RESUMO
Este estudo objetivou analisar as mudanças na formação induzidas pelo Programa Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), edição Interprofissionalidade, e identificar se os pressupostos da Educação Interprofissional (EIP) e das práticas colaborativas foram aplicados no desenvolvimento dos projetos. Trata-se de estudo de caso qualitativo, descritivo e exploratório, desenvolvido no estado do Rio de Janeiro. Entrevistas abertas foram realizadas com 32 atores do programa, cujos conteúdos foram analisados à luz do referencial teórico-metodológico da EIP. Três categorias foram produzidas: O PET-Saúde/Interprofissionalidade como dinâmica construtiva de práticas colaborativas; A interprofissionalidade como fundamento de estruturação de currículos e práticas pedagógicas; Os mecanismos de avaliação do PET-Saúde/Interprofissionalidade. A edição Interprofissionalidade deflagrou experiências assertivas mediante aplicação dos pressupostos da EIP e práticas colaborativas, resultando em indução de reformas curriculares e criação de disciplinas interprofissionais; porém, ainda não representa uma política incorporada pelas instituições de ensino. Atenção especial deve ser dada aos processos avaliativos, ainda muito incipientes, e à sustentabilidade dos avanços alcançados, que requer apoio político e institucional. Conclui-se que o PET-Saúde tem contribuído progressivamente para as transformações no ensino e para a disseminação dos conceitos e pressupostos que orientam a EIP.
PALAVRAS-CHAVE
Universidades; Serviços de integração docente-assistencial; Educação interprofissional; Práticas interdisciplinares.
Introdução
As mudanças do perfil epidemiológico, com o aumento das doenças crônicas não transmissíveis e de novos riscos ambientais, infecciosos e comportamentais, reforçam a complexidade do setor saúde e formalizam a necessidade de redesenhar os modelos tecnoassistenciais e os processos de formação, em direção à integralidade do cuidado e à colaboração e desempenho profissional11 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010 [acesso em 2021 jan 15]; 376(9756):1923-1958. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(10)61854-5/fulltext.
https://www.thelancet.com/journals/lance... ,22 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2022 set 28]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3A135CF72ADCA28D077D6C57F2D1256?sequence=1.
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A proposta globalmente fomentada no sentido de mobilizar essas mudanças é a Educação Interprofissional (EIP), estratégia político-pedagógica que promete preparar a força de trabalho para ofertar cuidados mais efetivos e responder às necessidades de saúde22 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2022 set 28]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3A135CF72ADCA28D077D6C57F2D1256?sequence=1.
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl... ,33 Reeves S. Why we need interprofessional education to improve the delivery of safe and effective care. Interface. 2016 [acesso em 2021 mar 5]; 20(56):185-196. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/VrvpZyszPQ6hrVp7SFhj6XF/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/icse/a/VrvpZyszP... . Conceitualmente, a EIP ocorre quando estudantes de duas ou mais profissões aprendem sobre o outro, com o outro e entre si para aprimorar a colaboração profissional e, consequentemente, melhorar os resultados de saúde22 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2022 set 28]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3A135CF72ADCA28D077D6C57F2D1256?sequence=1.
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl... ,44 Barr H, Low H. Introducing Interprofessional Education. Reino Unido: Centre for the Advancement of Interprofissional Education; 2013.. Pressupõe-se que, mediante as inter-relações profissionais, os estudantes aprenderão a trabalhar de maneira planejada, integrada, comunicativa e intencional, buscando equacionar os problemas de saúde que se apresentam no cotidiano dos serviços. Assim, oportunidades de aprendizado compartilhado no contexto real da produção do cuidado são imprescindíveis.
O Sistema Único de Saúde (SUS), sob a égide de um modelo tecnoassistencial baseado no fortalecimento da atenção primária e na atuação compartilhada das equipes, vem, historicamente, tentando estabelecer um processo de formação coerente com suas diretrizes. A EIP assume singular importância nesse contexto, não apenas porque se admite a premissa de que o SUS é interprofissional, mas também porque propostas de formação e de exercício para a prática interprofissional já estão postas na realidade brasileira55 Ceccim RB. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec; 2004. p. 259-278.,66 Peduzzi M. The SUS is interprofessional. Interface. 2016 [acesso em 2021 mar 5]; 20(56):199-201. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7MgQL4JM9dRYFDLYYzQVLHM/?lang=en.
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Embora ainda sejam recentes as experiências nacionais sistematizadas de EIP, há um consistente repertório de estratégias em curso e outras previstas no nível da macropolítica que podem induzir a implementação dessa abordagem no Brasil66 Peduzzi M. The SUS is interprofessional. Interface. 2016 [acesso em 2021 mar 5]; 20(56):199-201. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7MgQL4JM9dRYFDLYYzQVLHM/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/icse/a/7MgQL4JM9... . Um marco de destaque para a promoção da EIP foi a instituição da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, que consolidou aspectos essenciais para o desenvolvimento de ações formativas para os trabalhadores da saúde sob a lógica da integração ensino-serviço-comunidade, e que assumiu os serviços do SUS como cenários privilegiados para o aprendizado77 Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Interprofessional education: training for healthcare professionals for teamwork focusing on users. Rev. Esc. Enfermagem USP. 2013 [acesso em 2020 abr 10]; 47(4):977-983. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/JwHsjBzBgrs9BCLXr856tzD/?lang=en.
