décadas do século XXI com cerca de 120 milhões de hectares do Cerrado concentrando a pecuária e a produção de 75% da soja, cana-de-açúcar, milho e algodão cultivados no Brasil33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática/Sidra. Produção Agrícola Municipal (PAM). Informações sobre culturas temporárias e permanentes, 2018. [acesso 2020 jun 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
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,44 Laboratório de Processamentos de Imagens e Geoprocessamento. Atlas Digital das Pastagens Brasileiras. [acesso 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.lapig.iesa.ufg.br/lapig/index.php/produtos/atlas-digital-das-pastagens-brasileira.
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, que, em sua maioria, não se destinam à alimentação humana, mas, sim, à exportação como commodities. As águas superficiais e subterrâneas estão sendo exauridas para abastecer os pivôs centrais dessa agricultura irrigada, repercutindo, por exemplo, na redução de 49,2% na alimentação do Rio São Francisco pelo Sistema Aquífero Urucuia55 Gonçalves RD, Engelbrecht BZ, Chang HK. Evolução da contribuição do Sistema Aquífero Urucuia para o Rio São Francisco, Brasil. Águas Sub. 2018; 32(1):1-10.. Ademais, derramam sobre a terra – muitas vezes grilada – mais de 600 milhões de litros de venenos por ano, concentrando 73,5% do total de agrotóxicos consumidos no País em 201833 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática/Sidra. Produção Agrícola Municipal (PAM). Informações sobre culturas temporárias e permanentes, 2018. [acesso 2020 jun 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
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,66 Pignati WA, Lima F, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293..

Os povos e as comunidades tradicionais do Cerrado, por seu turno, vêm-se organizando para defender seus territórios e modos de vida, assim como seus direitos, por meio de associações comunitárias, fóruns municipais, movimentos sociais, campanhas, redes e articulações com grupos acadêmicos. Destacamos a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, que surgiu com o objetivo de alertar a sociedade para os impactos que a destruição do Cerrado causam no Brasil, buscando valorizar a biodiversidade e as culturas dos povos e comunidades desse bioma, lutando por sua preservação. É promovida por Pastorais Sociais, entidades sindicais, organizações indígenas e quilombolas, coletivos agroecológicos, organizações não governamentais nacionais e internacionais; movimentos de mulheres, de sem-terra, de atingidos por barragens, de pescadores, de direitos humanos; além de grupos acadêmicos.

A Teoria da Determinação Social da Saúde nos convida a analisar as formas de relação entre as sociedades humanas e a natureza, mediadas por processos de produção, suas tecnologias e as relações sociais e de poder que estabelecem77 Laurell AC. La Salud-Enfermedad como Proceso Social. Rev Lat. Salud. 1982; (2):7-25.. Evidentemente, o processo saúde-doença de camponesas e camponeses, assim como dos moradores nas cidades do Cerrado, está sendo afetado por esse modelo de desenvolvimento em expansão no bioma, na medida em que compromete as bases de seus modos de vida – terra, água, biodiversidade –, ameaça a soberania e a segurança alimentar, difunde o sofrimento psicossocial e introduz ampla gama de riscos à saúde, como a contaminação por agroquímicos ou as diferentes violências.

Neste artigo, com base nas experiências de territórios e organizações em defesa do Cerrado e seus povos, propomo-nos a trazer elementos para contribuir para a reflexão sobre o papel da saúde coletiva e de seu diálogo com a agroecologia nestes contextos contemporâneos do modelo neoextrativista imposto à América Latina, os quais se sobrepõem ao cenário global de crise civilizatória, marcada pelo colapso socioambiental do planeta e pelo não cumprimento das promessas de bem-estar social difundidas pela modernidade.

Iniciamos a trajetória reflexiva fincando os pés no território de comunidades tradicionais da Serra do Centro, no município de Campos Lindos, em Tocantins, tomando como base pesquisa realizada por Santos88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.. Fundamentada na pesquisa participante, a autora utilizou-se da técnica de história de vida para ouvir as vozes de 8 mulheres, além de oficinas de cartografia social realizadas com 17 mulheres, para compreender como elas percebem as consequências trazidas às suas vidas e saúde por esses fluxos internacionais, que chegam a elas por meio do agronegócio da soja. Seus depoimentos, interpretados com apoio da análise de conteúdo, são citados neste artigo com nomes fictícios. Em seguida, reconhecendo ao mesmo tempo a singularidade desse território e seus pontos em comum com outras comunidades atingidas pelas políticas de desenvolvimento em curso no Cerrado, ampliamos o olhar para o contexto mais geral do modelo de desenvolvimento brasileiro, com foco na expansão do agronegócio sobre o bioma, no intuito de acrescentar escalaridade à análise de sua relação com o processo saúde-doença, em contraste com as práticas da agricultura camponesa que com ele disputam os caminhos do presente e do futuro. Finalizamos com apontamentos sobre perspectivas epistemológicas e teóricas emergentes que se têm mostrado fecundas para o delineamento de pistas de futuro, tais como os comuns, os direitos da natureza, o decrescimento e o bem viver, e que podem aportar elementos para o necessário diálogo entre a saúde coletiva e a agroecologia, rumo à emancipação humana.

