O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio

The pandemic nature of agribusiness’ socio-environmental and sanitary disasters

Wanderlei Antonio Pignati Mariana Rosa Soares Marcia Leopoldina Montanari Corrêa Luís Henrique da Costa Leão Sobre os autores

RESUMO

O processo de produção do agronegócio químico-dependente é um dos maiores geradores de riscos, desastres socioambientais e sanitários de caráter pandêmico. Ele atua na determinação social da saúde-doença-danos ambientais, levando a situações críticas, riscos e vulnerabilidades, exploração humana, intoxicações agudas e crônicas e degradações ecológicas como efeitos de suas formas danosas de estabelecer inter-relações entre produção-ambiente-sociedade. O setor tem contribuído diretamente para a crise ecológica e sanitária globalizada ao dar origem a sindemias, insegurança alimentar, contaminação das águas, alimentos além de produzir doenças infecciosas novas e/ou reemergentes. Neste ensaio crítico, com base nos estudos do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da Universidade Federal de Mato Grosso, demonstram-se diferentes elementos ameaçadores, destrutivos, degradantes e violadores do direito à saúde dos trabalhadores e ambiental nos principais elos da cadeia produtiva do agronegócio. Em seguida, utilizando também análises de documentos públicos, normativas do Estado e dados de sistemas de vigilância em saúde, evidenciam-se os processos de contaminação de alimentos e água decorrentes dos agrotóxicos, bem como apresenta-se uma crítica às tendências políticas que giram em torno do agronegócio. Por fim, destaca-se a necessidade premente de uma transição agroecológica enquanto resposta às doenças e às sindemias do agronegócio.

PALAVRAS-CHAVES
Agronegócio; Pandemia; Poluição ambiental; Agrotóxico

ABSTRACT

The production process of the chemical-dependent agribusiness is one of the largest generators of risk, socio-environmental, and sanitary disasters of a pandemic nature. It acts on the social determination of health-disease-environmental damages, leading to critical situations, risks and vulnerabilities, human exploitation, acute and chronic poisoning, and ecological degradations as the effects of their harm to establish interrelations between production-environment-society. The sector has contributed directly to the globalized ecological and sanitary crisis by giving rise to syndemics, food insecurity, water and contamination, besides producing new and/or reemergious infectious diseases. In this critical essay, based on the studies of the Nucleus for Environmental Studies and Workers Health of the Federal University of Mato Grosso, different elements that are menacing, destructive, degrading, and violators of workers’ right to health and environmental health are demonstrated in the main links in the production chain of agribusiness. Next, using public document analyses, state regulations, and data from health surveillance systems, the processes of food and water contamination arising from agrochemicals are exposed, as well as a criticism of the political tendencies that revolves around agribusiness. Finally, we highlight the pressing need of an agroecological transition as a response to the diseases and syndemics of agribusiness.

KEYWORDS
Agribusiness; Pandemics; Environmental pollution; Agrochemicals

Introdução

As cadeias produtivas globais do mercado internacional neoliberal têm influência direta no processo de produção social de doenças e emergências sanitárias devido ao fluxo de materiais, serviços, produtos e pessoas que causam impactos ambientais, dominação cultural, controle de territórios e de fontes naturais (água, ar, solo, minérios etc.), imigração forçada, formas contemporâneas de escravidão, privatizações econômicas e processos de pauperização de populações, criando desequilíbrios ecológicos-sociossanitário e pandemias11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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,22 Smith JM. Riscos documentados dos alimentos transgênicos sobre a saúde. São Paulo: João de Barro Editora; 2009.,33 Altieri M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Expressão Popular; 2012.,44 Leão LHC. Nas trilhas das cadeias produtivas. Uma política integradora em saúde, trabalho e ambiente. Curitiba: Appris; 2015.,55 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; 2017.,66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.,77 Hess SC. Ensaios sobre poluição e doenças no Brasil. São Paulo: Outras Expressões; 2018.,88 Pignatti MG. Saúde e ambiente: as doenças emergentes no Brasil. Amb. Soc. 2004; VII(1):133-147.,99 Boechat CA. A produção social de doenças e de crises. Le monde Diplomatique. 2020. [acesso em 2020 mar 25]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-producao-social-de-doencas-e-de-crises/.
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. Duas grandes cadeias produtoras de commodities são responsáveis pelos maiores danos ambientais, impactos na saúde humana e injustiça fiscal, ou seja, a do agronegócio e a da mineração11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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,1010 Friedrich K, Gurgel AM, Bedor CNG, et al. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19? Estocolmo: IPEN; 2021. v. 1.
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O atual estágio da agricultura moderna, imerso em um modelo produtivo químico- -dependente, pode ser considerado um dos polos geradores de graves situações para a saúde dos trabalhadores, do ambiente e das populações. De fato, na contemporaneidade, existe uma permanente produção de pandemias e desastres socioambientais que são derivados do modelo de produção-consumo do capitalismo globalizado e têm impactos de dimensão, extensão e gravidade como o processo produtivo do agronegócio quando consideramos toda sua cadeia, que vai desde desmatamento, indústria da madeira, pecuária, agricultura, transporte e agroindústria11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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,1010 Friedrich K, Gurgel AM, Bedor CNG, et al. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19? Estocolmo: IPEN; 2021. v. 1.,1111 Breilh J. SARS-CoV2: rompiendo el cerco de la ciencia del poder Escenario de asedio de la vida, los pueblos y la ciência. In: Alzueta ER. Posnormales. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio); 2020. p. 31-90.
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Esse setor, que, hegemonicamente, organiza- se em monoculturas com uso de grandes extensões de terra, recebendo apoio, isenções e incentivos de governos e aparatos do Estado, além de desmatar florestas, faz uso de modernas máquinas agrícolas com intensa utilização de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes transgênicas, aumentando a exposição aos riscos e, consequentemente, produzindo severos danos ao ambiente e à saúde física e mental dos trabalhadores e populações11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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,1010 Friedrich K, Gurgel AM, Bedor CNG, et al. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19? Estocolmo: IPEN; 2021. v. 1.,1111 Breilh J. SARS-CoV2: rompiendo el cerco de la ciencia del poder Escenario de asedio de la vida, los pueblos y la ciência. In: Alzueta ER. Posnormales. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio); 2020. p. 31-90.,1212 Ferreira MJM, Junior MMV, Pontes AGV, et al. Gestão e uso dos recursos hídricos e a expansão do agronegócio: água para quê e para quem? Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(3):743-752.,1313 Thomaz Junior A, Leão LHC, Pignati WA. Trabalho rural, degradação ambiental e contaminação por agrotóxicos. In: Navarro VL, Lourenço EAS, organizadores. O avesso do trabalho IV. Terceirização, precarização e adoecimento no trabalho. São Paulo: Outras Expressões; 2017. v. 1, p. 393-414.
. Trata-se de um modelo de produção que interliga esferas políticas, sociais, ecológicas, econômicas e sanitárias impulsionado pela chamada ‘Revolução Verde’, a partir da década de 1950, e da modernização da agricultura, que segue sua marcha em renovadas alianças entre capital e biotecnologias11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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,22 Smith JM. Riscos documentados dos alimentos transgênicos sobre a saúde. São Paulo: João de Barro Editora; 2009.,33 Altieri M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Expressão Popular; 2012.,44 Leão LHC. Nas trilhas das cadeias produtivas. Uma política integradora em saúde, trabalho e ambiente. Curitiba: Appris; 2015.,55 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA, organizadores. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; 2017.,66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.,77 Hess SC. Ensaios sobre poluição e doenças no Brasil. São Paulo: Outras Expressões; 2018.
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O agronegócio, como descrito acima, contribui diretamente para a crise ecológica e sanitária globalizada, posto que a produção de commodities tem mantido uma iníqua distribuição e processos violentos de expropriação da terra, exploração de recursos naturais e da força de trabalho humana, acesso desigual à água e fortes pressões sobre populações tradicionais e originárias, desrespeito às tradições e culturas, como indígenas, quilombolas, agricultores familiares, camponeses, assentados, trabalhadores imigrantes, entre outros1414 Oliveira LK, Pignati W, Pignatti MG, et al. Processo sócio-sanitário-ambiental da poluição por agrotóxicos na bacia dos rios Juruena, Tapajós e Amazonas em Mato Grosso, Brasil. Rev. Saúde e Sociedade. 2018; 27(2):573-587.,1515 Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadores. Tramas para a justiça ambiental: diálogos de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018..