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Sob os preceitos dessa política, nascem diferentes iniciativas focalizadas na reorientação dos processos formativos das graduações em saúde, a exemplo do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), constituído em 2008 a partir do acúmulo construído em experiências anteriores de integração ensino-serviço88 Haddad AE, Brenelli SL, Cury GC, et al. Pró-Saúde e PET-Saúde: a construção da política brasileira de reorientação da formação profissional em Saúde. Rev. Bras. Educ. Med. 2012 [acesso em 2021 abr 7]; 36(supl1):3-4. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/rbem/v36n01s01/v36n01s01a01.pdf.
http://educa.fcc.org.br/pdf/rbem/v36n01s... . Como política pública, objetiva consolidar o papel constitucional do SUS de ordenador da formação e sensibilizar e preparar profissionais para o adequado enfrentamento das diferentes realidades de vida e de necessidades de saúde da população99 Brasil. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial nº 1.802, de 26 de agosto de 2008. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET-Saúde. Diário Oficial da União. 27 Ago 2008..
O PET-Saúde é detentor de componentes estratégicos diferenciados, como a inserção de estudantes na realidade dos serviços do SUS e processo ensino-aprendizagem viabilizado por grupos tutoriais interprofissionais. Opera por meio de projetos diretos de intervenção, com base em diagnóstico situacional do território, que se desdobram em ações de ensino, pesquisa e extensão e que envolvem estudantes, docentes, equipes de saúde e a comunidade usuária do SUS, com vistas a assegurar uma abordagem integral dos processos saúde-doença99 Brasil. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial nº 1.802, de 26 de agosto de 2008. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET-Saúde. Diário Oficial da União. 27 Ago 2008..
Desde a sua institucionalização, o programa passou por uma incorporação sucessiva de diretrizes norteadoras para o desenvolvimento de projetos, assumindo como foco diferentes áreas prioritárias ao SUS, como a atenção primária e a vigilância em saúde. Muitos foram os avanços observados, especialmente no que se refere ao fomento da integração ensino-serviço, ao desenvolvimento de novas práticas pedagógicas e ao aprofundamento dos conhecimentos em saúde pública pelos estudantes1010 Farias-Santos BCS, Noro LRA. PET-Saúde como indutor da formação profissional para o Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2021 nov 19]; 22(3):997-1004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/csQcsSpcfqtrBqQtWFZRsNz/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csc/a/csQcsSpcfq... ,1111 Mira QLM, Barreto RMA, Vasconcelos MIO. Impacto do PET-Saúde na formação profissional: uma revisão integrativa. Rev. Baiana Saúde Pública. 2016 [acesso em 2021 dez 14]; 40(2):514-531. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/1682/1889.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r... . Contudo, não foi capaz de alterar o modelo fragmentado dos currículos1212 França T, Magnago C, Santos MR, et al. PET-Saúde/GraduaSUS: retrospectiva, diferenciais e panorama de distribuição dos projetos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 dez 14]; 42(esp2):286-301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/dTvgGzZNTxzm9BcVr6b9H4N/?lang=pt.
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Considerado isso, em 2015, o programa foi redesenhado, tendo o seu foco direcionado para a mudança curricular sob os preceitos da interdisciplinaridade e da interprofissionalidade. Nessa lógica, duas edições foram lançadas. A primeira, PET-Saúde/GraduaSUS, foi capaz de mobilizar movimentos de discussão entre as diferentes graduações, com vistas à incorporação dos elementos teórico-metodológicos da EIP como fundamentos de estruturação de currículos e de projetos pedagógicos institucionais; bem como induziu a criação de disciplinas integradas. Apesar de pontuais, essas iniciativas reafirmaram a potência do programa, subsidiando a elaboração de uma nova edição: PET-Saúde/Interprofissionalidade1212 França T, Magnago C, Santos MR, et al. PET-Saúde/GraduaSUS: retrospectiva, diferenciais e panorama de distribuição dos projetos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 dez 14]; 42(esp2):286-301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/dTvgGzZNTxzm9BcVr6b9H4N/?lang=pt.
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13 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. PET-Saúde/GraduaSUS na visão de atores do serviço e do ensino: contribuições, limites e sugestões. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 dez 14]; 43(esp1):24-39. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnksJcVQmJ79Wt38ny/?lang=pt#.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnks... -1414 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. O PET-Saúde/GraduaSUS como mobilizador da integração inter, intra e extrainstitucional. In: Castro J, Vilar RLA, Dias MA, organizadoras. Educação e trabalho: interface com a gestão em saúde. Natal: Uma; 2020. p. 245-271..
Lançada em 2018, a edição Interpro-fissionalidade evidenciou a promoção da EIP e das práticas colaborativas a partir da constituição de grupos tutoriais conformados minimamente por três diferentes cursos de saúde. Dado o seu ineditismo e constituída como a primeira iniciativa macropolítica de indução da EIP, essa edição foi tomada como objeto de análise deste estudo, buscando responder às seguintes questões: quais as mudanças na formação induzidas pelo PET-Saúde/Interprofissionalidade? Esta edição tem colaborado para o desenvolvimento de estratégias alinhadas aos pressupostos da EIP e práticas colaborativas?
Diante do exposto, a pesquisa objetivou identificar se os pressupostos da EIP e das práticas colaborativas foram aplicados no desenvolvimento dos projetos PET-Saúde/Interprofissionalidade e analisar as mudanças na formação induzidas por essa edição.
Material e métodos
Trata-se de estudo de caso, exploratório e qualitativo, desenvolvido no estado do Rio de Janeiro. A população de interesse foi composta por integrantes do PET-Saúde/Interprofissionalidade, cujos projetos fossem desenvolvidos por instituições de ensino também participantes da edição GraduaSUS. Atenderam a esse critério cinco projetos, cujos coordenadores foram convidados a integrar o estudo e a indicar outros membros dos grupos tutoriais, sendo, pelo menos, um preceptor, um tutor e dois acadêmicos de cursos distintos (Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Medicina, Nutrição, Obstetrícia, Odontologia, Psicologia, Saúde Coletiva e Serviço Social). Manifestaram interesse em participar da pesquisa e integraram a amostra 32 sujeitos (tabelas 1 e 2).
