Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis

Voices and actions in the semi-arid region: invitations to decolonize science, towards other praxis

Raquel Maria Rigotto Mayara Melo Rocha Saulo da Silva Diógenes Rafaela Lopes de Sousa Andrezza Graziella Veríssimo Pontes Luana Carolina Braz de Lima Andréa Machado Camurça Maiana Maia Teixeira Sobre os autores

RESUMO

As fronteiras do capital neoextrativista avançam sobre territórios de populações tradicionais, provocando conflitos socioambientais, agravando a crise civilizatória, ameaçando a sustentação da vida no planeta. A pedagogia do território, a práxis acadêmica no Núcleo Tramas, traz pistas para que os sujeitos da universidade incidam na assimetria de forças presente nos territórios em conflito ambiental. Duas experiências iluminam as reflexões deste ensaio. Na luta pela construção do seu território camponês, as vivências das comunidades de Apodi/RN anunciam a agroecologia como forma de resistir ao Projeto da Morte. Por sua vez, o Núcleo de Reflexões, Estudos e Experiências em Agroecologia e Justiça Ambiental revelam o protagonismo das mulheres na construção da agroecologia e na defesa de seus territórios. Sob a perspectiva decolonial, discutem-se as bases teórico-epistemológicas, que incitam metodologias insurgentes e fomentam o diálogo de saberes, ressignificando os sujeitos cognoscentes. A mediação entre as vozes dos povos do semiárido e o campo científico da saúde coletiva provoca a reflexão: quais são os recados desses povos para a academia? Enquanto ainda se buscam possibilidades, os camponeses já têm, há muito, anunciado a agroecologia como alternativa para produzir, existir harmonicamente na natureza, promover saúde e resistir aos efeitos da colonialidade.

PALAVRAS-CHAVES
Agricultura sustentável; Saúde pública; Saúde ambiental; Educação em saúde

ABSTRACT

Neoextractive capitalism advances over territories of traditional populations. The consequence is the increase in environmental conflicts and the deepening of the civilization crisis threatening life on the planet. Pedagogia do território (territory pedagogy), as an academic practice in the Núcleo Tramas, presents possibilities for the university to contribute to the reduction of the existing inequality in the context of environmental conflicts. Two reports help to reflect on this essay. In the struggle for the construction of peasant territory, the communities in the city of Apodi present agroecology as a way to resist the Projeto da Morte (Death Project). In turn, the Center for Reflections, Studies, and Experiences in Agroecology and Environmental Justice reveals the action of women in the construction of agroecology and in the defense of their territories. Based on decolonial theories, we discuss our theoretical and epistemological bases, which encourage insurgent methodologies and foster the dialogue of different knowledges. The mediation between the voices of semi-arid territories and the scientific field of collective health leads us to think: what are the messages from these peoples to the academy? While we are looking for possibilities, peasants are announcing agroecology as an alternative to produce, live harmoniously with nature, promote health, and resist the effects of coloniality.

KEYWORDS
Sustainable agriculture; Public health; Environmental health; Health education

Introdução

Enquanto grupo acadêmico do Sul global, nordeste do Brasil, formado por pesquisadoras(es) que construíram suas trajetórias no diálogo entre saúde, trabalho e ambiente – em uma teia de produção de conhecimentos articulada por academia, territórios em conflitos ambientais e movimentos sociais –, vimos pesquisando e incidindo sobre questões que estão no âmago da crise ambiental que levou a humanidade a um contexto limítrofe no qual a sustentação fundamental da vida – água, ar, solo, clima, biodiversidade – encontra-se ameaçada. Atualmente, enfrentamos uma pandemia que expõe os limites das sociedades capitalistas que, assentadas na articulação entre o racismo, o patriarcado e o colonialismo, aprofundam as formas de dominação da natureza e da exploração do trabalho humano – normalidade para a qual não podemos voltar11 Santos BS. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina; 2020..

Acompanhamos um processo de subordinação econômica dos países da América Latina pelo aprofundamento do denominado neoextrativismo22 Gudynas E. O novo extrativismo progressista na América do Sul: teses sobre um velho problema sob novas expressões. In: Léna P, Pinheiro do Nascimento E. Enfrentando os limites do crescimento: sustentabilidade, decrescimento e prosperidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2012. p. 303-318.. Associados a poderosos grupos econômicos transnacionais, empreendimentos minerários, energéticos e do agro-hidronegócio expandem a produção de commodities, desconsiderando as necessidades dos seres vivos, humanos e não humanos. Incidem em múltiplas dimensões do processo saúde-doença ao comprometer o acesso aos bens comuns; ao alterar as formas de organização das economias locais e os sentidos do trabalho; ao gerar fluxos migratórios compulsórios; ao instalar processos produtivos poluentes; ao desqualificar e invisibilizar os diferentes saberes e modos de viver e produzir.

Enquanto campo científico, somos chamados(as) à reflexão sobre o papel da ciência e da tecnociência na efetivação do projeto moderno-colonial ao longo da história. Ao lado das contribuições para o desenvolvimento humano, a ciência moderna conformou complexos problemas de saúde para os quais não construiu respostas efetivas33 Funtowicz S, Ravetz J. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. Hist. cienc. saúde-Manguinhos. 1997 [acesso em 2021 maio 11]; 4(2):219-230. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59701997000200002.
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. Como núcleo acadêmico inserido no Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Universidade Federal do Ceará (UFC), nossa proposta com este ensaio é compartilhar pistas epistemológicas e metodológicas identificadas em nossa práxis que possam ser significativas para o campo da saúde coletiva.

Eles usam muito veneno! Os trabalhadores estão adoecendo! A gente diz, mas as autoridades não nos levam a sério!”. Essa denúncia nos foi trazida pelo Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra (MST) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2006, no contexto da implantação de empresas nacionais e transnacionais da fruticultura irrigada na Chapada do Apodi/Ceará. Sentindo a assimetria de poderes configurada na desconsideração de seus saberes, esses sujeitos políticos nos solicitaram um estudo para evidenciar os problemas percebidos, e assim fortalecer suas lutas. Acolher esse desafio significou para o Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde – Tramas/UFC um ponto de inflexão em nossa trajetória acadêmica. Foi tão fecundo produzir conhecimento com movimentos sociais e moradores(as) de territórios do semiárido em conflito com empreendimentos do agronegócio que elegemos esse caminho como princípio ético-político do grupo.