Nesse cenário, buscamos evidenciar que o problema do agronegócio se apresenta como relevante e urgente por ser um dos maiores geradores de situações de risco e desastres socioambientais e sanitários de caráter pandêmico88 Pignatti MG. Saúde e ambiente: as doenças emergentes no Brasil. Amb. Soc. 2004; VII(1):133-147.,99 Boechat CA. A produção social de doenças e de crises. Le monde Diplomatique. 2020. [acesso em 2020 mar 25]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-producao-social-de-doencas-e-de-crises/.
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,1010 Friedrich K, Gurgel AM, Bedor CNG, et al. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19? Estocolmo: IPEN; 2021. v. 1.,1111 Breilh J. SARS-CoV2: rompiendo el cerco de la ciencia del poder Escenario de asedio de la vida, los pueblos y la ciência. In: Alzueta ER. Posnormales. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio); 2020. p. 31-90.,1212 Ferreira MJM, Junior MMV, Pontes AGV, et al. Gestão e uso dos recursos hídricos e a expansão do agronegócio: água para quê e para quem? Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(3):743-752.,1313 Thomaz Junior A, Leão LHC, Pignati WA. Trabalho rural, degradação ambiental e contaminação por agrotóxicos. In: Navarro VL, Lourenço EAS, organizadores. O avesso do trabalho IV. Terceirização, precarização e adoecimento no trabalho. São Paulo: Outras Expressões; 2017. v. 1, p. 393-414.,1414 Oliveira LK, Pignati W, Pignatti MG, et al. Processo sócio-sanitário-ambiental da poluição por agrotóxicos na bacia dos rios Juruena, Tapajós e Amazonas em Mato Grosso, Brasil. Rev. Saúde e Sociedade. 2018; 27(2):573-587.,1515 Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadores. Tramas para a justiça ambiental: diálogos de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018.,1616 Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante; 2020.
. Com esse objetivo, desenvolvemos este ensaio crítico, compreendendo que o processo de produção do agronegócio atua na determinação social da saúde-doença-danos ambientais e que seus problemas não se configuram como situações isoladas, pontuais, naturais e estáticas da produção agrícola. Ao contrário, trata-se de uma questão histórico- -crítica relativa a um processo de desenvolvimento de situações de riscos, vulnerabilidades, acidentes e danos ambientais como efeitos cumulativos das formas agressivas de inter- -relações humanas com a natureza.

Essas situações estão na origem de muitas formas de adoecimento e morte das populações, dos desiquilíbrios ambientais, sociais e sanitários que dão origem às mais diversas pandemias, sejam elas dos desastres ambientais, insegurança alimentar, fome, acidentes de trabalho, contaminação das águas e dos alimentos e várias doenças infecciosas novas e reemergentes, como malária, febre amarela, síndromes respiratórias agudas graves (SAR’s), peste suína e Covid-19. Por isso, essas degradações ambientais, fragilizações sociais, condições agudas e crônicas, que ocorrem em interação, podem ser classificadas como contínuas sindemias. Por sindemia, compreende-se justamente a ocorrência simultânea de duas ou mais doenças que interagem umas com as outras e determinadas pelas mesmas bases sociais1717 The Lancet. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet Commissions. 2019 jan 27..

Assim, de modo específico, para fundamentar a argumentação deste ensaio crítico, tomamos como base as produções científicas do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que, ao longo de duas décadas, constituiu-se uma instância articuladora de uma ciência crítica sobre as relações saúde-trabalho-ambiente no contexto do agronegócio em Mato Grosso. Esse grupo interdisciplinar, engajado no compromisso com a produção de conhecimento e a transformação social, desenvolveu métodos de produção e saber-ação em saúde coletiva que consideram a integração dos diferentes aspectos da complexidade dos impactos ambientais, sociais, econômicos e sanitários do agronegócio, bem como variados instrumentos metodológicos, conectando planejamento, ciências sociais e epidemiologia crítica, com participação comunitária, intersetorial e perspectiva dialógica dos sujeitos e dos grupos sociais dos territórios afetados1818 Pignati WA, organizador. Desastres sócio-sanitário- -ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil. São Paulo: Editora Expressão Popular; 2021..

Lançamos mão ainda de publicações mais recentes que analisam o agronegócio e sua relação com a pandemia de Covid-19. Assim, fazemos uma breve descrição dos principais elos da cadeia do agronegócio para elencar aspectos ameaçadores, destrutivos, degradantes e violadores do direito à saúde dos trabalhadores e ambiental. Em seguida, concentramo-nos em delinear a degradação de duas das principais fontes de energia, saúde e vida humana e natural: alimentos e água. Para isso, além de pesquisas do Neast, fizemos uso de análises de documentos públicos, normativas do Estado e dados secundários de sistemas de vigilância do Ministério da Saúde (MS), que nos fornecem elementos para vislumbrar as tendências políticas que giram em torno do agronegócio. Por fim, chamamos atenção para a urgente necessidade de uma transição agroecológica como uma resposta às doenças e sindemias do agronegócio, capaz de apontar caminhos reais de superação das atuais condições de produção social das sindemias desse modelo de produção agropecuária.

