Sistemas de saúde, mecanismos de governança e porosidade governamental em perspectiva comparada

José Mendes Ribeiro Jeni Vaitsman José Inácio Jardim Motta Sobre os autores

RESUMO

O artigo apresenta uma análise comparada de dez países selecionados sobre as relações entre governança participativa, perfis socioeconômicos e sistemas de saúde com resultados sanitários e de Indicadores de Governança Global. As fontes principais foram bases de dados produzidas e/ou compiladas pelo Banco Mundial. O modelo analítico se apoia em enfoque institucionalista para tratar de proteção social e governança participativa – esta, como utilizada, recobre as noções de participação social, porosidade governamental e regulação responsiva. Os resultados mostram uma sólida convergência entre perfis socioeconômicos mais distributivos, sistemas sanitários com maior financiamento público e universalismo e melhores indicadores de governança. Esta análise reforça os argumentos sobre trajetórias institucionais socialmente virtuosas e sujeitas a reforços positivos capazes de produzir melhores resultados sociais e políticos ao longo do tempo.

PALAVRAS-CHAVES
Governança em saúde; Políticas de saúde; Participação social

Introdução

O artigo estuda as relações entre configurações políticas, perfis de governança, características socioeconômicas, financiamento em saúde e resultados sanitários. O objetivo é a análise comparativa entre dez países selecionados a partir de resultados relacionados com governança, perfis socioeconômicos, sistemas de saúde e resultados sanitários. Para isso, foram utilizados dados sobre governança global, financiamento em saúde e resultados sanitários observados para o ano de 2019. As fontes principais foram as bases de dados produzidas e/ou compiladas pelo Banco Mundial (BM).

Os resultados em governança baseiam-se em indicadores agregados sobre governança global elaborados a partir de diversas pesquisas de percepções. O conceito de governança utilizado recobre agendas políticas relativas à participação social e cidadã, aos organismos colegiados de regulação responsiva e a fatores indutores de porosidade governamental.

Questões relacionadas com participação social e colegiados governamentais são entendidas em um plano micro-organizacional como mecanismos de governança responsiva que atenuam os padrões hierárquicos e verticais do aparelho de Estado e acentuam a porosidade governamental no desenvolvimento de suas políticas.

Adota-se a premissa de que processos históricos de instituições democráticas, redistributivas e participativas tendem a convergir e reforçarem-se mutuamente.

O parâmetro tradicional é a evolução do Welfare State europeu do pós-guerra que consolidou instituições protetoras e ciclos virtuosos de desenvolvimento social sustentáveis por várias décadas11 Offe C. Disorganized Capitalism: Contemporary Transformations of Work and Politics. Cambridge: MIT Press; 1985., 22 Lijphart A. Patterns of Democracy: government forms and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University; 1999.. Esse tipo de trajetória funcionou como experimento político exemplar sobre a potencial convergência institucional em favor de maior justiça social.

Os argumentos utilizados neste artigo se apoiam em teorias sobre trajetórias institucionais reiteradas33 Pierson P. Politics in time: history, institutions, and social analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004., regulação responsiva por colegiados participativos44 Ayres I, Braithwaite J. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate Oxford: Oxford University Press; 1992. e formação de capital social por tradições participativas de maturação longa55 Putnam Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996..

Para a análise comparada, foram selecionados dez países: cinco sul-americanos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai) e cinco europeus (Alemanha, Espanha, França, Itália e Reino Unido). Faz-se uso de uma tipologia de sistemas de saúde adaptada pelos autores a partir da literatura especializada e de conceitos sobre governança igualmente consolidados.

A premissa adotada é que mecanismos de governança participativa sustentáveis favorecem a capacidade governamental de promover justiça social e desenvolvimento socioeconômico. A porosidade governamental às demandas e aos interesses de agentes societários favorece a convergência entre sistemas políticos, características socioeconômicas, resultados em saúde e qualidade da governança no setor público.

Isso se aplica a sucessos e a fracassos, e fica evidente a partir da argumentação deste artigo.

Governança e porosidade governamental

Questões atuais sobre governança e reformas do setor público destacam-se por pleitos pela maior porosidade do aparelho de Estado ante as demandas societárias organizadas e repercutem em disputas entre agendas políticas. Refletem ideários sobre mudanças nas funções do próprio Estado. Temas econômicos com impactos na política envolvem proposições por reformas patrimoniais (ciclos de privatizações de empresas públicas), e ajustes fiscais não são tratados neste artigo. Por outro lado, os temas organizacionais com efeitos políticos relevantes transitam por:

  1. i) Disputas entre graus variáveis de controle hierárquico e vertical versus maior controle horizontal e contratualização;

  2. ii) Competição por protagonismo decisório entre especialistas do funcionalismo público e aqueles externos a essas carreiras (advocacy, acadêmicos, consultores e lideranças sociais);

  3. iii) Graus variáveis de devolução e descentralização governamental ou territorial;

  4. iv) Indução à participação civil em decisões governamentais frente aos desafios da paralisia decisória.

