RESUMO
A formação-ação no contexto da saúde coletiva pode ser estratégica para a resistência a esse modelo de agronegócio deletério e excludente, pois engendra um conjunto de práticas que modificam a maneira de sentir, pensar e agir em relação aos usos da terra; e fortalecem o movimento agroecológico, as práticas integrativas complementares de cuidado e as formas solidárias, democráticas e inclusivas de se relacionar com a natureza. A formação-ação: Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no Distrito Federal, nasce da confluência de outras experiências associada à necessidade de construir estratégias para a formação de profissionais e comunidades relacionados com ações em saúde para a promoção de territórios saudáveis e sustentáveis, constituído de bases teórico-metodológicos que envolvem educandos, educadores e comunidades, e articula diferentes categorias de análise para a construção e ressignificação do conhecimento, contando com ferramentas pedagógico-metodológicas baseadas na Pedagogia da Alternância e organizadas em tempos distintos do processo ensino-aprendizagem. A matriz curricular organiza-se em dois módulos: Desenvolvimento, Ciência e Saúde; e Agrofloresta, Arranjos Produtivos e Saúde. A formação é um meio de transformar a realidade local, de promover a saúde, de dialogar com as comunidades e de reconhecer os territórios.
PALAVRAS-CHAVES
Formação-ação; Cultivo biodinâmico; Plantas medicinais; Agrofloresta; Territórios
ABSTRACT
Training-action, in the context of collective health, can be strategic for resisting this harmful and exclusive agribusiness model, as it engenders a set of practices that modify not only the way of feeling, thinking and acting in relation to land uses, and they strengthen the agroecological movement, complementary integrative care practices and the solidary, democratic, and inclusive ways of relating to nature. Training-action: Biodynamic Cultivation of Medicinal Plants in Agroforestry in the Promotion of Healthy and Sustainable Territories in the Federal District arises from the confluence of other experiences associated with the need to build strategies for the training of professionals and communities related to health actions to promote healthy and sustainable territories, constituted by theoretical-methodological bases that involve students, educators, and communities, and articulates different categories of analysis for the construction and reframing of knowledge, having pedagogical-methodological tools based on the Pedagogy of Alternation and organized at different times of the teaching-learning process. The curriculum matrix has 2 modules: Development, Science, and Health; and Agroforestry, Productive Arrangements, and Health. Training is a means to transform the local reality, to promote health, to dialogue with communities, and to recognize the territories.
KEYWORDS
Formation-action; Biodynamic cultivation; Medicinal plants; Agroforestry; Territories
Introdução
O modelo de agricultura desenvolvido no Brasil tem sido considerado adoecedor, na medida em que usa agrotóxico extensivamente e amplia as iniquidades sociais, com concentração de renda, aumento da miséria, fome, destruição dos ecossistemas e deterioração da saúde das populações. A formação-ação no contexto da saúde coletiva pode ser estratégica para a resistência a esse modelo de agronegócio deletério e excludente, pois engendra um conjunto de práticas técnico-científicas que modificam não somente a maneira de sentir, pensar e agir em relação aos usos da terra, mas também a mudança gradativa de hábitos, práticas e atitudes, que fortalecem o movimento agroecológico, Práticas Integrativas e Complementares (PICs) de cuidado, bem como as formas solidárias, democráticas e inclusivas de se relacionar com a natureza.
O objetivo deste artigo é discutir a proposta pedagógica de formação-ação em cultivo biodinâmico de plantas medicinais no Distrito Federal (DF), compreendida como um eixo estruturante no desenvolvimento de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). Dessa maneira, o ensaio orienta-se para a construção de novos modelos compreensivos e de atuação frente às nocividades do modelo de produção do agronegócio e pretende refletir sobre como a adoção de abordagens teóricas, práticas e epistemológicas mais críticas pode viabilizar o fortalecimento da agroecologia. O artigo apresenta as bases teórico-epistemológicas para trilhar o processo da formação-ação; as ferramentas pedagógico-metodológicas; a estrutura político-pedagógica do cultivo biodinâmico de plantas medicinais; e as interfaces e aproximações com as PICs de cuidado, a serem realizadas pelo Programa de Promoção à Saúde, Ambiente e Trabalho da Fundação Oswaldo Cruz Brasília (PSAT/ Fiocruz Brasília).
Formação-ação que fortalece o movimento agroecológico e as práticas integrativas e complementares de cuidado
A formação-ação de produção agroflorestal biodinâmica de plantas medicinais busca, por um lado, trazer melhorias efetivas nas comunidades e, por outro, responder às necessidades e demandas da sociedade, especialmente dos grupos mais vulnerabilizados ambiental, econômica e socialmente. Também, favorecer o fortalecimento das capacidades individuais, coletivas e públicas, e levar ao aumento da eficiência e da eficácia das práticas e políticas públicas de saúde.
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) dessa formação-ação teve sua origem na confluência de outras experiências associada à necessidade de construir estratégias para a formação de profissionais e comunidades relacionados com ações em saúde para a promoção de TSS, bem como de apoiar na expertise do PSAT/Fiocruz Brasília, que desenvolve projetos voltados à saúde do trabalhador(a) e formação de lideranças das populações do Campo, da Floresta e das Águas (CFA). Outra experiência significativa foi desenvolvida no Curso de Especialização e Livre em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho, realizado nos estados do Ceará, de Pernambuco e do Tocantins; no Curso Livre de Vigilância Popular de Base Territorial, realizado no Piauí; e na Residência Multiprofissional em Saúde da Família com ênfase na Saúde da População do Campo, em andamento na região norte do DF.
Bases teórico-epistemológicas
A formação e a capacitação de profissionais da saúde e das comunidades, quando bem planejadas e desenvolvidas, são capazes de produzir mudanças positivas na vida da população, especialmente nos processos de trabalho, nas ações nas comunidades urbanas e rurais e no Sistema Único de Saúde (SUS).
