RESUMO
A gestão no Sistema Único de Saúde (SUS) requer das equipes gestoras a compreensão e o desenvolvimento de um conjunto de habilidades e competências que os auxiliem no cotidiano e nos desafios da gestão pública. Este artigo apresenta um processo de Educação Permanente em Saúde (EPS) desenvolvido com equipes gestoras de duas regiões de saúde do Paraná, com intuito de ampliar o olhar dos participantes para a reorganização da gestão e da implementação do SUS no território, pautado na interdisciplinaridade. Trata-se de um relato de experiência desenvolvido com equipes gestoras, realizada no ano de 2019, apresentado em cinco seções: a primeira descreve o contexto em que a experiência foi desenvolvida, elucidando motivos, atores e a localidade em que ocorreu; a segunda apresenta a proposta de trabalho, a confecção das oficinas e os recursos metodológicos utilizados; a terceira relata o caminho percorrido na sua operacionalização; a quarta discute as características de interdisciplinaridade existentes no processo de EPS e a última apresenta algumas considerações. A proposta mostra-se como uma potente estratégia para promover o diálogo entre diferentes atores e instituições, principalmente no contexto de crise sanitária e fiscal do Estado, qualificar e tornar reflexivo o trabalho no campo da gestão em saúde.
PALAVRAS-CHAVE
Educação permanente; Interdisciplinaridade; Interprofissionalidade; Gestão do SUS.
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) é reconhecido como um sistema em construção, permeado por diferentes desafios, interesses hegemônicos e de mercado. Apesar disso, apresenta em sua trajetória inúmeros avanços que devem ser reconhecidos, tais como: a ampliação do acesso a serviços e ações de saúde e contribuições significativas na melhoria do estado de saúde dos brasileiros11 Santos NR. SUS 30 anos: o início, a caminhada e o rumo. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1729-36..
A gestão desse sistema, cujos princípios são a universalidade, a integralidade e a equidade, é uma tarefa árdua e muito complexa para os entes federal e estadual, mas, em especial, para o ente municipal, considerando as diversas responsabilidades assumidas a partir do processo de descentralização22 Silva CR, Carvalho BG, Cordoni Júnior L, et al. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1109-20..
Diante disso, os participantes do cotidiano da gestão do SUS devem aperfeiçoar-se constantemente e sempre buscar novas alternativas de atuação, além de compreender suas atribuições, considerando que a gestão adequada é uma potente estratégia para a efetivação das políticas de saúde. A complexidade da gestão do SUS envolve o desenvolvimento da articulação e da integração entre os diferentes serviços de saúde, usuários e trabalhadores33 Araújo NP, Miranda TOS, Carvalho Garcia CP. O estado da arte sobre a formação do enfermeiro para a gestão em saúde. Rev Enferm Contemp. 2014 [acesso em 2021 ago 15]; 3(2). Disponível em: https://www5.bahiana.edu.br/index.php/enfermagem/article/view/365.
https://www5.bahiana.edu.br/index.php/en... com vistas a ofertar um cuidado que responda às necessidades da população. Associado a isso, o gestor deve, além de dominar conhecimentos técnicos relativos à gestão, também desenvolver habilidades políticas, visto que a consolidação do SUS ocorre em espaços de disputas de poder, em que estão presentes as contradições e os desafios no cotidiano44 Melo MLC, Nascimento MÂA. Treinamento introdutório para enfermeiras dirigentes: possibilidades para gestão do SUS. Rev Bras Enferm. 2003; 56(6):674-7..
Destaca-se que a compreensão dessas duas dimensões (técnica e política) e de sua indissociabilidade auxilia quanto ao entendimento dos desafios vivenciados pelos gestores e suas equipes de apoio no exercício de suas funções55 Domingos CD, Mendonça FF, Carvalho BG. Os desafios de ser gestor. In: Carvalho BG, Cordoni Junior L, Nunes EFPA, organizadores. Gestão da saúde em pequenos municípios: o caso do norte do Paraná. Londrina: Eduel; 2018. p. 125-41..
