Sociedade, fobias e diferenças

José Inácio Jardim Motta Sobre o autor

RESUMO

Este ensaio teve como objeto de análise as ‘identidades de gênero/sexualidade’, a partir de questões da chamada ‘pauta de costumes’, no século XXI. A discussão aqui proposta está articulada às necessidades sociais de saúde no amplo território brasileiro. Recorre-se ao pensamento de Foucault, Butler, Derrida e outros autores do espectro ‘pós-estruturalistas’, para refletir sobre a relação entre identidade e diferença e sua repercussão no controle sobre os corpos, em um contínuo processo discriminatório, com a conservação dos ciclos de violência e exclusão.

PALAVRAS-CHAVES
Identidade de gênero; Sexualidade; Minorias sexuais e de gênero; Homofobia

Introdução

É curioso pensar em escrever – e, de fato, escrever – um ensaio teórico que toma como objeto de análise o tema das ‘identidades de gênero/sexualidades’ (sim no plural/múltiplo/as) e (re)colocar questões da chamada agenda de costumes em reflexão no fim do primeiro terço do século XXI.

Os sentidos de um aparente incomodo antevê uma escrita que irá nos oferecer um conjunto de posicionamentos, quase sempre traduzidos, em enunciados de verdade. Posto assim, não há como deixar de pensar em um nível complexo de camadas, cada uma capaz de (re)velar um conjunto de reiteradas perguntas que, implicam e se tensionam uma infinidade de vezes a ponto de parecer uma dinâmica de eterna utopia.

Reafirmo que não pretendo oferecer respostas tampouco produzir verdades que possam ser traduzidas como generalizáveis e absolutas. Contudo, de forma algo pretensiosa, espero colocar em diálogo autores de baixo consenso entre eles e as relações algumas vezes exitosas, mas que, na maior parte das vezes, foram relegadas a intervenções genéricas na capacidade de diálogo entre movimentos sociais e a produção de políticas públicas que permitam, de fato, responder às necessidades sociais de saúde no vasto e singular território brasileiro.

Para isso, recorro ao pensamento de Foucault, coadjuvado por autores que estiveram no centro das minhas reflexões acadêmicas dos últimos anos, como pesquisador, tais como, Butler, Derrida e tantos outros que foram classificados de ‘pós-estruturalistas’. Ouso colocar em questão a (in)cômoda em foco (in)estável relação entre identidade e diferença e seus efeitos sobre corpos que seguem sendo moldados, em um contínuo processo que resulta em violência e exclusão.

Identidade e diferença

A fragilidade da categoria identidade, nos tempos atuais, foi muito bem formulada no título do artigo de Stuart Hall11 Hall S. Quem precisa de uma identidade? In: Silva TT, organizador. Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora vozes; 2011., ‘Quem precisa da identidade?’. O autor reconhece que há uma explosão discursiva em torno do conceito de identidade, ao passo que há, de igual forma, um contínuo processo de desconstrução das perspectivas identitárias.

A resposta à pergunta/debate proposta por Hall exige uma certa ‘cartografia da identidade’, o que nos coloca diante da categoria diferença como produto ou processo das construções identitárias.

O debate que se inicia a partir de uma lógica estruturada em sistemas binários de pensamento coloca em foco narrativas identitárias como o anúncio do que é revelado, de forma imediata, o que não se é. Assim, uma identidade define/marca uma diferença.

As identidades se tornam, assim, marcadores da diferença. Como nos alerta Woodward22 Woodward K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Silva TT, organizador. Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes; 2011., a marcação da diferença, a partir de uma identidade, realiza-se por meio de ‘sistemas simbólicos’ de representação como por processos de exclusão social.

Tais sistemas simbólicos de representação, quando pensados em coletivos, estão no limite de se tornarem um ‘pensamento do cotidiano’, para usar um termo utilizado por Heller33 Heller A. O Cotidiano e a História. São Paulo: Editora Paz e Terra; 1998.. A mesma autora disseca essa noção ao refletir como ele está na base do surgimento do preconceito. Para Heller33 Heller A. O Cotidiano e a História. São Paulo: Editora Paz e Terra; 1998., processos de ultrageneralização em torno de um juízo de valor são capazes de conformar, ao longo da história, uma noção de que tal juízo de valor é uma verdade absoluta, logo, pessoas ou grupos sociais que escapam àquele juízo tendem a vivenciar processos de exclusão social.