A escuta sensível e a convivência com esses sujeitos em seus espaços de vida e de articulação política, orientada por princípios de solidariedade e horizontalidade, mostraram-nos a potência do diálogo de saberes. O reconhecimento de suas experiências e a criação de espaços nos quais acontecessem as trocas de conhecimentos possibilitaram tanto a definição de problemas de estudo mais próximos da complexidade do contexto a nós apresentado quanto a construção dinâmica de novas metodologias de pesquisa. Tais espaços de diálogos foram decisivos para definir que a equipe do ‘Estudo epidemiológico da população da região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos’ (Edital MCT-CNPq/MSSCTIE-DECIT/CT-Saúde – nº 24/2006) seria necessariamente interdisciplinar. Isso foi facilitado pela presença de pessoas com distintas formações (agronomia, geografia, medicina, enfermagem, serviço social, psicologia, sociologia, pedagogia, biologia, economia, comunicação, direito e ciências ambientais), potencializando a abordagem das diferentes dimensões do problema de estudo. No trajeto, percebemos o quanto estudantes e pesquisadoras(es) aprendiam nas reuniões com as associações comunitárias e/ou de agricultores(as), nos seminários, nos trabalhos de campo com os(as) moradores(as) e lideranças: a compreensão de conceitos era iluminada, inter-relações complexas tornavam-se óbvias, a indignação era acionada, e nosso senso de justiça e solidariedade era convocado a se expandir para além do intelecto – o ‘sentipensar’44 Escobar A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Universidad Autónoma Latinoamericana UNAULA; 2014. [acesso em 2020 jul 15]. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/Colombia/escpos-unaula/20170802050253/pdf_460.pdf.
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.

A partir dessa pesquisa, seguimos um caminho de abertura teórica e metodológica, compreendendo que as repercussões sobre a saúde das populações não eram provocadas apenas pelos agrotóxicos, pois o processo de des-re-territorialização55 Haesbaert R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004. imposto pelo agronegócio perpassa diferentes dimensões da vida das comunidades. Tornou-se necessário ampliar as redes de parceria e agregar novos temas e sujeitos, como as juventudes, as mulheres e as perspectivas de resistência – entre elas, a agroecologia. Percebemos que articular as lutas por justiça ambiental com as lutas em defesa da agroecologia possui potencial mobilizador, tanto nos territórios em conflitos ambientais quanto nos debates no campo científico.

Reconhecendo a potência e os aprendizados do diálogo com os territórios, sistematizamos, como método de trabalho acadêmico no Núcleo Tramas, a pedagogia do território. Ela busca apoiar práxis acadêmicas emancipatórias ao disputar os rumos hegemônicos da ciência moderna e da universidade, ressignificando o tripé universitário – ensino, pesquisa e extensão – em novas articulações entre ‘formação’, ‘construção compartilhada de conhecimento’ e ‘co-labor-ação social’66 Martinez-Alier J, Anguelovski I, Bond P, et al. Between activism and science: grassroots concepts for sustainability coined by Environmental Justice Organizations. J. of Polit. Ecology. 2014 [acesso em 2021 maio 11]; 21(1):19-60. Disponível em: https://doi.org/10.2458/v21i1.21124.
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com os sujeitos dos territórios. Atribuímos a essa última centralidade para delinear o sentido e o processo de trabalho na universidade. A partir das necessidades daqueles sujeitos, valorizando seus saberes em processos dialógicos, construímos conhecimentos úteis à defesa dos seus direitos. A ‘co-labor-ação’ social é fonte de ricas experiências que contribuem para a formação de docentes, pesquisadoras(es) e estudantes para se tornarem reflexivos(as), críticos(as) e autônomos(as). Compartilhamos alguns caminhos da pedagogia do território para facilitar a compreensão das experiências narradas e que, quiçá, possam ser úteis a outros coletivos.

a) Processos de construção compartilhada de conhecimentos a partir das demandas dos territórios em confito

Movidos(as) pela consciência de que o conhecimento é um bem comum da humanidade e disputando a compreensão da função social da universidade77 Leher R, Lopes A. Trabalho docente, carreira, autonomia universitária e mercantilização da educação. In: Mancebo D, Silva JR, Oliveira JF, organizadores. Reformas e políticas: educação superior e pós-graduação. Campinas: Alínea; 2008. p. 73-96., buscamos acolher as demandas de produção de conhecimentos formuladas por comunidades em conflito ambiental ou por entidades e movimentos sociais comprometidos com essa luta; e, a partir delas, definimos nossos projetos de investigação. As pistas trazidas pelo pensamento pós-colonial e a ecologia de saberes nos impulsionam a ressignificar os sujeitos cognoscentes e com eles organizar processos de construção compartilhada de conhecimentos88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010..

b) Metodologias participativas de pesquisa promovendo o diálogo de saberes

Em contraposição ao epistemicídio engendrado pelo pensamento abissal, a ‘ecologia de saberes’88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010., por meio da ‘sociologia das ausências’, vai ao encontro de conhecimentos dotados de critérios diferentes de validade, explorando tanto “a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que se têm tornado visíveis através das epistemologias feministas e pós-coloniais”88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010.(57), como promovendo a “interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes”88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010.(57). Assim, valorizamos os encontros no campo empírico como espaços de formação mútua e de incidência na assimétrica correlação de poder, e somos desafiados(as) a revisitar diferentes possibilidades metodológicas para encontrar ou criar abordagens que possibilitem espaços de diálogo entre os diferentes saberes em nossas pesquisas. Por isso, o desenho metodológico de cada estudo pode integrar um leque variado de técnicas e instrumentos de pesquisa.

c) Experimentando a função social da ciência: ao lado das comunidades e movimentos sociais, a universidade como sujeito social e político

A relação de colaboração com os territórios nos convoca, enquanto sujeitos políticos no campo social, a nos posicionarmos solidariamente com os movimentos sociais nos territórios em lutas emancipatórias. A assimetria de poder entre esses sujeitos, de um lado, e os grandes empreendimentos e o Estado, que os serve, de outro, demanda-nos a aportar o capital simbólico da universidade em posicionamentos públicos, baseados nos conhecimentos construídos coletivamente. Tal compromisso nos leva a uma participação engajada nos processos de disputa em que estamos inseridos(as), expressando-se nos depoimentos em audiências públicas, na elaboração de laudos e pareceres, na participação em debates promovidos por redes e movimentos sociais ou por instituições públicas, nas entrevistas e documentários, nas controvérsias científicas com especialistas, entre outros.