Desse modo, estratégias de formação para equipes gestoras são fundamentais para a concretização dos princípios e diretrizes do SUS. Quando tais estratégias ocorrem por meio da integração entre segmentos do ensino e do serviço, tendo como embasamento o desenvolvimento do processo de Educação Permanente em Saúde (EPS), potencializam-se as transformações da realidade e o compartilhamento de saberes em espaços coletivos.
A EPS considera a relevância social do processo ensino-aprendizagem, é pautada no mundo do trabalho, de forma que o trabalhador atue como protagonista sendo, dessa forma, um método para a ressignificação do conhecimento e do exercício profissional. Essa metodologia agrega saberes técnicos e científicos, dimensões éticas da vida, do trabalho, do ser humano, da saúde, da educação e das relações, favorecendo, dessa maneira, a aprendizagem significativa e transformadora das práticas profissionais no cotidiano do trabalho66 Ceccim RB, Ferla AA. Educação Permanente em Saúde. In: Pereira IB, Lima JCF, organizadores. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 162-168. [acesso em 2018 jun 1]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l43.pdf.
https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/defau... ,77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília. 22 Ago 2007..
Experiências de EPS são comuns entre as equipes de trabalho no âmbito assistencial88 Lavich CRP, Terra MG, Mello AL, et al. Ações de educação permanente dos enfermeiros facilitadores de um núcleo de educação em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm. 2017 [acesso em 2021 jan 25]; 38(1). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472017000100403&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
9 Ferla AA. More Doctors Program and work development: a continuing education effect. Interface - Comun Saúde Educ. 2019; 23(supl1):e180679.-1010 Medeiros GT, Nascimento FAF, Pavòn RG, et al. Educação Permanente em Saúde Mental: relato de experiência. Interface (Botucatu). 2016; 20(57):475-84.. Contudo, no campo da gestão, tais estratégias ainda são tímidas. Desse modo, esta experiência apostou em desenvolver estratégias de EPS com as equipes gestoras do SUS, partindo de uma perspectiva interdisciplinar, pois as funções gestoras requerem e necessitam de uma articulação de diferentes campos disciplinares (geografia, ciência política, administração pública, contabilidade, sociologia, antropologia, epidemiologia, biologia, direito sanitário, entre outras).
A interdisciplinaridade é aqui entendida como uma convergência entre as disciplinas envolvidas, desencadeando um real entrosamento entre elas, e o estabelecimento de um canal de trocas entre os campos relativos a uma ou mais funções a serem desempenhadas conjuntamente1111 Furtado JP. Arranjos institucionais e gestão da clínica: princípios de interdisciplinaridade e interprofissionalidade. CBSM. 2011 [acesso em 2021 jun 25]; 1(1):178-89. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68439.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs... ,1212 Velloso MP, Guimarães MBL, Cruz CRR, et al. Interdisciplinaridade e formação na área de saúde coletiva. Trab. Educ. Saúde. 2016; 14(1):257-71..
Dessa forma, este relato de experiência tem como objetivo apresentar o processo de EPS com equipes gestoras na perspectiva da interdisciplinaridade como estratégia para ampliar seu olhar para a reorganização da gestão e da implementação do SUS.
A descrição da experiência está organizada em cinco seções: a primeira descreve o contexto em que ela foi desenvolvida, elucidando os motivos, os atores e a localidade em que essa ocorreu; a segunda apresenta o desenvolvimento da proposta de trabalho; a terceira, por sua vez, relata como se deu o caminho percorrido para sua operacionalização; a quarta discute os resultados mediante as características da interdisciplinaridade existentes no processo de EPS; e, por fim, a quinta seção apresenta algumas considerações sobre a experiência desenvolvida.