Dessa forma, a diferença pode ser vista como algo que foge à verdade previamente introjetada como antagonista de certas identidades. Assim, aciona circuitos singulares e coletivos que são reificadas em permanentes processos de ultrageneralização.

O preconceito acaba por nos remeter às formas relacionais em que se dá a tensão entre identidade e diferença. As formas e os processos de significação e subjetivação e os contextos em que emergem os processos de diferenciação acabam por significar e ressignificar ao longo da história o que vai ser alocado como outro binarismo que atravessa corpos singulares e coletivos; o que vai ser chamado de normal/anormal. A diferença, em tal contexto, constitui-se em um processo de autoafirmação do outro, que resiste à violência física e simbólica gerada sobre si a partir de uma identidade vista como normal44 Fleuri RM. Silêncios e Irrupção das diferenças. In: Ferrari A, Marques LP, organizadores. Silêncios e Educação. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2011..

Esse processo de diferenciação e aparente antagonismo entre identidade e diferença acaba por determinar o que irá ser facilmente chamado de identidades hegemônicas, configurando escalas sociais de valor em que uns terão maior respeitabilidade e aceitabilidade social do que outros.

Um dos exemplos mais visíveis desse processo de estratificação e hierarquização social a partir das relações entre identidade e diferença pode ser encontrado nas representações sociais e culturais referidas às identidades de gênero e sexualidades. Já é bem conhecido, entre os estudiosos do tema, o clássico diagrama desenvolvido por Rubin55 Rubin G. Pensando sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu. 2003; (21):1-88. ao colocar em oposição o que denomina ‘círculo encantado versus limites exteriores’.

Tal diagrama revela, no interior do ‘círculo encantado’, identidades associadas ao ‘bom, normal, natural’, ao passo que, de forma antagônica, os ‘limites exteriores’ assentam as diferenças como vinculadas ao ‘mau, anormal, não natural’.

Com isso, é colocado em curso, ao longo da história, um aparente jogo entre identidades e diferenças a partir de narrativas entre o bem e o mal, o certo e o errado, o moral e o imoral, a virtude e o pecado que resultam, no âmbito dos temas que envolvem gênero e sexualidades, na alocação do homem, heterossexual, casado e monogâmico como sendo o desejo das sociedades ocidentais.

De igual forma, é expressão desses desejos: a mulher, heterossexual, casada, monogâmica e com filhos, porém um degrau abaixo dos homens. Aí, descortina-se um pequeno gradiente de diferença no interior de identidades hegemônicas. Aqui, não se trata apenas de uma simples dualidade em que se opõem binarismos histórico e culturalmente produzidos, mas sim de compreender que um polo binário pode ser constituído de múltiplos polos binários em seu interior.

Como pensar múltiplos diferentes

Uma lógica heteronormativa rege a sequência que presume que, ao nascer, um corpo deve ser designado como macho ou como fêmea, o que implicará, por conseguinte, assumir o gênero masculino ou feminino e daí, expressar desejo por alguém do sexo/gênero oposto ao seu... uma vez que a lógica que sustenta tal processo é binaria, torna-se insuportável (e impensável) a multiplicidade dos gêneros e das sexualidades. Aqueles e aquelas que escapam da sequência e das normas regulatórias arriscam-se, pois, no domínio da abjeção66 Louro GL. Foucault e os estudos queer. In: Rego M, Veiga-Neto A, organizadores. Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica; 2009.(138–139).

A lógica que permite a existência e a manutenção de uma distinção fundamentada no binário macho/fêmea e na exclusão social de todos os corpos que ultrapassam ao bem delimitado limite tolerável segue povoando o cotidiano das sociedades, especialmente em países onde os alicerces de um estado de bem-estar social ainda são frágeis ou inexistentes.