d) Buscando novas formas de compartilhar o conhecimento

O compromisso de compartilhar o conhecimento coproduzido com as comunidades não é cumprido apenas com a publicação de livros ou artigos científicos, pois são pouco acessíveis: é necessária uma mediação de natureza político-pedagógica para esse justo retorno aos territórios. Com a participação ativa dos sujeitos dos territórios em todo processo de elaboração, orientados pela educação popular, construímos produtos em diversas linguagens, como cordel, almanaque, caderno de formação e videodocumentário. Isso fomenta práticas coletivas de reflexão que favorecem a apropriação dos debates realizados ao longo das pesquisas, ampliando a capacidade de análise crítica e ação sobre as questões pautadas.

e) Validando de outras formas o conhecimento produzido: a Banca Acadêmica e Popular

Se afirmamos o reconhecimento dos saberes dos sujeitos que constroem os territórios onde realizamos pesquisas e nos dispomos a dialogar com eles, por que os alijar do momento público de avaliação dessa trajetória? Se defendemos que a universidade deve se voltar para as necessidades de conhecimento dos grupos sociais vulnerabilizados e cuidar para que as pesquisas contribuam para a transformação dos problemas que enfrentam rumo à dignidade e à garantia de direitos, por que não acolher a visão deles sobre nossos trabalhos? Como uma reverberação da ecologia de saberes em nossos processos de avaliação e validação dos conhecimentos produzidos, e inspirados(as) em outras experiências, passamos a integrar nas comissões de doutores(as) pessoas dos territórios nos quais ocorreu o estudo, formando a Banca Acadêmica e Popular. Semelhantemente aos(às) demais examinadores(as), os membros populares recebem previamente o texto, compõem a mesa e expressam sua avaliação na defesa pública, participando igualmente da decisão da banca sobre o trabalho e assinando a ata da sessão.

f) A formação em coletivo – colaboração e construção compartilhada de conhecimentos

Inserindo-se no processo histórico de cada território, participando de reuniões com os movimentos sociais da região, conhecendo os sujeitos das comunidades, ajudando na organização de seminários e audiências, ou contribuindo com a realização da pesquisa de campo de colegas, o(a) pesquisador(a) vai construindo elementos para propor ao coletivo e à comunidade um problema de estudo – o qual, afastado da suposta neutralidade científica, nasce embalado em sentimentos de indignação, solidariedade e compromisso.

É no território que os conceitos estudados ganham concretude e que diferentes olhares são compartilhados desde o ponto de vista da formação disciplinar, na medida em que o contexto vivido demanda, convoca e articula os saberes de cada um(a). O diálogo interdisciplinar passa a ser uma necessidade experimentada com agradável surpresa e respeito pelas contribuições dos diferentes campos do conhecimento.

Para narrar alguns desdobramentos desse processo, apresentaremos duas experiências: as vivências com comunidades de Apodi/RN na construção de um território camponês contra o Projeto da Morte; e o projeto Reeaja – Núcleo de Reflexões, Estudos e Experiências em Agroecologia e Justiça Ambiental. A riqueza dessas vivências com os movimentos sociais é alimentada e retroalimenta estudos teóricos e reflexões epistemológicas em nosso coletivo, que apresentamos no segundo item, para fundamentar ‘recados’ aos campos da saúde coletiva e da agroecologia.

Vivências e vozes nos territórios: a experiência de Apodi do Rio Grande do Norte (RN)

Do cativeiro ao território camponês

O território camponês em Apodi/RN foi conquistado a partir da luta por outro modo de viver e produzir. No tempo do ‘cativeiro’, como se recordam, trabalhavam de meeiros nas grandes fazendas de algodão, quando não cavavam açudes ‘públicos’ nas terras de coronéis e políticos. Enfrentavam as ameaças da seca e da fome, a exploração e a humilhação no trabalho. Tais questões foram discutidas em ‘reuniões escondidas’, a partir de Comunidades Eclesiais de Base, que fomentaram a criação da Associação dos Mini-Produtores dos Sítios. Forjaram assim espaços de realização de outra política, a dos ‘pequenos’:

A gente começou a discutir se não tinha outro modelo que pudesse a gente se apropriar da água. O meu município, por exemplo, é muito rico em água, mas a gente não tinha acesso! Quem tinha acesso era só os poderosos, só os políticos, só os patrão. E a gente começou essa luta... Juntemos 5 comunidades e comecemos a participar das Comunidades Eclesiais de Base e comecemos a discutir que era necessário sair daquela de não ter só duas latas d’água para sobreviver – e sim ter água pro mínimo possível, aí a gente conseguiu, em 5 comunidades, perfurar um poço raso, pra você achar (água) depois de 10 metros... E a gente conseguiu resolver o problema do povo99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p.(267,268).

No crescente processo organizativo, identificaram outras necessidades: as sementes e a terra para plantar alimentos. Com o apoio da CPT e de instituições internacionais, organizaram um banco de sementes e adquiriram 50 hectares de terra, cultivados em mutirão:

Na seca de 1987, nós plantemos, trabalhemos mais de 80 pessoas, 80 famílias, em mutirão plantando feijão, deixava de ir pras áreas de emergência, deixava de fazer açude pra ir trabalhar lá, todo mundo ia, era bom demais, sabe?99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p.(271,272).

Percebendo que muitas famílias continuavam sem acesso à terra, ajudaram na criação de associações em outras comunidades e lutaram para tomar a direção do sindicato, ‘para ser só do trabalhador rural’, e fortalecer a luta pela terra, no que foram vitoriosos.

Essa Chapada era de 15 donos, de 15 proprietários. Aí lá pelos anos 90, a gente começou a ocupar terra, a fazer reunião, a gente conseguiu com que desapropriassem 15 fazendas, e essas 15 fazendas hoje tem mais ou menos 600 famílias assentadas, e vivendo, mantendo, até o dia de hoje99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p.(273).