Proposições de mudanças em mecanismos de governança ganharam impulso nos meios políticos e acadêmicos a partir dos anos 1980 com a difusão da Nova Gerência Pública (do inglês, NPM). Sua crítica e o estado da arte do debate foram bem estabelecidos por Hood66 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19. e outros autores a partir da experiência acumulada77 Pollitt C. Is the Emperor In His Underwear?: An analysis of the impacts of public management reform. Public Management. 2000; 2(2):181-199., 88 Pollitt C, Bouckaert G. A Comparative Analysis: New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. 3. ed. Oxford University Press; 2011.. A NPM concentrou-se nas relações contratuais entre instituições públicas e empresas lucrativas ou filantrópicas seguindo a lógica do modelo agência típico da economia institucional. Buscou orientar as ações de governo para funções regulatórias de direção e indução de políticas em detrimento da prestação direta de serviços. Seus afeitos sobre a burocracia vertical e de comando e controle deu-se pelo incentivo à adoção de certos padrões de horizontalização administrativa, criação de colegiados participativos e proliferação de agências reguladoras. Na administração pública, diversos incentivos foram estabelecidos para o monitoramento de resultados. Igualmente, foi incentivada a adoção do mimetismo de modelos de gestão de casos considerados bem-sucedidos em empresas privadas como estratégia organizacional66 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19..

Pode-se dizer que esse programa de mudanças combina um maior ativismo societário (advocacy) com a competição aberta por contratos, como visto em diversos experimentos de parcerias público-privadas.

A economia institucional trata destes temas no plano micro-organizacional sob a premissa de que a racionalidade decisória é limitada quando envolve interações de maior complexidade tecnológica99 Williamson OE. The mechanisms of governance. New York: Oxford University Press;1996.. A consequente assimetria informacional e a especificidade dos ativos em questão exigem a adoção de mecanismos de governança adaptáveis e atualizados continuamente, caso a caso e por delegação a terceiros. Em ambientes nos quais percepções e valores sociais permeiam os processos decisórios, maiores conflitos subjacentes e ambiguidade são habituais.

As funções participativas envolvem mecanismos de regulação responsiva em que as arenas decisórias são povoadas por agentes societários, seus processos decisórios são mais lentos e podem promover barreiras à captura de recursos públicos por interesses privados44 Ayres I, Braithwaite J. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate Oxford: Oxford University Press; 1992.. No conjunto, esses arranjos favoreceriam decisões em políticas mais legítimas e sustentáveis.

A crítica tradicional à proliferação desses mecanismos de delegação tem inspiração weberiana, pela qual a burocracia racional-legal implica a legitimidade das decisões governamentais efetuadas pelos especialistas dotados de status público verificado pelo sistema formal de formação profissional1010 Weber M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora da UNB; 1999. p. 517-580.. Essa referência weberiana permanece relevante na disputa entre orientações normativas nas reformas do setor público. Como assinala Peters1111 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Pub. Adm. Policy. 2009; 2(1):7-24., tudo gravita de modo pendular entre reformas com maior ou menor grau de weberianismo.

Dois problemas merecem atenção especial. Um deles trata de mudanças por maior descentralização subnacional e que reduzem poderes do governo central. Estas podem reduzir a capacidade de governantes em coordenar e executar políticas pelas quais foram eleitoralmente responsabilizados. Isso afetaria a própria capacidade de indução governamental e embute o risco de fragmentação de políticas e de agências, bem como de maior poder de veto na cadeia de implementação1111 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Pub. Adm. Policy. 2009; 2(1):7-24.. Entre as falhas de coordenação, estão a proliferação da terceirização de serviços e os riscos para a autoridade política dos governos. Como os resultados são muito variados, as análises de caso tornam-se cruciais.

Outro ponto diz respeito às falhas de governança. Estas decorrem de ‘ruídos’ no processo decisório provocados pelo excesso de negociações e de vetos. Busca-se uma compensação dessas falhas por meio de estratégias de metagovernança, tais como protocolos, parâmetros, acordos e análises de resultados e desempenho1111 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Pub. Adm. Policy. 2009; 2(1):7-24., 1212 Gjaltema J, Biesbroek R, Termeer K. From government to governance…to meta-governance: a systematic literature review. Pub. Manag. Review. 2020; (22):1760-1780.. Jessop1313 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexivity, requisite variety, and requisite irony. Lancaster: Lancaster University; 2003. assinala que tais mecanismos antagônicos às tradicionais hierarquias e mercados adotam uma estrutura decisória dependente do diálogo. Esse modo organizacional é reflexivo, e o consenso é estabelecido por redes de interação entre os atores ou organizações. Enquanto mediação, a racionalidade política tende a predominar sobre a administrativa ou econômica, e os territórios têm menor influência nos processos decisórios.

Esses debates repercutem sobre diferentes países segundo conotações discursivas que devem ser observadas com atenção. No Brasil, por exemplo, as relações entre participação social e governança têm sinergias que se fortaleceram ao longo da redemocratização a partir da década de 1990 com a multiplicação de colegiados de coordenação de políticas públicas. A tradição da reforma sanitária e dos próprios ordenamentos políticos decorrentes da nova Constituição influenciou a cultura participativa por meio de conselhos públicos que impulsionaram diversas políticas de proteção social. Esses processos têm sido analisados em importante literatura especializada sobre capacidade de governo e políticas de equidade1414 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111., 1515 Moreira MR, Escorel S. Conselhos Municipais de Saúde do Brasil: um debate sobre a democratização da política de saúde nos vinte anos do SUS. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):795-805., 1616 Moreira MR. Reflexões sobre democracia deliberativa: contribuições para os conselhos de saúde num contexto de crise política. Saúde debate. 2016; 40(esp):25-38.. Quanto à governança em termos macroinstitucionais, as reformas políticas no contexto europeu e norte-americano influenciaram a agenda nacional de Reforma do Estado. Análises sobre as agências reguladoras brasileiras na década de 19901717 Costa NR, Ribeiro JM, Silva PLB, et al. O desenho institucional da reforma regulatória e as falhas de mercado no setor saúde. Rev. Bras. Adm. Púb. Brasil. 2001; 35(2):193-228. e seus reflexos mais duradouros sobre a gestão local1818 Ribeiro JM, Alcoforado F. Mecanismos de governança e o desenho institucional da Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1339-1349. exemplificam essas tendências.