A existência, em diferentes graus de intensidade, de um certo ‘humanismo tolerante’ cria a sensação de bem-estar e de conformidade, o que torna os processos discriminatórios e, por conseguinte, a violência simbólica e física às comunidades LGBTQIA+ pouco visíveis ou vistos como casos isolados.

Aliás, a palavra tolerância já pressupõe a existência de um outro inferior/diferente/abjeto a ser tolerado. O tamanho dessa diferença determina o grau de tolerância daquele que se encontra dentro da norma e dos padrões regulatórios de uma sociedade em relação aos outros que, de alguma forma, escapam às diferentes formas de regulação social.

Como nos alerta Butler77 Butler J. El género en disputa. Buenos Aires: PAIDÓS; 2019., um sistema binário infere a estabilidade na distinção sexo/gênero. Entretanto, a própria autora aponta a existência de uma ‘descontinuidade radical’ entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos.

Ainda que a descontinuidade e até a ruptura do sistema sexo/gênero possam encontrar corpos que ultrapassam e/ou se coloquem nas fronteiras bem delimitadas pelo binarismo, nada garante sua aceitabilidade social. A multiplicidade de variações entre sexo e gênero já tratou de borrar fronteiras a partir de corpos que ousam sempre novas e desafiadoras formas de estar e viver.

O diferente, como expressão e afirmação de viver sem a intermediação da tolerância como mobilizadora da relação com o outro, não é capaz de barrar diversos atravessamentos moldados no seu corpo a partir da experiência da injúria. A injúria, como um ato de linguagem repetido a ponto de se tornar um ‘enunciado performativo’, recoloca em pauta o lugar dos normais. Como afirma Eribon88 Eribon D. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora; 2008.(29), “a injúria me diz o que sou na medida em que me faz ser o que sou”.

Na construção do sujeito desviante, e sob o corpo daquele que será alocado no lugar da diferença, cruzam-se narrativas judaico-cristãs e biomédicas que, no tempo, ganham arcabouço jurídico-legal que regulamenta a punição aos transgressores. Essas, por sua vez, irão gerar, no âmbito das sociedades, maior discriminação e acabam por reforçar práticas fóbicas.

Assim, os múltiplos corpos diferentes que rompem a estabilidade binária identidade/diferença acabam por construir o que vou denominar visibilidades invisíveis, ou seja, na medida que corpos avançam no limite histórico que delimita a fronteira da transgressão, tornam outros corpos transgressores menos visíveis. Retornamos aqui ao mesmo tipo de escala hierárquica tão bem refletida por Rubin. Esse aparente retorno nos coloca perante outra questão: esse movimento de ‘flutuações’ entre visibilidade e não aceitação tende a se tornar o parâmetro em que sempre haverá corpos (mais transgressores do que outros) que são mais discriminados que outros agora relacionados com o grau de visibilidade social?

Os avanços em relação à legislação que protege e criminaliza a homofobia ainda parecem insuficientes para algo que está profundamente enraizado no imaginário social. Sobre isso, as palavras de Borrilo99 Borrilo D. Homofobia história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2010.(107) servem de alerta:

A violência e a discriminação, em relação aos homossexuais ocorrem, frequentemente, diante da maior indiferença da população. Com certa regularidade, ficamos sabendo que numerosos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais vivem com temor de serem agredidos simplesmente por causa de sua orientação sexual.

Trataremos mais à frente desse tema, por ora, é preciso ter em mente que, para além das bem-vindas legislações de proteção social, elas podem ter pouco efeito na sua capacidade real de gerar proteção social. Há algo que escapa e se coloca como um fantasma a pairar toda tecitura social e política.

Compreendemos que “nomear alguém como homem ou mulher, como sujeito de gênero e de sexualidade, significa nomeá-lo segundo as marcas distintas de uma cultura”1010 Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2004.. As consequências dessa marcação, nos corpos nomeados, serão sentidas, em especial, naquelas que ficarão à margem do conjunto de direitos que não irão acessar, ainda que lhes seja cobrado um conjunto de deveres.