Ao longo de três décadas, essas famílias construíram sistemas coletivos de manejo da água, resgataram sementes crioulas, conquistaram terra, reafirmaram sua cultura. Construindo agroecossistemas tradicionais na região semiárida, combinaram o roçado de sequeiro, a criação de animais e os quintais produtivos, nos quais as mulheres associavam o plantio de hortas, plantas medicinais e frutíferas e a criação de aves. As formas de organização coletiva se ampliaram, e, atualmente, existem 63 Associações Comunitárias que se articulam, no âmbito municipal, além de 256 pescadores organizados em colônias ou cooperativas1010 Santos ER. Agricultura familiar camponesa e agroecologia em Apodi/RN: caminhos e desafios em contexto de conflito ambiental. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2016. 165 p. [acesso em 2021 maio 11]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/23820.
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, assim como grupos de mulheres e de jovens.

O trabalho desses(as) camponeses(as) fez do município de Apodi um dos maiores produtores agrícolas do RN, respondendo pela maior parte do arroz cultivado, sendo o maior produtor de feijão, milho e ovinos, o único produtor de quantidades relevantes de produtos extrativistas, como a cera de carnaúba e sementes de oiticica, o segundo maior criador de caprinos e o segundo maior produtor de mel do País. Tudo isso, preservando as áreas de matas e pastagens naturais1010 Santos ER. Agricultura familiar camponesa e agroecologia em Apodi/RN: caminhos e desafios em contexto de conflito ambiental. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2016. 165 p. [acesso em 2021 maio 11]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/23820.
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Tais conquistas fazem de Apodi um dos municípios com o Índice de Desenvolvimento Humano mais elevado da região e incidem positivamente sobre a saúde humana. Contudo, essa construção histórica vem sendo ameaçada, desde o final dos anos 2000, pelo projeto do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi (Pisca), denominado por camponesas(es) como Projeto da Morte.

Resistência ao Projeto da Morte: intercâmbios produzindo conhecimento autônomo

Os perímetros irrigados integram as estratégias da Política Nacional de Irrigação, objetivando estimular a modernização da agricultura e a competitividade do agronegócio1212 Pontes AGV. Saúde do trabalhador e saúde ambiental: articulando universidade, SUS e movimentos sociais em território rural. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2012. 263 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/4136.
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. Por volta de 2008, nas audiências públicas para o licenciamento ambiental do Pisca, os camponeses questionaram para quem a água iria e o porquê da desapropriação de famílias para sua construção: “por que a água chega e a gente tem que sair?”1212 Pontes AGV. Saúde do trabalhador e saúde ambiental: articulando universidade, SUS e movimentos sociais em território rural. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2012. 263 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/4136.
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(144).

O intercâmbio com a realidade de outros perímetros irrigados em atividade no Ceará “foi um primeiro processo de construção da resistência, no qual as pessoas de Apodi ficaram impactadas com a miséria que estava fora das fazendas do agronegócio”1212 Pontes AGV. Saúde do trabalhador e saúde ambiental: articulando universidade, SUS e movimentos sociais em território rural. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2012. 263 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/4136.
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(148). Em uma dessas visitas, algumas pessoas entraram no ônibus rumo ao Ceará defendendo o Pisca, mas voltaram com outra opinião:

O que eu vi é que eu fquei muito partido de pena daquela situação do povo contando e o que eu vi: o projeto esmagando até casa de morar, a igreja, as cisternas – que a gente, ó, eu tô desse jeito aqui porque a gente estava fazendo uma cisterna aqui, comecemos hoje, uma luta muito grande, como você sabe. Eu fui até pra rádio aqui defendendo o projeto (de irrigação), mas quando eu vi aquela situação, meu amigo, aí eu fquei partido. Eu fui porque eu mesmo gosto do movimento, mas tinha gente com raiva de mim porque eu sempre defendia a proposta (do projeto de irrigação), né? Mas aí quando eu cheguei lá, que eu vi a situação do povo [...] E hoje eu ainda tô na mesma: defendendo o projeto da maneira que vem eu não defendo não!99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p.(160).

O intercâmbio possibilitou organizar informações relevantes sobre o projeto, formular contrainformação e estimular processos formativos. Com a ajuda de parceiros, entre eles o Núcleo Tramas, aprofundaram diferentes temas, produziram e divulgaram sua contranarrativa sobre o Projeto da Morte.

A gente já fez intercâmbio pra lá, mostrando pras famílias o futuro, o que vai ser a Chapada amanhã! Isso aí todo mundo já viu, quem foi lá dessa juventude foi e viu. A luta que eles têm hoje pra viver, pra sobreviver! Voltaram à escravidão novamente, hoje vivem refém das multinacionais, das grandes empresas. Produz e não consome. Então é muito louco! Eu sempre digo: que sistema de desenvolvimento é esse que querem implantar aqui na Chapada, que vai matar uns de fome e envenenado e vai matar outros envenenado e de barriga cheia?99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p.(159).

Desde então, participamos de diversos processos, tanto no próprio território como nas articulações com as lutas na porção cearense da Chapada do Apodi, em redes nacionais dos campos da agroecologia, da saúde coletiva e da justiça ambiental, buscando acolher solidariamente as necessidades de visibilização do conflito e de produção de conhecimento.

Confito ambiental e (r)existências99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p. de camponeses e camponesas

O projeto do Pisca obteve a licença ambiental em 2010. O governo federal decretou a desapropriação de 13.855,13 hectares, onde viviam comunidades camponesas, para instalar o perímetro nos municípios de Apodi e Felipe Guerra/RN. O movimento de resistência foi potencializado, a partir de 2011, com a socialização da pesquisa do Núcleo Tramas supracitada:

A partir dessa pesquisa do grupo Tramas e depois desse trabalho, dessa parceria, desse diálogo, nós começamos a procurar mais e informar mais sobre essa questão dos agrotóxicos na saúde humana1212 Pontes AGV. Saúde do trabalhador e saúde ambiental: articulando universidade, SUS e movimentos sociais em território rural. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2012. 263 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/4136.
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(148).