A prática pedagógica transformadora e emancipatória, requer, pelo menos, dois movimentos: o da reflexão crítica de sua prática e o da consciência das intencionalidades que presidem suas práticas. Os referenciais teórico-metodológicos da Formação-ação envolverão educandos, educadores e comunidades, e articularão as seguintes categorias de análise: Território, Desenvolvimento e Sustentabilidade; Desenvolvimento Saudável e Sustentável; Agroecologia; Educação do Campo e Pedagogia Antroposófica; Saúde e Medicina Antroposófica; Promoção e Vigilância em Saúde; Agricultura Biodinâmica; e Práticas Integrativas e Complementares.
Para desenvolver teórico-conceitualmente o conteúdo relativo a ‘Território, Desenvolvimento e Sustentabilidade’, assumiremos que o território é o lócus da reprodução da vida, que:
Compreende um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como quadro único no qual a história se dá22 Santos M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2006.(39).
Toda a sociedade tem como base de vida o espaço geográfico que habita, desenvolve suas práticas produtivas e/ou de lazer. São espaços originariamente naturais, continuamente modificados pela ação do homem, que os fazem constantemente ressignificados. Estamos falando de territórios de vida, em que o território é definido como um espaço de poder apropriado pelo grupo social, no qual é conferido um ordenamento característico, sendo as relações de produção, bem como as simbólicas e afetivas, determinantes desse processo.
O território tem-se constituído como a base sobre a qual as determinações sociais do processo saúde-doença-cuidado produzem efeitos transformadores; por isso, é uma referência fundamental também para o campo da saúde coletiva. Deste modo, “não é o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social”33 Santos M. O Retorno ao Território. In: OSAL: Observatório Social de América Latina. Ano 6. Buenos Aires: Clacso; 2005. [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/a... (255) mas seus usos e as vivências nele presenciadas. Nesse sentido, a vida saudável e sustentável de um território se expressa ao longo do tempo, de forma multiescalar, manifestando-se, portanto, dentro do desenvolvimento global, regional e local, em suas dimensões ambientais, culturais, econômicas, políticas e sociais44 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum. Ciênc. Saúde. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 28(2):243-249. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos... .
À medida que os territórios resultam de construções sociais-naturais, é possível empreender ações para o Desenvolvimento Saudável e Sustentável. Grande parte da literatura sobre desenvolvimento omite que é a relação entre o crescimento ordenado ou sustentável, com a inclusão de temas relacionados com o meio ambiente, aspectos sociais e culturais. Outrossim, a associação redutora do desenvolvimento com os indicadores econômicos levou à construção de planejamentos pouco centrados nas necessidades dos diferentes grupos sociais, sem incluir as consequências dessa centralização de perspectiva.
O desenvolvimento sustentável foi concebido como uma ruptura com outros modos de desenvolvimento que conduziram, e ainda conduzem, a desgastes sociais e ecológicos consideráveis, tanto em nível internacional como regional ou local55 Brasil. Comissão Interministerial para Preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O Desafio do Desenvolvimento Sustentável. Brasília, DF: Secretaria de Imprensa da Presidência da República; 1991.. Essa perspectiva se consolidou nos últimos 30 anos e se refere a diversas ações, conceitos e estratégias. O adjetivo sustentável propõe uma noção de tempo que visa proporcionar uma situação de bem-estar a todos. O desenvolvimento sustentável é definido como aquele que responde às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras a responder sobre suas necessidades66 Organização das Nações Unidas. CNUMAD, Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas; 1991.. A partir desse pressuposto, assume-se a demanda de produzir espaços saudáveis e sustentáveis, que buscam minimizar as desigualdades sociais, a má distribuição de renda e a falta de acesso a políticas públicas e de um ambiente promotor da saúde. Os territórios saudáveis promovem processos de planejamento para a saúde visando superar as iniquidades e as vulnerabilidades, desenvolvendo a governança participativa para minimizar os impactos dos determinantes ambientais, econômicos e sociais da saúde. Essa visão múltipla e diversa acerca do conceito de sustentabilidade trata a promoção da saúde e o envolvimento de vários atores na mediação de interesses, entretanto, destaca Machado et al.44 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum. Ciênc. Saúde. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 28(2):243-249. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos... que, apesar da presença de atores econômicos, sociais e agentes governamentais, “as ações de vigilância de intervenção territorializadas que contribuam para o desenvolvimento sustentável têm sido negligenciadas”44 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum. Ciênc. Saúde. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 28(2):243-249. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos... (245).
A agroecologia como uma estratégia de sustentabilidade em ambientes promotores de saúde caracteriza-se por uma agricultura capaz de proporcionar às famílias do campo benefícios ambientais, econômicos e sociais significativos, e, também, de forma equânime e sustentável de alimentar as famílias que vivem nas áreas.
O sistema agrícola baseado em princípios agroecológicos exibe altos níveis de diversidade e resiliência, ao mesmo tempo que oferece rendimentos justos e serviços ecossistêmicos77 Altieri MA, Nicholls CI. La Agroecología en tempos del COVID-19. CELIA. Berkeley: Universidade de California; 2020.. A agroecologia é capaz de restaurar paisagens, enriquecer a matriz ecológica e suas funções, como: o controle natural de pragas, a regulação climática e biológica, a preservação e a conservação do solo e da água, resultando em um aumento da agrobiodiversidade.