Contexto de desenvolvimento
O presente processo de EPS surgiu em virtude da necessidade de fortalecer as equipes no que se refere à capacidade de gestão em saúde. Para tanto, inicialmente, os trabalhadores das Regionais de Saúde (RS) envolvidas nesse processo realizaram um levantamento com os gestores e integrantes das equipes gestoras municipais, acerca das principais fragilidades e necessidades na gestão do SUS. Nessa etapa, foram identificados gestores com pouca experiência, capacidade gestora local incipiente, indefinição de equipes para atuar na gestão em alguns municípios e sobrecarga de atribuições e atividades.
A partir das demandas identificadas e com o propósito de qualificar as equipes para exercerem as diversas funções gestoras que permeiam um sistema de saúde complexo e robusto como o SUS, foi constituído um grupo condutor. Esse grupo foi liderado por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina e representantes da 16ª e 17ª RS, os quais deram início à formulação de um processo de EPS, que envolveu desde a concepção pedagógica, carga horária e metodologia, até a elaboração de cadernos de apoio.
Tais regiões localizam-se na macrorregião norte do Paraná e, juntas, possuem 38 municípios, dos quais mais de 80% são de pequeno porte. Por Município de Pequeno Porte (MPP), compreendem-se aqueles que possuem menos de 20 mil habitantes1313 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social PNAS/ 2004. Brasília, DF: MDS; 2005..
Esses territórios são considerados altamente desenvolvidos socioeconomicamente, com média/alta oferta de serviços de saúde1414 Região e Redes. Caminhos para a Universalização da Saúde no Brasil. Banco de Indicadores Regionais e Tipologias, 2016. [acesso em 2019 jun 30]. Disponível em: http://www.resbr.net.br.
http://www.resbr.net.br... . No entanto, as características sociais e econômicas, bem como de serviços de saúde, não são homogêneas entre os municípios que compõem as duas regiões.
O grupo condutor foi formado por representantes da instituição de ensino e profissionais com experiência prática na gestão dos serviços de saúde das regiões mencionadas, destacando-se as seguintes formações: enfermeiros, farmacêuticos, administradores e gestores públicos, o que gerou ao processo uma perspectiva interprofissional e interdisciplinar.
Além de envolver diferentes profissões/formações, a constituição do grupo condutor permitiu a integração ensino-serviço, tão importante no processo de implementação do SUS, oportunizada pela característica do grupo de pesquisa em construir parcerias com outros atores, sendo que, nesse processo, a articulação se deu nas RS.
Ressalta-se que essa experiência integra um projeto maior, que tem como objetivo investigar as estratégias de cooperação para a regionalização em regiões de saúde no Paraná, o qual foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual os pesquisadores estão vinculados e aprovado pelo parecer nº 3.120.681.
Desenvolvimento da experiência
A execução do processo de EPS ocorreu no período de abril a dezembro de 2019, por meio de seis oficinas de trabalho, em resposta às necessidades apresentadas pelos gestores e integrantes das equipes gestoras municipais. Destaca-se que, para garantia da certificação aos participantes, esse processo foi cadastrado como um curso de extensão, tendo como objetivo discutir e embasar o desenvolvimento das macrofunções gestoras.
A primeira oficina teve como título ‘Ser gestor e Regionalização’; a segunda foi intitulada ‘Processo de Planejamento no SUS’; a terceira, como ‘Instrumentos de Gestão do SUS’; a quarta oficina promoveu a discussão sobre o financiamento em saúde, tendo como título ‘Gestão Orçamentária e Financeira’; o título da quinta oficina foi ‘Controle Social’; por fim, a sexta oficina foi denominada ‘Gestão do Trabalho e Educação em Saúde’.
A carga horária total desse processo de EPS foi de 50 horas; destas, 32 horas foram presenciais e 18 horas foram reservadas para momentos de dispersão. Para execução dessa atividade, os participantes foram divididos em pequenos grupos, e lhes eram atribuídas tarefas para que fossem realizadas em seus ambientes de trabalho. As tarefas tinham por objetivo possibilitar a aproximação da teoria discutida durante as oficinas às atividades práticas realizadas pelos participantes em seu cotidiano, trazendo subsídio para o esclarecimento de suas dúvidas e qualificação de seu processo de trabalho. As tarefas de dispersão eram desenvolvidas entre os intervalos das oficinas. As sínteses dos resultados alcançados eram apresentadas no início de cada novo encontro. O quadro 1 sintetiza os encontros, a duração, os objetivos, as metodologias e as atividades de dispersão.
