O TEXTO ‘PANDEMIA E INTERDISCIPLINARIDADE: desafios para a saúde coletiva’ foi concebido como uma proposta de diálogo. Nessa perspectiva, são extremamente bem-vindas as observações de Gulnar Azevedo e Silva e Áurea Ianni. Por caminhos diversos, as autoras trazem importantes contribuições ao tema posto em questão: os desafios teóricos e práticos para o campo da saúde coletiva no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Dessa forma, é sobre o alargamento do repertório cognitivo e programático desse campo que se debruçaram o texto original e as ricas observações por ele suscitadas. Os comentários das colegas, além da generosidade na leitura, colocaram em foco desafios para a saúde coletiva, ressaltando o acúmulo científico e político da área, o que traria condições propícias à valorização da interdisciplinaridade.
No caso de Gulnar Azevedo e Silva, destaca-se o quanto se poderia ter um movimento exemplar, capaz de contribuir para outras áreas do conhecimento. Após tecer comentários sobre a interdisciplinaridade e a integração dos saberes do campo biomédico e das ciências sociais no processo, sempre marcado por tensões, de constituição da saúde coletiva, a autora acentua as possibilidades abertas pelo compromisso programático da saúde coletiva:
eu acrescentaria que a saúde coletiva brasileira, por seu compromisso com a defesa do direito universal à saúde, tem um acúmulo político grande para explorar uma interdisciplinaridade que nos traga possibilidades novas de integração de conhecimento. Esse movimento pode fazer muita diferença neste contexto político tão adverso em que se encontra o País e servir de exemplo para outras áreas do conhecimento11 Silva GA. Comentários sobre o artigo ‘Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva’ de Nísia Trindade Lima. Saúde debate. 2022; 46(esp6):25-28.(27).
Em relação à pandemia e seu enfrentamento, parece-me oportuno ressaltar, como parte deste contexto político, o grande movimento de deslegitimação dos argumentos e das evidências científicas, presente de forma acentuada não apenas no Brasil, mas também em muitos outros países. Alguns estudiosos vêm apontando as estratégias mobilizadas por autores e lideranças políticas conservadoras em um processo por meio do qual muitas críticas consistentes à visão positivista da ciência são apropriadas em sentido muito diverso da proposta original dos que as apresentam de forma mais consistente22 Alexander JC. Vociferando contra o Iluminismo: a ideologia de Steve Bannon. Sociol. e Antropol. 2018. [acesso em 2022 jun 9]; 8(3):1009-1023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sant/a/bLLTnxyrMppVhCXwChrm6rN/abstract/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/sant/a/bLLTnxyrM... ,33 Kropf S. O laboratório e a urgência de mover o mundo. In: Sá DM, Sanglard G, Hochman G, et al., organizadores. Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 53-61.. Trata-se de uma ação orquestrada de cunho anticientífico, algo muito diverso, por exemplo, da crítica formulada pelos principais autores do campo dos estudos sociais da ciência, que postulam o caráter de construção social do conhecimento, para o qual concorrem práticas, acordos e lugares sociais concretos, mas que também explicitam não se tratar de um processo aleatório e homogeneizador de diferentes ideias científicas como se fossem o simples resultado de crenças sociais e interesses. Enfatiza-se a produção de consensos, mediante regras e métodos de validação, como característica principal do fazer científico.
O núcleo de todo o problema para diferentes disciplinas científicas talvez seja exatamente o indicado por Gulnar Azevedo e Silva: com a pandemia de Covid-19, fica cristalino que é “praticamente impossível dissociar as dimensões biológica e social”11 Silva GA. Comentários sobre o artigo ‘Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva’ de Nísia Trindade Lima. Saúde debate. 2022; 46(esp6):25-28.(27). Questões sociais, incluindo as econômicas, e decisões políticas afetam sobremaneira o curso das doenças infecciosas. A forma como os atores políticos concebem a agência humana e outras agências biológicas influencia profundamente o curso das pandemias. Por seu papel na pesquisa em saúde coletiva e na presidência da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) - gestão de 2018-2020 -, leio os comentários da colega também como convite à promoção de ações conjuntas voltadas para o fortalecimento da agenda científica e política da Abrasco.