A agroecologia se conforma como um campo de conhecimento a partir das “reflexões teóricas e avanços científicos, oriundos de distintas disciplinas”88 Guzmán CGI, GMM, Sevilla GER, coordenador. Introducción a la Agroecologia como desarrollo rural sostenible. Ediciones Mundi-Prensa. Madrid: Mundi-Prensa; 2000.(81) e, segundo Gliessman99 Gliessman SR. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS; 2000.(12), contribui com “a aplicação dos princípios e conceitos da Ecologia no manejo e desenho dos agroecossistemas sustentáveis”. Portanto, estamos falando de uma ciência que estuda e busca explicar o funcionamento dos agroecossistemas, seus mecanismos, suas relações e seus desenhos biológicos, ecológicos, sociais, econômicos, ambientais, culturais, políticos e éticos, como um conjunto de práticas agrícolas que busca produzir alimentos de forma mais sustentável e como um movimento que defende uma agricultura ecologicamente correta e socialmente justa.
Na promoção e vigilância em saúde, adotaremos os princípios conceituais e práticos da promoção da saúde em suas dimensões coletivas e de atenção integral, como uma forma de pensar a saúde que não se dirige apenas ao indivíduo e está associada ao bem comum e seus processos transformadores. A aproximação da promoção com a vigilância em saúde se deve ao fato de que, nesse segundo campo, as ações de meio ambiente desenvolvidas em associação com a promoção são responsáveis:
pela informação para a ação e a intervenção que reduzam riscos e promovam a saúde nos territórios, integrada às Redes de Atenção à Saúde. Esta função essencial do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido chamada a orientar sua ação considerando os complexos fenômenos econômicos, ambientais, sociais e biológicos que determinam o nível e a qualidade da saúde das brasileiras e dos brasileiros, em todas as idades. Assim, é imperativo que a Vigilância em Saúde se reconheça na agenda da determinação social da saúde trazendo para si a construção de conhecimentos e práticas transdisciplinares e transetoriais1010 Franco Netto G, Villardi JWR, Machado JMH, et al. Vigilância em Saúde brasileira: reflexões e contribuição ao debate da 1a Conferência Nacional de Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 22(10):3137-3148. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/gkJPYXnymhVD4TG5MSdN9MG/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csc/a/gkJPYXnymh... (3145).
Essa concepção de vigilância à saúde é derivada da territorialização em saúde e é, também, um método pedagógico, de pesquisa e de trabalho, envolvendo as etapas de diagnóstico e mapeamento das condições de vida e situação de saúde, bem como meio da elaboração de planos de intervenções1111 Fundação Oswaldo Cruz. Relatório Final do Projeto Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Região do Semiárido Brasileiro. TED Funasa/Fiocruz n°6/2015. Brasília, DF: Fiocruz; 2019.. Dessa forma, suas ações estabelecem um permanente diálogo com o conceito de TSS na perspectiva de promoção da saúde e de redução dos impactos sanitários na população.
Um conjunto de ações associado aos processos de ‘Educação do Campo e Pedagogia na Antroposofia’ compreenderá a educação como um direito humano e universal, necessário para a dignidade humana e que
pressupõe o desenvolvimento de todas as habilidades e potencialidades humanas, entre elas o valor social do trabalho, que não se reduz à dimensão do mercado1212 Haddad S. Direito à Educação. In: Caldar RS, Pereira IB, Alentejano P, organizadores. Dicionário de Educação do Campo. 2. ed. Rio de Janeiro: Expressão Popular; 2012.(219).
Brandão1313 Brandão CR. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense; 1984. pondera que a educação pode ser tanto uma opressão quanto uma forma de libertação, pois depende de como é pensada e praticada, já que “ninguém educa ninguém, ninguém educa sozinho, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”1414 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.(39).
A educação do campo se constitui como um movimento de luta do povo do campo por políticas públicas que garantam o seu direito à educação ‘no e do’ campo. ‘No campo’, refere-se às pessoas que têm direito a serem educadas no lugar em que vivem; e ‘do campo’, às pessoas que têm direito a uma educação pensada a partir de seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais. Portanto, trata-se de combinar pedagogias, de modo a fazer uma educação que forme e cultive identidades, autoestima, valores, memória, saberes, sabedoria e que enraíze sem necessariamente fixar as pessoas. Trata-se, dessa maneira, de uma educação que projeta movimento, relações e transformações.
A pedagogia na antroposofia será de fundamental importância na compreensão do desenvolvimento humano, a partir do diálogo entre as experiências advindas do mundo exterior e do conteúdo subjetivo humano, que interagem não apenas na esfera do pensamento e do raciocínio, mas também na esfera mais material do corpo.
Toda educação é uma autoeducação e a autoria do processo de aprendizagem é sempre de quem aprende, por isso os processos de ensino-aprendizagem devem ser feitos a partir da realidade, de forma que ‘nessa escola unificada estará tudo o que para a vida precisa estar dentro, e se não estivesse dentro, entraríamos ainda mais fortes na calamidade social do que estamos agora. É preciso haver conhecimento de vida em todo ensino’1515 Steiner R. Três palestras sobre pedagogia popular/ Rudolf Steiner. São Paulo: Hífen Editora e Círculo das Artes; 2019.(126).
