Mecanismos de governança, instituições societárias e burocracia estatal: reflexões sobre instituições societárias e porosidade governamental

José Mendes Ribeiro Sobre o autor

RESUMO

Este ensaio discute os mecanismos de governança participativa no setor público a partir de teorias sobre liberdades civis, democracias dialógicas, formações burocráticas estatais e reformas de governança pública. O objetivo foi analisar a repercussão desses temas em agendas e alternativas de políticas de governança pública e participativa no Brasil com ênfase nos conflitos entre governantes, políticos, funcionários, grupos de interesses e coalizões civis em disputa nos processos decisórios. O artigo assinala o caráter híbrido da democracia brasileira, em que o universalismo weberiano e a orientação às instituições de Estado de Bem-Estar que foram entrelaçados na matriz constitucional de 1988 operam em competição com duas outras lógicas – por um lado, a herança estamental da burocracia pública e, por outro, as iniciativas de governanças horizontais e participativas. As contradições dinâmicas entre esses quatro eixos definirão a competição pelo aparelho de Estado no contexto atual.

PALAVRAS-CHAVES
Governança; Burocracia estatal; Participação societária

Introdução

Este artigo discute, a partir de ideias influentes sobre democracia política, as alternativas de mudanças institucionais por governanças participativas no setor público. Como pano de fundo, está a estrutura hierárquica clássica da construção do Estado moderno e as dinâmicas entre cidadãos, governantes, organizações políticas e funcionários públicos.

O objetivo principal é realizar uma reflexão sobre essas ideias e suas repercussões para governança pública no Brasil contemporâneo. O tipo de influência desses atores em instituições de governo define as configurações dos Estados modernos. Esses contornos remontam aos ciclos revolucionários e às crises sociais desde o século XVII. Outrossim, as revoluções inglesa, norte-americana e francesa são as suas marcas permanentes.

Em termos de pluralismo político e representação dos grupos sociais consolidados na revolução industrial, as principais mudanças que repercutem no cenário atual ainda são as decorrentes da montagem do Estado de Bem-Estar europeu do pós-guerra.

Faz-se, a partir dessas ideias, uma reflexão sobre os conflitos entre hierarquias verticais e governanças horizontais que moldam as estruturas do Estado. Esses são dilemas da porosidade governamental aos meios de participação de indivíduos e de organizações civis. Esses movimentos são identificados no caso brasileiro como ponto de chegada deste artigo.

O relaxamento de controles hierárquicos não implica resultados virtuosos. Podem gerar obstáculos como a formação de novos estamentos ou maior vulnerabilidade a grupos de interesses particulares na competição pelos fundos públicos.

A participação societária que penetra em meio a controles verticais (hierarquias) e arranjos horizontais (governanças) pode produzir níveis variáveis de porosidade governamental.

Este artigo faz uso autores selecionados segundo suas vantagens ao argumento desenvolvido. Adotam-se, como critério de validade, a lógica e a coerência dos argumentos para fins de convencimento, aceitação e aplicação das proposições conforme as tradições da análise de políticas11 Majone G. Evidence, argument, and persuasion in the policy process. New Haven: Yale University Press; 1989.. O modelo analítico segue critérios adotados na recente atualização desse campo do conhecimento para o cenário brasileiro22 Vaitsman J, Ribeiro JM, Lobato L. Policy Analysis in Brazil. Bristol: Policy Press/University of Bristol; 2013..

A porosidade governamental é definida como a capacidade do governo e da burocracia pública de criar e sustentar instituições participativas e indutoras da ação de grupos sociais e de cidadãos para compensar as desvantagens e desigualdades inerentes às economias de mercado. É parte dos mecanismos de governança participativa presentes no debate político contemporâneo.

Nesta análise, faz-se uso da:

  1. i) Tradição democrática de participação dos cidadãos livres na produção de governos e no exercício de pressões sociais sobre governantes e funcionários em favor de políticas equitativas;

  2. ii) Repercussão do tipo de trocas políticas que afetam governanças participativas.

O texto está organizado em tópicos sobre: i) liberdades civis e formas de democracia; ii) racionalidades burocráticas e formação do aparelho de Estado; iii) trajetórias institucionais e mecanismos de governança e iv) formação do aparelho de Estado brasileiro.

Nas considerações finais, são apontados os elementos de maior permanência política e que são relevantes para a identificação das alternativas políticas em disputa no cenário brasileiro.

Liberdades civis e formas de democracia

A construção de instituições políticas e democráticas sustentáveis e adaptáveis à sociedade exibe uma longa história de disputas por ideias. Países atravessam períodos de mudanças e estão sujeitos a conflitos extrainstitucionais que afetam essas instituições, e inovações podem recriar outras trajetórias. Tais ciclos de ruptura e mudanças refletem os conflitos distributivos dessas sociedades.

Questões como maximização de liberdades civis, formação de burocracias estatais, funções de governos e políticas fiscais recobrem ciclos centenários. Dentre estes ciclos, destacam-se as repercussões da revolução industrial, do capitalismo organizado e regulado do pós-guerra e as crises distributivas dos arranjos neocor-porativos de bem-estar social nos anos 1970.

Entre os principais dilemas políticos do século XXI, está a capacidade das instituições democráticas de regular, organizar e enfrentar as tendências do sistema capitalista de produzir desigualdade social em larga escala. As utopias democráticas que formatam esse tipo de capacidade de governo são consistentes com a defesa de mecanismos de tomada de decisões e de governanças dotadas de espectros participativos mais amplos.

Justiça social (fairness) é tratada, em termos abstratos, como resultado da escolha de regras constitucionais de proteção mútua feitas por indivíduos que desconhecem previamente suas desvantagens primárias (véu da ignorância). Esse é o conceito estabelecido por John Rawls33 Rawls JA. Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press; 1971. e utilizado neste artigo para tratar do princípio de equidade em ambientes democráticos.