Serra do Centro, mulheres e saúde

A Serra do Centro é um território tradicional ocupado no final do século XIX por grandes famílias camponesas. São povos negros maranhenses e piauienses que, com o passar dos anos, formaram as comunidades Vereda Bonita e Sítio (família Miranda), Raposa/ Ribeirão D’anta (família Alves da Silva), Gado Velhaco (família Caboclo Carro), Passagem de Areia (Horozino), Primavera (família Noleto) e Taboca (família Marcelo). Essas famílias camponesas, desde a origem da ocupação, desenvolveram suas atividades de produção de alimentos de forma tradicional, tendo os modus vivendi de uso comum da terra baseados no manejo dos bens naturais para subsistência, bem como as relações sociais caracterizadas pelas famílias extensas, por casamentos endogâmicos, pelas formas particulares de organização dos espaços comunitários, tendo os festejos do Divino Pai Eterno, Reisados e rezas de pagamento de promessas como espaços de fortalecimento da vida comunitária88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

O território tradicional da Serra do Centro faz parte de Campos Lindos, município criado em 1993, localizado na região nordeste do estado do Tocantins, na divisa com os municípios de Balsas e Riachão/MA. O território geográfico de Campos Lindos era formado por duas grandes áreas de títulos paroquiais, Data Santo Antônio e Data Santa Catarina. A Data Santa Catarina, onde está localizado o território Serra do Centro, era território dos povos indígenas timbiras, que foram expulsos por criadores de gado; e a terra foi titulada em 1858 com 44 mil hectares em nome de dois fazendeiros, Soares Gil e Cruz, que migraram da região sul do Maranhão para o antigo norte de Goiás, atual Tocantins88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

Até as últimas décadas do século XX, essas comunidades tradicionais da Serra do Centro viveram na invisibilidade dos planos governamentais, ocupando um território sem cercas nem propriedades privadas, mas mantendo fortes relações intercomunitárias. Mantinham seus modos de vida com pequenos cultivos de roças de toco, criação de animais e coletas de frutos nas chapadas do Cerrado. A restrita relação com os centros urbanos, Goiatins/ TO (na época município Piacá/GO) e principalmente Balsas/MA, só era possível a pé ou por intermédio de animais (cavalo e mula), pois não existiam estradas pavimentadas, e o percurso das comunidades às cidades é em torno de 70 km.

Para suprir suas necessidades básicas, as comunidades tinham no topo da Serra do Centro o refrigério que, para a camponesa Maria, era um lugar de muitas riquezas naturais, como pequi, bacuri, murici, mangaba, bacaba, caças e pastagens naturais para os animais88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

Como não havia cercas, todos os moradores faziam uso comum da área e eram frequentes as migrações nos limites do território. As famílias tinham, nos baixões, a terra de uso individual com as roças e os sítios; e o uso comum na chapada, em cima da serra. Na chapada da Serra do Centro, criavam animais soltos, praticavam extrativismo de frutas, sementes, cascas e raízes de árvores medicinais do Cerrado que serviam de alimentos e remédios para a cura das doenças.

Na década de 1980, esse modo de vida narrado por Maria sofreu alterações com a chegada dos ‘aventureiros pioneiros da soja’, que se diziam donos das terras. Eram homens brancos, sulistas, que começaram a investir na produção de soja na Serra do Centro. Desde então, as comunidades que ali viviam de forma pacífica perceberam que seu território era objeto de disputa por diversos atores: em 1972, a tabacaria Londres do Rio de Janeiro alegava ser proprietária da Fazenda Santa Catarina, adquirida dos criadores de gado; na década de 1980, o Instituto de Terras de Goiás (Idago) fez a distribuição das terras da Fazenda Santa Catarina para empresários e produtores de soja da região Sul e Sudeste, ignorando os camponeses que ali viviam, por meio da venda de lotes de 2 mil e 3 mil hectares; e em 1997, o governo do Tocantins decretou a desapropriação dessas terras tituladas pelo Idago, transferindo-as para amigos e aliados88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

O Decreto nº 436, de 8 de maio de 1997, publicado no Diário Oficial do Estado nº 597/97, desapropriou os primeiros produtores de soja e criou o Projeto Agrícola Campos Lindos. Com esse ato governamental, foram desapropriados 105 mil hectares no município de Campos Lindos, incluindo os 44 mil hectares da Fazenda Santa Catarina, território da Serra do Centro. Mais uma vez, a população local foi ignorada; e, com os efeitos do decreto, o governo expulsou centenas de famílias camponesas. O escândalo da expropriação camponesa repercutiu dentro e fora do Brasil. As denúncias mobilizaram a opinião pública e a mídia nacional por intermédio da matéria ‘Reforma agrária de luxo’, que beneficiou os amigos e aliados do governo do Tocantins99 Revista Época. Negócios entre amigos. Revista Época. 2001; (147)..

O ambicioso projeto teve incentivo financeiro de R$ 80 milhões do Senado Federal brasileiro e de US$ 69 milhões do Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro (Prodecer III), destinado ao Polo Agrícola de Campos Lindos e Pedro Afonso. Logo, com a oficialização das doações das terras e com a garantia desses financiamentos, a produção de soja e milho se expandiu nas chapadas da Serra do Centro. Com isso, o município, que outrora era ‘esquecido’, passou a ser o foco da especulação imobiliária por grandes produtores de soja e empresas globais como Cargill e outras do ramo de maquinários e agroquímicos.

Com o avanço do agronegócio em Campos Lindos, as famílias camponesas ocupantes de posses tradicionais da Serra do Centro não regularizadas pelos órgãos estaduais (Idago, em 1980, e Itertins em 1998) foram expulsas de seus territórios de origem e empurradas pelas grandes plantações de soja para as áreas periféricas ao projeto. A partir de então, mais de 60 famílias de camponeses posseiros passaram a viver sob constantes ameaças de reintegração de posse. A ação judicial sob autos nº 5000008-77.2005.2720, movida por produtores de soja, organizados e representados pela Associação de Plantadores do Alto Tocantins (Associação Planalto), alega ocupação indevida das comunidades tradicionais na área de reserva em condomínio que corresponde a 15.858,3975 hectares de terra, nos baixões88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

A sobreposição do território camponês pelo Projeto Agrícola Campos Lindos tem gerado intensos conflitos socioambientais entre camponeses e sojicultores. As mudanças ocorridas no novo ordenamento territorial implicaram a perda do território coletivo, de uso comum, nas chapadas, para dar lugar à soja, e disputam as terras nos baixões, para constituir as áreas de reserva legal, exigidas pela legislação – o que, além de transformações nas paisagens naturais, impacta os modos de vida daquelas famílias que viviam com maior disponibilidade de terras e biodiversidade, fundamentais para sua reprodução social.