Em função dessas tradições, neste artigo, adota-se o conceito de porosidade governamental no contexto e nos marcos das reformas do setor público implementadas no Brasil1717 Costa NR, Ribeiro JM, Silva PLB, et al. O desenho institucional da reforma regulatória e as falhas de mercado no setor saúde. Rev. Bras. Adm. Púb. Brasil. 2001; 35(2):193-228., 1818 Ribeiro JM, Alcoforado F. Mecanismos de governança e o desenho institucional da Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1339-1349. e adaptado, para os fins deste estudo, por aproximação com a agenda de governo aberto em escala global1919 Organização para Economia Cooperação e Desenvolvimento. Open Government: The Global Context and the Way Forward. Paris: OECD Publishing; 2016. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264268104-en.
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. Traduz-se na capacidade de as instituições públicas, as hierarquias e o funcionalismo público receber, processar e selecionarem demandas organizadas da sociedade civil.

Há uma tênue linha divisória que separa a intervenção societária em decisões governamentais em favor de suas funções socialmente distributivas e a captura de fundos públicos por grupos de interesses.

Proposições de novos mecanismos de governança tornaram-se mais diversificados a partir da fragilização dos projetos políticos de recuo (retrenchment) da ação estatal direta e disputam de modo acirrado o protagonismo político. Iniciativas de reforma do setor público impulsionadas por agências e fóruns globais têm se multiplicado em favor de temas como: participação cidadã, transparência no setor público e desenvolvimento sustentável. Diversos comitês globais de coordenação política e econômica, como a União Europeia (UE) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), têm difundido alternativas às proposições de contração absoluta do aparelho de Estado em ambientes acadêmicos, políticos e econômicos e participam dessa disputa por protagonismo político.

A porosidade governamental converge com tais estratégias de ‘governo aberto’ e de monitoramento de seus resultados, e observa-se o uso frequente de indicadores de interações entre governos e atores societários. A OCDE define o governo aberto como fruto de políticas públicas inovadoras e sustentáveis nas quais os princípios dominantes são transparência, prestação de contas e participação orientados à democracia e ao crescimento econômico inclusivo1919 Organização para Economia Cooperação e Desenvolvimento. Open Government: The Global Context and the Way Forward. Paris: OECD Publishing; 2016. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264268104-en.
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.

Há um caráter normativo nessas estratégias e países, como o Brasil, que pleiteiam a associação plena à OCDE; por exemplo, devem se comprometer com tais reformas orientadas à maior participação cidadã.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) são parte central dessa agenda de governo aberto, assim como o uso intensivo de monitoramento de resultados. Outrossim, os Indicadores de Governança Global (IGG) do BM fazem parte deste plano de difusão de ideias e de indução de políticas.

A implementação de governanças participativas são parte das premissas para a legitimidade do setor público enquanto estrutura de promoção de justiça social e, como tal, estão sujeitas a processos adaptativos a cada país. Ainda que essas políticas ocorram em condições locais e singulares, influências recíprocas devem ser consideradas em análises sobre suas políticas governamentais.

São essas articulações que este artigo procura identificar e analisar.

Estrutura da pesquisa

Foram utilizados dados produzidos ou compilados pelo BM. Os dados sanitários são da Organização Mundial da Saúde (OMS) e resultam de informações providas por governos nacionais, pesquisas originais ou estimativas imputadas para séries históricas. Essas fontes produzem informações objetivas, apesar de restrições quanto ao autopreenchimento pelos governos e consistência variável conforme o ano e o caso.

O BM faz uso de dados da OMS e pode complementar com estimativas próprias. Optou-se por utilizar os dados de saúde conforme apresentados pelo BM. As bases foram acessadas em 2020 e estão disponíveis em http://info.worldbank.org/governance/wgi/#home.

As fontes utilizadas para os indicadores de governança são baseadas principalmente em pesquisas de percepções e lidam com fatores não observáveis e que variam conforme o entendimento dos entrevistados. Os métodos utilizados para a elaboração dos IGG foram detalhados por seus desenvolvedores, assim como o controle das restrições das pesquisas de percepções, o manejo de erros estatísticos e as comparações entre países e nas séries históricas2020 Kaufmann D, Aart Kraay A, Mastruzzi M. The Worldwide Governance Indicators: Methodology and Analytical Issues, World Bank. World Bank Policy Research Working Paper. 2010 [acesso em 2022 abr 25]; (5430). Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1682130.
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.

Os IGG são agregações apresentadas por países e territórios da esfera de atuação do BM. Conforme o ano e o indicador, cerca de 200 casos são observados. São seis as medidas de governança: voz e responsabilidade; estabilidade política; eficácia do governo; qualidade regulatória; Estado de direito; e controle da corrupção.