Para elaboração e realização das oficinas, dos cadernos de apoio utilizados durante os encontros e em resposta às complexidades dos temas a serem trabalhados, os integrantes do grupo condutor buscaram a apropriação de conhecimentos de diferentes campos de saberes.
Os cadernos foram confeccionados na perspectiva metodológica da EPS, a partir das necessidades relatadas pelos participantes do processo. O seu conteúdo foi composto por estudos de casos com situações-problema e questões norteadoras para debates e reflexões em grupo. Também possuíam textos científicos que auxiliavam na compreensão dos temas discutidos durante as oficinas.
Ainda, conforme mencionado no quadro 1, durante as oficinas, foram utilizadas metodologias ativas, com a construção de um processo ensino-aprendizagem, embasado na problematização da realidade e o protagonismo dos participantes, buscando a construção/ressignificação do conhecimento a partir de múltiplos olhares e saberes.
Operacionalização do processo
Participaram dessa experiência 115 pessoas, sendo 65 da 16ª RS e 50 da 17ª RS. Os participantes foram secretários municipais de saúde, membros das equipes gestoras dos municípios, servidores das RS, trabalhadores dos consórcios públicos de saúde e apoiadores do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Paraná (Cosems-PR) de ambas as regiões. Os sujeitos foram informados sobre o objetivo do processo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido segundo as normas da Resolução nº 466/20121515 Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Pesquisas em seres humanos e atualiza a resolução 196. Diário Oficial da União. 14 Jun 2012..
As oficinas foram mediadas pelo grupo condutor constituído por docentes, estudantes de pós-graduação e servidores das RS. Na oficina de financiamento, o grupo condutor contou com o apoio complementar de assessorias técnicas com expertise no tema. Nessa ocasião, outros atores municipais atuantes nas áreas de planejamento e gestão orçamentária também participaram da oficina, com as equipes de gestão em saúde.
Durante os encontros, foi possível estruturar e assegurar espaços dialógicos, em que todos os envolvidos tiveram a oportunidade de realizar intercâmbio de dúvidas, experiências e saberes, constituindo relações solidárias e horizontais.
Ao final do ciclo de oficinas, os participantes realizaram sua avaliação enquanto estratégia de EPS e apontaram a necessidade de continuidade e multiplicação dos conteúdos em seus municípios. Como parte da avaliação, os participantes foram motivados a refletir, por meio de uma dinâmica, sobre o que o curso proporcionou, e, a partir deste, o que poderiam oferecer a seus companheiros de trabalho e à população de seu município, além de outras ideias que foram motivadas levando em conta a convivência com o grupo.
A realização da avaliação contribuiu não apenas para o grupo condutor aprimorar o processo de construção do trabalho de EPS como também favoreceu a sistematização da experiência vivenciada.
A interdisciplinaridade no processo de construção da EPS
O processo de EPS sob o prisma da interdisciplinaridade possibilita a construção de respostas às demandas no campo da gestão e da saúde pública. Isso porque a interdisciplinaridade apresenta-se como uma alternativa à mitigação da complexidade que significa gerenciar um sistema de saúde.
Ressalta-se que o termo interdisciplinaridade se refere à integração de saberes, já interprofissionalidade, à integração de práticas1111 Furtado JP. Arranjos institucionais e gestão da clínica: princípios de interdisciplinaridade e interprofissionalidade. CBSM. 2011 [acesso em 2021 jun 25]; 1(1):178-89. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68439.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs... , mediante a articulação intencional e colaborativa entre distintas profissões1616 Costa MV, Patrício KP, Câmara AMCS, et al. Pró-Saúde e PET-Saúde como espaços de educação interprofissional. Interface (Botucatu). 2015; 19(supl1):709-20.. Salienta-se que, embora os conceitos sejam diferentes, eles se complementam no processo de EPS.