Na configuração atual, o território está fragmentado. Nas chapadas da Serra do Centro, estão os lotes destinados aos produtores de soja, concentrando a maior parte das terras. Além disso, nos baixões, permanecem os núcleos das famílias descendentes dos Marcelos, Caboclos Carro, Miranda, Brito, Horozino, Noleto e Alves da Silva, que tiveram suas terras nos baixões tituladas, e outras famílias, parentes com algum vínculo familiar com os núcleos anciãos, que foram expropriados, mas que retornaram ao território88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019..

Para compreender a dimensão dos impactos das lavouras de soja nos modos de vida e saúde das mulheres do território da Serra do Centro, contamos com os depoimentos de Luzimar, Joana, Dalva, Lucinda e Maria. Suas declarações nos fazem compreender que o conflito da Serra do Centro, além de ser uma expropriação camponesa, é uma disputa entre dois modos de produção: de um lado, o modo de viver, saber e produzir camponês; de outro, a produção agrícola industrial considerada progresso na região. As mulheres denunciam a pressão psicológica que sofrem com as ameaças de despejo e a degradação da biodiversidade do Cerrado, em razão de que, na lógica da produção agrícola industrial, não há lugar para seus saberes e fazeres, pois os elementos que dão sustentação a seus modos de vida são empecilhos para a produtividade das fazendas de soja.

Para as camponesas, o conflito é o ‘desassossego’ que chegou com o ‘progresso’. Este encontra, no Estado, apoio para expulsar da terra mulheres e suas comunidades, como ocorrido na reintegração de posse do dia 14 de outubro de 2016. Elas traduzem o termo ‘desassossego’ como o medo da polícia, a insegurança da posse da terra, as ameaças, a perda do sustento da família e a degradação ambiental. Ademais, por não conhecerem os termos jurídicos e as ações judiciais, mesmo as que têm as terras tituladas, não se sentem seguras, angustiam-se e temem ser despejadas, expulsas juntamente com as famílias que não têm títulos da terra.

Por serem historicamente responsabilizadas pelas tarefas de administração e cuidado da família, as mulheres são as pessoas que mais sofrem com os despejos1010 Mies M, Shiva V. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget: 1993.. A ameaça da perda do lar e dos elementos que dão sustentação à vida se apresenta como um golpe duro para elas; por isso, o termo desassossego é o mais apropriado para elucidar essas reflexões, como é possível perceber na narrativa de Joana:

Eu sei que deu pânico, pânico no povo. O povo não podia fazer nada. Aí eu sei que eles pediram reforço da polícia, porque diz que o povo do baixão era valente, mas o povo não é valente não, nosso valente é Deus. Eu sei que veio 60 policiais, mas era dois policial saliente, que foi derrubando a porta do povo, que eles não tinha direito de derrubar nada. Eles dizem que nós é que invadimos, mas quem invadiu foram eles. A Gente não, eu tava junto. Eu não fui porque nós se escondemo, botemos as coisas no mato, minha casa foi arrebentada, tomei muito prejuízo, porque eu tinha uma cozinha cheia de coisa, até minhas pias levaram tudo, coisa de trabalhar, o carrinho de mão, levou tudo. E o Zé [esposo] estava bem pertinho oiando, e os policiais são os primeiros sem-vegonhos que foi tocar os pés na parede e na porta pra arrebentar88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(94).

Francisca, da comunidade Raposa, também relata que só não foi retirada pela força policial porque se escondeu:

Eu fui, eu não fui porque não tava, eu me escondi, não vou mentir. Eu me escondi. Quando eles passavam, ele sempre dizia que vinha. Aí nunca pude viver debaixo de uma casa. Eu moro debaixo de uma casa cheia de pau em cima, nunca tive condição de construir uma casa, porque não é brincadeira você construir uma casa, para quando terminar de construir, eles falar: saia, se não derruba com trator88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(95).

A decisão judicial à qual Joana e Francisca se referem foi executada pela Polícia Militar, com reforço da Polícia Civil, Força Tática e Polícia Ambiental. Na operação do despejo, os móveis, animais, alimentos e pessoas encontradas nas casas foram retirados e levados para um galpão na cidade de Campos Lindos.

Para as camponesas, as lavouras de soja provocam a desagregação comunitária e ambiental na Serra do Centro, ameaçando todas as formas de vida existentes no ecossistema da região. Nesse cenário de destruição da sociobiodiversidade, o olhar das camponesas se volta para os elementos que garantem a reprodução de seus modos de vida coletivo: biodiversidade, água, ar, terra e alimentos que compõem o universo do trabalho feminino, denominado por elas de responsabilidades e afazeres que estão relacionados com a saúde, a nutrição e a higiene da família.

Lucinda, da comunidade Vereda Bonita, destaca que, além das violações de direitos e pressões psicológicas, a saúde da população é impactada pela exposição aos agrotóxicos que são usados nas lavouras de soja e milho:

A gente é da gente, a gente acha bom aqui, mas o negócio é o veneno e o projeto é muito perto para nós ficar embaixo do veneno. Quando eles jogam o veneno, a gente sente daqui o cheiro, a catinga do veneno. A gente vê muitos bichinhos pulando para cá devido o veneno. Sempre que ia para Campos Lindos, lá não sentia nada, quando chegava aqui tornava sentir zonzeira, quando tomava banho na água aí que ficava com aquela zonzeira, zonzeira, zonzeira. Falava para os meninos, não sei que problema é esse, quando chego aqui é passando mal... jogaram veneno nesse dia, de manhã para meio dia, passaram jogando veneno e a gente enxergando eles jogando veneno de avião, o avião passava, tornava ir e tornava voltar. E a criança morreu, a criança estava com nove meses. A gente achava bom que o projeto fosse mais afastado da terra da gente, a gente acha melhor, né. Não introduzisse esse veneno para prejudicar as pessoas, né, é melhor não ter, né88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(98).

