Comentários sobre o artigo ‘Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva’, de Nísia Trindade Lima

Comments on the article ‘Pandemic and interdisciplinarity: challenges for collective health’, by Nísia Trindade Lima

Gulnar Azevedo e silva Sobre o autor

O ARTIGO DE NíSIA TRINDADE LIMA11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24. DISCUTE DE FORMA MUITO CUIDADOSA e completa a interdisciplinaridade na saúde coletiva pontuando todas as questões implicadas no contexto social e econômico pelo qual passa o País e que, com a pandemia de Covid-19, potencializaram-se expondo ao máximo a grande desigualdade de nossa população.

Parte-se do fato que a pandemia foi o fenômeno sanitário mais grave que aconteceu nos últimos 100 anos e que, apesar de todo o avanço científico, ela ainda continua impondo questões novas e sem respostas imediatas, desafios que se colocam para assegurar minimamente um controle da situação são enormes. A superação desses desafios deve estar guiada, sobretudo, pela busca de estratégias que avancem em uma construção civilizatória e democrática para toda a humanidade. Nesse sentido, é tarefa essencial de pesquisadores da área da saúde coletiva trazer para a discussão quais questões precisam ser consideradas prioritárias no intuito de contribuir para enfrentamento da pandemia sem tirar do contexto o mundo em que vivemos e os marcos de uma epidemia que a cada dia apresenta fatos novos e graves.

A autora defende que “A interdisciplinaridade tem sido abordada como condição necessária ao enfrentamento de inúmeros desafios da sociedade contemporânea”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(10), colocando-se como uma resposta ao processo de hiperespecialização como legado da ciência moderna. Nesse ponto, em particular, é interessante notar, como atenta a autora, que essa discussão sempre esteve presente dentro da área de saúde coletiva no Brasil. Além disso, é natural que assim seja, pois a criação da área já partiu de uma perspectiva interdisciplinar. Tendo como seu núcleo mais duro suas três áreas de concentração - políticas e planejamento em saúde, epidemiologia e ciências sociais e humanas em saúde -, foi possível agregar contribuições das demais áreas afins e suas intercessões. Não foi um trajeto tranquilo em todos os sentidos, muitas tensões ocorreram no decorrer desses anos de construção, mas é fato que hoje se reconhece a saúde coletiva como uma área diferenciada que não perdeu seus princípios e na qual o trabalho interdisciplinar tem movido suas ações.

Nesse processo, a autora chama atenção de que a valorização das ciências sociais como campo totalmente integrante foi, sem dúvida, um movimento importante, mas, como ela destaca: “é preciso dar um passo além e repensar divisões há muito tempo consolidadas”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(10). Este momento é propício para entender o significado dessa opinião. O que estamos aprendendo com a pandemia deve servir de base para a procura de respostas coletivas na perspectiva de dar maior solidez e consequência aos achados da medicina e das ciências biológicas. Neste sentido, a incorporação do conhecimento gerado pelas ciências sociais deve estar presente em todas as etapas desse processo de construção. Essa mesma condição se estende também para as questões ambientais, da informação e comunicação.

É interessante o reconhecimento da autora acerca das importantes contribuições para o debate sobre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na saúde coletiva. É bem escolhido o destaque dado à obra de Naomar Almeida Filho, autor que dispõe de vasta produção no campo da epidemiologia e que tem sido um defensor incansável da integração dos diversos campos do saber com as bases coletivas. Toda essa reflexão lhe permitiu pensar a construção intertransdisciplinar tão necessária para a geração de soluções integradoras para o enfrentamento da pandemia:

Nesse contexto atual de intensa disputa retórica e renhida luta teórica, a singularidade e complexidade da atual pandemia da Covid-19 sem dúvida representa rica oportunidade para realizar de modo efetivo a construção intertransdisciplinar tão necessária para a geração de soluções integradoras, pertinentes e cuidadosas ante os problemas complexos que emergem nos diversos planos e dimensões dessa grave crise sanitária22 Almeida-Filho. Modelagem da pandemia Covid-19 como objeto complexo (notas samajianas). Est. Avançados. 2020 [acesso em 2022 set 14]; 34(99):97-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/PYKMh83rMm77yFnjxCWzLMy/?lang=pt.
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Com essa construção teórica, Almeida-Filho33 Almeida-Filho N. Estratégias de enfrentamento da pandemia da covid-19 no mundo: o Brasil como caso de fracasso. Cad. do CEAS. 2021; 46(253):294-136. nos traz material para a reflexão sobre o processo de enfrentamento da pandemia no Brasil e o compara ao que foi feito em outros países.

Os possíveis caminhos elencados por Nísia, de fato, inauguram um diálogo inovador de como fazer ciência no campo da saúde coletiva. Como ela própria coloca, a definição da área no Brasil se deu mediante um processo de negociação e “formação de consensos”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(12), tendo o movimento da reforma sanitária como protagonista do processo. Criada em 1979, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) marcou o sentido do que seria daí para frente chamado de saúde coletiva. Nas palavras da autora:

Em lugar das tradicionais dicotomias - saúde pública/assistência médica; medicina curativa/medicina preventiva; e mesmo indivíduo/sociedade -, busca-se uma nova compreensão na qual a perspectiva interdisciplinar e o debate político em torno de temas como universalidade, equidade, democracia, cidadania e subjetividade aparecem como questões centrais11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(12).