As ações de resistência englobaram seminários sobre as sementes crioulas e os impactos dos agrotóxicos; audiência com o Ministro da Integração, questionando as prioridades políticas da irrigação; atos públicos e reuniões para discutir o agronegócio; articulação em redes, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Essas iniciativas conquistaram a solidariedade internacional do movimento de mulheres, pautando as manifestações mundiais do 8 de março com o lema ‘Somos todas Apodi’; e, entre outras ações, elaboraram 2 mil cartas de mulheres, escritas à mão, à presidenta da república, questionando tal projeto1111 Pontes AGV, Gadelha D, Freitas BMC, et al. Os perímetros irrigados como estratégia geopolítica para o desenvolvimento do semiárido e suas implicações à saúde, ao trabalho e ao ambiente. Ciênc. Saúde Colet. 2013 [acesso em 2021 maio 11]; 18(11):3213-3222. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001100012.
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A despeito desses esforços, as obras do Pisca foram iniciadas; e, embora não tenham sido concluídas, empresas do agronegócio se instalaram entre – ou sobre – as comunidades e assentamentos. Nesse contexto, os(as) camponeses(as) apresentaram uma formulação crítica ao conteúdo do direito humano à água, à Política Nacional de Irrigação e à Política Nacional de Recursos Hídricos em relação a dois de seus instrumentos: as outorgas e a cobrança pelo uso da água; destacaram desafios à garantia do acesso à água para os povos do semiárido, além da relevância da autonomia e da diversidade do modo de vida camponês na construção territorial do direito à água99 Teixeira MM. Da recusa ao cativeiro às (r)existências de agricultores e agricultoras no chão e nos tempos do Apodi/RN. [dissertação]. [Rio de Janeiro]: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016. 270 p..

Enquanto grupo acadêmico da saúde coletiva, a relação com esse território nos instiga a considerar: qual o lugar dos povos do campo em nossas análises? Em que medida eles são plenamente reconhecidos enquanto sujeitos de sua saúde? O que esta experiência tem a dizer sobre a determinação social do processo saúde-doença? E sobre a promoção da saúde?

Vivências e vozes nos territórios: Reeaja – Núcleo de Reflexões, Estudos e Experiências em Agroecologia e Justiça Ambiental do Baixo Jaguaribe/CE

A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou1313 Rosa JG. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986..

As pesquisas realizadas pelo Núcleo Tramas na porção cearense da Chapada do Apodi, desde 2006, em um movimento de ação-reflexão, possibilitaram tanto a utilização de seus resultados nos processos de denúncia quanto de anúncio de resistências ao modelo agroexportador. O Núcleo Tramas iniciou o ‘Estudo sobre exposição e impactos dos agrotóxicos na saúde das mulheres camponesas da região do Baixo Jaguaribe, Ceará’, apoiado pela Chamada MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA nº 32/2012, para investigar a vulnerabilização das mulheres que vivem em área de expansão agrícola, reconhecendo que as desigualdades de gênero e as transformações territoriais promovidas pelo agronegócio atingem de forma desproporcional a saúde delas. Estabelecemos diálogos com temáticas ainda embrionárias para o grupo, como o feminismo e a agroecologia; bem como reflexões e intercâmbios promovidos pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental e outros coletivos.

Esses processos culminaram na realização do seminário ‘Agroecologia e Justiça Ambiental: diálogo entre saberes, experiências e resistência’, em 2016, no qual socializamos os resultados das pesquisas por meio de vídeo e caderno de formação produzidos com as mulheres. O resultado desse diálogo foi a criação do Reeaja, apoiado pelo Edital MDA/CNPq nº 39/2014.

A partir do Reeaja, articulamo-nos com a Rede Nordeste de Núcleos de Agroecologia (Renda), ampliando nossas estratégias de comunicação popular, desdobrando-se em uma parceria com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Apodi/ RN e a Cáritas de Limoeiro do Norte para a realização da formação ‘Comunicação Popular e Agroecologia’.

Ampliando as articulações, o Reeaja desenvolveu o processo formativo ‘Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental: mulheres em diálogos de saberes e experiências’. Mais de 70 mulheres participaram, sendo elas da Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), agricultoras, pescadoras, marisqueiras e artesãs de diversas organizações e movimentos sociais do CE e do RN. No módulo ‘Agroecologia, Mulheres e Saúde: desafios e perspectivas para a promoção da saúde, soberania e segurança alimentar’, o diálogo entre elas visibilizou a potência dos processos construídos por elas em seus territórios:

Só pra compreender e entendermos o poder que nós mulheres temos nas mãos e quando uma mulher valoriza a agricultura, quando a mulher ela tá inserida na terra, com a terra, com a pesca, ela também tá na resistência, na luta, contra o agronegócio, o capital, sabe, ela tá se movimentando, ela tá protagonizando todo esse sistema que vem desmontando a nossa história, os nossos princípios [...] O quê que são os povos quando você pesca, quando você valoriza a pesca, quando você valoriza a agricultura você tá valorizando seus princípios e a gente vê que a cada dia, a cada instante esse sistema que tá aí vem destruindo nossos princípios éticos e morais, principalmente das mulheres. E eu sempre trago essa refexão que é muito bonito a resistência e a organização das mulheres, tanto na agricultura, quanto na pesca, quanto na resistência e mobilização de luta, a conquista do assentamento foi mobilizada por mulheres, o ponta pé inicial, o início da luta do acampamento hoje, da praia foi iniciado pelas mulheres e naquele momento da conquista do assentamento, o quê que a gente lutava? A gente lutava por uma agricultura, por uma ocupação de terra pra gente trabalhar, pro nosso sustento, da década de 80, a nossa luta pela praia hoje é pra dizer, nós precisa pescar, os nossos pescadores precisam de espaço livre, nós precisa desse chão [...]1414 Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde. Relatório do curso de formação agroecologia, saúde e justiça ambiental: mulheres em diálogos de saberes e experiências. Fortaleza: Núcleo Tramas; No prelo 2017..

As experiências evidenciaram que as mulheres estavam, quase sempre, à frente dos processos de mobilização e que elas, em seus quintais ou na pesca, davam sustentação ao modo de vida de suas comunidades. O encontro entre os saberes acadêmicos e populares mostrou que muitas das questões levantadas pela agroecologia já estavam vivas nos territórios camponeses:

Engraçado, essa palavra agroecologia surgiu, apareceu aí, os livros começaram a falar dessa palavra, desse conceito, mas nós mulheres agricultoras já fazemos esse negócio que vocês chamam de agroecologia há muito tempo. Isso me chamou muita atenção, certo gente, e o que vocês tão mostrando aqui de uma forma muito geral é aquilo que, na síntese, o conceito de agroecologia fala1414 Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde. Relatório do curso de formação agroecologia, saúde e justiça ambiental: mulheres em diálogos de saberes e experiências. Fortaleza: Núcleo Tramas; No prelo 2017..