Na visão dessas mulheres, o Projeto Agrícola Campos Lindos tem violado seus direitos ambientais, direito constitucional da população, garantido na Constituição Federal de 1988, no art. 2251111 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [acesso em 2020 set 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
, em que estabelece que

todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

A produção de vida no território da Serra do Centro

As mulheres camponesas pouco compreendem o desenvolvimento e a modernização do campo, mas sabem que ter ‘vida boa’ é ter saúde, que permita trabalhar na casa, fazer comida,

Ir para roça todos os dias – apanhar arroz, descascar mandioca, fazer a tapioca e farinha de puba, é ir dormir tranquila sem violência e ouvir o boa noite dos filhos88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(101).

Apesar das perdas de produção por ataques de insetos como mosca branca, lagarta, ferrugem e agrotóxicos que atingem os cultivos das comunidades, o sustento das famílias continua tendo como carro-chefe a produção de mandioca, arroz e feijão nas roças de toco e criação de gado curraleiro. Os quintais produtivos, espaços nos quais predomina a força de trabalho das mulheres, funcionam como a extensão do paiol, em que, ao alcance da mão, têm a disponibilidade de caju, manga, cana, mandioca, galinha caipira, ovos, porcos, hortaliças e ervas medicinais. Ainda assim, mesmo diante das alterações do ambiente que dificultam a produção de alimentos, Francisca, da Comunidade Raposa, diz que mantém os tratos culturais de cuidado dos plantios

Nós plantamos arrozinho, uma macaxeira, uma mandioca, aí nós deixamos essa mata aí na frente, que é pra não prejudicar nada. Nós não jogamos veneno, porque nós não vamos plantar uma coisa pra nós comer e jogar veneno88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(103).

Contudo, a produção de alimentos não tem sido suficiente, e a renda precisa ser complementada pelos benefícios previdenciários, benefício do Programa Bolsa Família, trabalho assalariado na escola e nas lavouras de soja. O trabalho na escola é exercido principalmente pelas mulheres nas funções de merendeiras, auxiliar de serviços gerais e professoras. Para o trabalho nas lavouras, são contratados somente os homens, principalmente os jovens, para as funções de caseiros, aplicadores de veneno ou técnicos de classificação da soja. Já para as funções de domésticas, os produtores de soja contratam as mulheres, e, na maioria dos casos, sem garantia de direitos trabalhistas.

Nas comunidades, as mulheres assumem diversas jornadas de trabalho e tarefas cotidianas, como o cuidado da saúde, a educação dos filhos, o preparo dos alimentos, o cuidado da casa, no quintal, na roça e no emprego. Além dessas jornadas de trabalho, com o advento da modernização rural desenvolvimentista, se veem obrigadas a assumir uma outra jornada, que é a luta contra os impactos das lavouras de soja.

Com tudo isso, as camponesas se encontram em situação de adoecimento, com acúmulo de muitas dores. Algumas são dores físicas, como nas articulações e na coluna, possivelmente relacionadas com o excesso de esforço físico empregado no conjunto do trabalho realizado pelas mulheres; no trabalho de carregar lata de feijão, potes de água na cabeça, capina da roça, juntar coivara para queimar, lavar roupa e carregar crianças no colo88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.. Outras dores estão relacionadas com o ‘psicológico’. No entanto, houve quem dissesse que sentir dor é normal. Já para Luzimar, da comunidade Raposa, a dor não é normal, e chega a ser insuportável:

Hoje eu tenho um problema de depressão, não gosto nem de sair, me sinto não sei nem como, louca. Aí me sinto bem assim, saio estou conversando com você, me sinto bem, não sinto nada, mas quando chegou em casa, assim eu me acho... não sei nem explicar. É sobre família mesmo, é crítica, tem dias que eu me desespero, aí é só choro, quanto mais eu choro mais tenho vontade de chorar, vai chegando para a idade e os problemas vão amontoando só88 Santos VP. Mulheres e conflitos socioambientais, saberes e olhares das camponesas sobre os impactos da soja na Serra do Centro. [dissertação]. Campos Lindos: Universidade Federal do Tocantins; 2019.(110).

A sobrecarga de trabalho assumida pelas camponesas, naturalizada como responsabilidades, resulta do sistema capitalista patriarcal que definiu os papéis sexistas, responsabilizando e limitando as mulheres à reprodução da vida. Nessa relação, os homens, detentores do poder, assumem funções de comando, ora são os chefes de famílias, ora são os chefes de Estado e das empresas, que dominam e exploram as mulheres e o Cerrado1010 Mies M, Shiva V. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget: 1993..

Os impactos socioambientais na Serra do Centro não só exaurem as riquezas naturais, fonte de sustentação das mulheres, como tencionam as relações de gênero e aumentam a jornada de trabalho delas. Com os impactos das lavouras de soja, que deixam as águas impróprias para o consumo humano, elas precisam andar mais para apanhar água. O desmatamento que provoca a escassez de frutas, a extinção de animais do Cerrado e a improdutividade das roças de tocos força as mulheres a recriarem suas dinâmicas de sustentação da família, o que exige mais empenho de horas de trabalho, mais esforço físico e a intensificação da pressão psicológica.