Na busca por padrões de democracias, Macpherson44 Macpherson CB. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978. formulou uma tipologia evolutiva a partir da tradição liberal inglesa do século XIX até proposições de democracia participativa não experimentadas sistematicamente.

O conceito de democracia protetora tem vínculos originais com o pensamento utilitarista, pelo qual o melhor conjunto de leis seria o que promovesse a ‘maior felicidade’ para o maior número de pessoas. Essa é a sua expressão clássica. O papel dos governos seria a compensação dos efeitos marginais negativos que resultam do excesso de riqueza produzida e apropriada de modo não equivalente proporcionalmente para a maximização da ‘felicidade coletiva’. Essa seria possível apenas com a distribuição proporcional da riqueza produzida.

Essa é a contradição básica do argumento utilitarista sobre as funções de governo na promoção do livre mercado. O caráter protetor desse tipo de democracia é definido como a defesa dos cidadãos livres perante a ‘opressão dos funcionários’. Esses são os mesmos funcionários que a sociedade emprega em sua defesa e para controlar os danos da concentração de riqueza. Por esse argumento circular, o voto universal (mitigado por franquias de exclusão seletiva) protegeria os cidadãos do excesso de ‘felicidade’ dos governantes. Uma regulação efetuada pelo direito seletivo ao voto.

Os eventos críticos, como o movimento sufragista e feminista inglês, as revoluções populares de seu tempo e a difusão do pensamento marxista na sociedade definiram os limites do utilitarismo e foram percebidos por Stuart Mill em seu clássico escrito em 185955 Mill JS. On Liberty. London: Penguin Books; 2010.. Contextos importam, como a elaboração anterior, em 1848, do Manifesto Comunista escrito por Marx e Engels66 Marx K, Engels F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo; 2021. e os seus efeitos sobre a ação coletiva do operariado da revolução industrial.

Mill55 Mill JS. On Liberty. London: Penguin Books; 2010. submeteu o princípio da maximização da liberdade individual a uma análise lógica a partir de exemplos do cotidiano ( jogo, prostituição, assembleias majoritárias) e especulou acerca de regras para limitar a ação tirânica de governos e sociedade sobre os indivíduos. Ou seja, a busca por regras e valores – filosofia moral e sociologia – para o tênue equilíbrio entre independência individual, delegação governamental e valores sociais.

A proteção da tirania de governos decorre dos mecanismos adotados para a sua formação e substituição. No entanto, a proteção dos indivíduos perante a tirania existente na própria sociedade parte da premissa de que esta sociedade não é virtuosa em si. Premissa, aliás, de atualidade sempre renovada.

O princípio da autoproteção delimita o direito da sociedade de interferir na liberdade de ação de cada um, seja por força física, penalidades ou coerção moral pela opinião pública. O único motivo pelo qual o poder poderia ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, seria o de impedir o mal sobre os outros. Fazer mal a si próprio, seja física ou moralmente, não seria motivo suficiente.

Nessa formulação, está ausente o pensamento freudiano prestes a nascer. A abrangência do que se considera produzir mal aos outros é tratada de modo especulativo e lógico.

Nesse pacote de ideias, entram medidas para limitar a autonomia (e felicidade) dos governantes. No entanto, chama a atenção o destaque dado à tirania exercida por maiorias circunstanciais e que oprimem minorias de diversos tipos. Postula-se a proteção contra a tirania da opinião e sentimentos dominantes e a tendência de a sociedade impor suas próprias ideias e práticas, na forma de regras de comportamento, sobre aqueles que destoam. Ou seja, de evitar a formação de ‘qualquer individualidade em desarmonia com os seus caminhos’55 Mill JS. On Liberty. London: Penguin Books; 2010.. Percebe-se um temor (político) da ação de multidões de desfavorecidos e um temor (sociológico) aos constrangimentos morais por tiranias circunstanciais dentro de qualquer grupo ou coletivo na vida cotidiana.

As liberdades civis tratadas em sentido ampliado são um dos principais pilares dos sistemas democráticos. Todavia, não o único.

Macpherson44 Macpherson CB. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978. aponta corretamente que a abordagem de Mill sobre o que chamou de modelo desenvolvimentista é a que melhor representa a democracia liberal enquanto marca política e os seus limites. O argumento utilitarista original de proteção foi retomado a partir das evidências de que as condições de vida dos trabalhadores são obstáculos cruciais ao autodesenvolvimento individual. A aceitação da distribuição desigual da propriedade e da divisão social do trabalho foi contraditada pelos níveis ‘exagerados’ em que opera.

As injustiças distributivas são, para Stuart Mill, uma herança feudal na formação do capital. A propósito, Thomas Piketty77 Piketty T. Capital et Idéologie. Paris: Éditions du Seuil; 2019., em sua recente análise sobre a persistência histórica da desigualdade social, atribui a sua longa permanência e resistência aos ciclos revolucionários e democráticos a heranças institucionais advindas das sociedades ternárias e divisões verticais em ordens típicas do feudalismo europeu (e de sociedades não europeias moldadas por divisões em ordens similares).

Lembra Macpherson44 Macpherson CB. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978. que muitas elites consideravam o voto universal, orientado ao desenvolvimento dos indivíduos, um risco de que os trabalhadores majoritários comprometessem os ditos ‘justos méritos’ dos capitalistas. A solução adotada foi o voto plural, porém sujeito a franquias eleitorais com exclusão seletiva dos pobres. Essa ‘domesticação da franquia democrática’ deu-se pelo êxito do sistema partidário em controlar a democracia, esvaziar a participação social e produzir uma ‘democracia de equilíbrio de caráter elitista e pluralista’ – um sistema simplesmente autorizativo de governos.