Para essas medidas, a governança foi definida como o resultado de tradições e instituições que configuram o tipo de autoridade exercido em cada país e inclui: processo de escolha, monitoramento e substituição de governos; capacidade governamental de formular e implementar boas políticas; e respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as suas interações econômicas e sociais2020 Kaufmann D, Aart Kraay A, Mastruzzi M. The Worldwide Governance Indicators: Methodology and Analytical Issues, World Bank. World Bank Policy Research Working Paper. 2010 [acesso em 2022 abr 25]; (5430). Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1682130.
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Dessa forma, o conceito não se confunde com as noções contratuais da economia institucional discutidas anteriormente66 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19., 77 Pollitt C. Is the Emperor In His Underwear?: An analysis of the impacts of public management reform. Public Management. 2000; 2(2):181-199., 88 Pollitt C, Bouckaert G. A Comparative Analysis: New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. 3. ed. Oxford University Press; 2011., 99 Williamson OE. The mechanisms of governance. New York: Oxford University Press;1996., 1313 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexivity, requisite variety, and requisite irony. Lancaster: Lancaster University; 2003., embora seja convergente no plano político.

Esse modelo permitiu padronizar os dados de diferentes fontes em unidades comparáveis, construir indicadores agregados por médias ponderadas das variáveis apuradas e definir margens de erro refletindo a imprecisão de percepções políticas genéricas. Ao reportar cada erro-padrão e Intervalo de Confiança (IC), evita-se superestimar diferenças que não sejam estatisticamente significativas.

Os IGG foram reagrupados em três blocos: i) proteção social (‘voz e transparência’ e ‘efetividade de governo’); ii) regulação (‘qualidade regulatória’ e ‘Estado de Direito’); e iii) insulamento (‘controle da corrupção’ e ‘estabilidade política’).

Os IGG são calculados a partir de percepções sobre governança que refletem noções subjacentes e implícitas difíceis de serem diretamente medidas. Aceita-se o argumento de seus formuladores de que o método corrige a variabilidade e gera proxies imperfeitas sobre os temas analisados2020 Kaufmann D, Aart Kraay A, Mastruzzi M. The Worldwide Governance Indicators: Methodology and Analytical Issues, World Bank. World Bank Policy Research Working Paper. 2010 [acesso em 2022 abr 25]; (5430). Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1682130.
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?a...
. Os elementos não observados (percepções) são transformados em resultados objetivos. A validação, para os fins deste artigo, dá-se também pela coerência desses resultados quando cotejados com os demais dados e configurações analisados em conjunto. Observa-se uma consistência adicional quando padrões institucionais de cada país e os resultados convergem no plano analítico.

Cada IGG é apresentado como unidade de distribuição normal (−2,5 a +2,5) e em uma hierarquia de percentis (0-100) entre todos os países. A posição no percentil (100 é a mais alta) e as posições dos países para cada ano e indicador variam conforme os totais de países em cada situação. São posições, portanto, que variam segundo a cobertura dos dados.

A estimativa para cada indicador é também padronizada para a distribuição normal, e seu erro-padrão indica sua precisão. Valores maiores de erro-padrão indicam estimativas menos precisas.

Foram utilizados dados para 2019 sobre dez países selecionados, e as classificações nos percentis são as posições calculadas para cada universo segundo a distribuição de cada indicador. Não foram analisadas as séries históricas para evitar maiores restrições cumulativas de erros por países, embora o método admita tal possibilidade.

O modelo de análise de políticas segue o de estudo anterior2121 Vaitsman J, Ribeiro JM, Motta JIJ, organizadores. Sistemas híbridos de saúde: uma análise comparada internacional de políticas de proteção e equidade. Rio de Janeiro: Cebes; 2019., 2222 Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Brasil. In: Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Sistemas híbridos de saúde: uma análise comparada internacional de políticas de proteção e equidade. Rio de Janeiro: Cebes; 2019. p. 59-110., inclusive quanto à tipologia de sistemas de saúde.

A pesquisa: instituições políticas, governança pública e sistemas de saúde

Adota-se o postulado pelo qual sistemas políticos mais abertos e porosos à participação de grupos e indivíduos nos seus processos decisórios favorecem a redução de desigualdades e protegem direitos sociais11 Offe C. Disorganized Capitalism: Contemporary Transformations of Work and Politics. Cambridge: MIT Press; 1985., 22 Lijphart A. Patterns of Democracy: government forms and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University; 1999., 33 Pierson P. Politics in time: history, institutions, and social analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004., 55 Putnam Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996.. Discute-se a tese na qual a consolidação de trajetórias retroalimentadas e reforçadas33 Pierson P. Politics in time: history, institutions, and social analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004. de configurações de sistemas políticos, de tipos de sistemas sanitários e de mecanismos de governança sujeitos às dinâmicas participativas de democracias consensuadas tendem a produzir resultados mais favoráveis em políticas de proteção social.

A análise de séries histórias em saúde teve caráter apenas exploratório (medianas comparadas dos últimos 10 anos). Esses resultados (não apresentados) não conflitam com o quadro observado para 2019, mas estudos adicionais devem ser realizados para controlar os erros cumulativos destas. Considera-se, para os fins deste artigo, que os resultados para 2019 representam um ponto de chegada das trajetórias de mudanças.

Há nessa amostra uma evidente associação entre Renda Nacional Bruta per capita (RNB) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como esperado pelo peso da renda na composição do IDH. Esses dados são destacados em separado para apoio analítico.