As camponesas compreendem suas fragilidades e a complexidade do conflito em que estão inseridas. Elas querem permanecer na terra com tranquilidade, querem entender as ações judiciais movidas contra suas comunidades, querem ter mais acesso às políticas públicas, denunciam a contaminação das águas e o adoecimento de mulheres e crianças pela exposição aos agrotóxicos, além do adoecimento psicológico das mulheres. Entretanto, elas buscam preservar as suas práticas comunitárias de cuidado da saúde por meio do benzimento, do uso de garrafadas, dos banhos de rios e dos encontros entre as comadres e as irmãs da igreja que, para elas, são parte da dimensão sagrada da produção de vida. Esse sagrado está nos saberes, fazeres e olhares das mulheres e comunidades que conservam e convivem com a terra e a biodiversidade do Cerrado. Portanto, na atualidade, a conservação das riquezas do Cerrado continua nas mãos, nos territórios e na memória das mulheres camponesas e de suas comunidades tradicionais.

O Cerrado: zona de sacrifício do desenvolvimento brasileiro?

Os elementos centrais que delineiam o conflito em Campos Lindos podem ser verificados em todo o bioma Cerrado, em que as comunidades disputam com políticas de desenvolvimento voltadas para, atendendo aos interesses de grandes corporações internacionais, possibilitar a apropriação de terras e a aceleração da expansão do agronegócio.

Por um lado, o poderoso sistema financeiro mundial tem passado a ver a terra não só como ativo produtivo, mas também como ativo financeiro, especialmente com a instabilidade provocada pela crise financeira que eclodiu em 2007/2008. Assim, esses atores encontram no negócio com terras uma boa oportunidade de diversificar seus investimentos, aumentar os lucros e diminuir os riscos. Dessa forma, “a terra e os recursos naturais a ela relacionados são cada vez mais tratados como bens econômicos e financeiros globalizados”1212 Fian International for the Right to Food and Nutrition. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Comissão Pastoral da Terra. Os custos ambientais e humanos do negócio de terras - o caso do Matopiba. Brasília, DF: Brasil; 2018.(12), em um processo que envolve fundos de pensão dos Estados Unidos da América (EUA), Alemanha, Países Baixos e Suécia, entre outros. O Teachers Insurance and Annuity Association (TIAA) dos EUA, por exemplo, já possui e controla quase 300 mil hectares de terras no Brasil.

Tal processo articula-se à acelerada expansão do agronegócio no Cerrado que, de acordo com os dados do Sistema IBGE de Recuperação Automática (Sidra-IBGE), já em 2018, concentrava 75% do total das commodities de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão plantados no País, para o que ocupa 46.889.008 hectares do bioma. Além disso, de acordo com a mesma fonte e ano, as pastagens ocupam 63.847.127 hectares do Cerrado, nos quais estão 54,9% de todo rebanho bovino no Brasil33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática/Sidra. Produção Agrícola Municipal (PAM). Informações sobre culturas temporárias e permanentes, 2018. [acesso 2020 jun 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
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,44 Laboratório de Processamentos de Imagens e Geoprocessamento. Atlas Digital das Pastagens Brasileiras. [acesso 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.lapig.iesa.ufg.br/lapig/index.php/produtos/atlas-digital-das-pastagens-brasileira.
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, trazendo elementos sobre a amplitude da zona de sacrifício em que vem se constituindo o bioma.

Embora esse quadro e suas repercussões sobre o Produto Interno Bruto (PIB) e a balança comercial possam ser divulgados como conquistas do desenvolvimento – e essa é a narrativa hegemônica sobre o agronegócio, elaborada tanto por associações de empresários, como por governos e parlamentares –, é preciso tomar em conta suas repercussões socioecológicas.

Salta aos olhos a perversa concentração fundiária à custa da expropriação das terras ocupadas por diferentes povos do Cerrado que, sem acesso ao ecossistema que dá base às suas vidas, vêem ameaçadas ou mesmo inviabilizadas suas formas tradicionais de organização da economia, sua cultura e sociabilidade. Comunidades e famílias muitas vezes são empurradas para processos de migração compulsória, comumente para a periferia das cidades da região, onde vão encontrar os desafios da moradia, do emprego, da fome, das drogas, da exploração sexual e das violências.

Àquelas comunidades que permanecem no Cerrado, impõem-se as consequências da degradação ambiental resultante do modelo produtivo do agronegócio, a começar pelo desmatamento de extensas áreas, que já destruiu 52% da rica e diversificada vegetação nativa do bioma e, apenas entre 2019 e 2020, eliminou 29 milhões de hectares de vegetação nativa, em paralelo à implantação de 28 milhões de hectares de empreendimentos do agronegócio33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática/Sidra. Produção Agrícola Municipal (PAM). Informações sobre culturas temporárias e permanentes, 2018. [acesso 2020 jun 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
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,1313 Mapbiomas. Dados do Relatório Anual de Desmatamento, 2019. São Paulo: MapMiomas; 2020. [acesso em 2022 mar 10]. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/alerta.mapbiomas.org/relatrios/MBI-relatorio-desmatamento-2019-FINAL5.pdf.
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,1414 Maureen Santos, Verena Glass, organizadoras. Atlas do Agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Bool; 2018.. Deriva diretamente daí, o comprometimento da coleta de frutos e ervas importantes na alimentação e nas práticas de saúde da cultura tradicional. Mais que isso, o desmatamento impacta sobre o ciclo hidrológico do Cerrado, associado às árvores de raízes profundas e às gramíneas que captam a água de chuva para alimentar os aquíferos.

Evidentemente, a abundância de águas do Cerrado é um dos fatores de atração dos empreendimentos hidrointensivos do agronegócio. Esse generoso ‘berço das águas’ alimenta seis das oito regiões hidrográficas brasileiras, com seus aquíferos e rios – como o Araguaia, Tocantins, São Francisco, Paraná, Prata, Parnaíba, Jequitinhonha e Doce –, além de abrigar duas das áreas alagadas mais importantes do planeta – o Pantanal e o Araguaia1515 Barbosa AS. Cerrados: biodiversidade e pluralidade. Blog do professor Altair Sales Barbosa. 2020. [acesso em 2020 jan 16]. Disponível em: http://altairsales-barbosa/blogspot.com.br/2008/.
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.