Aspectos da cadeia destrutiva do agronegócio

No Brasil, existe uma forte tendência em setores da sociedade para apresentar a cadeia produtiva do agronegócio como o melhor negócio para o País. Essa prática discursiva ressalta que esse setor tem alta incorporação tecnológica e produtos de qualidade, aquece negócios em setores relacionados (serviços, equipamentos e insumos agrícolas), aumenta o Produto Interno Bruto (PIB) e salva economia das suas crises. De fato, o Brasil é um dos maiores produtores agropecuários do mundo e o segundo maior exportador de commodities , mas a que custos social e ambiental?66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.,1414 Oliveira LK, Pignati W, Pignatti MG, et al. Processo sócio-sanitário-ambiental da poluição por agrotóxicos na bacia dos rios Juruena, Tapajós e Amazonas em Mato Grosso, Brasil. Rev. Saúde e Sociedade. 2018; 27(2):573-587.,1515 Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadores. Tramas para a justiça ambiental: diálogos de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza: Edições UFC; 2018.,1616 Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante; 2020..

Toda essa pujança econômica se assenta em um padrão de produção agropecuário químico- -dependente (sementes transgênicas, agrotóxicos, fertilizantes químicos, ração animal e conservantes químicos de alimentos) resultado de alianças do capital internacional, grandes corporações com as oligarquias nacionais e grupos que atuam dentro das instâncias de poder no Estado, fortalecendo o latifúndio e reatualizando opressões em um acordo tácito, um verdadeiro pacto genocida.

A análise integrada em saúde-trabalho-ambiente feita por Pignati11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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traz uma exposição clara do que está por trás do agronegócio como mostra a figura 1 , que evidencia os impactos na saúde dos trabalhadores, agravos na população e danos ambientais em todos os elos dessa cadeia produtiva.

Figura 1
Etapas do processo produtivo do agronegócio e seus impactos na saúde do trabalhador, na população e no ambiente

O que se ressalta nessa figura é que as atividades de cada elo da produção agropecuária geram riscos e agravos, como desmatamentos, poluições, acidentes de trabalho, mutilações, sequelas, intoxicações, doenças crônicas e contaminações humana e ambiental. Esses acidentes e agravos são um dos problemas de maior relevância para a saúde do(a) trabalhador(a), da população e do ambiente no Brasil e no mundo em um processo pandêmico no qual a produção agropecuária se faz em monoculturas extensivas, como Argentina, Estados Unidos da América, Índia e China.

As etapas e os elos dessa extensa cadeia do agronegócio podem ser sequenciais como descritas na figura 1 ou acontecerem ao mesmo tempo, dependendo do território, tempo de desmate, plantio e clima. Os dois primeiros elos dessa cadeia andam juntos, ou seja, desmata- -se e utilizam-se as madeiras nobres para as indústrias madeireiras, tornando o Brasil o maior produtor de madeiras do mundo e o maior desflorestador com as consequentes queimadas dos ‘restos’ desflorestados, para depois se plantarem pastagens para o gado bovino ou soja, milho, algodão e cana naquele processo de monoculturas descritos acima. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pelo projeto Prodes, o desmatamento na Amazônia Legal aumentou em 17% nos últimos três anos, principalmente nos estados do ‘Arco do Desmatamento’ e na região do Agronegócio no Matopiba (Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia)1919 Moraes RF. Agrotóxicos no Brasil: padrões de uso, política da regulação e prevenção da captura regulatória. Texto do IPEA. Brasília, DF: Editora IPEA; 2019. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9371/1/td_2506.pdf.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
,2020 Companhia Nacional de Abastecimento. Acompanhamento da safra brasileira de grãos. Observatório agrícola. Volume VII, safra 2019/20, n. 11. Brasília, DF: Editora CONAB; 2020. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info--agro/safras/graos/boletim-da-safra-de-graos.
https://www.conab.gov.br/info--agro/safr...
,2121 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite. 2020. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes.
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Estudos de Pignati e Machado2222 Pignati WA, Machado JMH. Riscos e agravos à saúde e à vida dos trabalhadores das indústrias madeireiras de Mato Grosso. Ciênc. Saúde Colet. 2005; 10(4):961-973. indicaram que os trabalhadores nesses dois elos produtivos tornaram o Brasil campeão mundial de mutilados e sequelados por acidente de trabalho na década de 2000. Esses estudos mostraram que existiam, em Mato Grosso, 1.749 indústrias madeireiras e, a partir de dados levantados em Mapas de Riscos, 999 madeireiras, em que laboravam 21.607 trabalhadores e se examinaram clinicamente 4.381, dos quais 11% estavam mutilados, 25% sequelados, 21% hipertensos, 3% com malária e leishmaniose e 20% viviam sob assédio nos alojamentos dos patrões.

O estado de Mato Grosso, atualmente, campeão nacional de produção de madeira, soja, milho, algodão e gado bovino, também é campeão nacional de incidência de acidentes e mortes no trabalho – dos quais 70% estão relacionados com o agronegócio (agropecuária, frigoríficos, usinas de açúcar/ álcool, madeireiras e transporte/silagem), e as maiores incidências estão nas regiões de maior produção agropecuária e madeira11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
,2323 Brasil. Ministério da Economia e Trabalho. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT. Base de dados – estatísticas sobre acidente do trabalho. Previdência Social – 2008 a 2017. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://www3.dataprev.gov.br/aeat/.
http://www3.dataprev.gov.br/aeat/...
,2424 Fava NR. Relação dos acidentes do trabalho com o agronegócio em Mato Grosso e no Brasil, 2008 a 2017. [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde, Universidade Federal do Mato Grosso; 2020.
. No momento presente, no estado, existem 536 indústrias da madeira, e as restantes migraram para os estados de Rondônia, Amazonas, Piauí, Tocantins, Pará e Maranhão e para os países fronteiriços, como Paraguai e Bolívia, para continuarem com o ato de destruição e transformação da floresta em madeira e monoculturas.

O elo da cadeia produtiva da pecuária é a frente do agronegócio após o desmatamento, e demostra efeitos danosos e até irreversíveis ao meio ambiente (desmatamento, desertificação do solo, gás estufa e queimadas), além do uso intensivo de agrotóxicos nas pastagens, aplicação de inseticidas diretamente nos animais, além dos 15.500 litros de água para a produção de 200 kg de carne bovina2525 Silva VPR, Aleixo DO, Dantas Neto J, et al. Uma medida de sustentabilidade ambiental: Pegada hídrica. Rev. Bras. Eng. Agríc. Amb. 2013; 17(1):100-105.. Aliada a esse processo, existe ainda a produção de suínos e aves que são confinados adensadamente em granjas, consomem ração baseada em soja e milho, ambos transgênicos e com resíduos de agrotóxicos, outros produtos químicos (vitaminas químicas e antibióticos) e derivados de gorduras, penas e carcaças ósseas dos animais abatidos. Além disso, esse modo de produção de animais em larga escala pode gerar um processo de contaminação química e biológica entre os animais e destes para o ser humano, como intoxicações crônicas, no caso de consumo de animais com resíduos de produtos químicos, e zoonose, para casos de doenças infecciosas.