Os dados foram coletados em 2020 mediante entrevista individual, realizada virtualmente em plataforma de webconferência em razão das medidas de distanciamento social impostas pela Covid-19. As entrevistas foram orientadas por um roteiro não estruturado, duraram em média 60 minutos e foram gravadas com o consentimento de cada participante.
Utilizou-se a análise de conteúdo para tratamento dos dados, aplicando-se as etapas de pré-análise, exploração, e inferência e interpretação1515 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.. A pré-análise consistiu na transcrição das entrevistas, dando origem ao corpus analítico, seguida pela leitura flutuante do material. Na exploração, foram destacados os recortes de ordem semântica do corpus que demonstrassem correspondência com os elementos teórico-metodológicos previstos nas diretrizes orientadoras para construção e avaliação de contextos educacionais na perspectiva da EIP1616 Barr H. Ensuring quality in interprofessional education. CAIPE Bulletin. 2003; (22):2-3.. Esses recortes foram agrupados por similaridade em três categorias (quadro 1), cujos achados foram interpretados e confrontados com a literatura sobre o tema.
Categorias elaboradas a partir do corpus da pesquisa e os respectivos elementos teórico-metodológicos da Educação Interprofissional (EIP) verificados. Rio de Janeiro, 2021
O projeto do estudo foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj (Parecer nº 3.899.608), Hospital Universitário Pedro Ernesto/Uerj (Parecer nº 3.977.438), Hospital Universitário Antônio Pedro/Universidade Federal Fluminense - UFF (Parecer nº 3.982.264), Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (Parecer nº 3.993.894) e Hospital Municipal Dr. Munir Rafful (Parecer nº 4.039.647). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi enviado aos entrevistados por e-mail e devolvido assinado pela mesma via. Visando à preservação do anonimato, os sujeitos foram identificados por uma letra (C - coordenador, T - tutor, P - preceptor, A - acadêmico), seguida por um número arábico.
Resultados e discussão
A partir dos relatos, foram identificados os elementos centrais que subsidiam a EIP e as práticas colaborativas no âmbito do PET-Saúde/Interprofissionalidade, estando estes representados em três categorias.
O PET-Saúde/Interprofissionalidade como dinâmica construtiva de práticas colaborativas
Evidenciou-se que os principais elementos teórico-metodológicos que fundamentam os objetivos de iniciativas assentadas na EIP se enunciam nos processos pedagógicos desenvolvidos no âmbito do PET-Saúde/Interprofissionalidade. Entre eles, a composição multiprofissional dos grupos de aprendizagem, caracterizada pela presença de, pelo menos, duas profissões de saúde distintas. Ressalta-se que essa composição, per si, não insinua a aplicação dos preceitos da interprofissionalidade; é preciso que os processos de ensino agenciem a adoção de novas posturas, relações e modos de perceber as outras profissões1717 Barros NF, Spadacio C, Costa MV. Trabalho interprofissional e as práticas integrativas e complementares no contexto da Atenção Primária à Saúde: potenciais e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 dez 14]; 42(esp1):163-173. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/WhJFzVYJtKrZs7zNjq5k49R/?lang=pt.
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[...] O programa mostra, a partir da vivência, como é importante a complementariedade das profissões, como é importante um apoiar o outro [...]. Os atendimentos são interprofissionais, tem a pediatra, fisioterapeuta, fonoaudióloga, assistente social e é muito legal, porque a abordagem passa a ser integral. (A1).
Mais ainda, é imprescindível assumir a intenção de promover o desenvolvimento de competências colaborativas, compreendidas como aquelas que viabilizam o trabalho em equipe resolutivo e alinhado às necessidades de saúde1818 Freire JR, Magnago C, Costa MV, et al. Interprofessional education and the formative actions of the emergency provision axis of the More Doctors Program. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 dez 10]; 43(esp1):50-63. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/XksJxG6Q9NkBD4n5SNzL7Wq/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/XksJxG6Q9... . Trabalhar em equipe na perspectiva da interprofissionalidade significa atuar com diferentes profissões/núcleos de saber, cujos arranjos transitem colaborativamente entre áreas específicas, promovendo a qualificação das práticas1919 Ceccim RB. Connections and boundaries of interprofessionality: form and formation. Interface. 2018 [acesso em 2021 jan 5]; 22(supl2):1739-1749. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/XRJVNsRHcqfsRXLZ7RMxCks/?lang=en.
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A competência pode ser compreendida como a capacidade de mobilizar e colocar em ação um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes, buscando a resolução de problemas e o enfrentamento de situações de imprevisibilidade2020 Deluiz N. Qualificação, competências e certificação: visão do mundo do trabalho. In: Brasil. Ministério da Saúde. Humanizar cuidados de saúde: uma questão de competência. Brasília, DF; 2001. p. 7-17. (v. 2).. Possui três dimensões: saber, que envolve os conhecimentos formais que podem ser traduzidos em fatos; saber-fazer, pertencente à esfera dos procedimentos e técnicas; e saber-ser/agir, correspondente aos comportamentos e às relações sociais e afetivas2121 Vieira A, Luz TR. Do saber aos saberes: comparando as noções de qualificação e de competência. Organ. Soc. 2005 [acesso em 2021 mar 25]; 12(33):93-108. Disponível em: https://www.scielo.br/j/osoc/a/9Scn7Ld6qf6g94qdNYqjDjK/?lang=pt#.