Áurea Ianni, por sua vez, aborda o que considera grandes contribuições científicas da área de saúde coletiva ao problematizar a visão estritamente biomédica e ao lançar a crítica ao biopoder. Ao mesmo tempo, indica uma lacuna na área e no meu próprio texto, no que se refere à crítica epistemológica mais aprofundada da fratura entre as dimensões biológica e social. Propõe a historicização do biológico, do mundo natural, da biologia. Em sua visão, a área de saúde coletiva precisa completar seu esforço crítico:
[...] a dimensão biológica em si não foi problematizada, como se fosse essencialista, determinada, universal, desprovida de narrativa histórica. [...] Tomaram-se os corpos e os processos em saúde-doença como socialmente determinados, tendo sido mantida uma biologia dos corpos e dos processos saúde-doença biologicamente naturalizados, matéria imanente. Não se problematizou a evolução, tampouco a biologia como ciência, que permaneceu resguardada no interior do campo44 Ianni AMZ. A interdisciplinaridade como prática teórica. Saúde debate. 2022; 46(esp6):29-33.(30).
É bastante convergente com reflexões que venho realizando, mas que não desenvolvi no artigo, trazer dois autores que muito aprecio: Keith Thomas, com seu trabalho sobre o predomínio do humano sobre o mundo natural, predomínio posto em xeque em crises sanitárias da proporção da pandemia em curso, e Richard Lewontin, com sua ênfase na característica relacional e interacionista da teoria da evolução darwiniana. Como bem aponta Aurea Ianni, para o biólogo evolucionista norte-americano, trata-se de uma ação de mão dupla, pois os organismos mudam sua natureza física em estreita relação como o mundo externo e o ambiente, ao mesmo tempo que a mudança ambiental é induzida pela atividade vital dos organismos. As condições de produção, bem como as de destruição das condições de existência dos organismos e meios, para serem compreendidas, requerem uma abordagem relacional.
Propor esse desafio cognitivo para a saúde coletiva implica também enfrentá-lo no âmbito das ciências sociais, de um modo mais extenso. Um ponto central consiste na problematização da ‘excepcionalidade’ da espécie humana. Essa é, de fato, uma agenda que ainda requer esforços epistemológicos, mas há áreas que têm buscado avançar nessa reflexão, sendo exemplar a história ambiental que se institucionalizou a partir da década de 1970. Organizada para o exame dos problemas ambientais que se tornaram agudos no século XX, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial, com a aceleração do tráfego global de mercadorias, pessoas, entes biológicos e poluentes55 McNeill JR. Something New Under the Sun: An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York: WW Norton; 2000., a história ambiental propõe a adoção da perspectiva ecológica para enfatizar as influências simultâneas e recíprocas que ocorrem entre as ordens natural e social, de modo a sublinhar a complexidade e o caráter interrelacional dos objetos de estudo66 Cronon W, editor. Uncommon Ground: Rethinking the Human Place in Nature. New York: WW Norton; 1996.,77 Nash L. Inescapable Ecologies: A History of Environment, Disease and Knowledge. Berkeley: University of California Press; 2006.. Nesse sentido, são privilegiadas a materialidade dos atores históricos - humanos e não humanos - e a interação entre os múltiplos componentes que integram o contexto histórico sob exame77 Nash L. Inescapable Ecologies: A History of Environment, Disease and Knowledge. Berkeley: University of California Press; 2006..