Esse processo produtivo químico-dependente nas pastagens de bovinos e granjas de suínos e aves é um dos fatores de contaminação de alimentos, bem como de produção de ‘super’ bactérias, ‘super’ vírus e ‘super’ fungos, incluindo a Peste Suína, os SAR’s e o coronavírus da atual pandemia. As interações sociais, químicas e biológicas, decorrentes das modificações da natureza, em conjunto com esse processo químico, produzem outro ambiente no qual alguns desses microrganismos ‘modificados’ são infectantes e nocivos para os animais, inclusive os humanos. Estes têm suas imunidades precarizadas por vários fatores, dentre os quais se destaca o consumo de alimentos transgênicos e com resíduos de agrotóxicos imunodepressores, desreguladores endócrinos e cancerígenos22 Smith JM. Riscos documentados dos alimentos transgênicos sobre a saúde. São Paulo: João de Barro Editora; 2009.,2626 Mostafalou S, Abdollahi M. Pesticides: an update of human exposure and toxicity. Arch Toxicol. 2017; 91(2):549-599..

Nesse elo, o setor dos frigoríficos é o de maior rotatividade no trabalho e de grande incidência de acidentes ocupacionais do País, aparecendo em segundo lugar depois das indústrias urbanas; inclusive, aí se localizam as maiores causas de assédio laboral, Dort, doenças mentais e o novo coronavírus1616 Wallace R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante; 2020.,2222 Pignati WA, Machado JMH. Riscos e agravos à saúde e à vida dos trabalhadores das indústrias madeireiras de Mato Grosso. Ciênc. Saúde Colet. 2005; 10(4):961-973.,2424 Fava NR. Relação dos acidentes do trabalho com o agronegócio em Mato Grosso e no Brasil, 2008 a 2017. [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde, Universidade Federal do Mato Grosso; 2020.,2727 Vasconcellos MC, Pignatti MG, Pignati WA. Emprego e acidentes de trabalho na indústria frigorífica em áreas de expansão do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde soc. 2009; 18(4): 662-672.,2828 Oliveira PAB, Mendes JMR. Processo de trabalho e condições de trabalho em frigoríficos de aves: relato de uma experiência de vigilância em saúde do trabalhador. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(12):4627-4635.. O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de couro bovino curtido do mundo, mas os curtumes também são grandes poluidores de águas, pois utilizam em seu processo grandes volumes de ácido sulfúrico e metais pesados, descartados nos seus efluentes maltratados que vão para os rios.

O elo e as etapas da agricultura, em que se concentram os maiores problemas ambientais, ocupacionais e impactos na saúde humana e animal, também são o mais defendido pelo agronegócio, que costuma deslegitimar pesquisadores e fazer propaganda na grande mídia como ‘salvador da pátria’ e ‘agro é tudo’. Essas narrativas de defesa desse tipo de agropecuária se estruturam e ocupam lugares estratégicos desde os campos políticos em bancadas suprapartidárias de defesa desse modelo até o campo cultural, a partir das campanhas midiáticas que forjam o agronegócio como única e irrepreensível alternativa possível para a produção de alimentos e desenvolvimento econômico do País. Também, ele tem sido defendido pelo governo federal e pela maioria dos governos estaduais e municipais, em que eles representam as corporações do capital. Além disso, a maioria dos legisladores (deputados federais e estaduais, senadores e vereadores) defendem esse modelo e estão intimamente ligados ao agronegócio e/ou às indústrias de agrotóxicos, fertilizantes, máquinas agrícolas e indústria de armas para ‘defender’ a propriedade da terra.

Em 2018, por exemplo, o Brasil plantou 75,6 milhões de hectares de lavouras em 21 dos maiores tipos de cultivos, nos quais foram pulverizados um total de 1,2 bilhão de litros de agrotóxicos (produtos formulados de herbicidas, inseticidas e fungicidas) e usados 7 bilhões de quilogramas de fertilizantes químicos. Desses agrotóxicos, 15% eram extremamente tóxicos; 25%, altamente tóxicos; 35%, medianamente tóxicos; e 25% são pouco tóxicos na classificação de toxicidade aguda para humanos. Esse total de área plantada do Brasil estava concentrado em monoculturas de soja (42%), de milho (21%) e de cana-de- -açúcar (13%), que juntas representaram 82% de todo o consumo de agrotóxicos do País66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.. A maioria desses tóxicos são proibidos na União Europeia (UE) e liberados no Brasil por pressão do agronegócio, das indústrias e seus aliados, contando com a submissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aos interesses econômicos do lucro em detrimento da saúde humana e ambiental2929 Bombardi LM. Geografia do uso dos agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: Editora da FFLCH da USP; 2017.,3030 Soares MR. Indicadores de saúde materno e infanto- juvenil associado ao uso de agrotóxicos no Mato Grosso. [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Mato Grosso; 2020. e da soberania e segurança alimentar do País3131 Corrêa MLM, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Alimento ou mercadoria? Indicadores de autossuficiência alimentar em territórios do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde debate. 2019; 43(123):1070-1083..

Esses dados também indicam que o ‘desenvolvimento’ desse setor econômico está pautado no envenenamento químico, acordo tácito e o pacto genocida que mencionamos acima. Ele é eticamente injusto, socialmente prejudicial, ambientalmente insustentável e extremamente adoecedor porque produz vítimas, degradações e ameaças permanentes às formas de vida de diferentes populações humanas, animais e vegetais no Brasil e em países com processos produtivos do agronegócio semelhantes ao citado, em uma verdadeira pandemia.

A exposição aos agrotóxicos agrícolas, em graus diferenciados de toxidade, se dá de modo ocupacional e ambiental, por meio de pulverizações aéreas, mecanizadas e costais, e está presente em todos os elos da cadeia produtiva do agronegócio, deixando resíduos nas águas, no solo e no processo agroindustrial de alimentos. Cada brasileiro está exposto a 6 litros de agrotóxicos por ano, isto se dá quando somamos as exposições ocupacionais, ambientais por residir próximo das pulverizações e dos seus resíduos presentes nos alimentos, água, ar, chuva, solo e leite materno da população brasileira, 210 milhões de habitantes e sua relação com o total de agrotóxicos pulverizados nas lavouras no ano de 2018, ou seja, 1,2 bilhão de litros de produto formulado, tendo como base a metodologia desenvolvida por Pignati et al.66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293..