Diversas tipologias de regimes democráticos têm sido propostas com base nesse papel da participação societária, seja na produção de governos, seja em períodos entre eleições. Merece destaque a obra de caráter original de Robert Dahl88 Dahl R. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1989. escrita em 1956 sobre a formação e a dinâmica de poliarquias constituídas a partir das tradições políticas madsonianas. Essa matriz de um tipo singular de pluralismo enfatiza que as dinâmicas democráticas no cotidiano entre os ciclos eleitorais é parte do tema essencial acerca dos arranjos democráticos consensuados e negociados em corpos políticos intermediários e tratados mais adiante.

O caráter elitista das democracias estimula os anseios por uma democracia participativa. Lembra Macpherson44 Macpherson CB. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978. que a baixa participação democrática e a desigualdade social são eventos mutuamente influenciados. Essa imagem foi fortalecida a partir dos movimentos do que designa como ‘nova esquerda’ desde os anos 1960 (movimentos estudantis e de trabalhadores em escala mundial).

Dois padrões são divisados. Um deles na forma piramidal e direta a partir de assembleias locais e sucessivas formações de conselhos. O outro combinando um aparelho piramidal direto com um sistema partidário delegativo.

São abstrações ainda em busca de suas experiências virtuosas. Historicamente, os sistemas híbridos se impuseram, como no caso do Estado de Bem-Estar social europeu do pós-guerra. O caráter híbrido, mesmo entre poliarquias variadas segundo sistemas eleitorais e regras de acordos regulares entre organizações pico e instituições de intermediação política, forma a base institucional e os pontos críticos das democracias contemporâneas. As trajetórias históricas mostram, em doses variáveis, as ideias disputadas sobre poliarquias, arranjos neocorporativos, concertação política e câmaras setoriais. Ou seja, o papel dos corpos intermediários de mediação.

As instituições do Welfare State desenvolveram-se em países que apresentaram ciclos duradouros de crescimento econômico em meio à ampliação de seus sistemas de proteção social e de expansão das classes médias. A magnitude da redução da desigualdade social, entretanto, variou conforme o caso e a sustentabilidade no tempo. Pikkety77 Piketty T. Capital et Idéologie. Paris: Éditions du Seuil; 2019. reconhece essa redução circunstancial, porém, relativiza o seu impacto sobre a concentração de renda quando comparada à maior redução observada nos períodos das grandes guerras mundiais. Formulações relacionando o ciclo de ouro do Welfare State como um tipo de capitalismo regulado ou organizado estimularam as crenças sobre a compatibilidade entre democracia, equidade e mercados regulados por preços, salários, processos produtivos e impostos.

Entretanto, não apenas a ação de corpos intermediários, como em poliarquias, podem favorecer a proteção social. Outras dimensões sociológicas para além de Stuart Mill são consideradas na criação de instituições protetoras. Ao longo dos anos 1990, Putnam99 Putnam RD. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1996. estudou o desempenho institucional entre as regiões na Itália a partir da reforma de criação dos governos regionais dos anos 1970. Esse desempenho comparativo entre regiões mostrou uma alta correlação positiva entre bom governo, modernidade econômica e vida associativa intensa. O pano de fundo é o tradicional contraste norte-sul italiano. Argumentou que a variável mais significativa para explicar tais diferenças foi a comunidade cívica: as regiões do norte possuíam uma vida associativa mais intensa e relações sociais mais horizontais. A comunidade cívica resulta de atributos participativos, como igualdade política, solidariedade, confiança e tolerância; e promove estruturas sociais de cooperação. Houve maior clientelismo político em que as comunidades cívicas eram mais frágeis. Tradições cívicas de longa maturação histórica influenciaram a formação dessas comunidades e compuseram a base de formação do capital social como o fator principal para o desenvolvimento socioeconômico e a qualidade de governo.

Lijphart1010 Lijphart A. Patterns of Democracy: government forms and performance in thirty-six countries. Yale: Yale University; 1999. analisou a convergência entre democracias pactuadas e consensuadas e melhor proteção social. Por meio de pesquisa comparada entre democracias que atenderam a critérios rigorosos de inclusão, foram identificados dois modelos polares: o majoritário, em que a regra da concentração de poderes oriunda de maiorias políticas determina a ação governamental; e o consensuado, no qual a partilha de poderes segundo regiões, comunidades ou culturas estrutura a ação dos governos por meio de acordos reiterados. Essas configurações atravessam sistemas distintos – unitários e federativos; parlamentaristas e presidencialistas –, porém, os resultados indicaram que as democracias consensuadas possuem maior propensão a padrões superiores de desenvolvimento econômico e social.

Controvérsias à parte – e existem –, análises desse tipo favorecem as crenças de que processos decisórios dialógicos, mais lentos e contraditados por meio da ampliação do escopo das arenas decisórias favorecem a proteção coletiva e a sustentabilidade política sem obstruir os ciclos econômicos virtuosos.

No entanto, houve uma atualização desse temário em função da chamada crise do Welfare State dos anos 1970. Contudo, isso deve ser matizado pelos efeitos já sentidos de mudanças no mundo do trabalho, da emergência política de identidades individuais e da fragilização das identidades coletivas do industrialismo. Em tais condições, os sistemas de legitimação do capitalismo regulado (ou organizado) típicos do Welfare State foram tensionados, e seus reflexos atuais são evidentes. Autores como Offe1111 Offe C. Disorganized Capitalism: Contemporary Transformations of Work and Politics. Cambridge: MIT Press; 1985. foram exemplares na análise da crise do modelo organizado/regulado e a reemergência de um capitalismo desorganizado, embora em padrões distintos da revolução industrial. São ecos de percepções difundidas sobre sociedades pós-industriais como expressão da crise de identidades do trabalho e de seus vínculos tradicionais com os partidos políticos de esquerda. Tais contextos se refletem no modo como as governanças participativas são atualmente estruturadas por fora das tradicionais organizações pico de caráter nacional.