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Aplicado ao trabalho em saúde, o conceito de competência implica integrar diferentes saberes que possibilitem o diagnóstico e a problematização da realidade, a proposição e a aplicação de estratégias de enfrentamento e a tomada de decisões complexas. Ser competente é ser agente de mudanças, o que requer parceria, diálogo e relações de poder entre diferentes atores imbricados na realidade que se espera mudar. Nessa direção, fica perceptível que EIP e educação permanente compartilham referenciais e objetivos comuns2222 Ogata MN, Silva JAM, Peduzzi M, et al. Interfaces between permanent education and interprofessional education in health. Rev. Esc. Enferm. USP. 2021 [acesso em 2021 dez 14]; 55:e03733. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghvK3WgSN3pzcdKsZgR/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghv... , como insinua um dos entrevistados:
Acho que essa é a verdadeira formação sustentada pela educação permanente. É quando a gente consegue ver um novo mundo possível a partir da presença dos outros. Quando eu tenho um encontro com um usuário, eu projeto uma coisa, outro profissional projeta outra coisa, e o fato de a gente estar junto cria a possibilidade de um novo mundo. (T5).
Ambas as abordagens pedagógicas são apostas políticas comprometidas com modos democráticos de construir conhecimentos, articular educação e trabalho e transformar as práticas de saúde. Assim, exigem a mobilização de diferentes atores, a superação de disputas e conflitos e a construção de diálogos e ações mobilizadoras de mudanças2222 Ogata MN, Silva JAM, Peduzzi M, et al. Interfaces between permanent education and interprofessional education in health. Rev. Esc. Enferm. USP. 2021 [acesso em 2021 dez 14]; 55:e03733. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghvK3WgSN3pzcdKsZgR/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghv... . Uma distinção importante entre as abordagens é que a EIP tem o propósito explícito de desenvolver um conjunto de competências consideradas essenciais para a práxis do trabalho interprofissional.
Diferentes organizações internacionais têm trabalhado no reconhecimento e na construção de um conjunto de competências colaborativas, que podem ser adaptadas ante o contexto em que a EIP é implementada. As produções mais conhecidas são as matrizes de competência da Canadian Interprofessional Health Collaborative (CIHC)2323 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A National Interprofessional Competency Framework. Vancouver: CIHC; 2010. e a da organização americana Interprofessional Education Collaborative2424 Interprofessional Education Collaborative. Core competencies for interprofessional collaborative practice: 2016 update. Washington, DC: IPEC; 2016.. Ambas consideram a colaboração como um processo interprofissional de comunicação e tomada de decisão que permite que o conhecimento e as habilidades individuais e compartilhadas dos diferentes profissionais de saúde influenciem sinergicamente o atendimento ao paciente.
Nessa perspectiva, consideram imprescindível a promoção de competências que permitam que os membros da equipe se comuniquem e resolvam seus conflitos eticamente, assegurando equidade na tomada de decisões; tenham clareza sobre os papéis, responsabilidades e limitações de cada categoria profissional envolvida no cuidado, que deve ser centrado no paciente/família/comunidade; e formulem, implementem e avaliem cuidados de maneira conjunta, visando à melhoria dos resultados em saúde2323 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A National Interprofessional Competency Framework. Vancouver: CIHC; 2010.,2424 Interprofessional Education Collaborative. Core competencies for interprofessional collaborative practice: 2016 update. Washington, DC: IPEC; 2016..
Sobre isso, os depoimentos deste estudo demostram que a edição Interprofissionalidade tem engendrado movimentos de escuta, de reconhecimento dos diferentes papéis profissionais, e de discussão sobre quais competências têm potencial para agregar valor às práticas colaborativas no contexto brasileiro.
Quando se entende o que é uma equipe de saúde, que ela tem que trabalhar em conjunto e que, para isso, são necessárias competências colaborativas, percebemos que há questões que precisam ser trabalhadas em conjunto para a tomada de decisão quanto a melhor terapêutica a ser aplicada para o paciente. (C2).
Quando conhecemos o que o outro faz, damos mais valor à profissão do outro. A gente vê que não consegue dar conta de tudo sozinho. Me soa estranho quando vou fazer estágio da grade curricular regular, [...] porque eu não tenho meu colega da fisioterapia, da educação física para me apoiar. Eu sinto angústia, uma sensação de impotência. (A2).
Os entrevistados reforçaram a importância de compreender primeiro o papel de cada profissão, ter clareza sobre elas para, então, ser possível o estabelecimento de objetivos comuns. Para eles, a EIP torna possível superar os ‘silos’ disciplinares, isto é, escapar dos nichos profissionais e comunicativos, nos quais cada profissão se apropria de uma linguagem específica.
A literatura também traz essa discussão e revela que, embora o desenvolvimento de uma identidade profissional seja parte fundamental da educação profissional, uma desvantagem desse processo, quando de caráter uniprofissional, é que membros de um grupo percebem os atributos de outros grupos menos desejáveis, fortalecendo o fenômeno do ‘tribalismo das profissões’. Essa construção de identidades rígidas pode levar a tensões e tem se configurado como uma barreira psicológica para a comunicação entre diferentes categorias2525 Weller J, Boyd M, Cumin D. Teams, tribes and patient safety: overcoming barriers to effective teamwork in healthcare. Postgrad Med. J. 2014 [acesso em 2021 dez 14]; 90(1061):149-154. Disponível em: https://doi.org/10.1136/postgradmedj-2012-131168.
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Sob outra perspectiva, a formação interprofissional colabora para que o profissional delimite mais claramente o seu campo de atuação, reconhecendo os seus limites e a potência das ações compartilhadas. Fala-se, aqui, de uma identidade interprofissional, que valoriza a criação de espaços de diálogo, aprendizagem e confiança e o estreitamento das relações interpessoais2626 Rossit RAS, Freitas MAO, Batista SHSS, et al. Constructing professional identity in Interprofessional Health Education as perceived by graduates. Interface. 2018 [acesso em 2021 dez 14]; 22(supl1):1399-1410. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/wtqgWTz6VYZjqZW3Gp5yG4F/?lang=en.
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O aluno tem essa visão de que o cuidado é ampliado. Ele entende que essa é a proposta do PET-Saúde, e ele se envolve nas atividades propostas, aprende o que é a interprofissionalidade e desenvolve entendimento sobre o seu próprio papel na equipe de saúde, no cuidado do usuário. (T1).