De acordo com a Agência Nacional de Águas, a agricultura irrigada é responsável pela retirada de 83 bilhões de litros de água por dia das fontes de água superficiais e subterrâneas no Brasil1616 Agência Nacional de Águas-ANA. Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil 2019: informe anual. Brasília, DF: ANA, 2019., enquanto a média de consumo diário de cada brasileiro é de 150 litros. A maior parte das áreas equipadas com pivôs de irrigação do País está concentrada nos estados do Cerrado: 91,8%. O desmatamento, o intensivo uso da água pelo agronegócio e as mudanças climáticas se somam para explicar o déficit de recarga dos aquíferos, o rebaixamento e desaparecimento de nascentes, a redução da vazão dos rios a níveis críticos, e até a sua morte. Com isso, ficam comprometidas a pesca, a agricultura camponesa e a soberania e segurança alimentar dos povos do Cerrado, assim como as práticas culturais associadas às águas. Outrossim, ainda traz implicações para outros biomas do Brasil e para países da América do Sul que também se beneficiam das águas que transbordam do Cerrado.

Se a oferta de empregos compõe a narrativa desenvolvimentista para legitimar a expansão do agronegócio, vale apontar que os empregos gerados para a população local são poucos, em função da mecanização; que as relações e condições de trabalho são, em geral, precarizadas, incluindo até o trabalho análogo ao escravo44 Laboratório de Processamentos de Imagens e Geoprocessamento. Atlas Digital das Pastagens Brasileiras. [acesso 2020 jul 6]. Disponível em: https://www.lapig.iesa.ufg.br/lapig/index.php/produtos/atlas-digital-das-pastagens-brasileira.
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; e que o processo produtivo introduz importantes riscos de acidentes, nas estradas ou no trabalho, além das consequências do uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes transgênicas. Tais impactos se estendem para além das cercas dos empreendimentos, por meio da contaminação do ar, da água e dos alimentos, atingindo as comunidades do entorno dos empreendimentos e até mesmo zonas mais remotas, por intermédio do vento e das águas contaminadas.

No ano de 2018, foram pulverizados 607.408.086 de litros de agrotóxicos nos cultivos de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão no Cerrado33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática/Sidra. Produção Agrícola Municipal (PAM). Informações sobre culturas temporárias e permanentes, 2018. [acesso 2020 jun 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
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,66 Pignati WA, Lima F, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.
– os quais têm implicações na contaminação ambiental e, muito especialmente, no adoecimento de trabalhadores/as e moradores/as. A pulverização aérea amplifica esses riscos, como no caso do ‘acidente’ em Rio Verde/GO55 Gonçalves RD, Engelbrecht BZ, Chang HK. Evolução da contribuição do Sistema Aquífero Urucuia para o Rio São Francisco, Brasil. Águas Sub. 2018; 32(1):1-10., atingindo uma escola; ou de Lucas do Rio Verde/MT, afetando toda a área urbana do município1717 Pignati WA, Machado JMH, Cabral JF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do Rio Verde - MT. Ciênc. Saúde Colet. 2007; (12):105-114., ou ainda denúncias de aldeias indígenas literalmente pulverizadas com venenos no Cerrado.

Nesse cenário, é possível compreender a maior incidência de intoxicações agudas por agrotóxicos entre moradores no entorno de fazendas de milho e algodão em Mato Grosso, quase duas vezes superior às taxas encontradas em moradores de outras regiões1818 Lara SS, Pignati WA, Pignati MG et al. A agricultura do agronegócio e sua relação com a intoxicação aguda por agrotóxicos no Brasil. Hygeia. Rev Bras Geog Méd Saúde. 2019; (15):1-19. ou a associação positiva entre malformações congênitas em crianças menores de 5 anos e a ocupação do pai na agricultura1919 Ueker ME, Silva VM, Moi GP, et al. Parenteral exposure to pesticides and occurrence of congenital malformations: hospital-based case–control study. BMC Pediatrics. 2016; 16(1):1-7.. Ou ainda a contaminação de 100% das amostras analisadas de leite materno de nutrizes residentes no entorno de empresas do agronegócio, também em Mato Grosso, nas quais foram encontrados os ingredientes ativos dos agrotóxicos p,p’- DDE β-endossulfam e o p’-DDT2020 Palma DCA, Lourencetti C, Uecker ME, et al. Simultaneous Determination of Different Classes of Pesticides in Breast Milk by Solid-Phase Dispersion and GC/ECD. J. of the Bra. Chemical Soc. 2014; (25):1419-1430.. Outro autor2121 Cunha MLON. Mortalidade por câncer e a utilização de pesticidas no estado de Mato Grosso de 1998 a 2006. [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; 2010. encontrou associação positiva entre níveis altos e médios de exposição a agrotóxicos e mortalidade por neoplasias malignas de esôfago, estômago, pâncreas, encéfalo, além de leucemias e linfomas.

A despeito de todas estas evidências – e para argumentar que a crítica à ideologia do desenvolvimento precisa ser aprofundada no campo da política –, a então presidenta Dilma Rousseff e sua ministra da agricultura Kátia Abreu assinaram, em 2015, o Decreto nº 8.447, que aprova o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba, enquanto um vasto território estratégico de expansão do agronegócio no Cerrado dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Apoiado por infraestruturas públicas de rodovias, ferrovias e hidrovias; fornecimento de energia e acesso à água, conta também com financiamentos públicos, isenções tributárias e pesa sobre a desregulamentação ambiental, trabalhista e sanitária em curso no País2222 Empresa Brasileira de Pecuária e Agricultura. Embrapa. Grupo de Inteligência Territorial Estratégica. Matopiba: delimitação, caracterização, desafios e oportunidades para o desenvolvimento. Brasília, DF: Emprapa; 2014..