Racionalidades burocráticas e formação do aparelho de Estado

A estrutura da burocracia pública é essencial para o desenvolvimento de governanças participativas. Burocracias insuladas e protegidas por monopólio profissional e de carreiras funcionais estabelecem limites de autoridade e conhecimento especializado. Quando esse perfil assume a dimensão política estamental, favorece a emergência de barreiras interpostas por interesses organizados mais bem posicionados no processo decisório.

Tais temas são tratados por teorias sobre burocracias estatais e empresariais e ganharam impulso a partir do século XIX. Além disso, conhecimentos foram acumulados sobre o funcionamento do Estado moderno e dos seus meios de coerção legítima. Outrossim, capacidades políticas e fiscais e sistemas valorativos se entrelaçaram desde as revoluções ocidentais exemplares dos séculos XVII (inglesa) e XVIII (americana e francesa). Nesse sentido, duas tradições intelectuais permanecem influentes – weberianismo e institucionalismo.

Max Weber tratou a racionalidade burocrática como um legado intelectual, e o seu tratado publicado postumamente em 1920 – ‘Economia e Sociedade’1212 Weber M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora da UNB; 1999. – é exemplar da sua abordagem sociológica. A sua teoria articula-se intimamente com a experiência histórica. Seus conceitos ganharam forma nos tipos ideais que marcaram sociologia política e permanecem como referência obrigatória. É clássica a tese sobre os mecanismos de dominação necessários à consolidação de crenças na sua legitimidade e as formas de dominação – afeição, costume e interesses. Uma burocracia racional-legal e confiável capaz de produzir normas e garantir a sua execução forma a base da obediência que, por sua vez, resulta dessa legitimidade e favorece a aceitação da dominação.

Esses tipos ideais (abstratos) coabitam no tempo e no espaço e evoluem conforme o caso. Para Weber1212 Weber M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora da UNB; 1999., seja por necessidade primária ou pelas experiências analisadas, as formas de dominação racional-legal favoreceram o desenvolvimento social em sociedades capitalistas e a sua vinculação a regimes democráticos. Democracias formalizadas e embebidas em burocracias elitistas.

A questão da legitimação é nuclear para a abordagem weberiana e tem sido tratada como um atributo necessário na estrutura normativa do Estado moderno. Está presente nas teorias críticas do pós-guerra; e a análise de Habermas1313 Habermas J. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro; 1994. desenvolvida em 1973, nos primórdios da chamada crise do Welfare State, trata desse tema como uma crise da regulação legítima no Estado protetor, regulado e organizado. Nesse sentido, as questões de legitimidade do aparelho de Estado preservam a sua centralidade no mundo da política.

Voltando, então, às questões de dominação legítima, ao contrário das formas carismáticas (ordens vinculadas ao líder ou a revelações) e tradicionais (legitimidade dos hábitos, das tradições ou dos senhores), as burocracias racionais sustentam-se em interesses racionais e na legitimidade das ordens instituídas e expressas no direito de mando por superiores nomeados e segundo critérios e práticas impessoais. Assim, todo o direito (pactuado ou imposto) pode ser instituído de modo racional e orientado pelos fins almejados e por valores professados.

Trata-se de um tipo ideal e, portanto, abstrato, que opera como uma ideia que induz a tomada de decisões. É inevitável lembrar dos ecos do pensamento hegeliano nesse modelo e dos argumentos atuais de institucionalistas discutidos mais adiante.

No Estado moderno sob o protagonismo da dominação racional-legal, o direito é instituído enquanto regras abstratas aplicáveis ao caso particular e administrado segundo hierarquias impessoais e pelo exercício contínuo de funções oficiais segundo competências específicas. As regras decorrem de normas e de postulados elaborados por especialistas, e a sua aplicação exige alta qualificação profissional dos funcionários que representam o quadro administrativo dessas associações racionais. Na empresa, observa-se (ou preconiza-se) uma separação absoluta entre o capital e o patrimônio privado. No Estado, há separação absoluta entre propriedade pública e privada e entre local de trabalho e domicílio dos funcionários. O cargo público não é propriedade do seu detentor.

Trata-se do mundo dos especialistas certificados por instituições legais e do predomínio do conhecimento científico sobre os atributos carismáticos de líderes ou da subordinação a tradições religiosas, familiares ou nobiliárquicas.

Nesse tipo de burocracia, os cidadãos não especialistas e os entes coletivos não participam das decisões críticas ou rotineiras. A participação dá-se nas eleições de modo a produzir governos; estas também sujeitas a procedimentos democráticos de natureza racional-legal e mediadas pelos seus especialistas – os políticos.

Não surpreende que o modelo weberiano esteja no centro dos conflitos nas reformas de governança em favor da maior participação de cidadãos e comunidades cívicas nas decisões públicas.

Os funcionários da burocracia racional são moldados pelas carreiras profissionais e são politicamente livres. Obedecem apenas às obrigações do cargo, têm competências funcionais fixas e são selecionados por qualificação profissional verificada. Seus salários são fixos e escalonados de modo hierárquico e desfrutam de proteções de carreiras que privilegiam a senioridade e a eficiência. O resultado esperado é uma disciplina sujeita a uma cadeia de comando central na qual o dirigente exerce o mando conforme as suas restrições legais. O controle do poder de Estado pode resultar de processos de maior legitimidade (virtude, eleição) ou menor (apropriação, herança).

O modelo resulta da maximização da técnica, da especialização profissional, da documentação explícita e do formalismo absoluto e pressupõe o recrutamento universal dos mais qualificados.

Tal tipo de insulamento funcional e de monopólio profissional, por sua vez, gera pontos de veto à influência de indivíduos e grupos externos ao quadro funcional, como já destacado. As decisões não especializadas e aceitas são as dos políticos, ou seja, os únicos profissionais legitimados por eleições e mandados. Estes também estão sujeitos às normas jurídico-legais desenhadas pelos especialistas (juristas) e sancionadas constitucionalmente. Trata-se de um jogo fechado e normativo.