Posteriormente, o módulo ‘Agroecologia, Mulheres e Justiça Ambiental: perspectivas e desafios’ debateu as políticas públicas para mulheres, a partir das metodologias da pedagogia feminista, além de dar continuidade ao processo de cartografia social iniciado no módulo anterior.

A gente quis destacar no nosso território, os sinais de vida, por isso a nossa legenda traz as esperanças, e tá aqui no símbolo, que tem repercussão na nossa vida de mulheres. A iniciativa da economia solidária que está muito presente no nosso território, a agroecologia também é algo muito forte na Ibiapaba, o Movimento Ibiapabano de Mulheres, a Escola Família Agrícola, a resistência e auto-organização do povo indígena Tapuia-Cariri e também a resistência e a auto-organização do quilombo Dos Três Irmãos em Croatá, nós temos também como sinal de vida as Casas de Semente [...] a cisterna representa um símbolo de convivência com o semiárido da ASA que inclui barreiras outras tecnologias para o semiárido, as feiras das mulheres e a gente colocou aqui como um sinal de vida que é a água do [açude] Jaburu, mas que agora está ameaçado pelos parques de energia eólica que estão subindo a serra, com o uso intensivo de agrotóxicos em torno do açude1414 Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde. Relatório do curso de formação agroecologia, saúde e justiça ambiental: mulheres em diálogos de saberes e experiências. Fortaleza: Núcleo Tramas; No prelo 2017..

A cartografia social evidenciou que havia resistências em meio aos conflitos, isso assinala o caráter emancipatório da “cartografia feita pelos de baixo”1515 Acserald H. Introdução: o debate sobre cartografia e processos de territorialização – anotações de leitura. In: Acserald H, Guedes A, Maia L, organizadores. Cartografias sociais, lutas por terra e lutas por território: um guia de leituras. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ; 2015. p. 8-29. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://beu.extension.unicen.edu.ar/xmlui/bitstream/handle/123456789/345/ACSELRAD%20%28coord%29_2015_CARTOGRAFIAS_SOCIAIS_TERRA_E_TERRITORIO..pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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(12). As mulheres identificaram riquezas naturais e elementos que explicitam seus modos de viver e produzir, revelando aspectos invisibilizados nos mapas tradicionais. A consolidação aconteceu por meio da categorização temática em um debate em que elas negociaram sentidos e geraram sínteses, nomeando o mapa geral (figura 1) de ‘Resistência Feminista das Mulheres’.

Figura 1
Mapa geral ‘Resistência Feminista das Mulheres’

O avanço dos grandes empreendimentos sobre os bens comuns ultrapassa a exploração da natureza e se estende sobre os corpos das mulheres, sobretudo, das negras, empobrecidas, quilombolas, marisqueiras e camponesas. São as mulheres que têm seus modos de viver e produzir mais atingidos, como na destruição das lagoas, local de trabalho delas na captura de pescado, na poluição de manguezais e rios, onde realizam à cata; no aumento de adoecimentos devido ao contato direto com agrotóxicos nas empresas e no trabalho doméstico, pela lavagem de roupas contaminadas por agrotóxicos, além de sofrimentos e adoecimentos psíquicos decorrentes das transformações territoriais. Ao elegerem e debaterem a pergunta ‘o que nos une?’, elas concluíram que os processos de resistência e luta são os elos. São mulheres que se constroem como sujeitos em/da transformação, tendo em suas práticas cotidianas elementos que configuram resistência e afirmação de outros modos de viver e produzir.

Sobre os aportes epistemológicos, teóricos e metodológicos à saúde coletiva

Realizamos uma breve sistematização do esforço reflexivo de ‘mediação’ entre as vozes de territórios do semiárido e o campo científico da saúde coletiva: quais são os seus recados para nós? Apresentamos também algumas implicações desse percurso experiencial e teórico sobre a pedagogia do território.

Eles vão acabar com nós... vai ficar só mesmo o que tá escrito nas pesquisas” – disse o Presidente do STTR de Apodi/RN, durante o ‘Encontro de Saberes: Comunidades Camponesas e Academia construindo Resistência na Chapada do Apodi’, realizado em Apodi/RN, em setembro de 2019. As vivências das várias faces do Projeto da Morte têm trazido aos povos do semiárido a angustiante sensação de que serão extintos ao assistirem à crescente e acelerada espoliação de seus territórios e dos bens comuns que sustentam seus modos de vida. Essa é a percepção local e situada da injustiça e do racismo ambiental que descortina uma ‘crise civilizatória’, articulando complexamente as crises ética, econômica, política, ambiental, alimentar e energética2020 Moreira AG. Apropriação desigual da água na Chapada do Apodi: espoliação, privatização e exportação. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2018. 111 p. [acesso em 2021 maio 11]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/40944.
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, demarcando o antropoceno, ou melhor, o capitaloceno, enquanto nova era geológica1616 Barcelos E. Antropoceno ou Capitaloceno: da simples disputa semântica à interpretação histórica da crise ecológica global. REVIBEC-Revista Iberoamericana de Economia Ecológica. 2019 [acesso em 2021 maio 11]; 31(1):1-17. Disponível em: https://redibec.org/ojs/index.php/revibec/article/view/356/222.
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.

Testemunhando e registrando as consequências desse processo nos corpos sertanejos e em seus territórios – como as crianças com más-formações congênitas ou puberdade precoce1717 Aguiar ACP. Más-formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE). [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2017. 199 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/30896.
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, ou os cânceres associados aos agrotóxicos1818 Barbosa IM. Câncer infanto-juvenil: relação com os polos de irrigação no estado do Ceará. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2016. 131 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/18748.
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,2424 Porto MFS. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica Ciênc. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 11]; (93):31-58. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.133.
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, ou o desgaste das mulheres no trabalho das packing house nas fazendas de fruticultura1919 Rocha MM, Rigotto RM. Produção de vulnerabilidades em saúde: o trabalho das mulheres em empresas agrícolas da Chapada do Apodi, Ceará. Saúde debate. 2017 [acesso em 2020 set 30]; 41(esp2):63-79. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042017s206.
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, ou a elevada pegada hídrica do agronegócio que seca os poços dos ‘pequenos’2020 Moreira AG. Apropriação desigual da água na Chapada do Apodi: espoliação, privatização e exportação. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2018. 111 p. [acesso em 2021 maio 11]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/40944.
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, ou ainda a contaminação pelos venenos das águas do Aquífero Jandaíra2121 Marinho AMCP. Contextos e contornos da modernização agrícola em municípios do Baixo Jaguaribe – CE: o espelho do (des)envolvimento e seus reflexos na saúde, trabalho e meio ambiente. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010. 245 p. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-08112010-100604/.
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–, somos impelidos a refletir sobre o papel da ciência moderna:

Vivemos um mundo em que os maiores perigos já não mais advêm da peste ou da fome, mas, sim, das próprias intervenções feitas por meio do sistema técnico-científico. O efeito estufa, a ampliação da camada de ozônio, a erosão genética e de solos, a doença da vaca louca, a gripe asiática (Sars), o vírus ebola, a doença do frango, [e atualizaríamos com a pandemia pelo coronavírus], o DDT, o ascarel, o amianto, o césio, o pentaclorofenato de sódio (o pó da China), o agente laranja (Tordon 45), entre tantos riscos que se nos apresentam, não são obras da natureza e, sim, efeitos de nossa ação por meio de poderosos meios técnicos e científicos2222 Haesbaert R, Porto-Gonçalves CW. A nova des-ordem mundial. São Paulo: Editora UNESP; 2006.(122,123).

Cabe então argumentar que a crise civilizatória está acompanhada de uma crise epistemológica:

Um conhecimento cuja validade reside na objetividade de que decorre a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética; um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação (cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática ou, pelo menos, do que nelas não é redutível, por via da operacionalização, a quantidades2323 Santos BS. Introdução a uma ciência pós-moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal; 1989.(34).

Temos evidências, trazidas especialmente pela ciência pós-normal, de que não é possível prosseguirmos na crença de que o conhecimento científico permite controlar, com segurança e eficiência, o mundo natural, já que estão configurados novos tipos de problemas em que o controle e a previsibilidade da ciência sobre os riscos estão questionados:

Os problemas atuais de saúde — ao nível individual, comunitário e ambiental — têm características comuns que os distinguem dos problemas científicos tradicionais. Sua escala é planetária e seu impacto, de longa duração. Os fenômenos são novos, complexos, variáveis e, com frequência, mal compreendidos. Dados sobre seus efeitos, e dados para determinar as linhas de base de sistemas ‘não perturbados’ mostram-se totalmente inadequados. Em geral, a ciência não fornece teorias bem fundamentadas em experimentos para explicar e prever esses problemas novos33 Funtowicz S, Ravetz J. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. Hist. cienc. saúde-Manguinhos. 1997 [acesso em 2021 maio 11]; 4(2):219-230. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59701997000200002.
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(222).

De fato, “o modelo de ciência especializada que participou da criação dos principais riscos ambientais modernos não será o mesmo que os resolverá”2424 Porto MFS. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica Ciênc. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 11]; (93):31-58. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.133.
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(36). Importa reconhecer que essa racionalidade científica não é despojada de valores nem é eticamente neutra, comprometendo a qualidade do conhecimento produzido e, portanto, das decisões políticas que embasa. Falta reflexividade às instituições e atores científicos, cuja expertise é frequentemente “utilizada para legitimar práticas espaciais tidas por ambientalmente danosas”2525 Wynne B. “Elefantes nas salas” onde os públicos encontram a “ciência”?: Uma resposta a Darrin Durant, “Refletindo sobre a expertise: Wynne e a autonomia do público leigo”. R. Contemp. de Ant. 2014 [acesso em 2021 maio 11]; (36):83-110. Disponível em: https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41577/23672.
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(85).

A revolução tecnológica não é externa às relações sociais e de poder, é parte delas, e por isto temos esta revolução tecnológica que aí está e não outra, entre as muitas revoluções técnicas possíveis. É preciso desnaturalizar a técnica, e libertá-la dessa visão que fala de uma revolução tecnológica em curso sem se perguntar quem a põe em curso. Afinal, as técnicas não caminham por si mesmas2222 Haesbaert R, Porto-Gonçalves CW. A nova des-ordem mundial. São Paulo: Editora UNESP; 2006.(106).

A ‘injustiça cognitiva’, componente central da crise epistemológica, é resultante do postulado colonial da “necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade [liberal-capitalista] produz (‘ciência’) em relação a todos os outros conhecimentos”2626 Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO; 2005. [acesso em 2021 maio 10]. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html.
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(13). Ao negar a contribuição da filosofia, das artes, das teologias e dos saberes tradicionais e populares, cometem-se epistemicídios88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010.. A negação dos saberes e fazeres de povos e comunidades tradicionais, frequentemente, leva o campo científico a posturas arrogantes e autoritárias que inviabilizam o contato com cosmovisões e experiências que poderiam contribuir para encetar diálogos e troca de conhecimentos úteis à defesa da vida.

Compreendemos que o campo científico está sendo chamado a colocar a crise civilizatória no centro de suas reflexões e práticas, já que a vida está em risco iminente2727 Stengers I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify; 2015.. Os sinais do colapso socioambiental2828 Marques L. Capitalismo e Colapso ambiental. 3. ed. Campinas: Editora Unicamp; 2018. são cada vez mais incisivos e urgentes, acelerados na América Latina pela combinação de rentismo, neoextrativismo e neoliberalismo, como aponta a ecologia política66 Martinez-Alier J, Anguelovski I, Bond P, et al. Between activism and science: grassroots concepts for sustainability coined by Environmental Justice Organizations. J. of Polit. Ecology. 2014 [acesso em 2021 maio 11]; 21(1):19-60. Disponível em: https://doi.org/10.2458/v21i1.21124.
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.

Precisamos de ‘narrativas insurgentes’, que anunciem “novos modos de resistência, que recusam o esquecimento da capacidade de pensar e de agir conjuntamente exigido pela ordem pública”2727 Stengers I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify; 2015.(71). É por meio do engajamento em um processo coletivo de reflexão e criação de saídas para a crise civilizatória que poderemos reunir elementos para a superação da crise epistemológica, partindo do pressuposto ético-político de que o conhecimento é um bem comum da humanidade77 Leher R, Lopes A. Trabalho docente, carreira, autonomia universitária e mercantilização da educação. In: Mancebo D, Silva JR, Oliveira JF, organizadores. Reformas e políticas: educação superior e pós-graduação. Campinas: Alínea; 2008. p. 73-96..