De acordo com Marasca1616 Marasca E. Saúde se aprende, educação é que cura. Da pedagogia Waldorf à salutogênese. São Paulo: Antroposófica; 2009., na perspectiva da medicina antroposófica, a saúde educa e a educação cura. Assim, abordaremos Saúde e Medicina Antroposófica, por Rudolf Steiner1717 Steiner R. Soul and Spirit in the Human Physical Constitution From: The Bridge Between Universal Spirituality and the Physical Constitution of Man. Rudolf Steiner Archive & e.Lib. 1920. [acesso em 2020 jan 25]. Disponível em: https://www.rsarchive.org/GA/index.php?ga=GA0202.
https://www.rsarchive.org/GA/index.php?g... , a partir do primeiro ciclo de palestras para jovens médicos, no qual apresentou o ser humano formado por uma quadrimembração formada pelo corpo físico (material), corpo etérico (vitalidade), corpo astral (emoções) e a organização do Eu (identidade)1818 Steiner R. Teosofia – Introdução aos conhecimentos supra-sensível do mundo e do destino humano. 9. ed. São Paulo: Antroposófica; 2004. [acesso em 2020 jan 25]. Disponível em: http://wn.rsarchive.org/Books/GA009/English/GA009_index.html.
http://wn.rsarchive.org/Books/GA009/Engl... como modo ‘de andar a vida’, como define Georges Canguilhem1919 Canguilhem G. Lo Normal y lo Patológico. México: Siglo XXI; 1971. em seu clássico ‘O Normal e o Patológico’, em que as condições de trabalho e de vida, modo de produção e de reprodução social estão na origem do processo de determinação social da saúde. Nessa perspectiva histórica e epistemológica, a saúde é decorrente de políticas públicas e ações comunitárias condicionadas pela capacidade de expressão, geração de estruturas e serviços articulados a uma agenda interinstitucional, voltadas às necessidades da população. Além disso, a saúde se configura como um direito a atenção integral individual e de ‘saúde pública’, ganhando um caráter coletivo e relacionado com um princípio conquistado na Constituição brasileira de 1988, que nos arts. 196 e 197 registra o direito de todos à saúde e o dever de garantia do Estado2020 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988..
Os princípios antroposóficos também deram origem à agricultura biodinâmica, a partir do curso intitulado ‘Fundamentação da Ciência do Espírito para a prosperidade da agricultura’, ministrado por Steiner em Koberwitz, na Polônia, em 1924, sob a forma de oito conferências que foram cuidadosamente registradas, editadas e publicadas posteriormente.
Além disso, as bases da racionalidade médica antroposófica serão fundamentais para construir a relação entre o cultivo das plantas medicinais e o cuidado em saúde. Sabe-se que, na década de 2000, o Brasil avançou na criação de políticas e ações de promoção da saúde que dialogam com o cotidiano de vida das pessoas valorizando suas condições materiais e imateriais de existência, bem como os diversos aspectos envolvidos nos processos saúde-doença-cuidado, que dialogam com os fatores relacionados com determinação social da saúde. No bojo desse avanço, foram criadas as condições para a implantação, em todos os níveis de atenção do SUS, de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), que incluem, entre outras, a medicina antroposófica, plantas medicinais e fitoterápicos.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) foi regulamentada pelas Portarias nº 971/2006, nº 1.600/2006, nº 849/2017, nº 702/2018 e nº 1.988/2018. Após a publicação dessas portarias, atualmente, integram a PNPIC o total de 29 práticas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza a adoção das medicinas tradicionais desde a década de 1970, reafirmando a sua importância na Conferência de Alma-Ata, em 1978, e em diversos documentos das Assembleias Mundiais de Saúde posteriores. Mais recentemente, a OMS adotou o termo medicina tradicional complementar integrativa e reconheceu o Brasil como um dos países de referência em relação à sua integração no sistema nacional de saúde, em especial, na Atenção Primária à Saúde.
Sabe-se que as PICS estão presentes em 15.955 serviços de saúde brasileiros, sendo 14.456 serviços da atenção básica de 4.323 municípios de todas as capitais brasileiras2121 Brasil. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil – CNES. Dados: SISAB/DATASUS, 2018. Brasília, DF: MS; 2018.. Sabe-se, também, que a PNPIC trouxe desdobramentos e inovação tecnológica e social para o SUS. No DF, propiciou a criação da Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde (PDPIS), que foi submetida à consulta pública e aprovada por unanimidade pelo Colegiado Gestor da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES/DF), Deliberação nº 1/2014, e pelo Conselho de Saúde do Distrito Federal, Resolução nº 429/2014. Atualmente, a PDPIS preconiza o uso de 17 diferentes práticas; e como a PNPIC, inclui medicina antroposófica, plantas medicinais e fitoterápicos.
As Práticas Integrativas em Saúde (PIS) serão parte estruturante dessa formação-ação para o cultivo biodinâmico de plantas medicinais no âmbito do SUS, por criarem um ambiente promotor de inovação tecnológica e social em práticas integrativas ou tradicionais em saúde e, também, por apoiarem-se nas articulações e parcerias entre a Gerência de Práticas Integrativas (Gerpis) da SES/DF, com o PSAT/Fiocruz Brasília e o Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde (Lapacis) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Além disso, apoios serão recebidos da Biblioteca Virtual em Saúde em Medicinas Tradicionais Complementares e Integrativas em Saúde (BVS/MTCI-Bireme), do Consórcio Acadêmico Brasileiro para a Saúde Integrativa da Rede PICS Brasil, do Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares (ObservaPICS/Fiocruz) e da Coordenação Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC-Ministério da Saúde/MS).
Ferramentas pedagógico-metodológicas
A pedagogia da alternância será o caminho pedagógico escolhido para a construção do conhecimento nos territórios e se constituirá em uma das estratégias de ensino-aprendizagem mais adequadas às peculiaridades da vida no campo, na cidade e/ou no mundo do trabalho. Sua metodologia e seus conteúdos curriculares contextualizados na vida e na realidade de cada local estarão relacionados diretamente com as necessidades de promover uma maior integração entre teoria e prática, alternando os tempos e espaços entre a escola e a comunidade.
A formação baseada na pedagogia da alternância estará organizada em duas etapas. A primeira é o Tempo-Escola (TE), no qual os educandos permanecerão uma parte do seu tempo em instituições de ensino e terão a possibilidade de estabelecer um diálogo direto com os educadores e com os conteúdos conceituais e teóricos ministrados. Nesse tempo, será estimulada a discussão teórica e a construção de interações entre as diferentes realidades vividas pelos educandos, assim promovendo reflexões críticas sobre questões relevantes.