Para Weber1212 Weber M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF: Editora da UNB; 1999., essa dominação é neutra, ‘sem ódio e sem paixão’. Também nesse ponto, como na questão do utilitarismo inglês, o contraponto político próximo é o pensamento de Marx e Engels. O caráter da dominação no Estado capitalista resulta de conflitos irreconciliáveis entre classes sociais segundo dinâmicas contraditórias entre as forças produtivas e suas relações de produção66 Marx K, Engels F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo; 2021.. O marxismo original prestou menor atenção às dinâmicas internas de formação da burocracia pública.

Em contextos recentes, especialistas chamam a atenção para as reformas administrativas que levam ao maior relaxamento do modelo racional-legal e centralizado e em favor de governanças mais abertas no sentido societário. Peters1414 Peters G. The future of governing: four emerging models. Lawrence: University Press of Kansas; 1996., 1515 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Public Adm. and Policy. 2009; 2(1):7-24. considera os mecanismos decisórios conforme os seus graus variáveis de descentralização política e territorial ou de verticalização burocrática. Aponta para o caráter pendular das orientações dessas reformas por gravitarem entre ‘mais weberianismo, menos weberianismo’.

Silberman1616 Silberman BS. Cages of Reason: the rise of the rational state in France, Japan, USA and Great Britain. Chicago: The University of Chicago Press; 1993., em estudo de natureza histórico-institucionalista, argumenta que a formação de burocracias é afetada pelo nível de confiança que lideranças têm nas regras de sucessão governamental. A formação de burocracias organizacionais (próximas ao tipo racional-legal weberiano) resulta do elevado grau de incerteza política no processo sucessório de produção de governos. Por outro lado, ambientes de maior certeza sobre os mecanismos sucessórios tendem a produzir burocracias profissionais caracterizadas por maior circulação de especialistas por fora das carreiras e hierarquias públicas. Nesses casos, os núcleos burocráticos insulados e as estruturas permanentes de Estado são mais seletivos e de menor alcance. Os casos estudados segundo trajetórias históricas – França, Japão, Estados Unidos da América e Grã-Bretanha – são de países que obtiveram alto desenvolvimento político e socioeconômico; e, para Silberman, o tipo de racionalização burocrática adotado não foi um fator decisivo para estes resultados.

Nesse argumento, a racionalidade burocrática atende a dois tipos de orientação: a orientação profissional (Estados Unidos da América e Grã-Bretanha), caracterizada pela perícia individual adquirida e regulada pelo treinamento das profissões e que define a entrada (e saída) nos níveis mais elevados da administração; e a orientação organizacional (França e Japão), que, por sua vez, envolve um forte controle sobre acesso e uso da informação obtido pela entrada precoce em escolas de carreiras burocráticas. Nesses casos, as carreiras são previsíveis, a hierarquia predomina e a especialização tem características departamentais. Sua configuração assemelha-se à matriz racional-legal weberiana.

Burocracias com orientação organizacional envolvem: i) acesso ao serviço público restrito aos dotados de treinamento formal e superior; ii) previsibilidade funcional e redução de incertezas; iii) cargos superiores limitados aos servidores de carreira; iv) promoções baseadas em regras claras e senioridade; v) especialização departamental; e vi) autonomia às intervenções externas.

Burocracias com orientação profissional envolvem: i) qualificação profissional como principal critério de entrada direta em cargos superiores; ii) status profissional predominante sobre o das carreiras funcionais; iii) especialização dá-se em ambientes externos e de autorregulação profissional; iv) recrutamento de profissionais formados em instituições diversas reduz os incentivos à adesão precoce às escolas de administração pública; v) maior flexibilidade de entrada, entrada lateral, promoção por rendimento, flexibilidade de contrato e maior autonomia; e vi) carreiras menos sistemáticas.

Essa tipologia sobre processos de racionalização burocrática pode ser adotada em estudos sobre casos híbridos e comparados segundo trajetórias.

A hipótese sobre o hibridismo institucional pode ser testada empiricamente no caso brasileiro a partir de elementos teóricos apontados neste ensaio e das condições críticas de escolha política observadas na Constituição Federal de 1988. Nesse caso, o ambiente de incerteza política pelo fim do regime militar favoreceria a formação de burocracias weberianas insuladas e em competição e coabitação com as heranças estamentais históricas discutida no último tópico deste artigo.

Trajetórias institucionais e mecanismos de governança

Para analisar processos decisórios em ambientes democráticos e de alta complexidade decisória, conceitos da economia institucional têm sido aplicados a temas como governança e agência. Abordagens microeconômicas, como as de Williamson1717 Williamson OE. The mechanisms of governance. New York: Oxford University Press; 1996., que tratam de decisões tomadas quando a racionalidade é limitada pela complexidade tecnológica e especificidade dos ativos, têm sido aplicadas para analisar os efeitos desse tipo de contrato sobre arranjos institucionais bem específicos, como no chamado modelo agência. Tais teorias expandiram-se para apoiar análises das relações entre provedores de serviços e burocracias públicas.

As implicações teóricas e metodológicas entre racionalidade, regras institucionais e tomada de decisões são parte de um campo de conhecimento reconhecido pelos seus principais expoentes. Uma série de atualizações e balanços desses estudos, e que remontam às primeiras reflexões sobre teorias da firma de várias décadas de amadurecimento, está disponível. Um balanço em forma de ensaio realizado por James March1818 March JG. A primer on decision making: how decisions happen. New York: Free Press; 1994. a partir de suas aulas, e instigado por seus alunos, e exemplar da articulação entre a base conceitual e o desenho de pesquisas. Serve de referência para a linguagem utilizada neste artigo.