Antes mesmo da história ambiental, no entanto, a história da saúde, das doenças e da medicina também esteve dedicada a compreender as formulações médico-científicas, em diferentes períodos, problematizando as relações entre os humanos e seus lugares de vivência88 Arnold D. La naturaleza como problema histórico: el medio, la cultura y la expansión de Europa. México: Fondo de Cultura Económica; 2001.. A teoria dos germes, formulada e disseminada em fins do século XIX, trouxe concepção mais individualizada e universalizada da doença e inaugurou um novo imaginário em torno do corpo e do ambiente. Autores como Linda Nash77 Nash L. Inescapable Ecologies: A History of Environment, Disease and Knowledge. Berkeley: University of California Press; 2006., todavia, sustentam que, apesar de defenderem visão estrita do processo saúde-doença, médicos, engenheiros e sanitaristas, orientados pelo paradigma da microbiologia, não descuraram da atenção a fatores ambientais. A historiografia demonstra que tais fatores eram bem proeminentes na medicina tropical, por exemplo, na análise do papel de outras espécies biológicas na transmissão de doenças, como vetores e hospedeiros intermediários99 Stepan N. Picturing Tropical Nature. Ithaca: Cornell University Press; 2001.
10 Anderson W. Natural Histories of Infectious Disease: Ecological Vision in Twentieth-Century Biomedical Science. Osiris. 2004. [acesso em 2022 jun 9]; 19:39-61. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3655231.
https://www.jstor.org/stable/3655231... -1111 Caponi S. Coordenadas epistemológicas de la medicina tropical. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2003 [acesso em 2022 jun 9]; 10(1):113-150. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/DjttdWT74HSxV5xvymVNRnx/abstract/?lang=es.
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/DjttdWT74... .
A irrupção das chamadas doenças emergentes, nos anos 1990, colaborou ainda mais para a renovação do olhar sobre a história das sociedades e seus ambientes, pois foi associada a mudanças ambientais. A introdução e a adaptação de vírus existentes em outras espécies animais no hospedeiro humano são correlacionadas ao desmatamento e à invasão de áreas silvestres para moradia, expansão da agricultura, entrada em nichos ecológicos isolados, mudança climática, projetos de irrigação e de industrialização da agropecuária, entre outras modificações associadas a atividades econômicas e modos de vida das sociedades contemporâneas.
A historiografia das doenças em perspectiva ambiental o demonstra, por exemplo, para a malária. Caracterizada como ‘doença tropical’, sua complexidade foi negligenciada no século XX em favor de uma visão tecnicista que a enquadrou como um problema envolvendo vetores, inseticidas, campanhas de erradicação, medicamentos, redes e testes de vacinas1212 Packard RM. The Making of a Tropical Disease: A Short History of Malaria. Baltimore: John Hopkins University Press; 2007.. A malária figurou, nessa época, como símbolo do atraso de regiões e do círculo vicioso entre pobreza e doença. Randall Packard1212 Packard RM. The Making of a Tropical Disease: A Short History of Malaria. Baltimore: John Hopkins University Press; 2007. demonstrou que, ao contrário, na história, ela relacionou-se a processos como migrações, atividades econômicas (sobretudo irrigação para a agricultura, que criou ambientes propícios para proliferação dos anofelinos), padrões de exploração da terra, colonialismo e guerras.
Segundo Nash77 Nash L. Inescapable Ecologies: A History of Environment, Disease and Knowledge. Berkeley: University of California Press; 2006.,1313 Nash L. Beyond Virgin Soils: Disease as Environmental History. In: Isenberg AC, editor. The Oxford Handbook of Environmental History. New York: Oxford University Press; 2014. p. 76-107., as doenças representam um viés de análise privilegiado para problematizar as fronteiras entre o humano e o não humano. Não são vistas somente como resultante do contato com patógenos, vetores e populações, mas também por meio das alterações nas relações ecológicas que os interligam. Trabalhando com essa perspectiva ecológica, historiadores ambientais e das doenças, em campos, há décadas, marcados por profunda interdisciplinaridade, têm buscado considerar as sociedades humanas, os microrganismos, as espécies animais e vegetais como atores de uma mesma história evolutiva.