São 73 milhões de hectares destinados ao agronegócio, dos quais 13,9 milhões já são áreas legalmente atribuídas a 46 unidades de conservação, 35 terras indígenas demarcadas, 781 assentamentos de reforma agrária e áreas quilombolas. Como sobreviver com essa vizinhança? Entre 2000 e 2014, a área plantada de soja na região do Matopiba aumentou de 1 milhão para 3,4 milhões de hectares, um crescimento de 253% no período, à custa da eliminação de 94 mil km2 de mata nativa2323 Silva PRF. A expansão agrícola no Cerrados e seus impactos no ciclo hidrológico: estudo de caso na região do MATOPIBA. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2020.. E as projeções para o ciclo 2023/2024 apontam a produção de 22,6 milhões de toneladas de grãos, com área plantada entre 8,4 e 10,9 milhões de hectares. Destaca-se o oeste da Bahia, onde estão 87% das áreas irrigadas por pivôs do Matopiba, exaurindo as águas do Sistema Aquífero Urucuia2424 Greenpeace. Segure a linha: a expansão do agronegócio e a disputa pelo cerrado. São Paulo: Greenpeace; 2018..

Se, com base na perspectiva da justiça ambiental, a Ecologia Política designa como ‘zonas de sacrifício’ os territórios que concentram riscos ambientais sobre populações vulnerabilizadas2525 Acerald H, Mello C, Bezerra G. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond; 2009., há robustos elementos para caracterizar o Cerrado como zona de sacrifício do modelo de desenvolvimento vigente no Brasil.

Considerações finais: reflexões trazidas do Cerrado para a saúde coletiva e a agroecologia

O avanço da fronteira agrícola sobre os territórios tradicionais, de acordo com os depoimentos das mulheres camponesas, revela-se como uma grande ameaça aos modos de vida das comunidades da Serra do Centro/TO. O neoextrativismo, sobretudo o agronegócio, impacta de forma sistêmica o bioma em suas várias dimensões, produzindo rupturas metabólicas e vulnerabilizando comunidades que vivem no modo de vida tradicional.

Além dessas vozes, muitas outras provindas de comunidades do Cerrado se somam ao coro, clamando por justiça; gritando que a extinção do Cerrado corre a passos largos com as grilagens, desmatamentos, queimadas e destruição e contaminação das águas: são as vozes das comunidades geraizeiras, fundo e fecho de pasto, indígenas, quebradeiras de coco-babaçu, apanhadoras de flores sempre-vivas, retireiros do Araguaia, quilombolas, raizeiras e pescadores, que não têm oportunidades de expressarem suas denúncias, seus saberes, fazeres e vozes ancestrais.

Essas vozes querem ser ouvidas, precisam de visibilidade na arena social, e a saúde coletiva pode ajudar a repercuti-las, por exemplo, evidenciando as consequências desse ‘desenvolvimento’ sobre o processo saúde-doença, como já vem sendo feito por alguns grupos acadêmicos, em particular no tema dos agrotóxicos. Especialmente expostas à perversidade do agronegócio, as mulheres não reconhecem as monoculturas da soja como desenvolvimento da região, e apontam o agronegócio como responsável pela desagregação dos seus modos de vida tradicionais, ao violar os direitos das famílias ao território, à água e à soberania alimentar, fundamentais para a saúde. A ruptura do que era uno é a estratégia da dominação. O sofrimento aí se instala, e elas nomeiam o ‘desassossego’, possivelmente, como experiência de sofrimento psicossocial nascido do medo e da insegurança quanto ao futuro.

Trata-se, de fato, do choque entre cosmovisões profundamente distintas: de um lado, o projeto moderno-colonial, que promove a separação entre seres humanos-natureza para explorar e espoliar a ambos, embalado pela cantilena do progresso e do desenvolvimento; de outro, os diversificados saberes ancestrais que têm a terra como bem de uso comum, que cultivam em seus territórios de vida uma relação virtuosa com a biodiversidade, cuidando de construir uma ‘vida boa’ para o coletivo. Entretanto, essa não é uma disputa ‘democrática’, entre iguais; pelo contrário, é demarcada por uma violenta assimetria de poder, já que o projeto moderno-colonial estabelece hierarquias de classe, raça e etnia, gênero e culturas para justificar sua própria dominação. Como a agroecologia e a saúde coletiva se posicionam nessa disputa?

Modos de vida embasados na complexidade organizada da diversidade de sistemas biológicos e culturais, reproduzidos no âmbito dos ‘comuns’, entretanto, continuam sendo resistência à necropolítica neoextrativista. Os bens comuns estão relacionados com o que está fora do mercado e que são utilizados por todos, como direito, sem que seja preciso pagar: o ar que respiramos, a água doce que bebemos e que reproduz toda a vida, os oceanos, a cultura – como as línguas, as expressões culturais –, relações e vínculos comunitários, conhecimento, paz, bem-estar. Abrangem escalas globais, regionais ou locais. O comum está relacionado com o direito e com o compartilhamento. O modo de vida tradicional é a partilha, a troca, a proteção e a reprodução da vida. Caracteriza-se

por um certo grau de coesão e solidariedade obtido face a antagonistas e em situações de extrema adversidade e de conflito, que reforçam politicamente as redes de solidariedade2626 Almeida AWB. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA-UFAM; 2008. p. 30.(30).

É dessa fonte que provém as bases estratégicas da agroecologia, como afirmam Caporal et al.2727 Caporal FR, Costabeber JA Paulus G. Agroecologia: matriz disciplinar ou novo paradigma para o desenvolvimento rural sustentável. In: Tommasino H, Hegedus P, editores. Extensión: reflexiones para la intervención en el medio urbano y rural. Montevideo: Universidad de la República Oriental del Uruguay; 2006. p. 45-64.(46):

a agroecologia reconhece e se nutre dos saberes, conhecimentos e experiências dos agricultores(as), dos povos indígenas, dos povos da floresta, dos pescadores(as), das comunidades quilombolas na medida em que auxilia na aprendizagem sobre os fatores socioculturais e agroecossistêmicos.