Os dados do IDH-2019 foram calculados pela ONU (https://www.cnedu.pt/content/noticias/internacional/hdr_2019_pt.pdf), e os resultados são classificados nos estratos ‘muito alto’ (maior ou igual a 0,800); ‘alto’ (0,700 - 0,799); ‘médio’ (menor ou igual a 0,554); e ‘baixo’ (0,555 - 0,699). Nesse grupo, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha, Chile, Argentina e Uruguai têm IDH ‘muito elevado’. Por sua vez, Brasil e Colômbia possuem IDH ‘elevado’. No estrato dos países de IDH ‘muito elevado’, os países sul-americanos apresentaram índices inferiores aos dos europeus.

As posições por ordem decrescente de RNB per capita (US$ correntes, 2019) são: Alemanha (47.110,00), Reino Unido (41.790,00), França (41.090,00), Itália (33.740,00), Espanha (29.300,00), Uruguai (15.650,00), Chile (14.670,00), Argentina (12.390,00), Brasil (9.080,00) e Colômbia (6.180,00).

Considerando-se o ordenamento decrescente dos valores de cada país para IDH e RNB per capita, há elevada convergência entre essas hierarquias. Essa convergência é identificada pelo elevado coeficiente de correlação positivo de 0,93. Portando, essa amostra intencional se comporta em termos socioeconômicos, conforme a lista apresentada acima.

Quanto à tipificação dos sistemas políticos, mudanças incrementais ao longo do tempo alteram suas formas tradicionais. Ademais, mudanças constitucionais nos países têm aumentado, e certo hibridismo exige maior cuidado com as generalizações.

Um exemplo está na adoção de diversos mecanismos de devolução política e de descentralização de poder na direção ‘central – local’ e que afetam os países de tradições mais centralizadas. Configurações mistas (ou híbridas) estão presentes no semipresidencialismo francês, no semifederalismo (de fato) espanhol e nas devoluções do Reino Unido unitário.

Os resultados dos índices da revista ‘The Economist’ para 20192323 The Economist. Democracy Index 2019: A year of democratic setbacks and popular protest – A report by The Economist Intelligence Unit, London: The Economist Intelligence Unit; 2020. apontaram como ‘Democracia Plena’ a Alemanha, o Chile, a Espanha, a França, o Reino Unido e o Uruguai. Por outro lado, a Argentina, o Brasil, a Colômbia e a Itália figuraram como ‘Democracias Imperfeitas’.

Países com sistemas democráticos de melhor qualidade tendem a possuir sistemas de saúde mais responsivos às demandas regionais, de seus cidadãos e de organizações civis. Logo, espera-se que a melhor qualidade da democracia favoreça políticas mais inclusivas.

O caráter federativo pode induzir, pela própria natureza, a maior descentralização nas políticas. No entanto, há sérias controvérsias quando os casos são estudados e seus resultados são comparados. Em certas condições, instituições mais centralizadas produzem distribuição mais equitativa de recursos públicos. Isso se dá em políticas sanitárias em que fatores como coordenação nacional e progressividade dos regimes fiscais jogam um peso importante na sua configuração. Sistemas descentralizados regulados de modo inadequado podem ampliar as desigualdades regionais devido a diferenças de poder político e capacidade fiscal. Neste artigo, Alemanha, Argentina e Brasil são países federativos e Chile, Espanha, França, Reino Unido, Uruguai, Colômbia e Itália são considerados unitários.

Regimes parlamentaristas, devido ao seu sistema eleitoral, tendem a representar melhor os distritos e regiões. No entanto, os resultados podem seguir em direções opostas e dependem de fatores, como bipartidarismo forte e captura local de recursos de políticas públicas. Regimes presidencialistas, por sua vez, podem exibir vantagens, como a responsabilização mais direta dos governantes e seus efeitos na coordenação nacional de políticas.

As relações entre qualidade da democracia, natureza federativa ou unitária e parlamentarismo ou presidencialismo são aspectos contextuais que devem ser considerados na análise e argumentação do artigo. Há literatura especializada abundante sobre esses temas, e algumas referências são representativas11 Offe C. Disorganized Capitalism: Contemporary Transformations of Work and Politics. Cambridge: MIT Press; 1985., 22 Lijphart A. Patterns of Democracy: government forms and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University; 1999., 33 Pierson P. Politics in time: history, institutions, and social analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004., 44 Ayres I, Braithwaite J. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate Oxford: Oxford University Press; 1992., 55 Putnam Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996., 66 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19., 77 Pollitt C. Is the Emperor In His Underwear?: An analysis of the impacts of public management reform. Public Management. 2000; 2(2):181-199., 88 Pollitt C, Bouckaert G. A Comparative Analysis: New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. 3. ed. Oxford University Press; 2011., 99 Williamson OE. The mechanisms of governance. New York: Oxford University Press;1996., 1010 Weber M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora da UNB; 1999. p. 517-580., 1111 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Pub. Adm. Policy. 2009; 2(1):7-24.. As restrições apontadas indicam cautela na busca por possíveis relações causais.

No quadro 1, são apresentadas as configurações dos sistemas nacionais de saúde. Os critérios classificatórios foram estabelecidos em estudo anterior2222 Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Brasil. In: Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Sistemas híbridos de saúde: uma análise comparada internacional de políticas de proteção e equidade. Rio de Janeiro: Cebes; 2019. p. 59-110. e são resumidos adiante. Os tipos de sistemas sanitários variam segundo combinações entre regimes fiscais (maior ou menor progressividade) ou securitários (com subsídios variados) e regras distintas de titularidade de direitos. Essas configurações tendem a se estabilizar no tempo ou passar por mudanças incrementais. Quando preservam o contrato social preestabelecido, mas alteram alguns elementos operacionais importantes, podem ser vistas como híbridas2424 Schmid A, Cacace M, Götze R, et al. Explaining health care system change: Problem pressure and the emergence of ‘hybrid’ health care systems. J. Health Pol. Policy and Law. 2010; 35(4):455-486..