Os agricultores, principalmente os grandes, pulverizam ou contaminam intencionalmente o ambiente ocupacional e todo o ambiente geral das lavouras para atingir o alvo (insetos, fungos ou ervas daninhas); e atingem também, deixando resíduos, os cereais (soja, milho, feijão, arroz etc.), as fibras de algodão, o fumo, a cana-de-açúcar, o solo, o ar e as águas superficiais e subterrâneas, processo esse com evidente caráter de crime doloso e pandêmico11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
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. O acúmulo de produtos tóxicos lançados ao longo dos anos e o aumento da emergência de fungos, bactérias e doenças vegetais resistentes que se proliferam anualmente indicam um ciclo vicioso cujas dimensões longitudinais evidenciam o desastre e a insustentabilidade ambiental dessas práticas. O problema dos agrotóxicos dessa agricultura mecanizada revela a sua incompatibilidade com a criação de espaços socioambientais sustentáveis e sociedades mais saudáveis.

Destaca-se ainda que existe um forte negacionismo por parte de setores da sociedade quanto aos riscos e agravos relacionados com os agrotóxicos. Entretanto, os estudos trazem evidências científicas suficientes sobre a associação entre exposições ocupacional, ambiental e alimentar de intoxicações agudas e crônicas provocadas por esses venenos agrícolas. Em uma revisão sistemática relativa às pesquisas sobre agrotóxicos e efeitos na saúde humana no mundo dos últimos 20 anos, foram encontrados 7.419 estudos; destes, detalharam-se 448 com estudos epidemiológicos de correlação estatística positiva, dos quais 243 evidenciaram os canceres, 58 sobre neurotoxidade, 33 sobre pneumotoxidade, 45 sobre embriotoxicidade, 31 sobre toxicidade para o desenvolvimento físico e mental e 38 estudos sobre desreguladores endócrinos2121 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite. 2020. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes.
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. Além disso, recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da Internacional Agency for Research on Cancer (Iarc)2727 Vasconcellos MC, Pignatti MG, Pignati WA. Emprego e acidentes de trabalho na indústria frigorífica em áreas de expansão do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde soc. 2009; 18(4): 662-672., fez uma revisão de dez agrotóxicos mais utilizados no mundo, entre eles, o herbicida Glifosato (Roundoup, Mata-mato ou Glifosato genérico), e concluiu que esse tóxico, o mais usado no mundo e que representa 40% de todos os pesticidas, é provável cancerígeno para humanos, classificado no nível 2A em uma escala que vai de 1 (certamente cancerígeno) a 4 (não cancerígeno). Os pesquisadores da OMS que elaboraram esse estudo recebem pressões das indústrias e do agronegócio, em nível mundial, para rever os estudos enquanto a UE deu prazo até 2022 para também bani-lo de uso, juntamente com dezenas já proibidos nos seus países.

Em outras palavras, podemos afirmar que os agrotóxicos causam doenças agudas de intoxicações leves e graves e que podem levar a óbito (gastrointestinais, dérmicos, hepáticos, renais, neurológicos, pulmonares e déficit imunológico) e a doenças crônicas, como cânceres infantojuvenis, alterações do sistema reprodutor, neuropatias (surdez, diminuição da força muscular, paralisias e doença de Parkinson), psiquiátricos (depressão, distúrbios cognitivos, autismo), desreguladores endócrinos (diabetes, hipotiroidismo, infertilidade, abortos), teratogênicos (anencefalia, malformações), mutagênicos (defeitos no DNA), carcinogênicos (mama, ovário, próstata, testículo, esôfago etc.) e imunodepressores66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293.,2525 Silva VPR, Aleixo DO, Dantas Neto J, et al. Uma medida de sustentabilidade ambiental: Pegada hídrica. Rev. Bras. Eng. Agríc. Amb. 2013; 17(1):100-105.,3030 Soares MR. Indicadores de saúde materno e infanto- juvenil associado ao uso de agrotóxicos no Mato Grosso. [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Mato Grosso; 2020.,3232 Internacional Agency for Research on Cancer. Carcinogenicity of tetrachlorvinphos, parathion, malathion, diazinon, and glyphosate. IARC Monographs v. 112; Mar/2015. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1016/S1470-2045(15)70134-8.
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,3333 Carneiro FF, Augusto LGS, Rigotto RM, organizadores. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular; 2015.
.

Pesquisas do Neast da UFMT66 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(10):3281-3293. vêm utilizando perspectivas teórico-metodológicas críticas de abordagens integradas com geoprocessamento e concluem que, nas regiões de maior produção agrícola dentro dos estados brasileiros (MT, MS, GO, PR, RG, SP e TO) das culturas somadas de soja, milho, cana, algodão, arroz, feijão, fumo e café e de seus volumes de agrotóxicos usados nessas lavouras, existe uma correlação positiva com as incidências de intoxicações agudas, mortes por intoxicações, cânceres infantojuvenis, malformações fetais, abortos e suicídios. Esses dados e conclusões são corroborados por diversos estudos na literatura científica2929 Bombardi LM. Geografia do uso dos agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: Editora da FFLCH da USP; 2017.,3030 Soares MR. Indicadores de saúde materno e infanto- juvenil associado ao uso de agrotóxicos no Mato Grosso. [dissertação]. Cuiabá: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Mato Grosso; 2020.,3434 Cameron S, Riordan V. Rurality and Suicide. In: O’connor RC, Platt S, Gordon J, organizadores. International Handbook of Suicide Prevention: Research, Policy and Practice. Chichester: John Wiley & Sons; 2011. p. 253-273.,3535 Rigotto RM, Silva AMC, Ferreira MJM, et al. Trends of chronic health effects associated to pesticide use in fruit farming regions in the state of Ceará, Brazil. Rev Bras. Epidem. 2013; 16(3):763-773.,3636 Curvo HRM, Pignati WA, Pignatti MG. Morbimortalidade por câncer infanto-juvenil associada ao uso agrícola de agrotóxicos no Estado de MT-Brasil. Cad. saúde colet. 2013; 21(1):10-17.,3737 Faria NMX, Fassa AG, Meucci RD. Association between pesticide exposure and suicide rates in Brazil. NeuroToxicology. 2014; (45):355-362.,3838 Oliveira NP, Moi GP, Santos MA, et al. Malformações congênitas em municípios de grande utilização de agrotóxicos em Mato Grosso, Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(10):4123-4130.,3939 Silva JF, Silva AMC, Luz LL, et al. Correlação entre produção agrícola, variáveis clínicas-demográficas e câncer de próstata: um estudo ecológico. Ciênc. Saúde Colet. 2015; 20(9):2805-2812.,4040 Dutra LS, Ferreira AP. Associação entre malformações congênitas e a utilização de agrotóxicos em monoculturas no Paraná, Brasil. Saúde debate. 2017; 41(52):241-253.,4141 Costa VIB, Mello MSC, Friedrich K. Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin. Saúde debate. 2017; 41(112): 49-62..

Agronegócio e a contaminação da nossa água e dos nossos alimentos

Atualmente, os maiores fatores de indução de doenças crônicas citadas no item anterior são as contaminações ocupacionais, ambientais, alimentar e das águas (potável, rios e chuva) por produtos químicos usados nos diversos processos produtivos urbanos e rurais, entre eles, os usados pelo agronegócio como vimos anteriormente.