A rigor, de fato, essa história evolutiva, essa “necessária historicização do biológico, do mundo natural, da biologia”44 Ianni AMZ. A interdisciplinaridade como prática teórica. Saúde debate. 2022; 46(esp6):29-33.(30) a que se refere Aurea Ianni, começou com Darwin e Wallace quando apontaram para o fato de o fenômeno da evolução biológica ser um processo populacional e as espécies vegetais e animais, incluindo o Homo sapiens, terem uma história que poderia ser recuperada. Autores como Lewontin1414 Lewontin R. The Triple Helix: Gene, Organism, and Environment. Cambridge: Harvard University Press; 2000. e Mayr1515 Mayr E. Biologia, ciência única. São Paulo: Companhia das Letras; 2005. contribuíram muito para uma perspectiva não essencialista das ciências biológicas em geral, e da teoria da evolução em particular. Mayr, em vários de seus artigos e livros, mostrando como a teoria da evolução de Darwin suscitou uma mudança no raciocínio biológico, propondo que as espécies biológicas não possuem quaisquer essências imutáveis, e estão sujeitas a dinâmicas históricas, seletivas e populacionais, que podem levar inclusive à extinção de determinadas espécies. A espécie humana, portanto, também é parte desse processo. O que Lewontin afirma sobre a plasticidade dos fenótipos - que não são completamente determinados pelos genes que integram organismos, o genótipo, mas dependem da interação com o ambiente em que se encontram os indivíduos de uma espécie - pode ser ilustrado em relação ao próprio Sars-CoV-2: um tipo de coronavírus que convive com morcegos durante milhões de anos e que, por dinâmicas sócio-históricas, adquire outras características, que, para humanos, podem ter consequências dramáticas. Como enfatiza o próprio Mayr, as ciências biológicas, ou ao menos todas as abordagens evolutivas, são ciências históricas, e compartilham com a história o mesmo método de inferência baseado em indícios, sejam eles fósseis, comparativos ou moleculares. Além disso, muitas espécies biológicas, não humanas, são espécies sociais, e o reconhecimento de suas interações, com humanos e não humanos, pode ser muito importante para a saúde de uma forma geral.
A historiadora americana Nancy Stepan1111 Caponi S. Coordenadas epistemológicas de la medicina tropical. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2003 [acesso em 2022 jun 9]; 10(1):113-150. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/DjttdWT74HSxV5xvymVNRnx/abstract/?lang=es.
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/DjttdWT74... (78) chamou atenção para o evolucionismo como um componente inclusive do desenvolvimento do pensamento ambientalista. Para Stepan, Darwin, na ‘Origem das espécies’, apontou para a complexa relação entre animais e plantas e a luta pela existência em nichos de recursos finitos, mostrando, em numerosos exemplos, que, quando o meio ambiente muda, o complexo de espécies também muda. Stepan menciona ainda o papel desempenhado por Alfred Russel Wallace, cofundador da teoria da evolução, na enfática defesa da natureza contra os efeitos negativos causados pela destruição humana. As ideias críticas de Wallace sobre humanidade e natureza envolveram noções de balanço ecológico, ciclos de crescimento e decadência, a interconectividade de todas as coisas vivas e o envolvimento humano na natureza.
A história ambiental contemporânea reagiu à pandemia de Covid-19 enfatizando a ideia de que a espécie humana, a despeito de seus altos padrões tecnológicos, continua inscrita em processos biológicos, como a própria pandemia. Assim, Donald Worster1515 Mayr E. Biologia, ciência única. São Paulo: Companhia das Letras; 2005. destaca como uma causa remota fundamental da pandemia o impulso ou a compulsão humana para controlar, dirigir e manipular processos naturais. A relação entre indivíduos humanos e eventuais patógenos não obedece aos desejos da economia e da política, inscrevendo-se em uma lógica que ciências como a ecologia e a teoria da evolução investigam. Edmund Russel1717 Russell E. Coevolution in a Time of Coronavirus. In: Alagona P, Carruthers J, Chen H, et al. Reflections: Environmental History in the Era of Covid-19. Env. Hist. 2020 [acesso em 2022 jun 9]; (25):657-60. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7665503/pdf/emaa053.pdf.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
18 Russell E. Evolutionary History: Uniting History and Biology to Understand Life on Earth. Cambridge: Cambridge University Press; 2011.-1919 Russell E. Evolutionary History: Prospectus for a New Field. Environ. Hist. 2003 [acesso em 2022 jun 9]; 8(2):204-228. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.2307/3985709.