Quadro 1
Tipos de sistemas de saúde segundo capacidade de proteção social

As configurações do quadro 1 possuem vínculos com dados sobre financiamento setorial da tabela 1. Os países são classificados segundos padrões de universalização, desembolso direto, configuração e tipo.

Tabela 1
Gastos, oferta de serviços e resultados em saúde, países selecionados, 2019

A universalização dos sistemas de saúde pode ser completa ou parcial e responde a critérios combinados da participação dos gastos por desembolso direto de indivíduos com a participação dos gastos governamentais em saúde no gasto total desse setor da economia. O caráter regressivo dos gastos diretos dos indivíduos e progressivo dos gastos governamentais sustentam os pontos de corte arbitrados e apresentados no quadro 1. O perfil do desembolso direto (elevado, relevante e residual) segue essa lógica, e suas faixas são mostradas nas legendas.

A configuração segundo os quatro tipos de sistemas híbridos e os dois universais tradicionais segue critérios dos estudos citados2222 Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Brasil. In: Ribeiro JM, Vaitsman J, Motta JIJ. Sistemas híbridos de saúde: uma análise comparada internacional de políticas de proteção e equidade. Rio de Janeiro: Cebes; 2019. p. 59-110., 2323 The Economist. Democracy Index 2019: A year of democratic setbacks and popular protest – A report by The Economist Intelligence Unit, London: The Economist Intelligence Unit; 2020., 2424 Schmid A, Cacace M, Götze R, et al. Explaining health care system change: Problem pressure and the emergence of ‘hybrid’ health care systems. J. Health Pol. Policy and Law. 2010; 35(4):455-486.; já as composições são apresentadas nas legendas. Por fim, como síntese, o tipo é definido como universal homogêneo (sem predomínio de híbridos), universal heterogêneo (híbrido com relevância do financiamento fiscal) e restritivo (híbrido com relevância de seguros privados).

Os padrões mostrados no quadro 1 possuem relação direta, em termos analíticos, com os resultados de indicadores de saúde e de governança discutidos em seguida.

As diferenças entre os países são ilustradas por dados da tabela 1. A participação dos gastos por desembolso direto de indivíduos e famílias com a saúde sobre os gastos totais do setor tem importância crucial. Trata-se de um gasto regressivo e não sujeito a mecanismos de suavização (pooling) públicos (fiscais ou por seguros sociais) ou privados (planos pré-pagos). É forte indicativo de risco financeiro catastrófico. Outra variável de interesse é a participação do gasto público por todos os níveis de governo sobre o gasto setorial. Pela própria natureza fiscal, países com sistemas mais progressivos de tributação tendem a devolver políticas sanitárias mais distributivas.

A maior participação do gasto público no Produto Interno Bruto tende a proteger os indivíduos quanto aos gastos por desembolso direto. São relações lineares – e verificáveis em séries históricas – e que acompanham a maior disponibilidade de recursos (leitos e médicos) e os melhores resultados sanitários (mortalidade infantil e materna e expectativa de vida).

Segundo a tabela 1, que está ordenada segundo o maior peso do governo em saúde para o menor, os resultados sanitários acompanham o financiamento mais equitativo e os próprios resultados de RNB e IDH.

Como mostrado nas tabelas 2 a 4, isso é valido para os indicadores de governança.

Tabela 2
Proteção social e Indicadores Globais de Governança (IGG), países selecionados, 2019

A tabela 2 trata do ambiente de proteção social desses países. A ‘Efetividade de Governo’ mede percepções sobre a qualidade do funcionalismo e dos serviços públicos, sua independência quanto a pressões políticas, a qualidade das políticas públicas e a confiança no compromisso dos governos. A ‘Voz e Transparência’ mede a capacidade dos cidadãos de participar da escolha de governos e desfrutar de liberdades políticas e associativas. Esse ambiente nacional favorece a participação de cidadãos e de coletivos, a formação de coalizões de defesa de interesses e a existência de órgãos colegiados típicos da democracia consensual pelos quais fluem os conflitos e a competição por ideias, valores e alternativas de políticas. A proteção social é favorecida pela efetividade de governos e a vocalização política. O caráter público desse ambiente participativo remete às noções tradicionais de capital social e de impactos sobre a qualidade de governo55 Putnam Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996.. É coerente com o ideário do Estado de Bem-Estar retratado em análises exemplares11 Offe C. Disorganized Capitalism: Contemporary Transformations of Work and Politics. Cambridge: MIT Press; 1985., 22 Lijphart A. Patterns of Democracy: government forms and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University; 1999.. São pilares do Welfare State do pós-guerra e de seus arranjos neocorporativos e refletidos em políticas redistributivas, mínimos sociais e proteção ao trabalho e renda.

Segundo as estimativas e classificações dos percentis (IC 90%), destaca- se a menor efetividade de governo em Argentina e Brasil. Colômbia e Itália também apresentam estimativas comparativamente mais baixas. O maior erro-padrão nos países europeus pode explicar a posição limítrofe da Itália e sua superposição com os de estimativas menores, assim como as de Chile e Uruguai com os de estimativas maiores.

Para as posições no percentil, um ponto de corte foi arbitrado em 80,00, e a divisão em Grupo A (superior) e Grupo B (inferior). Esse critério foi aplicado em todos os IGG.