As implicações da perspectiva temporal em processos decisórios, por sua vez, seguem os argumentos de Pierson1919 Pierson P. Politics in Time: History, Institution, and Social Analysis. New Jersey: Princeton; 2004. discutidos a seguir.

As noções de path dependence e de trajetórias políticas de autorreforço são essenciais para a análise de mudanças institucionais. A influência de eventos segundo timing e sequência são resumidas por Pierson1919 Pierson P. Politics in Time: History, Institution, and Social Analysis. New Jersey: Princeton; 2004.: i) equilíbrio múltiplo (condições de partida seguidas por feedbacks positivos circunscrevem os resultados em faixas determinadas); ii) contingência (eventos pequenos ocorridos no momento certo podem ter consequências duradouras); iii) timing (momento pode ser crucial, partes iniciais podem ter mais influência do que as posteriores e evento tardio pode ter efeito menor do que em timing diferente); e iv) inércia (quando se consolida, o feedback positivo induz um equilíbrio único e resistente à mudanças).

Há, portanto, questões relevantes sobre trajetórias políticas e dependência institucional:

  1. a) A história é parte do modelo decisório, e a sequência de eventos afeta a dinâmica de mudanças;

  2. b) As trajetórias que melhor se consolidam resultam de mútua influência entre retornos positivos (positive feedback) e dependência do caminho (path dependence);

  3. c) Retornos crescentes são indutores de ciclos vencedores, e obstáculos repetidos podem levar a trajetórias interrompidas, mudanças de caminhos ou cristalização de estruturas de veto;

  4. d) Eventos aleatórios que percorrem estruturas seletivas geram sequências dependentes;

  5. e) Mudanças e vetos decorrentes da consolidação de trajetórias fazem parte do jogo político e competição por agendas e alternativas.

Teorias de caráter institucionalista têm sido aplicadas em contextos de limites racionais para a tomada de decisões não apenas pelas conhecidas assimetrias informacionais, mas pela própria estrutura valorativa e normativa das instituições. Dessa forma, as mudanças tendem a ocorrer segundo um certo grau de incrementalismo embutido em regras e valores e afetados por sequências históricas de eventos críticos.

É o caso do debate aberto pelo gerencialismo dos anos 1980 acerca da estrutura governamental e a sua capacidade política. É exemplar da emergência de eventos decorrentes de crises em sistemas de proteção social nos anos 1970 e das disputas entre distintas orientações políticas e partidárias acerca das funções e dos procedimentos dos governos e de sua estrutura burocrática.

A revisão de Hood2020 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19. sobre as políticas do New Public Management (NPM) pôs em evidência os fundamentos dessa agenda de reformas do setor público voltada à sua horizontalização, descentralização e abertura à ação societária. São conhecidos os seus efeitos ambíguos ou contraditórios. No primeiro ciclo dessas reformas, houve a superposição política da agenda de redução das funções do Estado típica do antigo utilitarismo inglês e do mimetismo de processos gerenciais de empresas privadas.

O ideário político de redução do escopo de intervenção do Estado (menos regulação) e de maior privatização de empresas públicas (reformas patrimoniais) predominou em governos conservadores. Enquanto uma agenda genérica, a NPM sofreu críticas e adaptações. Notou-se, em determinados casos, a permanência de ideias em favor de mecanismos participativos de governança mais voltados a busca por qualidade e capacidade de governos em produzir melhores resultados sociais. Contudo, isso deve ser analisado conforme cada caso, e parte desse ideário dissolveu-se no tempo pelas próprias limitações do gerencialismo empresarial contrabandeado ao aparelho de Estado.

Análises críticas a alguns de seus fundamentos ou à sua aplicação em caráter normativo se sucederam2121 Pollitt C. Is the Emperor In His Underwear?: An analysis of the impacts of public management reform. Public Manag. 2000; 2(2):181-199., 2222 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexity, requisite variety, and requisite irony. Department of Sociology. Lancaster: Lancaster University; 2003., 2323 Pollitt C, Bouckaert G. A Comparative Analysis: New Public Management, Governance, and the Neo-Weberian State. Oxford: Oxford University Press; 2011.. No entanto, determinados componentes foram absorvidos em agendas contemporâneas e redefinidos como itens de reformas orientadas à governança local e global. Agências globais de cooperação como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)2424 Organisation for Economic Co-operation and Development. Open Government: The Global Context and the Way Forward. Paris: OECD Publishing; 2016. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264268104-en.
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têm difundido e redesenhado essas ideias como proposições de “governo aberto” cujas implicações ainda carecem de melhor compreensão e análise de seus efeitos.

Hood2020 Hood C. A Public Management for all seasons? Public Adm. 1991; 69(1):3-19. resumiu os elementos que permaneceram da herança doutrinária da NPM em busca por: gestão profissional e responsabilização direta; metas e indicadores bem definidos de desempenho; predomínio do controle de resultados sobre o procedimental; separação de financiamento e provisão de serviços públicos; estratégias de descentralização contratada; adoção de estilos de gestão do setor privado por ferramentas validadas; e disciplina e parcimônia orçamentária.

Enquanto agenda política, há um conflito aberto com o modelo weberiano verticalizado e insulado. Há também um maior borramento de fronteiras entre Estado, Sociedade e Mercado.

Os conflitos políticos envolvidos são conhecidos, especialmente quanto à redução da capacidade de governo em promover a agenda política apoiada em eleições gerais1515 Peters BG. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The J. Public Adm. and Policy. 2009; 2(1):7-24. e uma série de limitações em estratégias de controle de captura por interesses privados. Há também a questão das desigualdades sociais em meio às armadilhas políticas do trade off entre eficiência e equidade. Análises críticas de Offe2525 Offe C. Governance: an ‘empty signifier’? Constellations. 2009; (16):550-562., sobre governança, e de Jessop2222 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexity, requisite variety, and requisite irony. Department of Sociology. Lancaster: Lancaster University; 2003., sobre as falhas de governança, são contrapontos a serem considerados.