https://www.journals.uchicago.edu/doi/ab... procura apresentar e discutir a história humana do ponto de vista da história da domesticação de plantas e animais, e seu impacto ao longo dos séculos, na economia e na saúde humana. Em relação à pandemia de Covid-19, Russell1717 Russell E. Coevolution in a Time of Coronavirus. In: Alagona P, Carruthers J, Chen H, et al. Reflections: Environmental History in the Era of Covid-19. Env. Hist. 2020 [acesso em 2022 jun 9]; (25):657-60. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7665503/pdf/emaa053.pdf.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article... assinala que o interesse humano por vírus se multiplicou, tanto no âmbito do público em geral como em âmbitos científicos, na medida em que tais agentes entraram no rol de ameaça à saúde individual e coletiva.
Outro historiador ambiental, Dipesh Chakrabarty, também explicitou, em artigo de 2020, a importância de nos entendermos, indivíduos e espécie, como integrantes de processos que nos transcendem no espaço e no tempo2020 Chakrabarty D. An Era of Pandemics? What is Global and what is Planetary About Covid-19. Crit. Inq. 2020. [acesso em 2022 jun 9]. Disponível em: https://critinq.wordpress.com/2020/10/16/an-era-of-pandemics-what-is-global-and-what-is-planetary-about-covid-19/.
https://critinq.wordpress.com/2020/10/16... . Inserindo-nos em um contexto planetário, e não mais em um cenário apenas global humano, ele indica a irreversível entrada em cena de fatores biológico-evolutivos e geológicos, por causa de ações antropogênicas. Para muitos estudiosos, esse processo caracterizaria inclusive a emergência de uma nova era geológica, o Antropoceno. Chakrabarty2020 Chakrabarty D. An Era of Pandemics? What is Global and what is Planetary About Covid-19. Crit. Inq. 2020. [acesso em 2022 jun 9]. Disponível em: https://critinq.wordpress.com/2020/10/16/an-era-of-pandemics-what-is-global-and-what-is-planetary-about-covid-19/.
https://critinq.wordpress.com/2020/10/16... recusa a explicação de que a causa fundamental da Covid-19 é o capitalismo, indicando forças que são anteriores ao advento desse modo de produção. Sua posição intelectual leva a fraturas muito profundas, a se somar àquelas indicadas por Áurea Ianni, indicando que as ciências sociais são importantíssimas na criação de uma nova forma de compreender nossas relações com a natureza, mas também que as ciências sociais precisam lidar com um tipo de historicidade que transcende a história humana e deita suas raízes na história da vida do próprio planeta Terra.
Nesse âmbito, Chakrabarty2020 Chakrabarty D. An Era of Pandemics? What is Global and what is Planetary About Covid-19. Crit. Inq. 2020. [acesso em 2022 jun 9]. Disponível em: https://critinq.wordpress.com/2020/10/16/an-era-of-pandemics-what-is-global-and-what-is-planetary-about-covid-19/.
https://critinq.wordpress.com/2020/10/16... considera que as causas da pandemia remontariam, ao menos, aos tempos em que tentativas humanas para controlar, dirigir e manipular processos naturais levaram ao surgimento da agricultura, depois da pecuária, seguido do processo que, mais tarde se capitalizou, industrializou e informatizou. Negócios de dimensões planetárias, com multidões e produtos viajando de uma parte a outra de um mundo cada vez mais interligado economicamente, também produzem doenças de dimensões planetárias. No entanto, mais uma vez, o controle que temos sobre esses processos está longe de ser pleno, e talvez nunca chegue a sê-lo. De qualquer forma, Chakrabarty2121 Chakrabarty D. The Climate of History: Four Theses. Crit. Inq. 2009 [acesso em 2022 jun 9]; 35(2):197-222. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/596640.
https://www.jstor.org/stable/10.1086/596... salienta essa nossa longa ‘negociação’ com os agentes etiológicos de doenças e a necessidade de reconsiderar o tipo de interpretação que oferecemos para a relação entre indivíduos, populações humanas e as populações de inúmeros agentes biológicos, incluindo vírus, bactérias e outros organismos microscópicos. A humanidade, portanto, deve ser considerada como inserida na vida planetária2121 Chakrabarty D. The Climate of History: Four Theses. Crit. Inq. 2009 [acesso em 2022 jun 9]; 35(2):197-222. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/596640.
https://www.jstor.org/stable/10.1086/596... .
