Direitos dos agricultores: o legado de Juliana Santilli na interface entre as relações jurídicas e a agrobiodiversidade brasileira

Naiara Andreoli Bittencourt Sobre o autor

DE BENS COMUNS A MERCADORIAS. As sementes, mudas, raízes, plantas medicinais, foram sendo ‘cercadas’ pari passu ao avanço industrial agrícola. O que era de uso comum e de conhecimento compartilhado passou a ter nome, proprietário, regras de uso e plantio, registros, cadastros, selos e, sobretudo, segurança jurídica. Circulação, troca, multiplicação de sementes como prática cultural e de sobrevivência dos povos foram paulatinamente apropriadas pelo modo de circulação de mercadorias regulado por relações jurídicas próprias.

O capitalismo requereu, para sua expansão, formas de homogeneização da agrobiodiversidade, padronizando na métrica da mercadoria o que era múltiplo e diverso. O contrato, guiado por um rito legislativo, buscou tomar o lugar do intercâmbio gerado pelos mutirões, pelas receitas caseiras, pelo roçado comunitário, pela dádiva, pela cultura.

Contudo, enquanto o cercamento econômico e jurídico avança, padronizando, homogeneizando, estabilizando, pipocam as organizações e os movimentos que defendem a permanência de seus modos de fazer, criar e viver. Crioula, tradicional, alternativa, local – são os nomes da resistência que agricultores familiares, camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais atribuem aos seus maiores ‘bens multiplicadores’. E sementes não são apenas os grãos, “mas todo e qualquer material de propagação vegetal que encerre em si a vida de uma planta”11 Santilli J. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo: Peirópolis; 2009.(30) são também tubérculos, raízes, mudas, ramas. É esse embate que nos apresenta Juliana Santilli (in memoriam) em seu livro ‘Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores’. Jurista, mas de escrita fluida, como uma boa prosa camponesa, Santilli nos convida a percorrer os caminhos jurídicos, políticos, econômicos e culturais das relações em agrobiodiversidade, segurança alimentar, desenvolvimento agrário e socioambientalismo. Mesmo aqueles que veem com receio as leituras ‘jurídicas’, enveredam-se pelas construções da autora com facilidade, desnudando as tramas entre direito, agronomia, economia, ecologia, biologia, genética, antropologia.

O seu legado para o entendimento facilitado do direito dos agricultores no Brasil é inestimável. Sempre atenta e acolhedora às demandas dos movimentos sociais camponeses, Juliana permanece como referência na ‘tradução’ do legislado, do julgado, do regulamentado no campo da agrobiodiversidade para uma linguagem compreensível a quem esses instrumentos se destinam. E não é somente traduzir enquanto ‘explicação do juridiquês’. É uma forma de tradução que desvela as ameaças, os contornos, os motivos, as intenções. É uma intérprete técnica, mas que também se posiciona – pela conservação da agrobiodiversidade e pela proteção e impulsão daqueles que a multiplicam com solidariedade e sociabilidade.

No caminho teórico que percorre a autora, o capítulo de abertura traz elementos sobre os biodiversos ecossistemas mundiais, com ênfase à agricultura brasileira, desde o período pré-colombiano e as complexidades socioculturais das sociedades que habitavam os diferentes biomas deste território. Como os Açutubas e Manacapurus na Amazônia, os povos sambaquieiros na faixa litorânea do Rio Grande do Sul à Bahia e do Maranhão ao Pará, os Guaranis, os Carijós, entre outros. Com o avanço do capitalismo, que se edifica com a modernidade e a invasão europeia, também se constroem contraposições de modelos de agricultura.

A expansão do modelo de plantation e sua estrutura patriarcal não subsistiram sozinhas. Camponeses, roceiros, caipiras, caiçaras, caboclos e sertanejos erigiram modelos de rotação e pousio do solo, construindo a agricultura camponesa de trabalho familiar, com origem indígena e utilizada por inúmeros povos e comunidades tradicionais. A diversidade dos ecossistemas e as culturas dos povos se enraizaram. Para os camponeses, o que se plantava também era o que se comia. Os animais, assim como sementes transplantadas, adaptaram-se geneticamente aos territórios brasileiros, desenvolvendo uma diversidade de agriculturas camponesas.

A constante tensão entre esses modelos e disputas se dá no âmbito econômico, territorial, mas sobremaneira no campo jurídico. O processo de cercamento das sementes inicia-se como o cercamento territorial: a expulsão desses sujeitos coletivos de suas terras e territórios se dá concomitantemente aos avanços das monoculturas para exportação. A agricultura ‘patronal’ se ‘moderniza’ em agronegócio, ampliando a dependência de pacotes tecnológicos e artificializando ambientes, controlados por empresas agroindustriais. O avanço do agronegócio e a produtividade das monoculturas, no entanto, não elevaram a qualidade ou a quantidade da alimentação da população brasileira e implicaram consequências brutais, como a erosão genética e a perda de variedades crioulas.