Uma das características da interdisciplinaridade é exatamente permitir que os sujeitos tenham a capacidade de ampliar suas visões de mundo, visto que se instala um cenário propício para constantes trocas, interações entre disciplinas e entre diferentes campos de atuação, no interior de um mesmo propósito1717 Vilela EM, Mendes IJM. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2003; 11(4):525-31.,1818 Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013; 47(4):977-83..
Outros autores destacam que projetos interdisciplinares permitem uma maior aproximação entre educadores (facilitadores) e educandos (equipe gestora), consolidando uma relação de reciprocidade e compartilhamento de objetivos por meios dialógicos1212 Velloso MP, Guimarães MBL, Cruz CRR, et al. Interdisciplinaridade e formação na área de saúde coletiva. Trab. Educ. Saúde. 2016; 14(1):257-71..
Esse aspecto também foi observado na experiência desenvolvida ao aproximar diferentes conhecimentos entre múltiplas categorias profissionais que integram as equipes gestoras, resultando na construção de novos e amplos saberes acerca dos problemas enfrentados por esses profissionais do cotidiano da gestão do SUS. Nesse caso, ficou claro o quanto a interdisciplinaridade e a interprofissionalidade se complementaram e permitiram aos participantes ampliarem ainda mais sua capacidade de análise.
O quadro 2 apresenta uma sistematização das características presentes durante a experiência de EPS que coadunam com a interdisciplinaridade.
Uma das primeiras características que merecem destaque foi o respeito às demandas locais, que se configurou como ponto de partida para o processo. De acordo com Fazenda1919 Fazenda ICA. A integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? 6. ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas; 2011., a sensibilidade às necessidades do contexto é fundamental para a consolidação de ações de caráter interdisciplinar. Freire2020 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 53. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. também apontava para a necessidade de apreender acerca da realidade, na medida em que tal apreensão possibilita o conhecimento das diferentes dimensões que caracterizam o contexto, o que pode tornar até mais segura a prática sobre essa realidade.
Para além disso, ao considerar a necessidade local, também se evidencia o respeito que se possui em relação aos sujeitos. Aproveitar a experiência dos gestores e equipes para discutir problemas presentes no seu cotidiano é uma forma de valorização desses trabalhadores.
Outro aspecto importante e que também coaduna, sobretudo, com a interprofissionalidade foi a constituição do grupo condutor. O grupo, como mencionado anteriormente, era constituído por profissionais de diferentes formações e locais de atuação. Essa configuração propiciou a interação entre diferentes conhecimentos, contribuindo para a produção de novos saberes muito mais potentes para a resolução de um determinado problema1717 Vilela EM, Mendes IJM. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2003; 11(4):525-31.,1818 Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013; 47(4):977-83..
Desse modo, a experiência de aproximar os profissionais de ensino aos dos serviços de saúde configurou a integração ensino-serviço e potencializou o processo de EPS, por meio de um trabalho coletivo, integrado, cooperativo e pactuado. Além disso, a experiência permitiu a qualificação da atenção à saúde individual e coletiva, possibilitando o aprimoramento dos saberes dos profissionais da academia e o desenvolvimento de competências aos trabalhadores dos serviços de saúde2121 Vendruscolo C, Prado ML, Kleba ME. Integração ensino-serviço no âmbito do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(9):2949-60.,2222 Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia. Interface - Comun Saúde Educ. 2011; 15(39):1053-70., nos termos de que trata a literatura.
A opção metodológica focalizada em métodos ativos teve um papel primordial na produção de reflexões, ressignificações e empoderamento para atuação no campo da gestão, tanto para os participantes quanto para os integrantes do grupo condutor. A interdisciplinaridade, quando invocada para a criação de modelos pedagógicos, tende a estimular processos educativos, cujos participantes possuem um papel de protagonistas no processo de aprendizagem.