Tais mecanismos de governança buscam combinar responsabilização administrativa e relações contratuais de prestação de serviços ao setor público. A difusão de agências regulatórias para dar conta desses contratos e a participação de cidadãos impulsionaram a formação de organizamos colegiados locais ou setoriais. Esses novos arranjos são moldados por diálogo e negociações em contraposição, por um lado, às estruturas decisórias de comando e controle, e, por outro, às trocas em mercados pouco regulados, por outro2222 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexity, requisite variety, and requisite irony. Department of Sociology. Lancaster: Lancaster University; 2003..

A governança caracteriza-se, portanto, por uma racionalidade reflexiva em que o critério de sucesso é definido pelo consenso negociado. A sua forma organizacional típica são as redes. Os cálculos feitos pelos participantes do jogo decisório respondem a critérios predominantemente políticos.

As falhas não decorrem primordialmente de ineficiência econômica ou de comandos ineficazes, mas na forma de ‘ruídos’, ‘falatórios’ ou digressões excessivas que obstruam os processos decisórios. Os ganhos, por sua vez, são evidentes quando promovem consenso, equidade e sustentabilidade. A adaptação contínua é a norma. Estratégias de metagovernança (comparações com processos virtuosos) são utilizadas no enfrentamento a tais falhas de governança2222 Jessop B. Governance and Metagovernance: on reflexity, requisite variety, and requisite irony. Department of Sociology. Lancaster: Lancaster University; 2003..

O desenvolvimento de mecanismos participativos nas democracias tem nexo direto com essas formas de governança e de seus desafios.

Formação aparelho de Estado brasileiro

Os itens anteriores trataram de desafios e alternativas de governança pública que têm implicações diretas para o Brasil.

O conflito entre lógicas patrimonialistas (captura do Estado por grupos empresariais, elites políticas e estamentos do funcionalismo graduado) e lógicas equitativas (instituições e políticas de redução de desigualdades sociais e proteção aos vulneráveis) é exemplar da sua relevância política.

Duas análises, distintas e vigorosas, ajudam a organizar esse tema e a adoção de pressupostos analíticos sobre o contexto atual da regulação pública.

A formação do aparelho de Estado brasileiro foi analisada, entre muitos outros grandes autores, por Raimundo Faoro2626 Faoro R. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2021. em seu trabalho seminal de 1958 e revisado em 1973 em sua versão definitiva. O patrimonialismo de acepção weberiana foi traduzido no modo singular como a formação de estamentos burocráticos marcou historicamente a formação desse Estado. O modo único pelo qual o patrimonialismo moldou as relações entre Estado e Sociedade no Brasil foi resultado da influência histórica do feudalismo ibérico no qual os monarcas estabeleceram relações centralizadas e não delegáveis aos nobres, aristocratas e burgueses. Pode-se dizer, para fins comparativos, que essas relações, ao contrário do feudalismo típico do norte europeu, foram pouco contraditadas pelos poderes locais e regionais.

A lógica centralizada e de monopólio de propriedade dos principais recursos de poder (status e territórios) formaram a base da patronagem e do clientelismo que perdurou nos diferentes ciclos de governos civis e militares da república no Brasil. Esse patrimonialismo singular desenvolveu-se por meio de uma lenta, penetrante e progressiva formação de estamentos burocráticos no interior do Estado e expressa em seus funcionários. Esses estamentos buscaram obter, histórica e incrementalmente, o controle de recursos de poder em diferentes regimes políticos. Ademais, o princípio ordenador da formação do Estado brasileiro foi o ‘capitalismo politicamente orientado’ no qual a realidade mostrou ‘a persistência secular da estrutura patrimonial’ sempre que exposta aos diferentes ciclos e formas do capitalismo.

Há um tripé2626 Faoro R. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2021. entre: i) patrimonialismo, como elemento ordenador; ii) estamento burocrático, como construção longamente estabelecida e singular; e iii) capitalismo politicamente orientado, enquanto modelo que se modifica no tempo, nos ciclos políticos e econômicos e preserva os controles estamentais na burocracia pública.

Os ecos da dominação política do tipo bonapartista são explícitos, e o diálogo com as teses de Marx e Engels sobre Estado autônomo foi bem estabelecido por Faoro2626 Faoro R. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2021. no seu instigante capítulo final.

Os efeitos duradouros das estruturas estamentais longamente consolidadas operam como vetos a mecanismos participativos em disputa por espaço político no ordenamento administrativo e regulatório. Há bloqueio ao desenvolvimento de comunidades cívicas e de capital social no sentido posto por Putnam.

Edson Nunes2727 Nunes E. A Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997., por sua vez, estudou as trajetórias históricas desde o ciclo varguista e partiu, coincidentemente, do ponto de chegada de Faoro. Demonstrou a busca contínua pela contenção das lógicas de patronagem. Os caminhos alternativos que competiram por soluções, as ‘gramáticas políticas’, seguiram a partir das lógicas do corporativismo, do insulamento burocrático contingencial e do universalismo de inspiração weberiana.

Há uma ênfase nas formas de intermediação política e social, e cada padrão opera em disputa continuada. Cabe relembrar cada modelo que atua em competição contínua. Cada estratégia teve momento de maior impacto, porém a matriz clientelista mostrou-se duradoura enquanto expressão patrimonialista.

O clientelismo é tratado como uma ‘pirâmide de relações’ sociais entre partidos políticos, burocracias e arranjos estamentais (‘cliques’). O ‘universalismo de procedimentos’ foi a expressão utilizada para identificar iniciativas políticas de formalização do primado das normas, da impessoalidade e da igualdade de direitos perante a lei no arcabouço burocrático nacional.