A intervenção ‘transformadora’ ocorrerá no momento do Tempo-Comunidade (TC), em que os educandos retornarão às suas comunidades com o propósito de realizar um conjunto de tarefas que foram orientadas pelos educadores. Para Silva2222 Silva LL, Felix SBCM. Gerência e trabalho em equipe na atenção primária. In: Archanjo DR, Archanjo LR, Silva LL, organizadores. Saúde da família na atenção primária. Curitiba: IBPEX; 2007. p. 75-98.(108),
A alternância, enquanto princípio pedagógico, mais que característica de sucessões repetidas de sequências, visa desenvolver na formação situações em que o mundo escolar se posiciona em interação com o mundo que os rodeia. Sob este aspecto, a ideia de alternância converte-se em uma estratégia de escolarização que possibilita aos jovens que vivem no campo conjugar a formação escolar com as atividades e as tarefas na unidade produtiva familiar, sem desvincular-se da família e da cultura do campo.
As correntes que trabalham na perspectiva da pedagogia da alternância apoiam-se na linha histórico-crítica, para a qual não é possível compreender o processo pedagógico separado dos processos sociais, ou seja, é preciso partir dos vínculos existentes entre educação e sociedade, objetivados na prática social dos seus educandos. A educação, nessa perspectiva, é conceituada como uma atividade mediadora no seio da prática social, razão pela qual deve ser tomada como ponto de partida do processo de construção do conhecimento2323 Saviani D. O institucional, a organização e a cultura da escola. Cad. Pesquisa. 2005; (35):231-237; 2005..
A prática social será o primeiro momento desta proposta metodológica por ser a dimensão comum aos educandos e educadores. Porém, do ponto de vista pedagógico, há uma diferença crucial entre ambos, visto que educador e educando se encontram em níveis diferentes de compreensão (conhecimento e experiências) da prática social.
O próximo passo articulará a pesquisa e o trabalho nos territórios como parte constituinte e indissolúveis do processo educativo. Desse modo, a pesquisa permeia todo o processo de formação, visando fortalecer a atuação, as aulas e as demais atividades. Nos TE, são combinadas reflexões coletivas e individuais, que dialogam com a realidade e a atuação na comunidade, que contribuirão para que os educandos possam discutir as abordagens teóricas e os procedimentos metodológicos mais adequados a serem utilizados no TC.
O diálogo entre educando e educador, tendo como referência os problemas identificados na realidade social dos territórios, tem base na noção de interdisciplinaridade, que, segundo Casanova2424 Casanova PG. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo: Boitempo; 2006.(13) é:
[...] uma relação entre várias disciplinas em que se divide o saber fazer humano, é uma das soluções que se oferecem a um problema muito mais profundo, como a unidade do ser e do saber, ou a unidade das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades com o conjunto cognoscível e construtível da vida e do universo.
O objetivo será a aprendizagem integral, não fragmentada, viabilizada mediante a disponibilização de metodologias de investigação que privilegiem o estudo da realidade social, de suas contradições e possibilidades de intervenção transformadora, com o foco na formação para a ação. Desse modo, os temas afetos às diferentes disciplinas do conhecimento serão submetidos ao crivo da reflexão dos educandos e educadores, a fim de que se possa construir uma visão mais abrangente e sistêmica da realidade social. Por isso, a Coordenação Política Pedagógica (CPP) que é uma estrutura organizativa do curso, a qual será composta por educadores e educandos, que terão como tarefa conduzir política e pedagogicamente o projeto de ensino-aprendizagem e a intencionalidade da formação-ação pretendida de forma transformadora para o coletivo.
A organização dos espaços/tempos educativos contribuirá para o processo de organização das etapas TE e buscarão exercitar a organização do tempo individual e coletivo em relação às tarefas necessárias ao cumprimento dos objetivos propostos na formação-ação. A organização do processo educativo, na perspectiva da transformação, precisa ser entendida dialeticamente. Para além do TE, os educandos precisarão realizar as atividades do TC, que tem o objetivo de estabelecer o diálogo entre os conteúdos e aprendizagens do TE e a realidade de seus territórios. No regime de alternância, percebe-se um processo dialético, no qual os educandos são desafiados a se auto-organizarem e se autogerirem, na medida do possível, proporcionando um crescimento técnico e político. Essa é uma construção permanente, que leva em conta o processo emancipatório do ser humano. Trata-se de uma emancipação libertadora, observando que um processo só é educativo quando oferece elementos para o desenvolvimento de todas as dimensões do ser humano, considerando nos conteúdos a produção da cultura, da arte, da dança, da literatura, enfim, dos elementos significativos relacionados com a vida concreta e plena de sentidos. Pressupõe, ainda, a gestão democrática e participativa, o planejamento constante, as relações estabelecidas, a auto-organização dos educandos e a avaliação emancipadora.
A organização do processo educativo em tempos distintos nasce para reforçar alguns princípios importantes: a necessidade de mudar a existência dos educandos, seu jeito de viver e perceber o mundo, criando possibilidades para o questionamento e a busca de uma nova síntese; e a formação humana, com as várias dimensões da vida. Concomitantemente, os tempos pedagógicos visam contribuir para o processo de organização (ênfase maior no TE) e auto-organização dos educandos (ênfase maior no TC). Os tempos educativos poderão ter determinada periodicidade, duração e intencionalidade pedagógica específica.