Se a ciência moderna tende a fragmentar e simplificar os problemas de estudo, “destrói os conjuntos e as totalidades e isola todos os seus objetos do seu meio ambiente”2929 Morin E. Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.(12), o paradigma da complexidade, necessariamente interdisciplinar, compreende a realidade de modo multidimensional, assumindo o desafio de tentar apreender simultaneamente unidade e diversidade em uma perspectiva sistêmica2929 Morin E. Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Porto Alegre: Sulina; 2011..

Mais que um dispositivo metodológico, reconhecemos no diálogo de saberes – já proposto por Freire3030 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996. e Leff3131 Leff E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis: Vozes; 2001., e formulado enquanto ecologia de saberes88 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010. – um princípio ético-político de uma ciência emancipatória. Além de confrontar a injustiça cognitiva, amplia a qualidade e a utilidade social do conhecimento coproduzido, como demonstra o campo da agroecologia ou experiências como a nossa com os movimentos sociais nos territórios do semiárido.

Reconhecendo o potencial da produção compartilhada de conhecimentos, a justiça ambiental, posteriormente incorporada pela ecologia política66 Martinez-Alier J, Anguelovski I, Bond P, et al. Between activism and science: grassroots concepts for sustainability coined by Environmental Justice Organizations. J. of Polit. Ecology. 2014 [acesso em 2021 maio 11]; 21(1):19-60. Disponível em: https://doi.org/10.2458/v21i1.21124.
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,3232 Martínez Alier J. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto; 2007., mostra-se fecunda na leitura dos contextos vividos no semiárido. A proposta da epistemologia política2424 Porto MFS. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica Ciênc. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 11]; (93):31-58. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.133.
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busca integrar o paradigma da complexidade e a ciência pós-normal no que

se refere à explicitação das incertezas e dos valores em jogo, assim como ao papel da produção de conhecimentos na conformação de processos decisórios e políticas públicas2424 Porto MFS. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica Ciênc. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 11]; (93):31-58. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.133.
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(32).

Articula os referenciais da justiça ambiental e incorpora “estratégias de visibilização das vozes ocultas de populações afetadas na sua condição humana”2424 Porto MFS. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica Ciênc. Soc. 2011 [acesso em 2021 maio 11]; (93):31-58. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.133.
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(32). Tais aportes podem ser reunidos no que foi denominado de ‘ciência orientada pelo ativismo’, com a qual nos identificamos:

Uma dialética e dinâmica relação impulsiona as interações entre acadêmicos e ativistas focados em confitos ecológicos distributivos. Há um processo interativo entre a produção de conhecimento e o uso do conhecimento, em que uns promovem os outros graças às relações construídas ao longo do tempo entre acadêmicos e ativistas66 Martinez-Alier J, Anguelovski I, Bond P, et al. Between activism and science: grassroots concepts for sustainability coined by Environmental Justice Organizations. J. of Polit. Ecology. 2014 [acesso em 2021 maio 11]; 21(1):19-60. Disponível em: https://doi.org/10.2458/v21i1.21124.
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(17). [tradução nossa].

As crises civilizatória e epistemológica, bem como o chamado à construção ético-política de narrativas insurgentes, portam convites ao campo da saúde coletiva, já que estruturam o contexto determinante do processo saúde-doença, e podem ser referências para nos situarmos no campo social, construirmos os problemas de estudo, compreendermos os processos de vulnerabilização, fundamentarmos a criação de caminhos metodológicos mais abrangentes, além de nos orientar acerca de proposições para a sociedade e para o Estado. Assim, dialogam com os estudos em políticas públicas, ciências sociais em saúde, epidemiologia, saúde do trabalhador, saúde e ambiente, mudanças climáticas, saúde mental, saúde indígena, nutrição, gênero, raça, educação popular, vigilância em saúde, promoção da saúde, além de um amplo leque de associações científicas e de redes e movimentos sociais.

Acreditamos que o modo que nos organizamos, a partir da pedagogia do território, ainda que apresente limites e que não seja facilmente ‘replicável’, é potente para a formação de pessoas capazes de atuar no campo científico e na docência de forma autônoma, crítica e solidária. A pedagogia do território nos tem levado a uma ressignificação do trabalho acadêmico, trazendo a ele novos sentidos e motivações, rumo a um trabalho-poiese.

Considerações finais

A modernidade engendrou crises às quais seu modelo de ciência não tem conseguido solucionar. O reconhecimento disso nos leva a compreender a relevância de aprender com os saberes e fazeres de inúmeros povos que existem e resistem. O compromisso ético-político nos territórios com os quais nos articulamos – a partir da pedagogia do território – fez brotar diversos processos e experiências que floresceram em novas formulações teórico-metodológicas, para um fazer científico implicado com os processos de construção de ‘inéditos viáveis’3333 Freire P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP; 2000..

Diante de uma crise sistêmica – que tem seus contornos perversos evidenciados e agravados pela pandemia da Covid-19 –, vivemos no Brasil o recrudescimento dos conflitos ambientais e da utilização de práticas genocidas e colonialistas contra povos indígenas e quilombolas, entre outros povos tradicionais. Uma crise que lança sobre os povos racializados o ônus da falência de um projeto de modernidade que não cumpriu suas promessas de desenvolvimento e que segue se traduzindo em espoliação, desterritorialização, precarização do trabalho, crescimento da violência e da fome. Nesse contexto, compreendemos que é urgente possibilitar a emergência de práxis científicas e acadêmicas insurgentes.

Reconhecemos potências no campo da saúde coletiva para contribuir com esse debate, uma vez que ele possibilita o entrelaçamento de várias áreas de conhecimento em uma teia ampla e complexa dos sentidos de produção da saúde. Sabemos que ainda há muito a aprender com as vozes historicamente silenciadas ao reconhecer que seus modos de viver e produzir saúde nos informam sobre suas resistências e alimentam novos paradigmas, tais como a agroecologia, que são sementes de um processo coletivo de criação de futuros desejáveis e possíveis.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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    Funtowicz S, Ravetz J. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. Hist. cienc. saúde-Manguinhos. 1997 [acesso em 2021 maio 11]; 4(2):219-230. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59701997000200002
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    12 Nov 2021
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