De qualquer forma são desafiadoras, intrigantes para não dizer incompreensíveis, as perguntas lançadas por Lanz1111 Lanz L. O Corpo da Roupa; a pessoa trânsgenera entre a conformidade e a transgressão das normas de gênero. Curitiba: Editora Transgente; 2015.(373):

Por que, em pleno século XXI, continua sendo prática corrente a negação dos direitos civis das pessoas transgêneras, direitos de cidadania que são assegurados, sem nenhuma restrição, aos homens e mulheres cisgêneros? O que fundamenta, explica e justifca o estigma, a invisibilização social, a privação de oportunidades e a indigência legal-moral a que são condenadas as pessoas transgêneras em nossa sociedade?

Isso considerando o fato de que o País segue com altas taxas de violência e morte contra as populações LGBTQIA+, em especial, aquelas transgêneros; e palavras como ‘ideologia de gênero’ e ‘agenda de costumes’ seguem a atravessar discursos políticos e religiosos que resultam em aumento dos processos discriminatórios e, como consequência, a manutenção dos ciclos de violência.

Sociedade, agendas e fobias

Do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o anti-semitismo, a homofobia é uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos homens. Crime abominável, amor vergonhoso, gosto depravado, costume infame, paixão ignominiosa, pecado contra a natureza, vício de Sodoma – outras tantas designações que, durante vários séculos serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo99 Borrilo D. Homofobia história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2010.(13).

A presença do outro, diferente, será, nessas condições, uma permanente condição de vulnerabilidade. Quando o outro ganha a condição de ameaça (porque não deveria existir) e ameaçado (porque sua existência é condição de risco), tudo o que se refere à alteridade deixa de existir.

O tema da alteridade, por sua vez, acaba por ser implicado em um jogo de construção/reconstrução de uma duplicidade de olhares entre o que eu rejeito e o que me atrai. A ambiguidade acaba por favorecer um potencial velamento de tudo o que existe, mas não é suportável revelar e conviver no dia a dia de cada indivíduo em seus modos de viver a vida.

Nesse aspecto, é possível comparar um estudo feito por Carlos Skliar sobre diferentes formas de abordar o racismo. No referido estudo, Skliar aponta a discriminação como:

Um tipo de tratamento diferencialista, quer dizer, uma produção específca de alteridade que penaliza, aquilo que no ocidente, foi e é nomeado, ainda hoje com o eufemismo minorias1010 Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2004.(70).

Assim, a construção do ser diferente, no âmbito das sexualidades, acaba por proporcionar um mecanismo político que relega à diferença um valor de visibilidade invisível, ou seja, traz visibilidade aos sujeitos da diferença desde que seus corpos possam ser olhados como potencialmente masculinos. Corpos sexuados passam a constituir um potente marcador do que pode ou não existir e, principalmente, de como devem se comportar ao ser concedida uma provisória autorização para existir.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Hall S. Quem precisa de uma identidade? In: Silva TT, organizador. Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora vozes; 2011.
  • 2
    Woodward K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Silva TT, organizador. Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes; 2011.
  • 3
    Heller A. O Cotidiano e a História. São Paulo: Editora Paz e Terra; 1998.
  • 4
    Fleuri RM. Silêncios e Irrupção das diferenças. In: Ferrari A, Marques LP, organizadores. Silêncios e Educação. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2011.
  • 5
    Rubin G. Pensando sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu. 2003; (21):1-88.
  • 6
    Louro GL. Foucault e os estudos queer. In: Rego M, Veiga-Neto A, organizadores. Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica; 2009.
  • 7
    Butler J. El género en disputa. Buenos Aires: PAIDÓS; 2019.
  • 8
    Eribon D. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora; 2008.
  • 9
    Borrilo D. Homofobia história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2010.
  • 10
    Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2004.
  • 11
    Lanz L. O Corpo da Roupa; a pessoa trânsgenera entre a conformidade e a transgressão das normas de gênero. Curitiba: Editora Transgente; 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    24 Out 2022
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