Há uma maior valorização das outras profissões. A gente também observa que os alunos entendem melhor a sua própria profissão e competências; e eles conseguem ter a visão de que as suas competências se entrelaçam às competências das outras profissões, que são interligadas, que dependemos uns dos outros para atender os usuários de maneira mais resolutiva. (P1).
O PET-Saúde/Interprofissionalidade tem estimulado o desenvolvimento de ações de interação, comunicação e de trabalho coletivo entre diferentes graduações. O diálogo e a percepção de que se está em um ambiente de apoio permissivo à expressão de desacordos são condições sine qua non para o reconhecimento de objetivos comuns, valores, responsabilidades e compromissos norteadores do trabalho em equipe2727 Agreli HF, Peduzzi M, Bailey C. Contributions of team climate in the study of interprofessional collaboration: a conceptual analysis. J. Interprof. Care. 2017 [acesso em 2021 fev 14]; 31(6):679-684. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13561820.2017.1351425?journalCode=ijic20.
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Os desdobramentos dessa colaboração refletem na modificação das práticas, confluindo para o objetivo central da EIP: melhorar os resultados de saúde2828 Reeves S, Pelone F, Harrison R, et al. Interprofessional collaboration to improve professional practice and healthcare outcomes. Cochrane Database Syst. Rev. 2017 [acesso em 2021 dez 14]; 22(6):CD000072. Disponível em: https://doi.org/10.1002/14651858.cd000072.pub3.
https://doi.org/10.1002/14651858.cd00007... . Alcançar esse objetivo implica mover-se pelo trabalho em equipe, ainda que esta seja conformada por diferentes atores dotados de concepções próprias construídas ao longo de sua vida e de sua trajetória acadêmico-profissional. Juntos, esses atores se vestem de uma postura resistente ou se despem, tornando-se comprometidos e dispostos a romper e a se desvincular de uma postura estritamente individual para, então, participarem ativamente do processo de aprendizagem colaborativo.
Esse PET-Saúde tem um diferencial, porque ele prioriza uma questão que vai impactar diretamente na qualidade e na forma com que a assistência acontece. Muitas vezes a gente não conhece o trabalho do outro, a limitação de um e outro, e isso acaba prejudicando um conjunto de cuidados que você poderia exercer quando você conhece o trabalho do outro. Você pode somar esse conhecimento e isso vai refletir num cuidado muito mais holístico, e completo e vai trazer satisfação para esses usuários. (P9).
A mudança de postura é o disparador para que a prática colaborativa aconteça e sustente uma atuação integrada e integral, em benefício de pacientes/famílias/comunidades, possibilitando o melhor uso dos recursos disponíveis e o desenvolvimento de ações de cuidado mais criativas e efetivas2929 Supper I, Catala O, Lustman M, et al. Interprofessional collaboration in primary health care: a review of facilitators and barriers perceived by involved actors. J. Public Health (Oxf). 2015 [acesso em 2021 dez 14]; 37(4):716-727. Disponível em: https://doi.org/10.1093/pubmed/fdu102.
https://doi.org/10.1093/pubmed/fdu102... . Assim, faz-se mister discutir e aplicar os pressupostos da EIP para a promoção de uma aprendizagem reflexiva e colaborativa.
A interprofissionalidade como fundamento para a estruturação de currículos e práticas pedagógicas
A construção de contextos educacionais na perspectiva da EIP implica assumir a intenção de formar profissionais críticos, éticos e aptos para atuar colaborativamente e com responsabilidade social. Essa intencionalidade exige organizar currículos e conteúdos e usar metodologias pedagógicas que estimulem a promoção de saberes e capacidades cooperativas1818 Freire JR, Magnago C, Costa MV, et al. Interprofessional education and the formative actions of the emergency provision axis of the More Doctors Program. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 dez 10]; 43(esp1):50-63. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/XksJxG6Q9NkBD4n5SNzL7Wq/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/XksJxG6Q9... .
Sobre esse ponto, os relatos revelam que há, em curso, um processo de indução para reformas curriculares nas diferentes graduações envolvidas no PET-Saúde, ainda que as mudanças curriculares sobre os preceitos da EIP não representam uma política incorporada pelas instituições de ensino representadas neste estudo.
A educação física já conseguiu implantar uma disciplina de EIP; a enfermagem está usando os egressos do PET-Saúde: os alunos que entram são recebidos pelos alunos que já participaram para falar de EIP; o curso de nutrição também está com uma proposta de disciplina. Estamos aguardando oficialmente o curso de medicina. (C1).
Percebemos que é muito difícil tecer a discussão da interprofissionalidade nos Núcleos Docentes Estruturantes. Entendemos que essa discussão é necessária para que a EIP aconteça nos cursos de graduação. [...] A ideia é que estejamos, professores vinculados ao PET-Saúde e profissionais do serviço, dentro desses núcleos para discutirmos a importância da incorporação da interprofissionalidade na matriz curricular. (T2).
Esses achados não diferem substancialmente daqueles já publicados sobre a edição GraduaSUS, os quais sugerem que a construção de um projeto que contemple a EIP como fundamento estruturante dos projetos pedagógicos e currículos ainda se constitui um desafio para as instituições de ensino1414 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. O PET-Saúde/GraduaSUS como mobilizador da integração inter, intra e extrainstitucional. In: Castro J, Vilar RLA, Dias MA, organizadoras. Educação e trabalho: interface com a gestão em saúde. Natal: Uma; 2020. p. 245-271.. Apesar disso, já se percebem atitudes de mudança e movimentos de discussão e construção coletiva que caminham em direção ao fortalecimento da EIP como abordagem de escolha para a transformação das práticas pedagógicas.