Não há dúvida de que esse marco foi importante para consolidar o campo e para direcionar a orientação dos programas de saúde coletiva que, desde a criação da Abrasco, têm se multiplicado por todo o País, mantendo uma coerência assegurada pelo título e tudo que a ele se conecta. Contudo, como é bem desenvolvido por Nísia, nessa formação do campo, “o papel da interdisciplinaridade, em sua constituição e desenvolvimento, está longe de haver um consenso”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(12-13).

Seria natural que, por força do trabalho interdisciplinar, uma agenda própria tendo este como pressuposto daria sustentação para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, como já havia acontecido no País em relação à epidemia da Aids e de outras mais recentes como a de zika, as quais suscitaram uma potente produção de pesquisas disciplinares e interdisciplinares. É marcante o quanto as revistas nacionais da área tiveram que lidar com a oferta volumosa de artigos durante o período pandêmico. Seria interessante, contudo, analisar o quanto esse esforço realmente resultou em uma real integração entre as áreas e se, como bem alerta Nísia, com uma incorporação das ciências sociais indo além da visão das epidemias apenas como processos biológicos, não incorporando todo o processo social dinâmico e intrínseco de cada situação sanitária específica.

Ainda relevante é a referência feita no artigo sobre a condição de vulnerabilidade global que favorece a disseminação de novas ou antigas doenças infecciosas, a partir do uso predatório de recursos naturais acentuado pela densidade e mobilidade populacional, criando um campo fértil para o aparecimento de pandemias. Nessas condições, como afirma a autora, torna-se “praticamente impossível dissociar as dimensões biológica e social”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(14), o que implica que, para além dos campos específicos do conhecimento, é preciso ultrapassar as barreiras de cada disciplina para entender o contexto complexo ambiental e social. Nesses aspectos, os dois conceitos sociológicos destacados, e muito bem desenvolvidos pela autora, são relevantes: o do fato social total proposto por Mauss e o de interdependência apontado por Elias. Nessa lógica, a pandemia trouxe como questão central o estudo das desigualdades sociais e a necessidade de explorar os conceitos de ‘risco’ e ‘vulnerabilidade’.

Ainda de forma clara, o texto destaca que a pandemia expõe a relação entre os Estados Nacionais, o que, no Brasil, fez com que o Complexo Econômico e Industrial da Saúde se tornasse parte constitutiva e crucial para um desenvolvimento socioeconômico sustentado, o que exige, segundo a autora: “combinar poder de compra do Estado, capacidade de transferência tecnológica e acesso aos produtos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS)”11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(18). Houve, de fato, uma rápida resposta por parte da ciência no desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19. No entanto, isto não foi acompanhado de uma distribuição igualitária entre países. Como bem destacado no texto, e remetendo a Carlos Gadelha44 Gadelha C. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil hoje. Nexo. 2020 maio 11. [acesso em 2022 set 14]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/O-Complexo-Econ%C3%B4mico-Industrial-da-Sa%C3%BAde-no-Brasil-hoje.
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[...] a ativação e priorização de um complexo médico industrial da saúde, adequadamente desenhado e implementado, pode ser parte da solução, trazendo dinamismo econômico e melhorando a capacidade de resposta a problemas sanitários existentes, que prejudicam a população, e a outras epidemias que possivelmente virão.

De forma brilhante, a conclusão do artigo é um apelo de que, para superarmos a crise atual, temos que estar preparados para futuras emergências sanitárias. Nesse sentido, é necessário fortalecer as pesquisas interdisciplinares que se dediquem, em especial, aos sistemas naturais e sociais. Nessa lógica, entende que cabe à saúde coletiva papel destacado para definir uma agenda científica e proposta de políticas públicas advindas da interdisciplinaridade. Em suas palavras:

Tal esforço deve valorizar a diversidade de conhecimentos teóricos e tradições disciplinares, mas, ao mesmo tempo, desafiá-los a um empreendimento mais amplo; uma agenda científica coerente com as grandes questões do presente e de um futuro com ainda um grau maior de incertezas11 Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.(21).

Pensar uma agenda interdisciplinar para o controle da Covid-19 significa lutar por um mundo menos desigual com justiça e cidadania. E aqui eu acrescentaria que a saúde coletiva brasileira, por seu compromisso com a defesa do direito universal à saúde, tem um acúmulo político grande para explorar uma interdisciplinaridade que nos traga possibilidades novas de integração de conhecimento. Esse movimento pode fazer muita diferença neste contexto político tão adverso em que se encontra o País e servir de exemplo para outras áreas do conhecimento.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde debate. 2022; 46(esp6):9-24.
  • 2
    Almeida-Filho. Modelagem da pandemia Covid-19 como objeto complexo (notas samajianas). Est. Avançados. 2020 [acesso em 2022 set 14]; 34(99):97-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/PYKMh83rMm77yFnjxCWzLMy/?lang=pt
    » https://www.scielo.br/j/ea/a/PYKMh83rMm77yFnjxCWzLMy/?lang=pt
  • 3
    Almeida-Filho N. Estratégias de enfrentamento da pandemia da covid-19 no mundo: o Brasil como caso de fracasso. Cad. do CEAS. 2021; 46(253):294-136.
  • 4
    Gadelha C. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil hoje. Nexo. 2020 maio 11. [acesso em 2022 set 14]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/O-Complexo-Econ%C3%B4mico-Industrial-da-Sa%C3%BAde-no-Brasil-hoje
    » https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/O-Complexo-Econ%C3%B4mico-Industrial-da-Sa%C3%BAde-no-Brasil-hoje

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2021
  • Aceito
    22 Jun 2022
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