Quando observamos os dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua)4242 Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para consumo humano. Relatórios de análises das amostras de água para consumo humano do período de 2014 a 2017. Brasília, DF: MS; SVS; SIAGUA; 2019. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://dados.gov.br/dataset?q=sisagua.
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do MS, foi verificado que, dos 5.570 municípios, 1.302 fizeram análises dos componentes de contaminação química da água potável no período de 2014 a 2017; e notou-se que 22% deles apresentaram resíduos de agrotóxicos acima do Limite Máximo de Resíduos (LMR) permitido pela Norma Legal Brasileira ou Portaria do MS nº 2.914/20114343 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2914 de 2011. Dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade e seus Anexos. Diário Oficial da União. 13 Dez 2011. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2914_12_12_2011.html.
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, que 53% deles continham amostras abaixo do LMR e que 25% dos municípios apresentaram ausência de resíduos nas amostras coletadas. Essas informações devem levar a uma crítica radical desse uso do conceito de ‘potabilidade’ da água – até porque a norma acima prevê análises semestrais de amostras de água potável de 27 tipos de agrotóxicos (glifosato, 2.4.D, piretróides e outros), 15 metais pesados (chumbo, mercúrio, cobre e outros), 15 solventes (benzeno, tolueno e outros) e 7 desinfetantes domésticos (derivados do sabão, detergentes, ceras e outros). Para exemplificar o risco, ela prevê que, em 1 litro d’água potável, poderemos ter 500 microgramas de Glifosato ou 30 microgramas de 2.4-D como LMR, mas na UE4444 União Europeia. Diretiva nº 98/83 de Norma de qualidade de água destinada ao consumo humano. Jornal Oficial das Comunidades Europeias. 1998 maio 5., sua norma/diretiva prevê um LMR de 0,1 microgramas para ambos os agrotóxicos com um máximo de 5 agrotóxicos e naqueles mínimos LMR em 1 litro d’água potável, enquanto no Brasil são permitidos 27 tipos de agrotóxicos em 1 litro, com valores elevados de LMR2525 Silva VPR, Aleixo DO, Dantas Neto J, et al. Uma medida de sustentabilidade ambiental: Pegada hídrica. Rev. Bras. Eng. Agríc. Amb. 2013; 17(1):100-105.. É preciso chamar a atenção para o componente étnico-racial e a colonização química que se revelam nesse cenário. Afinal, a população do sul global é ‘mais forte’ e suporta mais venenos na água potável? As instituições e os órgãos reguladores como MS e Anvisa estariam subjugados? Quais as razões dessas diferenças entre sistemas de vigilância europeus e brasileiros na proteção da saúde?

Da mesma maneira, quando observamos os dados de contaminação química dos alimentos que vão para nossas mesas e se observarmos apenas o componente agrotóxicos no Sistema de Vigilância Sanitária de Alimentos, verificaremos que, no Programa Nacional de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) do MS4545 Brasil. Ministério da Saúde. Programa de análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos. Relatório das amostras analisadas no período 2017-2018. Brasília, DF: MS; ANVISA; GGTOX; 2019. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/111215/0/Relat%C3%B3rio+%E2%80%93+PARA+2017-2018_Final.pdf/e1d0c988-1e69-4054-9a31-70355109acc9.
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, das 4.616 amostras de 14 alimentos coletados em 77 cidades brasileiras (capitais e maiores) em 2017/2018, constatou- -se que 28% das amostras têm agrotóxicos abaixo do LMR, 23% têm agrotóxicos acima do LMR ou não autorizado para as culturas e/ou proibido no Brasil, e apenas 49% das amostras não apresentaram resíduos dos agrotóxicos pesquisados. Por que tantos agrotóxicos detectados em alimentos considerados saudáveis para a dieta da população? Além disso, há registro de alimentos com mais de dez tipos de agrotóxicos diferentes em uma só amostra. Cabe ressaltar que a Anvisa analisou 270 tipos de agrotóxicos diferentes, mas estão registrados no Brasil 650 ingredientes ativos desses venenos e não estão incluídos no sistema do Para a análise de carnes, leite, ovos e alimentos processados. A norma prevê que, em 1 quilograma de soja, poderemos ter até 10 miligramas de Glifosato, e no feijão, podemos ter até 8 miligramas de Malathion; enquanto na UE, sua Norma prevê um LMR de 0,05 e 0,02 miligramas respectivamente, ou seja, 200 ou 400 vezes menor que no Brasil. Isso revela compromisso com a produção de alimentos ou simplesmente de mercadorias? As indignações e as questões são as mesmas feitas para nossa água potável2929 Bombardi LM. Geografia do uso dos agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: Editora da FFLCH da USP; 2017.,3131 Corrêa MLM, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Alimento ou mercadoria? Indicadores de autossuficiência alimentar em territórios do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde debate. 2019; 43(123):1070-1083..