Para Barr1616 Barr H. Ensuring quality in interprofessional education. CAIPE Bulletin. 2003; (22):2-3., a aprendizagem interprofissional, além de estar prevista na estrutura curricular, integrando os módulos de ensino, pressupõe a conjugação de métodos comuns e compartilhados e de recursos pedagógicos interativos e de contextualização. Por se alicerçar na aprendizagem em serviço, o PET-Saúde é, per si, uma proposta educacional contextualizada na realidade.
[...] a gente vai para os campos de práticas e a partir das demandas específicas que vão surgindo na secretaria de saúde, na comunidade, a gente vai construindo atividades interprofissionais com os alunos e preceptores. A gente trabalha muito a partir das experiências vividas desses profissionais com esses alunos. (C1).
Nessa direção, os integrantes do programa aproveitam os diferentes dispositivos do cuidado em saúde, já utilizados no cotidiano dos serviços, como recursos pedagógicos de promoção do aprendizado compartilhado entre as diferentes profissões. São, portanto, além de interativos, recursos contextuais que partem das necessidades de saúde e a elas se aplicam. São exemplos: consultório interprofissional, visita domiciliar, projeto terapêutico singular, rounds, discussão de casos clínicos e projetos nas comunidades.
A gente instituiu o consultório interprofissional. A médica, no momento da consulta, chamava o aluno de nutrição, o aluno de enfermagem, e a população viu isso de uma forma muito positiva, porque quando o usuário adentrava o consultório, ele já se deparava com todos esses olhares voltados para a demanda dele. (C1).
A gente montou um grupo de dor mecânica. Os alunos da medicina ficavam responsáveis pelo agulhamento a seco, mas todos os outros alunos já achavam os pontos gatilho. [...] Trabalhava todo mundo junto porque, por exemplo, o paciente tinha uma dor, mas também tinha sobrepeso, e aí cabia orientar para melhorar a questão do sobrepeso. Então, eu já entrava com a nutrição, o aluno de educação física falava sobre o alongamento e o da enfermagem falava sobre o autocuidado. (A2).
Por ser contextual e disparar ações que visam responder às demandas de saúde do território, o PET-Saúde promove a aprendizagem baseada na inclusão e na centralidade do usuário, bem como na participação efetiva dos profissionais do serviço nas práticas educativas. Os relatos demonstram modos de aprender e de ensinar que tomam o usuário como centro das ações, e que se baseiam no estreitamento das relações com as comunidades na busca por mobilizações e inclusão dos movimentos sociais nas discussões e condução dos serviços.
Essa experiência tem mostrado que é possível construir uma outra forma de ensinar os profissionais de saúde e quando eu falo em ensinar é uma via de mão dupla, a gente ensina e aprende ao mesmo tempo. Esse processo de ensino-aprendizagem a gente consegue fazer a partir da experiência, da experimentação das necessidades de saúde do usuário, fazer com que as equipes tomem como centro das suas atividades o usuário. Não é fácil, mas a gente tem conseguido provocar a rede de serviços nesse sentido. (C4).
Fizemos discussões sobre as visitas domiciliares que foram realizadas no âmbito do projeto, sobre gênero, raça. A gente pensou nos atravessamentos raciais com profundidade. E isso impacta quando a gente pensa na saúde da população negra; faz uma diferença enorme que os profissionais de saúde estejam sendo formados podendo discutir isso concretamente. [...] Saber sobre saúde é, antes de tudo, saber fazer. As perguntas precisam sempre ser respondidas localmente, territorialmente e nunca a partir de um efeito de colonização, de entendimento prévio, mas de um entendimento que precisa ser construído ‘com’. Então, eu entendo que os benefícios são muitos para a comunidade local e eles se multiplicam. (T3).
O PET-Saúde, alicerçado na proposta da EIP, foi referido como revolucionário, desafiador, gerador de resultados, ousado, contemporâneo e o caminho possível para a formação; pois, a partir dele, é possível ver outra lógica, um percurso de ensino que faz mais sentido por ser mais integrado, ativo e promotor de novas posturas e novos modos de cuidar.
Estar e ter sido recebido no serviço da forma com que o PET-Saúde me possibilitou fez com que eu transformasse a minha visão de como poderia ter sido a graduação para mim [...]. Não é nem uma questão de sentir que existe uma preparação maior, é uma questão de o percurso fazer mais sentido, do que eu vivi como estudante ter mais sentido, de uma forma mais integrada, de uma forma mais ativa. (A4).
Reforçado como política indutora de mudanças, os entrevistados aludiram que o PET-Saúde ajuda a garantir o compromisso ético das instituições públicas com as políticas públicas; e que seu objetivo de ser disparador de transformações é atendido. Por isso, expressaram o desejo de que os currículos sejam, cada vez mais, repensados para além de quem participa do PET-Saúde, para que, quando este se encerrar, a proposta e as mudanças conquistadas sejam sustentáveis dentro do projeto curricular da instituição.
Já não faz mais sentido pensar a formação fora do mundo do trabalho, visto que é tão somente a partir dele que se constrói uma leitura crítico-reflexiva da realidade que transforma os atores em sujeitos ativos. É nessa ótica que a integração ensino-serviço-comunidade, instada pelo PET-Saúde, visa transformar o processo de trabalho em um movimento dinâmico, a práxis; isto é, em uma atividade social conscientemente intencional, orientada a um objetivo3030 Silva RHA. Educação interprofissional na graduação em saúde: aspectos avaliativos da implantação na Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Educ. rev. 2011 [acesso em 2021 dez 14]; (39):159-175. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/sgdWh5RzHCHhyrnxbmkXjSC/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/er/a/sgdWh5RzHCH... . Ao incorporar uma intencionalidade, posta pela EIP como a qualificação das práticas e dos resultados de saúde, os sujeitos podem interferir na transformação da realidade sociossanitária.