Sobre a ‘Efetividade de Governo’, Argentina, Brasil, Colômbia e Itália ficaram no Grupo B. Em ‘Voz e Transparência’, o Grupo B restringiu-se a Argentina, Brasil e Colômbia. Portanto, Chile, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Uruguai ocuparam as maiores posições no percentil para os indicadores nesse bloco de proteção social.

A tabela 3 trata de indicadores de regulação pública. O ‘Estado de Direito’ mede as percepções sobre confiança e adesão às regras como cumprimento de contratos, direitos de propriedade, funcionamento da polícia e do judiciário e a probabilidade de exposição ao crime e à violência. A ‘Qualidade Regulatória’ mede a capacidade do governo de formular e implementar boas políticas em favor do desenvolvimento do setor privado em mercados adequadamente regulados.

Tabela 3
Regulação e Indicadores Globais de Governança (IGG), países selecionados, 2019

O ‘Estado de Direito’ inclui elementos sensíveis à presença de maior capital social. Reflete a confiança entre agentes públicos e privados e as garantias contratuais das quais desfrutam sociedades mais democráticas. Privilegiam dimensões iluministas do liberalismo político desde sua emergência no século XVIII e maturadas nos contratos sociais típicos do século XX. São funções clássicas do Estado moderno como garantidor de contratos, defesa territorial e monopólio do uso da força e da coerção legítima. Pressupõe a institucionalização dos conflitos sociais.

As estimativas em relação a ‘Estado de Direito’ são as que variam com maior intensidade. Os percentis indicam percepções mais positivas para Chile, França, Alemanha, Espanha e Reino Unido. Estimativas menores foram observadas para Argentina, Brasil, Colômbia, Itália e Uruguai. Como esse indicador trata diretamente de garantias de direitos políticos e econômicos, chama a atenção os números negativos de Argentina, Brasil e Colômbia. Quanto à ‘Qualidade Regulatória’, as estimativas negativas restringem-se à Argentina e ao Brasil. Com relação ao indicador anterior, a diferença foi a inclusão da Itália, um dos países pendulares, no Grupo A.

Na tabela 4, os indicadores medem o insulamento do aparelho de Estado. A ‘Estabilidade política’ mede as percepções sobre a possibilidade de crise ou violência politicamente motivada. O insulamento pressupõe burocracias públicas protegidas e regras sustentáveis de sucessão governamental. Refletem a capacidade de manejo de conflitos extrainstitucionais. O ‘Controle da Corrupção’ trata da capacidade de o poder público exercer controle sobre os ganhos decorrentes de corrupção no plano micro-organizacional até a captura institucional do Estado por elites e interesses privados.

Tabela 4
Insulamento e Indicadores Globais de Governança (IGG), países selecionados, 2019

A menor ‘Estabilidade Política’ reflete a maior fragilidade do governo central no controle de territórios. Esses resultados são os mais baixos entre as medidas analisadas. Apenas o Uruguai supera o limiar arbitrado de 80% (com 86,19). A Alemanha situa-se no Grupo A (66,67) devido ao elástico IC. Essas estimativas são comparáveis diretamente devido ao mesmo erro-padrão.

Os resultados do insulamento estatal mostram que os desafios da estabilidade política e do controle da violência são os maiores em termos de governança. Nesse sentido, as turbulências e as incertezas políticas do século XXI no continente europeu reduzem as diferenças destes países para a América do Sul. Entretanto, Brasil e Colômbia continuam se destacando pelos piores resultados apresentados.

O ‘Controle da Corrupção’ é tema constante da agenda política, e a captura do Estado por interesses privados é parte da crítica tradicional ao capitalismo. Em termos atuais, envolve a legitimidade da defesa do papel do Estado no desenvolvimento social e econômico e o enfrentamento das teses de Estado mínimo. A captura governamental por elites do mercado e sua penetração na burocracia pública competem diretamente com os mecanismos formais e legítimos de participação social e mais voltados aos mecanismos responsivos de regulação. Segundo Putnam55 Putnam Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996., em seu estudo sobre as regiões da Itália, há maior clientelismo onde existe menor comunidade cívica.

Espera-se que estimativas maiores de controle da corrupção reflitam dinâmicas participativas que fragilizem estruturas de veto promovidas pela ação de interesses privados no aparelho de Estado. O grupo A inclui Chile, França, Alemanha, Reino Unido e Uruguai. Os demais países situam-se no Grupo B, e as estimativas negativas restringem-se à Argentina, ao Brasil e à Colômbia.

Considerações finais

O institucionalismo histórico33 Pierson P. Politics in time: history, institutions, and social analysis. New Jersey: Princeton University Press; 2004. destaca a influência de trajetórias de mudanças em instituições que, à medida que se consolidam, delimitam e afetam decisões. As decisões dos agentes tendem a se tornar embutidas e dependentes desses caminhos. Trajetórias interrompidas, vetadas ou alteradas compõem, também, o quadro típico da análise institucional. Trajetórias reforçadas não implicam, está claro, resultados virtuosos.

O argumento desenvolvido neste artigo adotou a premissa de que os arranjos institucionais analisados influenciaram as decisões alocativas a partir de longos períodos de consolidação. Dessa forma, os perfis não resultam exclusivamente de jogos abertos de interações sucessivas.