Em avaliações integradas e participativas de saúde-trabalho-ambiente realizadas por pesquisadores do Neast da UFMT em regiões grandes produtoras agrícolas de Mato Grosso (Rondonópolis, Sorriso, Sapezal e Canarana), constataram-se, além da insegurança alimentar, contaminações por vários agrotóxicos usados nas lavouras de soja, milho, algodão e pastagens, em dezenas de amostras de águas dos rios, lagos, chuva, ar, água potável, hortaliças, soja, milho, fibras de algodão, peixes, leite materno, sangue e urina de trabalhadores e população de vilas rurais e do entorno das cidades11 Pignati WA. Os riscos, agravos e vigilância em saúde no espaço de desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007. 114 p. [acesso em 2021 dez 9]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4567.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
,1111 Breilh J. SARS-CoV2: rompiendo el cerco de la ciencia del poder Escenario de asedio de la vida, los pueblos y la ciência. In: Alzueta ER. Posnormales. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio); 2020. p. 31-90.,3131 Corrêa MLM, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Alimento ou mercadoria? Indicadores de autossuficiência alimentar em territórios do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde debate. 2019; 43(123):1070-1083.,4646 Dos Santos L, Lourencetti C, Pinto A, et al. Validation and application of an analytical method for determining pesticides in the gas phase of ambient air. J. Env. Scienc. Health. 2011; (46):150-162.,4747 Belo MSS, Pignati WA, Dores EGC, et al. Uso de agrotóxicos na produção de soja do estado de Mato Grosso: um estudo preliminar de riscos ocupacionais e ambientais. Rev bras. saúde ocup. 2012; 37(125):78-88.,4848 Moreira JC, Peres F, Simões AC, et al. Contaminação de águas superficiais e de chuva por agrotóxicos em uma região do estado do Mato Grosso. Ciênc. Saúde Colet. 2012; 17(6):1557-1568.,4949 Palma DCA, Lourencetti C, Uecker M, et al. Simultaneous determination of different classes of pesticides in breast milk by solid-phase dispersion and GC/ECD. J. the Brazilian Chemical Soc. 2014; 25(8):1419-1430.
. Também, nos estudos realizados nas regiões do Pantanal e do Parque Indígena do Xingú, cujos principais rios, Paraguai e Xingú, abastecem de água esses territórios, verificou-se que suas nascentes estão dentro das plantações de soja, milho, algodão, pastagens e cana; e foram detectados vários agrotóxicos nas suas águas, sedimentos, peixes, tartarugas e sapos5050 Dores EF, Calheiros DF. Contaminação por agrotóxicos na bacia do rio Miranda, Pantanal (MS). Rev. Bras Agroec. 2008; 3(202):1-4.,5151 Miranda K, Cunha MLF, Dores EF, et al. Pesticide residues in river sediments from the Pantanal Wetland, Brazil; J. Envi. Scienc. Health. 2008; (43):717-722.,5252 Shelesinger S. Pantanal por inteiro, não pela metade. Soja, hidrovia e outras ameaças à integridade do Pantanal. Rio de Janeiro: Ecosystem Alliance; 2014.,5353 Pignati MT, Souza LC, Mendes RA, et al. Levels of organochlorine pesticides in Amazon turtle (Podocnemis unifilis) in the Xingu River, Brazil Journal of Environmental Science and Health. 2018; 53(12):810- 816.,5454 Lima FANS, Pignati WA, Pignatti MG. A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso. Cad. saúde colet. 2020; 28(1):1-11.,5555 Silva LNL. Concentração de agrotóxicos e efeitos em peixes na Bacia do Alto Paraguai. [dissertação]. Cáceres: Universidade do Estado de Mato Grosso; 2020.. Ainda, os estudos de pesquisadores argentinos5656 Ronco AE, Marino DJG, Abelando M, et al. Water quality of the main tributaries of the Paraná Basin: glyphosate and AMPA in surface water and bottom sediments. Environ Monit Assess. 2016; 188(458):1- 13. na foz do Rio Paraguai, que nasce em Mato Grosso, atravessa o Pantanal, o Paraguai, a Argentina e desemboca entre Buenos Aires e Montevidéu, constataram que ele vai contaminando as águas e sedimentos com os resíduos de agrotóxicos usados nas lavouras em monoculturas químico- dependentes desses países.

Cenário político atual: ‘passando a boiada’ sobre o ambiente e na vida

O que se percebe no Brasil é que, apesar dos evidentes desastres causados pelo agronegócio, nos últimos anos, na contramão da proteção da saúde, existem desregulamentações de normas ambientais e sanitárias, aumento de autorizações de desmatamentos e implantação de agropecuárias em terras indígenas, no Pantanal, no Xingú e na Amazônia.

Vemos também que incentivos à produção agrícola sustentável e à agricultura familiar (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf ) têm escasseado cada vez mais, evidenciando uma clara opção da política agrícola brasileira pela manutenção e ampliação do modelo de concentração de terras e rendas. Destaca-se que muitas das terras das regiões produtivas do agronegócio, assim como empresas que utilizam essas terras para produção de commodities agrícolas, não pertencem às famílias tradicionais de proprietários, mas a conglomerados, corporações internacionais, cujo interesse é a exploração dos recursos naturais e da terra, com legitimação política e aval institucional dos poderes políticos municipais, estaduais e nacional5757 Correa MLM, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Agrotóxicos, Saúde e Ambiente: ação estratégica e políticas públicas em territórios do agronegócio. Rev. Polít. Públi. 2020; 24(1):11-27..

Observam-se tendências à permissividade e expansão do consumo e pulverização de agrotóxicos, como o caso da Lei nº 13.301/20165858 Brasil. Lei nº 13.301, de 27 de Junho de 2016. Permite a pulverização de inseticidas em áreas urbanas para o combate do Aedes aegypti no controle da Dengue. Diário Oficial da União. 28 Jun 2016. [acesso em 2020 mar 20]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13301.htm.
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, que permite a pulverização de inseticidas em áreas urbanas para o combate do Aedes aegypti no controle da dengue. No Congresso Nacional, está o Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, o conhecido ‘pacote do veneno’, que amplia o uso de agrotóxicos no Brasil; mas, em contrapartida, alguns parlamentares apresentaram o PL nº 6.610/20165959 Friedrich K, organizador. Dossiê científico e técnico contra o Projeto de Lei do Veneno (PL 6.299/2002) e a favor do Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos – PNARA. Brasília, DF: Abrasco; 2018. denominado Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Também citamos as recentes 541 autorizações feitas pelo Mapa em 2019 e 2020, de uso de novos agrotóxicos no Brasil, sem consultar o MS e o Ibama, desrespeitando a Lei nº 7.802/896060 Brasil. Lei nº 7.802, de 11 de Julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a inspeção e a fiscalização de pesticidas, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Jun 2016. [acesso em 2020 mar 5]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/7802.htm.
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dos agrotóxicos, sendo que a maioria deles são proibidos na UE.

De igual modo, percebemos um enfraquecimento de implementação da Vigilância em Saúde Humana e Saúde Ambiental e aumento de recursos para a Vigilância Sanitária dos bovinos e da soja com recursos públicos. Emperram também as implementações da Vigilância em Saúde dos Trabalhadores, a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta6161 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.866 de 2 de Dezembro de 2011. Política Nacional Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Diário Oficial da União. 3 Dez 2011. [acesso em 2020 mar 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2866_02_12_2011.html.
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e a Vigilância em Saúde das Populações Expostas aos Agrotóxicos6262 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Diretrizes nacionais para a vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017. [acesso em 2020 mar 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_vigilancia_populacoes_expostas_agrotoxicos.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
. Recentemente, na área ambiental, a inoperância do estado brasileiro em fiscalizar e punir infratores ambientais, aliada às narrativas políticas da necessidade de enfraquecer os órgãos ambientais e o próprio sucateamento destas instituições, tem desencadeado uma série de recorrentes crimes ambientais, com destaque para o aumento das áreas de desmatamentos e queimadas, afetando imensos territórios, com perdas de biodiversidade vegetal e animal dos biomas Pantanal, Cerrado e Amazônia.

Além dos benefícios públicos ao agronegócio, já citados, existe ainda a injustiça fiscal, pois toda essa produção agropecuária não contribui com impostos devido à Lei Kandir (Lei nº 87/1996)6363 Brasil. Lei Complementar nº 87 de 13 de Setembro de 1996. Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal, isenções, e dá outras providências. (LEI KANDIR). Diário Oficial da União 14 Set 1996. [acesso em 2020 mar 5]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp87.htm.
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que exonera de impostos do ICMS e de exportação para os produtos primários da agropecuária e da mineração exportados do País. Segundo Thomaz et al.1313 Thomaz Junior A, Leão LHC, Pignati WA. Trabalho rural, degradação ambiental e contaminação por agrotóxicos. In: Navarro VL, Lourenço EAS, organizadores. O avesso do trabalho IV. Terceirização, precarização e adoecimento no trabalho. São Paulo: Outras Expressões; 2017. v. 1, p. 393-414., os estados brasileiros que dependem em mais de 60% do seu PIB do agronegócio são estados ‘pobres’ em estruturas de saúde e educação públicas e ambiente sustentável, como Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia.