Os Núcleos de Aprendizagem e Estudo (NAE) emergirão como ferramenta de organização coletiva, participação e gestão dos educandos. Caracterizam-se pelo nucleamento dos educandos, com o objetivo de contribuir para a gestão dos processos de formação-ação, facilitar a ampliação do conhecimento e trabalhar a convivência e a troca de experiência entre os educandos nos seus processos de ensino-aprendizagem, visando ampliar a participação, a auto-organização dos educandos para assumirem a condução e a gestão dos tempos educativos. Os NAE assumem uma dinâmica própria no seu processo organizativo, em que cada educando, por um determinado período, assume um papel e diferentes tarefas no núcleo, que são periodicamente avaliadas e reorientadas quando necessárias. Dessa forma, nesse processo de vivenciar e compartilhar a condução do processo pedagógico, vai-se gerando autonomia e se forjando sujeitos coletivos.
Uma entre as muitas experiências que serão vivenciadas nos NAE é a da cartografia social, com a construção de croquis e mapas falantes, que é entendida como uma tecnologia social caracterizada como uma ferramenta para construção de mapeamentos participativos, pressupondo-se também a construção de informações contextualizadas em reflexões coletivas para ação, seja para processos de fortalecimento identitários (uso de mapas falantes), seja para mecanismos de gestão territorial (croquis comunitários e domiciliares), podendo ser aplicada em diferentes territórios. Por meio dessa tecnologia, todos os educandos e moradores do território se transformarão em pesquisadores locais e cartógrafo do se lugar.
Com isso, serão realizados diagnósticos participativos, territorializações e construções de projetos de intervenção. Para muitos autores, a territorialização nada mais é do que um processo de “habitar um território”2525 Kastrup V. Aprendizagem, arte e invenção. Psicol. Est. 2001; 6(1):17-27.(22) e o ato de habitar traz como resultado a corporificação de saberes e práticas. Sob uma perspectiva transformadora de saberes e práticas locais, a territorialização passa a ser considerada de forma ampla como um processo de habitar e vivenciar um território, uma técnica e um método de obtenção e análise de informações sobre as condições de vida e saúde da população, um instrumento de compreensão dos diferentes contextos de uso do território nas diferentes dimensões humanas e um caminho metodológico de aproximação e análises sucessivas da realidade para a produção social da saúde.
A territorialização se articula fortemente com o diagnóstico rápido participativo, e juntos se constituirão como suporte teórico e prático da ação em saúde e o Projeto de Intervenção (PI) de uma estratégia de ação territorial local. O PI consistirá em uma produção técnica e científica aplicada de pesquisa-ação, em que a proposição, a elaboração e o desenvolvimento ocorrerão de forma coletiva, envolvendo educandos e a comunidade, tendo como contexto o território de atuação dos educandos, de modo a apoiar as ações e práticas de ação em saúde. Os PI terão como objetivo atuar sobre a realidade da comunidade estudada, refletindo sobre este território vivido, fazendo a articulação entre teoria e a prática (formação-ação), construindo conjuntamente a ação-reflexão-ação sobre o tema de intervenção proposto, gerando novos conhecimentos, implementando políticas públicas e visando à melhoria na qualidade de vida das pessoas envolvidas no projeto. Trata-se de uma pesquisa-ação ao desvelar a realidade, construir ações, refletir e gerar conhecimentos coletivamente, que, desse modo, promoverão o desenvolvimento de ações e iniciativas para melhoria das condições de vida nas comunidades e construção de TSS.
O ambiente educativo nos processos de formação-ação tornará possível antecipar e provocar relações e situações de aprendizado, influir e tornar cada tempo o mais educativo possível, refletindo e recriando seus conteúdos e suas didáticas. Constroem-se circunstâncias objetivas que alteram a existência social de todas as pessoas envolvidas no processo pedagógico, possibilitando novas necessidades de aprendizado e de posicionamento pessoal e coletivo, tendo em vista fazer acontecer a formação humana pretendida. É importante compreender que ambiente educativo é tudo aquilo que acontece dentro e fora da sala de aula, desde que tenha sido preparado para permitir uma nova interação educativa. É o exercício de superar o espontaneísmo, pois nem sempre as situações e as experiências educam. É, enfim, ousar dar intencionalidade pedagógica aos movimentos de aprendizagem.
Haverá também a avaliação como instrumento orientador da caminhada ou do processo, com o objetivo de conhecer os avanços e as possibilidades dos sujeitos, proporcionando o entendimento às diferentes lógicas contidas na construção social do conhecimento. Entendendo que o conhecimento é resultado de trocas que se estabelecem, tanto entre o meio social, cultural e político quanto entre sujeitos, esse processo exige o diálogo autêntico entre educando e educador. Uma avaliação embasada nessa concepção de conhecimento caracteriza-se por um processo contínuo e participativo, com função diagnóstica, prognóstica e investigativa, cujas informações propiciarão o rendimento da ação pedagógica e educativa, reorganizando as próximas ações (do educando, da turma, do coletivo), no sentido de avançar no atendimento e no desenvolvimento de aprendizagens. O portfólio configura-se como uma ferramenta de ensino, aprendizagem e avaliação, inovador e potencializador de competências cognitivas e metacognitivas. Os educandos poderão reunir suas diferentes produções durante os processos de formação, utilizando um suporte criativo ( jogos, livretos, vídeos, artes plásticas etc.), realizando novas reflexões e autoavaliação do seu deslocamento durante o processo ensino-aprendizagem e no desenvolvimento das atividades de formação-ação nos diferentes territórios.
Projeto político-pedagógico da formação-ação de Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas
Entendemos a formação como um meio de transformar a realidade local, de promover a saúde, de dialogar com as comunidades e de reconhecer os territórios. Por isso, a formação-ação estimulará a construção do conhecimento a partir dos saberes e práticas, da realidade dos diferentes territórios, da ciência comprometida com a vida e da abordagem transdisciplinar no trabalho em saúde. Esse arcabouço teórico-conceitual suporta o objetivo da construção de paradigmas para o cuidado do ser humano e dos bens comuns no diálogo com os pressupostos da promoção, da atenção e da vigilância da saúde, da antroposofia, da agroecologia, das plantas medicinais, dos TSS em consonância com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para o alcance da Agenda 2030.