As oficinas foram, predominantemente, norteadas por problemas que faziam parte da realidade das equipes gestoras. Desse modo, tiveram um papel ativo na construção do processo de EPS ao considerar a criatividade e a liberdade de pensamento dos participantes. Essa ação é fortalecida na obra de Freire2323 Freire P. Pedagogia do oprimido. 53. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013. ao afirmar que a educação ‘bancária’, a qual julga os educandos desprovidos de saber, em nada contribui para uma educação emancipadora e crítica, que visa à mudança social.
Aponta-se também que a EPS tem como um dos seus princípios o uso de métodos ativos que objetivam a reflexão dos trabalhadores sobre o processo de trabalho. Essa reflexão deve ser desenvolvida com a maior diversidade profissional possível, no sentido de construir estratégias que abarquem diferentes saberes e que estejam mais próximas das necessidades do lócus de atuação2424 Jacobovski R, Ferro LF. Educação permanente em saúde e metodologias ativas de ensino: uma revisão sistemática integrativa. Rev Soc Dev. 2021; 10(3):e39910313391.,2525 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ E Saúde. 2008; 6(3):443-56..
O preparo do material pedagógico envolveu diferentes áreas de conhecimento e de atuação. Convém destacar que a gestão na área de saúde compreende o comando do sistema, das atividades e das responsabilidades exercidas pelos gestores e suas equipes, que permeiam diversas funções identificadas por Machado, Lima e Baptista2626 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Princípios organizativos e instancias de gestão do SUS. In: Oliveira RG, Grabois V, Mendes Junior WV. Qualificação dos gestores no SUS. 2. ed. Rio de Janeiro: EAD; ENSP; 2011. p. 47-72. como macrofunções gestoras do SUS, ou seja: formulação de políticas/planejamento; financiamento; regulação, coordenação, controle e avaliação (dos sistemas/redes e dos prestadores públicos e privados) e a prestação direta de serviços de saúde.
De modo abrangente, as fragilidades na gestão do SUS ocorrem, muitas vezes, devido à falta de clareza acerca dessas funções e das distintas competências das esferas de governo. Somam-se, ainda, as práticas clientelistas e corporativas nas indicações dos cargos diretivos em todos os níveis; insuficiente coordenação e entraves na comunicação interfederativa; baixa incorporação de tecnologias de gestão adequadas ao manejo de organizações complexas; bem como o inadequado processo de atuação do controle social, causando tensões e disputas, nem sempre condizentes às competências e à legitimidade entre as instâncias executivas do SUS e o aparato do controle social2727 Paim JS, Teixeira CF. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de Saúde: problemas e desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2007; 12(supl):1819-29..
A essas fragilidades, pode-se acrescentar ainda a alta rotatividade, bem como a limitação de alguns gestores no que se refere a capacidade técnica e eficiência da gestão municipal2828 Leite FLB. Fusão de municípios: impactos econômicos e políticos da diminuição do número de municípios em Minas Gerais. [dissertação]. Minho: Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho; 2014. 129 p.,2929 Krüger TR, Reis C. Organizações sociais e a gestão dos serviços do SUS. Serviço Soc Soc. 2019; (135):271-89..
Diante desses apontamentos, a atuação da equipe gestora no SUS deve ser materializada por meio do reconhecimento e da compreensão de suas funções, visto que, dessa forma, poderá exercê-las de maneira producente e coerente aos princípios do SUS e da gestão pública2626 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Princípios organizativos e instancias de gestão do SUS. In: Oliveira RG, Grabois V, Mendes Junior WV. Qualificação dos gestores no SUS. 2. ed. Rio de Janeiro: EAD; ENSP; 2011. p. 47-72.,3030 Souza L. Construindo o SUS: a lógica do financiamento e o processo de divisão de responsabilidades entre as esferas de governo. [dissertação]. Campinas: Universidade de Campinas; 2002. 102 p..