Trabalhadores na luta por transição para um mundo agroecológico

As sindemias causadas pelo caráter pandêmico do agronegócio também precisam ser enfrentadas. Para isso, será preciso mudar essa agropecuária que usa, apropria-se e envenena bens coletivos e alimentos, privatiza lucros e socializa prejuízos, para um modelo promotor de vida, respeito às tradições e em redes solidárias de trabalho justo, outro modo de relação com a terra, a água etc.

As respostas necessárias às doenças do agronegócio – situações de expropriação, exploração, agravamento de condições crônicas, agudização de intoxicações e degradação dos sistemas de suporte à vida – requerem mudanças concretas nas relações sociais de produção nesses contextos vitais para o planeta, nos quais o setor atua, a exemplo dos ecossistemas amazônicos, Cerrado e Pantanal – todos esses ameaçados pelo avanço territorial do agronegócio. Os desafios são complexos porque, inclusive como reconhece a comissão do ‘The Lancet’, as cadeias produtivas do agronegócio, o uso da terra, as relações de demanda-consumo, o papel dos governos e os lucros das indústrias e as relações de poder que determinam padrões de produção de alimentos estão na raiz da atual sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas6565 Bombardi L, Fiebring I, Nepomuceno PLM. Pan-demônio e Sars-Cov-2. Le monde Diplomatique. 2020 dez 28. [acesso em 2021 jun 5]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/pan-demonio-e-sars-cov-2/.
https://diplomatique.org.br/pan-demonio-...
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É preciso citar ainda que, no caso da pandemia do novo coronavírus no Brasil, a cadeia do agronegócio manteve suas altas lucratividades ao passo que contribuiu para amplificar sindemias no País, inclusive expandindo as possibilidades de contágio. As unidades de produção agropecuária, como os frigoríficos, bem como as rotas dos fluxos e transporte de materiais e commodities dessa cadeia foram polos disseminadores do vírus. Consequentemente, para entender como o Brasil chegou ao total de 22 milhões de casos de infecção e 600 mil mortes, precisaremos dar atenção a essa importante base socioeconômica, porque, por traz do PIB nacional garantido por esse setor, existe um imenso processo de produção que influiu facilitando o agravamento das condições de possibilidade de morbimortalidade por Covid-19 no território brasileiro99 Boechat CA. A produção social de doenças e de crises. Le monde Diplomatique. 2020. [acesso em 2020 mar 25]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-producao-social-de-doencas-e-de-crises/.
https://diplomatique.org.br/a-producao-s...
,1010 Friedrich K, Gurgel AM, Bedor CNG, et al. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19? Estocolmo: IPEN; 2021. v. 1.
, sem qualquer contrapartida financeira para atenuar a fome e oferecer suporte aos serviços de saúde no contexto pandêmico. Estudos inclusive demonstram a correspondência espacial entre áreas de criação de animais e taxas de população infectada por Covid-1999 Boechat CA. A produção social de doenças e de crises. Le monde Diplomatique. 2020. [acesso em 2020 mar 25]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-producao-social-de-doencas-e-de-crises/.
https://diplomatique.org.br/a-producao-s...
,6565 Bombardi L, Fiebring I, Nepomuceno PLM. Pan-demônio e Sars-Cov-2. Le monde Diplomatique. 2020 dez 28. [acesso em 2021 jun 5]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/pan-demonio-e-sars-cov-2/.
https://diplomatique.org.br/pan-demonio-...
,6666 Paterniani S, Carvalho L. Territorializar e racializar a pandemia. [acesso em 2021 jun 5]. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/periferias--e-pandemia-desigualdades-resistencias-e-solidariedade/.
https://thetricontinental.org/pt-pt/bras...
.

Felizmente, contra esse modelo sindêmico e contra todo o desmonte das políticas e práticas de vigilâncias, existe uma pluralidade de coletivos de trabalhadores e trabalhadoras como protagonistas de transição para um mundo novo, verdadeiros protetores do bem-viver, produtores de alimentos saudáveis, cuidados com a água, com a terra e com a saúde, ou seja, os construtores da agroecologia33 Altieri M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Expressão Popular; 2012.,6464 Machado LCP. A dialética da agroecologia. São Paulo: Expressão Popular; 2014..

Considerando a saúde coletiva como campo de saberes e práticas, entendemos a necessidade da luta protagonizada dos coletivos pela mudança desse modelo de morte do agronegócio. Destacamos as ações de resistência como a luta em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da vida, de vários grupos de pesquisadores nacionais/ internacionais, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Campanha Nacional e Internacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida.

De igual modo, comunidades, trabalhadores e trabalhadoras rurais, camponeses, assentados, acampados, agricultores familiares, povos indígenas e grupos quilombolas seguem em lutas diretas no campo, com seus corpos, seus saberes e práticas, resistindo e buscando fortalecer experiências agroecológicas em diferentes lugares com produção de alimentos saudáveis e valorização da vida comunitária, da terra, da biodiversidade e das sementes crioulas.

Considerações finais

Como a saúde coletiva tem colaborado na implantação e agora na manutenção e implementação do SUS e da vigilância em saúde, desde a VIII Conferência Nacional de Saúde e elaboração da Constituição Brasileira em 1988, hoje ainda se faz necessário continuarmos essa luta pela melhoria da qualidade de vida humana, animal, vegetal e ambiental.

Também se faz imprescindível discutirmos a ampliação dessa luta para além do setor saúde, pois como vimos neste artigo, os fatores de riscos para as doenças humanas, outros animais e ambientais são determinados e/ou impostos pelo capital aliado aos governantes, que implementam um modo de desenvolvimento baseado no econômico e que será preciso que a saúde coletiva faça um movimento de vigilância desse desenvolvimento além da vigilância em saúde e ambiente6565 Bombardi L, Fiebring I, Nepomuceno PLM. Pan-demônio e Sars-Cov-2. Le monde Diplomatique. 2020 dez 28. [acesso em 2021 jun 5]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/pan-demonio-e-sars-cov-2/.
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Esta poderá ser considerada uma das lutas sociais mais emblemáticas no campo econômico e da saúde coletiva no Brasil e no mundo: as articulações dos movimentos em defesa da vida a partir da rearticulação de lutas dos movimentos comunitários e sindicais de trabalhadores e trabalhadoras.

Agradecimentos

Agradecemos ao Ministério Público do Trabalho – Procuradoria Regional do Trabalho/23ª Região pelo apoio financeiro e parceria junto ao Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast/UFMT).

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2020
  • Aceito
    13 Jul 2021
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