Essa potência do PET-Saúde já foi demonstrada por estudos prévios referentes a outras edições do programa1111 Mira QLM, Barreto RMA, Vasconcelos MIO. Impacto do PET-Saúde na formação profissional: uma revisão integrativa. Rev. Baiana Saúde Pública. 2016 [acesso em 2021 dez 14]; 40(2):514-531. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/1682/1889.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r... ,1313 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. PET-Saúde/GraduaSUS na visão de atores do serviço e do ensino: contribuições, limites e sugestões. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 dez 14]; 43(esp1):24-39. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnksJcVQmJ79Wt38ny/?lang=pt#.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnks... ,1414 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. O PET-Saúde/GraduaSUS como mobilizador da integração inter, intra e extrainstitucional. In: Castro J, Vilar RLA, Dias MA, organizadoras. Educação e trabalho: interface com a gestão em saúde. Natal: Uma; 2020. p. 245-271.. Contudo, ainda reside a percepção de que a iniciativa não consegue atingir, de maneira mais significativa, um conjunto maior de sujeitos. Assim, um ponto comum observado nesses estudos refere-se à necessidade de sua ampliação, de modo a viabilizar a participação de um maior número de instituições, cursos de graduação, unidades de saúde, estudantes e trabalhadores do SUS. Essa expectativa reforça a imprescindibilidade da institucionalização desta proposta, que pode e deve ser fomentada pela comunidade universitária e pelos serviços de saúde.
Os mecanismos de avaliação do PET-Saúde/Interprofissionalidade
A mudança do paradigma de formação também exige mudanças dos processos avaliativos, que devem ser considerados pilares para o reconhecimento e a efetividade da EIP. Avaliações adequadas contribuem para o crescimento pessoal e profissional dos atores envolvidos nas intervenções de ensino, e para o aprimoramento do processo pedagógico docente e institucional, assegurando que se estão preparando profissionais dotados dos atributos essenciais ao trabalho colaborativo. Para Barr1616 Barr H. Ensuring quality in interprofessional education. CAIPE Bulletin. 2003; (22):2-3., os mecanismos de avaliação devem assegurar processos avaliativos contínuos dos aprendizes que verifiquem o desenvolvimento de competências e atitudes, permitam o replanejamento dos métodos pedagógicos, e cujos resultados devem ser publicizados para auxiliar o planejamento de novas experiências de EIP.
Ademais, considerando que, no âmbito do PET-Saúde, a implementação da EIP vem sendo induzida a partir da introdução de estudantes e do desenvolvimento de ações nos cenários do SUS, os processos avaliativos também devem considerar o impacto nos resultados de saúde. A partir dessa ótica, a avaliação constitui-se um ato de aprendizagem capaz de garantir o progresso formativo de todos os atores envolvidos no ensino, e um instrumento viabilizador de troca de experiências e de planejamento de ações que conduzam a melhores práticas de cuidado3030 Silva RHA. Educação interprofissional na graduação em saúde: aspectos avaliativos da implantação na Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Educ. rev. 2011 [acesso em 2021 dez 14]; (39):159-175. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/sgdWh5RzHCHhyrnxbmkXjSC/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/er/a/sgdWh5RzHCH... .
Neste estudo, observou-se que os processos de avaliação da EIP empregados no contexto do PET-Saúde ou foram considerados incipientes ou não foram mencionados. Embora reconheçam que a edição Interprofissionalidade provocou mudanças no ensino e no serviço, os integrantes não dispõem de instrumentos de avaliação, indicadores e resultados sistematizados que demonstrem os impactos do programa.
Vemos equipes fazendo deslocamentos no seu processo de trabalho a partir dos efeitos do PET-Saúde, vemos condutas sendo reorientadas, alunos respondendo de forma mais consciente. [...]. A gente não mediu isso e é uma coisa que a gente precisava medir, o impacto. E aí eu estou falando de um indicador de resultado na população local [...]. (C4).
Não há um processo de avaliação [...]. A gente precisa avaliar se há alguma mudança nesses estudantes que estão entrando e saindo do PET-Saúde, na perspectiva do trabalho interprofissional [...]. Os processos de avaliação ainda são muito incipientes. Não sabemos se, de fato, a gente está conseguindo alcançar o objetivo. (T4).
Alguns grupos tutoriais lançam mão de estratégias de avaliação intragrupos e de divulgação dos resultados alcançados com o PET-Saúde, em geral fomentados por docentes e estudantes que buscam relatar e publicar suas experiências por meio de artigos científicos. São movimentos isolados, não institucionais e não governamentais, mas representam um esforço de acompanhamento das ações desenvolvidas e dos benefícios percebidos no cotidiano do ensino.
A gente tem tentado acompanhar, fazer um follow-up dos alunos que saíram do PET-Saúde. [...]. Nós temos muitos relatos, artigos de alunos falando sobre a mudança deles de olhar e da importância de um outro tipo de trabalho em saúde. Temos um professor que também publicou um artigo que vai nessa direção [...]. (T2).
Na edição GraduaSUS, percebeu-se um esforço por parte do Ministério da Saúde em empreender, pela primeira vez, um processo avaliativo sistematizado, de âmbito nacional, sobre essa iniciativa de reorientação do modelo de formação, cujos resultados subsidiaram a elaboração da edição Interprofissional3131 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde: um panorama da edição PET-Saúde/GraduaSUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Ainda assim, os resultados publicados sinalizaram para a ausência de mecanismos permanentes de avaliação que identificassem as fortalezas e as fragilidades do programa e, por conseguinte, subsidiassem os ajustes necessários ao seu aperfeiçoamento1212 França T, Magnago C, Santos MR, et al. PET-Saúde/GraduaSUS: retrospectiva, diferenciais e panorama de distribuição dos projetos. Saúde debate. 2018 [acesso em 2021 dez 14]; 42(esp2):286-301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/dTvgGzZNTxzm9BcVr6b9H4N/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/dTvgGzZNT... ,1313 Magnago C, França C, Belisário AS, et al. PET-Saúde/GraduaSUS na visão de atores do serviço e do ensino: contribuições, limites e sugestões. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 dez 14]; 43(esp1):24-39. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnksJcVQmJ79Wt38ny/?lang=pt#.