Há convergência entre as características institucionais dominantes em cada país e os seus resultados em governança, desenvolvimento socioeconômico e políticas de saúde. Os países com maior participação governamental no financiamento em saúde foram os que apresentam melhores resultados sanitários e menor risco financeiro para as famílias. Igualmente, esses países mostraram melhores IGG e são dotados de maiores IDH e RNB. O estudo detalhado de relações causais que exigiria a análise de séries temporais não foi objeto desta etapa.

Há, entretanto, evidente associação entre políticas de proteção social, capacidade de governo, porosidade do aparelho de Estado e maior abertura para a intervenção societária em decisões públicas. Esse conjunto de regularidades permite apontar três tipos de resultados: ‘mais favoráveis’, ‘pendulares’ e ‘menos favoráveis’.

Os países de resultados ‘mais favoráveis’ foram Alemanha, França e Reino Unido e apresentam IDH elevado e RNB per capita de países de renda alta. Seus sistemas de saúde são universais e homogêneos, e os gastos por desembolso direto em saúde são residuais. Os gastos públicos e totais em saúde estão entre os mais elevados. Seus resultados em saúde situam-se entre os melhores, assim como a disponibilidade de recursos de atenção. Todos encontram-se no grupo de melhores IGG. São países com sistemas de proteção institucionalizados e consolidados há várias décadas. Os indicadores socioeconômicos e de governança parecem funcionar como fatores de proteção social. Assim, representam um parâmetro de referência neste artigo.

Os países com resultados intermediários – Chile, Espanha, Uruguai e Itália – revelam comportamento pendular conforme a configuração institucional e os resultados sociais e de governança. Esses países aproximam-se dos de referência quanto aos IGG, e as diferenças são mais visíveis nos indicadores socioeconômicos e sanitários.

Esses países ‘pendulares’ apresentam IDH elevado e RNB de países de renda alta. Apenas o Uruguai revela universalização completa e desembolsos diretos residuais. A Espanha e a Itália têm universalização completa, porém os gastos por desembolso direto são relevantes. No Chile, a universalização é apenas parcial, e os gastos por desembolso direto são elevados. Espanha, Uruguai e Itália possuem sistemas de saúde universais, embora heterogêneos, e Chile demonstra um sistema restritivo. Os gastos públicos em saúde de Espanha, Uruguai e Itália aproximam-se dos maiores, e os do Chile estão entre os menores.

Quanto ao tamanho da economia do setor saúde, eles estão mais alinhados às médias da OCDE. Os resultados em saúde são favoráveis em todos eles, e Itália e Espanha situam-se entre os melhores. Os recursos em saúde do Chile, embora menores, mostram-se adequados aos parâmetros internacionais. Para Espanha, Uruguai e Itália, eles mostram-se bastante favoráveis.

Com relação aos IGG, a posição menos favorável é a Itália, com quatro indicadores posicionados no Grupo B. Os demais estão no Grupo A. As exceções foram Chile (‘estabilidade política); Espanha (‘estabilidade política’ e ‘controle da corrupção’) e Uruguai (‘qualidade regulatória’ e ‘estado de direito’).

No caso dos países com resultados ‘menos favoráveis’ e que estão nitidamente distanciados dos principais em termos de governança, há uma diferença importante na Argentina, onde os resultados sanitários e sociais são os melhores desse grupo.

Argentina, Brasil e Colômbia são países de RNB de renda média-alta. Brasil e Colômbia possuem os menores IDH da amostra, e o da Argentina é alto.

As características sanitárias da Argentina são melhores. Seu sistema de saúde é universal, embora heterogêneo devido à forte estratificação do seguro social. Esse arranjo protege os gastos por desembolso direto de caráter residual. Os gastos do setor público em saúde são intermediários, e o financiamento setorial se aproxima das médias da OCDE. Os resultados em saúde são melhores que Brasil e Colômbia, embora a Razão de Mortalidade Materna elevada destoe negativamente. Os recursos em saúde são elevados.

Ao contrário da Argentina, o Brasil e a Colômbia têm características mais negativas. No Brasil a universalização é parcial, e na Colômbia, é completa, apesar da estratificação de acesso por subsistemas. Esse fator tem relação com o fato de o desembolso direto no Brasil ser elevado e na Colômbia ser residual.

Os dois países apresentam sistemas de tipo restritivo. O do Brasil, devido à coabitação disfuncional entre seguros privados, financiamento fiscal inadequado e federalismo competitivo. O da Colômbia, pelo tipo de mix entre financiamento fiscal, seguros sociais e privados promovidos pela sua reforma setorial. Os gastos públicos de Brasil e Colômbia estão entre os menores, embora o tamanho da economia do setor saúde no Brasil seja elevada e alinhada à dos europeus. Os resultados em saúde de Brasil e Colômbia são os mais desfavoráveis. A exceção é a Expectativa de Vida ao Nascer maior na Colômbia. Quanto aos recursos em saúde, estão entre os mais limitados e alinhados ao Chile.

Para todos os IGG, Argentina, Brasil e Colômbia estão no grupo de menores estimativas.

A Alemanha foi o único país a apresentar uma classificação superior em todas as seis medições. Quando a estabilidade política é descartada, a França e o Reino Unido associam-se em governança.

A Argentina, o Brasil e a Colômbia estiveram em todas as medições abaixo do percentil 80,00, ainda que estes percentis superem frequentemente a metade de todas as nações incluídas na base global de duas centenas.

Este artigo destaca a força das teses tradicionais do institucionalismo histórico enquanto ferramentas valiosas para a análise das políticas públicas. A análise de relações causais é o desenvolvimento necessário a este estudo.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2021
  • Aceito
    22 Dez 2021
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