Estratégias de ‘insulamento burocrático’ manifestaram-se como ‘ilhas de racionalidade’ e de especialização técnica. O controle do clientelismo se daria, então, pela redução do escopo da arena em que interesses e demandas particularistas exercem influências.

O corporativismo foi a forma dotada de maior institucionalidade e tradição social. Dá-se na forma de um forte estatuto legal que reflete a busca por racionalidade funcional. Por sua natureza, é uma lógica em oposição à informalidade do clientelismo2727 Nunes E. A Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997..

As concepções de Faoro2626 Faoro R. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2021. e Nunes2727 Nunes E. A Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997. podem ser utilizadas para analisar os resultados institucionais, valorativos e normativos da Constituição de 1988. Em uma situação crítica de transição para a democracia política, a inspiração weberiana de caráter racional-legal é reconhecida pela adoção do universalismo de procedimentos na formação de um funcionalismo público renovado e na estrutura dos órgãos regulatórios. O arcabouço constitucional final incorporou, também, estruturas que ecoaram o Estado de Bem-Estar europeu do pós-guerra.

No entanto, a lógica estamental também renovada permanece como entrave à maior capacidade de governo e à sua porosidade às comunidades cívicas. Esses entraves somam-se às características assinaladas anteriormente das hierarquias de comando e controle e de monopólio funcional nas relações com as coalizões civis de justiça social.

Por outro lado, o relaxamento dos controles de mérito e de especialização profissional deve ser balizado pelos riscos de apropriação dos recursos de status e de fundos públicos por agentes econômicos, corporações civis e militares, coalizões políticas de interesses particularistas (igrejas, negócios) e formas difusas de patronagem.

As instituições da Constituição de 1988 deram origem a uma convergência inovadora e virtuosa ao buscar integrar procedimentos universalistas não estamentais com os direitos de cidadania do Estado protetor. Algumas implicações atuais para o desenvolvimento de modelos de pesquisa e de alternativas de governanças participativas são apontadas a título de considerações finais.

Considerações finais

Os problemas relacionados com as ações da sociedade por justiça em meio a instituições democráticas foram analisados a partir de autores de referência e de reflexões sobre os temas selecionados.

A democracia política foi discutida a partir da maximização das liberdades civis e suas implicações para a proteção social (competição e consenso); das racionalidades burocráticas na formação do aparelho de Estado (weberianismo e profissionalização paraestatal); e das trajetórias de mudanças em de governança (incrementalismo, delegação e descentralização).

A construção histórica das liberdades civis e a sua maximização como fator de proteção a tiranias do aparelho de Estado e da sociedade exibem uma longa tradição do liberalismo político. Seja pelo incrementalismo típico do utilitarismo inglês, seja pelos ecos da revolução francesa na definição de direitos públicos do povo como classe social, o liberalismo político transformou-se no tempo e por releituras por dentro de diversas teorias democráticas e sob intensa disputa partidária e intelectual.

Somem-se a isto, no apogeu da revolução industrial, os efeitos da crítica marxista sobre o caráter classista da dominação do Estado moderno e da seletividade das noções de liberdades civis serviram de potente contraditório. Nisso, foi acompanhado, em seguida, pela influência dos sistemas protetores do Welfare State que relaxaram os pressupostos econômicos do pensamento liberal.

O conjunto dessas influências aproximou o princípio da maximização do bem-estar individual ao de bem-estar coletivo. As formas de democracia foram se diversificando e ampliando espaços políticos para maior penetração social e políticas redistributivas e equitativas.

Essas transformações estão longe de exibir qualquer tipo de linearidade e sentido de determinação unívoca. Essa utopia política é um processo em construção e sem garantias de um fim da história.

No entanto, as trajetórias de mudanças institucionais e as teorias aplicadas ao seu estudo revelam um caminho promissor. A formação do aparelho de Estado moderno é crucial para pensar a democracia em sua dimensão distributiva e societária.

O aparelho de Estado sob o protagonismo pouco contraditado de carreiras e de funcionários insulados e dotados de elevado status técnico e coercitivo é um evidente obstáculo ao desenvolvimento de governanças participativas e equitativas.

A resposta tradicional do utilitarismo inglês original, por outro lado, não resolve essas restrições pelo fato de enfatizar as funções da sociedade na proteção à tirania dos governantes. A agenda política resultante acaba por minimizar as funções de proteção e equidade para as quais os governos são essenciais.

Por sua vez, o Estado contratualizado, descentralizado e monitorado externamente por profissionais, coalizões de defesa, agências e arranjos dialógicos tem o desafio de coagir a sua captura por interesses assimetricamente dominantes e de preservar a sua orientação consensuada, concertada e socialmente justa.

São temas tradicionais na formação das democracias e que repercutem no caso brasileiro.

O Brasil representa um caso híbrido devido à sua formação histórica. O caráter estamental coabita com lógicas seletivas de controle do patrimonialismo por meio de ações coletivas corporativas ou por elites técnicas. Movimentos típicos de plutocracias ou de disputa contínua de corporações econômicas e elites empresariais pelo controle do aparelho de Estado operam em sinergia com estamentos do capitalismo politicamente orientado. Em seu conjunto, reduzem a capacidade dos governos na promoção de justiça social.

O hibridismo assinalado deu-se como resposta à Constituição de 1988, em que o universalismo de procedimentos de inspiração weberiana (ou napoleônica) foi inseminado de modo sofisticado, complexo e virtuoso com os objetivos e valores do Estado de Bem-Estar europeu do pós-guerra.

Esse hibridismo em movimento expressa o conflito político e a agenda de reformas participativas e equitativas para a sociedade brasileira do século XXI. As mudanças em favor da expansão dos mecanismos de governança participativa, despida de suas influências de minimização do Estado protetor, representam o principal desafio para o desenvolvimento político, social e econômico.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2022
  • Aceito
    24 Maio 2022
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