É essa multiplicidade que explica o conceito-chave abordado por Santilli: a ‘agrobiodiversidade’, que inclui a diversidade de espécies, genética e dos sistemas agrícolas ou cultivados. É o resultado dinâmico, ativo e vivo da interação e intervenção criativa dos seres humanos com os ecossistemas com o intuito de multiplicá-los, torná-los mais ricos. A agrobiodiversidade tem relação direta com a dimensão cultural da seleção e armazenamento de sementes, já que se escolhe multiplicar cada semente com base em necessidades singulares daquela comunidade que a seleciona. Além disso, é, também, saúde: humana em razão dos nutrientes e da diversidade alimentar e ambiental como possibilidade de resiliência em estresses ou mudanças climáticas. A erosão genética e a redução das variedades se apresentam muito mais instáveis e suscetíveis a pragas, pestes, doenças. Do mesmo modo que a redução dos alimentos que chegam a nossa mesa, que acarretam doenças crônicas. Monoculturas são altamente dependentes de agrotóxicos, intoxicando trabalhadores rurais no campo e consumidores por meio de alimentos contaminados.

É a partir dessas premissas e da contraposição de dois modelos que a autora adentra no debate das relações jurídicas, estruturado em dois grandes blocos: o sistema jurídico e o direito dos agricultores. Não é por acaso que o primeiro, tratando-se de diversas legislações, acordos internacionais e regulamentos, seja chamado por Santilli de ‘sistema’. Já o segundo bloco, o dos ‘direitos’, ainda que retrate o cenário de outros países, anuncia um ‘porvir’, uma reivindicação de garantias aos camponeses e povos tradicionais.

Analisando como os sistemas internacionais impactaram as leis de sementes e proteção de cultivares brasileiras, Santilli alerta para a prevalência de uma perspectiva linear e evolucionista, com impulsionamento jurídico e econômico a um sistema formal comercial de sementes patenteadas, padronizadas, homogeneizadas. O desenvolvimento de tecnologias híbridas e transgênicas de sementes, no século XX, despertou o interesse de empresas garantirem que houvesse compensação pela propriedade intelectual, industrial e comercial sobre essas variedades.

A moldagem de um novo formato jurídico que transformasse bens comuns em mercadorias é então aprovada no marco mundial na Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais em 1961 (Upov), revista em 1972, em 1991, e potencializada em 1994 com o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), da Organização Mundial do Comércio. Os acordos e as convenções internacionais balizaram o sistema jurídico brasileiro, que adota (até hoje) a versão de 1978 da Upov na Lei de Cultivares (Lei nº 9.456/1997) e na Lei de Sementes e Mudas (Lei nº 10.711/2003), que priorizam o sistema formal e restringem as sementes crioulas de livre circulação, tratando-as como exceções, e não reconhecendo o trabalho dos agricultores. Sob essa lente, ainda que tragam pequenas garantias aos agricultores familiares, camponeses e comunidades locais, também são abordados pela autora a Convenção Sobre a Diversidade Biológica, o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA-FAO) ou mesmo a Medida Provisória nº 2.186-16/2001 que regulava acesso e repartição de benefícios aos conhecimentos tradicionais e patrimônio genético, hoje regulado pela Lei da Biodiversidade (Lei nº 13.123/2015).

A conclusão é certeira: tais instrumentos agravam a perda da diversidade agrícola e socio-cultural. Santilli aponta saídas para a proteção da agrobiodiversidade, protegendo terras, territórios e os próprios agricultores, definindo zonas de sistemas agrícolas tradicionais, valorização dos produtos da agrobiodiversidade e promoção de políticas públicas. Não é mapeando, classificando, registrando, mercantilizando que se incentiva a agrobiodiversidade, próprios das relações jurídicas abordadas, mas dando liberdade a sua circulação, sem, contudo, facilitar o acesso e a biopirataria por agentes externos.

As resistências e as estratégias ao cercamento, abordadas do começo ao fim da obra, exemplificam também a metodologia utilizada. Não é um trabalho individual, embora a autora tenha os méritos inquestionáveis de sistematizar livro de tamanha envergadura, mas é, sobretudo, uma obra coletiva, com posições, entrevistas, documentos, cartas que representam agricultores, camponeses e organizações agroecológicas. O convite à leitura desse livro, repleta de reflexões e elementos, é, também, um chamado ao conhecimento sobre a história, da história que cultivam os agricultores. A história das sementes, seus cercamentos e apropriações, mas também do seu brotar.

  • Suporte financeiro: não houve

Referência

  • 1
    Santilli J. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo: Peirópolis; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    06 Set 2021
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