Como vemos, então, a aproximação entre as dimensões naturais e sociais não é só agenda epistemológica, mas também programática, inclusive nas já citadas história das doenças e na história da medicina. Um exemplo contundente se encontra no livro ‘New pandemic, old politics’ (e em artigo com quase o mesmo nome, do ano anterior), de Alex de Waal2222 De Waal A. New Pandemics, Old Politics: Two Hundred Years of War on Disease and its Alternatives. Cambridge: Polity Books; 2021.,2323 De Waal A. New Pathogen, Old Politics. Boston Review. 2020. [acesso em 2022 jun 9]. Disponível em: https://bostonreview.net/articles/alex-de-waal-thining-critically-pandemic/.
https://bostonreview.net/articles/alex-d... . Com base nas ideias do médico antropólogo Rudolph Virchow, de Waal sustenta que existe uma conexão indissolúvel entre ciência médica, interesse econômico e ideologia política2323 De Waal A. New Pathogen, Old Politics. Boston Review. 2020. [acesso em 2022 jun 9]. Disponível em: https://bostonreview.net/articles/alex-de-waal-thining-critically-pandemic/.
https://bostonreview.net/articles/alex-d... , e, nas palavras de Virchow: “a medicina é uma ciência social e a política nada mais é do que medicina em escala”2222 De Waal A. New Pandemics, Old Politics: Two Hundred Years of War on Disease and its Alternatives. Cambridge: Polity Books; 2021.(19). Além disso, a ciência médica e a política devem ser criticamente informadas pela teoria da evolução. Há uma passagem bem ilustrativa a esse respeito em seu livro.
Segundo o autor, uma geração de microbiologistas tem nos alertado que, se quisermos manter nosso modo de vida atual, devemos estar constantemente à frente da evolução dos patógenos. Os biólogos evolucionistas chamam isso de dinâmica da ‘Rainha Vermelha’, em homenagem à personagem de ‘Alice através do espelho’, que diz a Alice que ela deve correr o mais rápido que puder para permanecer no mesmo lugar. A microbiologia do Antropoceno sugere que essa metáfora é fraca: devemos acelerar o mais rápido que pudermos para acompanhar o ritmo acelerado da mutação microbiana e do transbordamento (spillover) zoonótico. Isso requer uma engenharia cada vez mais elaborada do ambiente planetário, do clima aos vírus. Se virmos outras formas de vida como nossas posses ou como nossos inimigos, se nos propusermos a travar uma guerra, a lógica evolucionária nos diz que não poderemos vencer. Tal paradigma ecológico histórico já foi uma visão minoritária entre os especialistas em doenças infecciosas, porém, hoje deixou de ser. O conceito de One Health está ganhando aceitação, o que implica aceitar que a saúde do planeta, a vida animal e os seres humanos estão interligados. Precisamos entender a dinâmica de interseção de patógenos, meio ambiente, saúde veterinária, saúde pública e meios de subsistência humanos, e agir de forma conjunta e rápida2222 De Waal A. New Pandemics, Old Politics: Two Hundred Years of War on Disease and its Alternatives. Cambridge: Polity Books; 2021.(259).