Nesse sentido, o material de apoio utilizado buscou contemplar essas diferentes funções gestoras e estabelecer articulação entre elas. Ressalta-se também que a execução das atividades de dispersão incentivou o compartilhamento de tarefas entre os participantes e permitiu a assimilação dos conteúdos teóricos e sua implementação ao cotidiano da prática de trabalho.
Importantes resultados foram percebidos a partir da experiência, como a interação entre os participantes; o aflorar do sentimento de pertencimento à equipe gestora dos profissionais atuantes nos municípios; e a importância da ação coletiva e cooperativa entre profissionais de diferentes áreas vinculados ao ensino e aos serviços de saúde.
Peduzzi et al.1818 Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013; 47(4):977-83. acrescentam que a prática interprofissional contribui ainda para a problematização e a ampliação da resolubilidade dos serviços e da qualidade da atenção à saúde, evitando omissões ou duplicações de atividades, qualificando a comunicação entre os profissionais, reconhecendo a participação específica de cada área de atuação e de seus limites e sobreposições, tornando versátil o papel dos profissionais.
Dessa forma, a experiência de EPS mostrou-se como uma estratégia inovadora na reorganização da gestão e na implementação do SUS nas regiões estudadas e apresenta-se ainda como uma potente estratégia cooperativa na superação dos desafios presentes no campo da saúde pública. Além disso, permite afirmar a importância do papel da ciência diante das lacunas de conhecimento em temas inerentes à gestão.
Considerações
A integração ensino-serviço exercida sob a perspectiva da interdisciplinaridade e da interprofissionalidade, utilizando metodologias de EPS, configurou-se como aspecto positivo para superar os desafios vivenciados na gestão do SUS, sendo capaz de promover transformações de realidades e colaborar para a consolidação da gestão desse sistema.
A relação dialógica entre os participantes do processo de EPS possibilitou o compartilhamento de dúvidas acerca da gestão, as quais foram tratadas sempre de forma colaborativa, contribuindo para atualizar conhecimentos mútuos.
A utilização de metodologias ativas durante as oficinas conferiu dinamismo ao processo ensino-aprendizagem. É importante ressaltar que parcerias firmadas entre universidades, secretarias municipais e estaduais de saúde, no atual contexto de crise sanitária e austeridade fiscal, possibilitam qualificar e tornar reflexivo o trabalho em saúde e confirma-se como uma prática relevante e motriz tanto aos profissionais das equipes gestoras quanto para os da academia.
Todavia, persiste o desafio de ampliar a realização de processos de EPS no campo da gestão do SUS, no sentido de qualificar e potencializar as práticas de gestão municipal e instrumentalizar as equipes para o aperfeiçoamento de sua atuação. Tais processos devem ser fortalecidos, sobretudo, no contexto atual, marcado por constantes ataques ao SUS, seja pela redução gradativa dos repasses dos recursos federais, os quais se intensificaram após a EC95, seja pelas alterações tanto na política de organização e financiamento da atenção primária quanto pelo aumento da terceirização da força de trabalho no SUS.
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Santos NR. SUS 30 anos: o início, a caminhada e o rumo. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1729-36.
- 2Silva CR, Carvalho BG, Cordoni Júnior L, et al. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1109-20.
- 3Araújo NP, Miranda TOS, Carvalho Garcia CP. O estado da arte sobre a formação do enfermeiro para a gestão em saúde. Rev Enferm Contemp. 2014 [acesso em 2021 ago 15]; 3(2). Disponível em: https://www5.bahiana.edu.br/index.php/enfermagem/article/view/365
» https://www5.bahiana.edu.br/index.php/enfermagem/article/view/365 - 4Melo MLC, Nascimento MÂA. Treinamento introdutório para enfermeiras dirigentes: possibilidades para gestão do SUS. Rev Bras Enferm. 2003; 56(6):674-7.
- 5Domingos CD, Mendonça FF, Carvalho BG. Os desafios de ser gestor. In: Carvalho BG, Cordoni Junior L, Nunes EFPA, organizadores. Gestão da saúde em pequenos municípios: o caso do norte do Paraná. Londrina: Eduel; 2018. p. 125-41.