Tais elementos podem ser identificados na convivência das comunidades e povos tradicionais com o Cerrado, tecida por conhecimentos ancestrais do uso das áreas de baixões, veredas e chapadas sobre uma diversidade de árvores que curam doenças, como mangaba, sucupira, inharé, pau-amargo, mangabeira amarela, copaíba, aroeira, ipês e tantas outras. Ou as frutas que alimentam e possibilitam geração de renda, como pequi, buriti, oiti, tucum-rasteiro, jatobá, araçá, murici, araticum, coco-babaçu, baru etc. Essas árvores, quando conservadas e manejadas pelos povos tradicionais, oferecem diversos subprodutos, como farinhas, sementes, sucos, óleos, fundamentais para sua segurança alimentar, e ainda respondem pelo equilíbrio hídrico e da fauna do Cerrado. Toda essa riqueza de biodiversidade e de saberes tradicionais não está nas prateleiras dos supermercados e farmácias, e muito pouco ou quase nada nas bibliotecas e livrarias. São conhecimentos reproduzidos na oralidade, repassados de geração a geração, que precisam ser valorizados e respeitados pela comunidade acadêmica e pela população. Qual o lugar desses bens comuns na promoção da saúde?

No âmbito dos comuns, emerge uma perspectiva relacionada com os direitos da natureza. Acosta defende que estes devem estar inter-relacionados na construção de sociedades mais democráticas e que tenham a vida – humana e não humana – como centralidade da ação coletiva:

Os Direitos Humanos e os Direitos da Natureza, que articulam uma ‘igualdade biocêntrica’, sendo analiticamente diferenciáveis, se complementam e transformam em uma espécie de direitos da vida e direitos à vida2828 Acosta A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante; 2016.(140).

Tais direitos estão inscritos em instrumentos normativos em vários países. Comunidades dos EUA foram as primeiras a outorgar status de pessoas a ecossistemas locais. Na Nova Zelândia, o rio Whanganui, sagrado para os Maori, é um sujeito de direitos, com personalidade jurídica, assim como na Colômbia (rio Atrato), na Índia e na Austrália2929 Martinez E, Maldonado A. Prólogo. In: Murcia D, Echeverria H, Larreategui F, et al. Una década de los derechos de la naturaleza. Quito: Editorial Abya Ayala; 2019. p. 1 (Serie La Naturaleza con Derechos).. A partir da inclusão dos direitos da natureza nas constituições da Bolívia (2009) e do Equador (2008), novos olhares foram lançados para pensarmos a água como bem comum.

Os valores de “vida plena, vida doce, vida harmoniosa, vida sublime, vida inclusiva, saber viver”3030 Solón P, organizador. Alternativas sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Elefante; 2019.(21) compõem a cosmovisão do bem viver, que emerge na América Latina, sobretudo entre povos andinos, no contexto do neoliberalismo e de críticas à esquerda por sua adesão ao neoextrativismo. Tem origens no suma qamaña e no sumak kawsay desses povos e é constituído por cinco elementos centrais3131 Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018.: i) Visão do todo – constitui a alternativa sistêmica, a partir da compreensão do todo; envolve a indissociabilidade entre espaço-tempo, que avança na forma de espiral, opondo-se ao crescimento e progresso lineares; e que a centralidade deve ser a vida; ii) Convivência na multipolaridade – bem e mal, indivíduo e comunidade, propriedade individual e comunitária, trabalho individual e coletivo; responsabilidade e pertencimento – opostos ao individualismo e à concorrência; iii) Busca do equilíbrio – entre seres humanos e natureza, material e espiritual, conhecimento e sabedoria; perspectiva totalizante e não fragmentada; e a ideia de que somos cuidadores, e não proprietários da Mãe Terra; iv) Complementaridade da diversidade – complementar sem anular o outro, “respeitar a diversidade e encontrar maneiras de articular experiências, conhecimentos e ecossistemas”3131 Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018.(30); “o Bem Viver é o encontro da diversidade”3131 Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018.(31); v) Descolonização – “‘desmantelar’ esses sistemas políticos, econômicos, sociais, culturais e mentais que imperam”3131 Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018.(31); pensar outros mundos, e não apenas o moderno-colonial.

Em tempos de colapso socioambiental, expressão da crise planetária e civilizatória a que nos trouxe a modernidade – capitalista e racista –, podemos nos aproximar de distintas alternativas, nascidas de saberes ancestrais e de formulações teóricas: há narrativas que possibilitam nos afastarmos da direção do desastre anunciado. Acosta e Brand3131 Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018., assim como Svampa3232 Svampa M. A difícil tarefa de pensar alternativas ao capitalismo. In: Acosta A, Brand U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante; 2018., propõem o pós-extrativismo e o decrescimento como estratégias e condição para o bem viver e, para superar, sobretudo na América Latina, a acumulação na exportação primária - que também o é, por espoliação e por despossessão3333 Harvey D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo; 2011.. Azam3434 Azam G. Decrescimento. In: Pablo Solón, organizador. São Paulo: Elefante; 2019, p. 70-71. entende o decrescimento como uma provocação, que significa redução do consumo da natureza e de energia e a saída do ciclo produtivista; um novo imaginário fora da roda do desenvolvimento; pluralidade, diversidade de experiências e estratégias; e provoca: como queremos viver juntos com a natureza?

Essas perspectivas nos convidam a deslocar das abordagens funcionalistas, da ideologia do desenvolvimento, da colonialidade ainda presente no campo científico, rumo às insurgências criativas que abram os portais da imaginação para mundos outros, pluri-versos – e, não apenas o uni-verso –; que também requerem outras epistemologias, teorias e metodologias, ancoradas e em diálogo com os saberes tradicionais dos povos. Desafios e cocriações descoloniais, para tentarmos escapar do colapso iminente.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    29 Set 2021
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