A perspectiva acrítica de progresso e desenvolvimento como um processo linear e intrinsecamente positivo está cobrando seu preço em pandemias e mudança climática. Torna-se imperativa uma revisão das bases epistemológicas que interpretaram a espécie humana como algo à parte da natureza. Para avançar nessa agenda em termos programáticos, há muitas propostas em curso também na história ambiental, como, por exemplo: estudos multiespécies com ontologia relacional e materialista2424 Tsing AL. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília, DF: IEB Mil Folhas; 2019., história planetária orientada pela habitabilidade2121 Chakrabarty D. The Climate of History: Four Theses. Crit. Inq. 2009 [acesso em 2022 jun 9]; 35(2):197-222. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/596640.
https://www.jstor.org/stable/10.1086/596... , conhecimento antecipatório e história não antropocêntrica2525 Domanska E. Beyond Anthropocentrism in Historical Studies. Historein. 2010. [acesso em 2022 jun 9]; 10:118-30. Disponível em: https://ejournals.epublishing.ekt.gr/index.php/historein/article/view/2103.
https://ejournals.epublishing.ekt.gr/ind... ,2626 Simon ZB. Eventos de transformação disruptiva. In: Sá DM, Sanglard G, Hochman G, et al., organizadores. Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 214-21., e a visão dos humanos como criaturas bioculturais2727 Frost S. Biocultural Creatures: Toward a New Theory of the Human. Durham, NC: Duke University Press; 2016.. A despeito de suas especificidades, todas essas perspectivas reivindicam, como também advogo, práticas de pesquisa que entrelacem ciências humanas e naturais, e busquem promover literacia científica e abordagens colaborativas e interdisciplinares. Essa é a tarefa mais urgente para a renovação da agenda da saúde coletiva.
- Suporte financeiro: não houve
Agradecimentos
Além de agradecer às autoras dos comentários, devo também registrar as contribuições de Dominichi Miranda de Sá e Ricardo Waizbort, com quem venho discutindo muitas das questões aqui apresentadas.
Referências
- 1Silva GA. Comentários sobre o artigo ‘Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva’ de Nísia Trindade Lima. Saúde debate. 2022; 46(esp6):25-28.
- 2Alexander JC. Vociferando contra o Iluminismo: a ideologia de Steve Bannon. Sociol. e Antropol. 2018. [acesso em 2022 jun 9]; 8(3):1009-1023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sant/a/bLLTnxyrMppVhCXwChrm6rN/abstract/?lang=pt
» https://www.scielo.br/j/sant/a/bLLTnxyrMppVhCXwChrm6rN/abstract/?lang=pt - 3Kropf S. O laboratório e a urgência de mover o mundo. In: Sá DM, Sanglard G, Hochman G, et al., organizadores. Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 53-61.
- 4Ianni AMZ. A interdisciplinaridade como prática teórica. Saúde debate. 2022; 46(esp6):29-33.
- 5McNeill JR. Something New Under the Sun: An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York: WW Norton; 2000.
- 6Cronon W, editor. Uncommon Ground: Rethinking the Human Place in Nature. New York: WW Norton; 1996.
- 7Nash L. Inescapable Ecologies: A History of Environment, Disease and Knowledge. Berkeley: University of California Press; 2006.
- 8Arnold D. La naturaleza como problema histórico: el medio, la cultura y la expansión de Europa. México: Fondo de Cultura Económica; 2001.
- 9Stepan N. Picturing Tropical Nature. Ithaca: Cornell University Press; 2001.
- 10Anderson W. Natural Histories of Infectious Disease: Ecological Vision in Twentieth-Century Biomedical Science. Osiris. 2004. [acesso em 2022 jun 9]; 19:39-61. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3655231
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- 13Nash L. Beyond Virgin Soils: Disease as Environmental History. In: Isenberg AC, editor. The Oxford Handbook of Environmental History. New York: Oxford University Press; 2014. p. 76-107.
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- 15Mayr E. Biologia, ciência única. São Paulo: Companhia das Letras; 2005.
- 16Worster D. Outra primavera silenciosa. In: Sá DM, Sanglard G, Hochman G, et al., organizadores. Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 78-90.
- 17Russell E. Coevolution in a Time of Coronavirus. In: Alagona P, Carruthers J, Chen H, et al. Reflections: Environmental History in the Era of Covid-19. Env. Hist. 2020 [acesso em 2022 jun 9]; (25):657-60. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7665503/pdf/emaa053.pdf
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2023 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
14 Jun 2022 - Aceito
09 Ago 2022