- 6Ceccim RB, Ferla AA. Educação Permanente em Saúde. In: Pereira IB, Lima JCF, organizadores. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 162-168. [acesso em 2018 jun 1]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l43.pdf
» https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l43.pdf - 7Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília. 22 Ago 2007.
- 8Lavich CRP, Terra MG, Mello AL, et al. Ações de educação permanente dos enfermeiros facilitadores de um núcleo de educação em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm. 2017 [acesso em 2021 jan 25]; 38(1). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472017000100403&lng=pt&tlng=pt
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472017000100403&lng=pt&tlng=pt - 9Ferla AA. More Doctors Program and work development: a continuing education effect. Interface - Comun Saúde Educ. 2019; 23(supl1):e180679.
- 10Medeiros GT, Nascimento FAF, Pavòn RG, et al. Educação Permanente em Saúde Mental: relato de experiência. Interface (Botucatu). 2016; 20(57):475-84.
- 11Furtado JP. Arranjos institucionais e gestão da clínica: princípios de interdisciplinaridade e interprofissionalidade. CBSM. 2011 [acesso em 2021 jun 25]; 1(1):178-89. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68439
» https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68439 - 12Velloso MP, Guimarães MBL, Cruz CRR, et al. Interdisciplinaridade e formação na área de saúde coletiva. Trab. Educ. Saúde. 2016; 14(1):257-71.
- 13Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social PNAS/ 2004. Brasília, DF: MDS; 2005.
- 14Região e Redes. Caminhos para a Universalização da Saúde no Brasil. Banco de Indicadores Regionais e Tipologias, 2016. [acesso em 2019 jun 30]. Disponível em: http://www.resbr.net.br
» http://www.resbr.net.br - 15Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Pesquisas em seres humanos e atualiza a resolução 196. Diário Oficial da União. 14 Jun 2012.
- 16Costa MV, Patrício KP, Câmara AMCS, et al. Pró-Saúde e PET-Saúde como espaços de educação interprofissional. Interface (Botucatu). 2015; 19(supl1):709-20.
- 17Vilela EM, Mendes IJM. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2003; 11(4):525-31.
- 18Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013; 47(4):977-83.
- 19Fazenda ICA. A integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? 6. ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas; 2011.
- 20Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 53. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.
- 21Vendruscolo C, Prado ML, Kleba ME. Integração ensino-serviço no âmbito do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(9):2949-60.
- 22Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia. Interface - Comun Saúde Educ. 2011; 15(39):1053-70.
- 23Freire P. Pedagogia do oprimido. 53. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013.
- 24Jacobovski R, Ferro LF. Educação permanente em saúde e metodologias ativas de ensino: uma revisão sistemática integrativa. Rev Soc Dev. 2021; 10(3):e39910313391.
- 25Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ E Saúde. 2008; 6(3):443-56.
- 26Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Princípios organizativos e instancias de gestão do SUS. In: Oliveira RG, Grabois V, Mendes Junior WV. Qualificação dos gestores no SUS. 2. ed. Rio de Janeiro: EAD; ENSP; 2011. p. 47-72.
- 27Paim JS, Teixeira CF. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de Saúde: problemas e desafios. Ciênc. Saúde Colet. 2007; 12(supl):1819-29.
- 28Leite FLB. Fusão de municípios: impactos econômicos e políticos da diminuição do número de municípios em Minas Gerais. [dissertação]. Minho: Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho; 2014. 129 p.
- 29Krüger TR, Reis C. Organizações sociais e a gestão dos serviços do SUS. Serviço Soc Soc. 2019; (135):271-89.
- 30Souza L. Construindo o SUS: a lógica do financiamento e o processo de divisão de responsabilidades entre as esferas de governo. [dissertação]. Campinas: Universidade de Campinas; 2002. 102 p.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2023 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
25 Out 2021 - Aceito
08 Ago 2022