Como exercício de equidade, essa formação-ação desenvolve-se, simultaneamente, como curso especialização para pessoas com formação superior e curso livre para pessoas sem formação superior. Trata-se de uma opção para envolver educandos com/ou sem graduação e trabalhadores de diferentes áreas e com diferentes experiências. Assim, serão capacitados profissionais de saúde e pequenos agricultores nos fundamentos da agricultura biodinâmica, da antroposofia e no cultivo de plantas medicinais em agroflorestas, visando alterar a práxis “atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos”2626 Konder L. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.(115) dos educandos, transformando-os e sensibilizando-os a olhar a influência do meio ambiente no processo saúde-doença-cuidado.
Alicerçada nesses princípios, a formação-ação de Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no DF está organizada em dois módulos compostos por diferentes disciplinas, como se observa no quadro 1.
Módulos e disciplinas que formam a matriz curricular da formação-ação na Produção Agroflorestal Biodinâmica de Plantas Medicinais no Distrito Federal
Além dos conteúdos previstos nas disciplinas, temas transversais que emergem nas discussões dos educandos após suas ações nos territórios serão discutidos e aprofundados ao longo dos módulos. Com isso, é possível enfocar questões como raça, gênero, classe social, importância do trabalho na terra e as relações sociais envolvidas no processo de produção. Também, deverão ser debatidos temas acerca da promoção de territórios sustentáveis e saudáveis, por meio da agricultura biodinâmica, da antroposofia e do cultivo de plantas medicinais em agroflorestas, pautada no diálogo e na relação orgânica entre a teoria e a prática, entre saber científico e saber popular, possibilitando aos educandos a construção de uma análise crítica sobre a realidade, o conhecimento sobre os sujeitos e a vida nos territórios, a presença do estado e das políticas públicas nesses espaços, como a saúde se expressa no ambiente, no trabalho, no corpo dos sujeitos e nas relações sociais, buscando fortalecer e articular redes socio-técnicas, desenvolver tecnologias sociais e modelos de governança de base territorial.
O aprofundamento desses temas e de outros é estimulado, inclusive, para serem abordados nos portfólios, utilizados para a avaliação dos educandos durante seu percurso de formação. Esses temas também deverão ser marcadores sociais para os projetos de intervenção desenvolvidos nos territórios em que os educandos atuam profissionalmente. Os portfólios e o projeto de intervenção auxiliarão na construção do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dos matriculados na especialização e do Trabalho Final (TF) dos educandos matriculados no Curso Livre.
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) dessa formação-ação exigirá um diálogo interdisciplinar e permanente entre educandos e educadores, compreensão da complexidade do processo saúde-doença-cuidado, sua determinação e soluções diversas e complexas para o seu enfrentamento. Diante disso, cobra a disponibilização de metodologias de pesquisa e investigação que privilegiam o estudo da realidade social, de suas contradições e possibilidades de intervenção transformadora.
Considerações finais
A formação-ação de Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis desenvolveu um modelo educacional para os profissionais da saúde e a comunidade, o qual teve seu início em 3 de fevereiro de 2021 com um total de 66 educandos. Destes, 45 são educandos do Curso de Especialização e 21 são educandos do Curso Livre, e estão organizados em 6 NAE.
Estão sendo usadas metodologias e instrumentos pedagógicos inovadores, que se mostraram importante na qualificação das ações intersetoriais de saúde apontando para os ODS e em articulação com a estratégia de Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no Distrito Federal e Entorno.
Devido à pandemia da Covid-19, foi necessário repensar a metodologia e a distribuição das disciplinas, visando a uma maior concentração do conteúdo teórico nesses primeiros meses de curso. Contudo, as atividades e a observação de plantio vêm sendo concretizadas de forma individual durante o TC e compartilhadas no TE. Nesse sentido, as aulas estão sendo ministradas mensalmente, durante quatro dias consecutivos, de forma síncrona e assíncrona. A organização, o desenvolvimento, a reflexão e o acompanhamento das atividades do TC ocorrerão por meio dos NAE, que se reúnem semanalmente nos períodos entre um TE e TC.
Até o momento, o Curso já abordou temas do campo da saúde, em torno de elementos fundamentais das políticas públicas de saúde, relacionados com autonomia e justiça social, sob forte orientação comunitária; e estimulou o diálogo entre diferentes sistemas médicos complexos, em prol de adquirir competência cultural para lidar com a emergência de um cenário de saúde cada vez mais complexo.
As plantas medicinais representam grande fonte de recursos capaz de fornecer elementos para a inovação tecnológica no âmbito da promoção, proteção prevenção, assistência e reabilitação em saúde, além de ser transdisciplinar nas áreas da educação, educação ambiental e vigilância em saúde. Os sistemas agroflorestais, como conjunto de conhecimentos ligados às ciências da terra, aportam às ciências da saúde conhecimentos científicos até então indisponíveis.
A medicina antroposófica no campo da saúde coletiva e enquanto racionalidade médica promove ampliação do olhar, além de acesso a uma grande quantidade de procedimentos de densidade tecnológica leve capazes de ampliar a capacidade de diagnóstico e a utilização de recursos terapêuticos na direção da integralidade do cuidado.
Um dos grandes desafios é dotar o contingente de profissionais de saúde e a comunidade de conhecimentos amplos para realizar ações de promoção e vigilância em saúde que sofrem constantemente no modelo atual de desenvolvimento, com as mudanças ambientais e tecnológicas em um mundo globalizado, com a precarização do trabalho, com a falta de valorização dos conhecimentos tradicionais, com interdependência dos países e do capital, o que impacta diretamente na vida das comunidades. O processo de educação desenvolvido possibilitará a qualificação dos trabalhadores envolvidos na execução de políticas públicas, como profissionais da saúde que atuam no SUS e agricultores familiares que convivem nos diferentes territórios. Para além do aprimoramento da teoria e do método com a prática, ampliam-se o diálogo inter e multidisciplinar, a reflexão crítica e contextualizada dos educandos, integrando o ensino, a pesquisa, a extensão e as ações de intervenção nos territórios.
O território é o espaço de vivência, de construção e de experimentação, no qual as determinações sociais se concretizam no cotidiano vivido pelos indivíduos. Para além de espaço geográfico, o território constitui-se de história e de histórias, de sujeitos e comunidades com características singulares, com múltiplos saberes, maneiras e conhecimentos. Nos territórios, observam-se as dimensões administrativas, culturais, epidemiológicas, sanitárias e tecnológicas, e dinâmica de mudanças, de transformações e de evoluções permanentes. É nesse contexto que são gerados os problemas de saúde, econômicos, políticos, conflitos socioambientais e as potencialidades para o seu enfrentamento, como os sistemas agroflorestais biodinâmicos.
A formação-ação, associada a tecnologias de informação, estratégias de construção de sistemas agroflorestais biodinâmicos e redes sociotécnicas, constitui-se como elemento estruturante para o fortalecimento dos sujeitos e das comunidades em territórios mais saudáveis e sustentáveis.
Este trabalho é a conformação de parte da produção intelectual, conceitual, metodológica e prática, orientada para o fortalecimento e implementação das políticas públicas de saúde, compreendidas como um bem comum, coletivo, dinâmico e dinamizador do desenvolvimento, além de potente instrumento por meio do qual poderão ser enfrentadas e reduzidas a exclusão, as invisibilidades, a marginalização e a vulnerabilidades da população.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Freire P. A educação como prática de liberdade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1975.
- 2Santos M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2006.
- 3Santos M. O Retorno ao Território. In: OSAL: Observatório Social de América Latina. Ano 6. Buenos Aires: Clacso; 2005. [acesso em 2019 mar 15]. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf
» http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf - 4Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum. Ciênc. Saúde. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 28(2):243-249. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf
» http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf - 5Brasil. Comissão Interministerial para Preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O Desafio do Desenvolvimento Sustentável. Brasília, DF: Secretaria de Imprensa da Presidência da República; 1991.
- 6Organização das Nações Unidas. CNUMAD, Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas; 1991.
- 7Altieri MA, Nicholls CI. La Agroecología en tempos del COVID-19. CELIA. Berkeley: Universidade de California; 2020.
- 8Guzmán CGI, GMM, Sevilla GER, coordenador. Introducción a la Agroecologia como desarrollo rural sostenible. Ediciones Mundi-Prensa. Madrid: Mundi-Prensa; 2000.
- 9Gliessman SR. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS; 2000.
- 10Franco Netto G, Villardi JWR, Machado JMH, et al. Vigilância em Saúde brasileira: reflexões e contribuição ao debate da 1a Conferência Nacional de Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2019 mar 15]; 22(10):3137-3148. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/gkJPYXnymhVD4TG5MSdN9MG/abstract/?lang=pt
» https://www.scielo.br/j/csc/a/gkJPYXnymhVD4TG5MSdN9MG/abstract/?lang=pt - 11Fundação Oswaldo Cruz. Relatório Final do Projeto Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Região do Semiárido Brasileiro. TED Funasa/Fiocruz n°6/2015. Brasília, DF: Fiocruz; 2019.
- 12Haddad S. Direito à Educação. In: Caldar RS, Pereira IB, Alentejano P, organizadores. Dicionário de Educação do Campo. 2. ed. Rio de Janeiro: Expressão Popular; 2012.
- 13Brandão CR. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense; 1984.
- 14Freire P. Pedagogia do Oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.
- 15Steiner R. Três palestras sobre pedagogia popular/ Rudolf Steiner. São Paulo: Hífen Editora e Círculo das Artes; 2019.
- 16Marasca E. Saúde se aprende, educação é que cura. Da pedagogia Waldorf à salutogênese. São Paulo: Antroposófica; 2009.
- 17Steiner R. Soul and Spirit in the Human Physical Constitution From: The Bridge Between Universal Spirituality and the Physical Constitution of Man. Rudolf Steiner Archive & e.Lib. 1920. [acesso em 2020 jan 25]. Disponível em: https://www.rsarchive.org/GA/index.php?ga=GA0202
» https://www.rsarchive.org/GA/index.php?ga=GA0202 - 18Steiner R. Teosofia – Introdução aos conhecimentos supra-sensível do mundo e do destino humano. 9. ed. São Paulo: Antroposófica; 2004. [acesso em 2020 jan 25]. Disponível em: http://wn.rsarchive.org/Books/GA009/English/GA009_index.html
» http://wn.rsarchive.org/Books/GA009/English/GA009_index.html - 19Canguilhem G. Lo Normal y lo Patológico. México: Siglo XXI; 1971.
- 20Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
- 21Brasil. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil – CNES. Dados: SISAB/DATASUS, 2018. Brasília, DF: MS; 2018.
- 22Silva LL, Felix SBCM. Gerência e trabalho em equipe na atenção primária. In: Archanjo DR, Archanjo LR, Silva LL, organizadores. Saúde da família na atenção primária. Curitiba: IBPEX; 2007. p. 75-98.
- 23Saviani D. O institucional, a organização e a cultura da escola. Cad. Pesquisa. 2005; (35):231-237; 2005.
- 24Casanova PG. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo: Boitempo; 2006.
- 25Kastrup V. Aprendizagem, arte e invenção. Psicol. Est. 2001; 6(1):17-27.
- 26Konder L. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Jul 2022 - Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
- Recebido
30 Set 2020 - Aceito
05 Ago 2021