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Também foram previstos mecanismos de acompanhamento e avaliação do desenvolvimento dos projetos do PET-Saúde/Interprofissionalidade, que seriam monitorados por meio de relatórios e relatos de experiências emitidos pelas instituições executoras, visitas in loco realizada por assessores ministeriais e pesquisas de monitoramento e avaliação3232 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Edital nº 10, de 23 de julho de 2018. Seleção para o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde: PET-saúde/Interprofissionalidade. Diário Oficial da União. 24 Jul 2018.. Esse aspecto foi mencionado por um entrevistado, segundo o qual a visita de assessores foi uma oportunidade de aprendizado conjunto, embora não suficiente para a produção de dados que colaborem para a sustentabilidade do programa e da abordagem da EIP.
Há diversos instrumentos padronizados disponíveis para determinar a satisfação do aprendiz, a mudança de atitudes e os modos como as competências estão sendo integradas à prática cotidiana do aluno. Contudo, o que se observa é que a literatura sobre o tema valoriza mais a dimensão atitudinal (ser) do que a conceitual (saber) e procedimental (saber fazer)3333 Frasson F, Laburú CE, Zompero AF. Aprendizagem significativa conceitual, procedimental e atitudinal: uma releitura da Teoria Ausubeliana. Cont. Educ. 2019 [acesso em 2021 mar 6]; 34(108):303-318. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoeducacao/article/view/8840.
https://www.revistas.unijui.edu.br/index... . Ademais, as evidências nacionais sobre experiências de educação e trabalho alicerçadas na EIP não dispõem de propostas estruturadas de coleta e análise de informações que mensurem e ajuízem os seus efeitos sobre as práticas e os resultados de saúde.
Para Carvalho et al.3434 Carvalho ALB, Souza MF, Shimizu HE, et al. A gestão do SUS e as práticas de monitoramento e avaliação: possibilidades e desafios para a construção de uma agenda estratégica. Ciênc. Saúde Colet. 2012 [acesso em 2020 dez 4]; 17(4):901-911. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zbbKf7BZXVhZZQCF4ZrLPdm/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csc/a/zbbKf7BZXV... , os procedimentos avaliativos ainda não fazem parte da cultura institucional, apresentam-se pouco incorporados às práticas e possuem, quase sempre, um caráter prescritivo e burocrático. Quando empregados, podem resgatar o compromisso e a corresponsabilidade entre a academia e os serviços de saúde, contribuindo para o desenvolvimento de uma cultura organizacional e para o processo de institucionalização da avaliação.
As políticas públicas e os programas, projetos e ações que as sustentam precisam garantir respostas eficientes e eficazes aos problemas de caráter público. Nesse sentido, todas as políticas implementadas devem ser monitoradas e avaliadas, de modo transparente e democrático3535 Garcia RC. Subsídios para organizar avaliações da ação governamental. In: Cardoso Jr JC, Cunha AS, organizadores. Planejamento e avaliação de políticas públicas. Brasília, DF: Ipea; 2015. p. 233-96.. Considerando que a EIP, por meio do PET-Saúde, constitui-se estratégia pública com o propósito de desencadear transformações das práticas de trabalho e formação profissional para produzir resultados significativos para a qualificação da assistência de saúde, os processos de avaliação também são aplicáveis e requeridos.
Monitoramento e avaliação podem ser vistos como parte do esforço mais amplo para melhorar a formulação de políticas públicas, colaborando para aperfeiçoar o planejamento e a gestão das intervenções em curso, uma vez que mensuram seus efeitos e apreciam a influência do ambiente e do contexto nos quais são implementadas3535 Garcia RC. Subsídios para organizar avaliações da ação governamental. In: Cardoso Jr JC, Cunha AS, organizadores. Planejamento e avaliação de políticas públicas. Brasília, DF: Ipea; 2015. p. 233-96.. Avaliar as iniciativas de introdução da EIP nas graduações em saúde, para descobrir o efeito dessa intervenção no ensino e no SUS, pode assegurar a essa abordagem um espaço de reconhecimento e subsidiar processos de tomada de decisão baseados em evidências que visem ao aperfeiçoamento das estratégias utilizadas para a sua implementação.
Considerações finais
Em que pesem os diferentes avanços alcançados pelas versões anteriores do PET-Saúde, fundamentais para a estruturação de novos arranjos que visem à efetiva transformação do ensino-aprendizagem; é a partir dos resultados da edição Interprofissionalidade que se identificam processos mais robustos de integração, provocativos de um movimento inclusivo dos ideários da EIP e das práticas colaborativas, não apenas no âmbito intramuros da universidade e serviços do SUS, mas também nos territórios onde se produz saúde.
Este estudo conseguiu demonstrar que, assumindo como fio condutor a integração ensino-serviço-comunidade e como foco central a mudança curricular sob os preceitos da EIP, a edição PET-Saúde/Interprofissionalidade deflagrou experiências assertivas de ensino-aprendizagem nos cenários do SUS. Além de mobilizar reformas curriculares e a criação de disciplinas interprofissionais, o programa tem conseguido promover atitudes e competências colaborativas. Destaca-se, nesse sentido, uma postura de abertura para a alteridade, opondo-se ao aprisionamento de si em seus núcleos profissionais. Como reflexos, percebem-se alterações de comportamento perante o coletivo, reconhecimento de suas próprias funções e dos diferentes papéis profissionais, aumento da implicação no exercício da coprodução e corresponsabilidade pelo cuidado e seus resultados.
Ancorando-se na premissa da EIP de “aprender juntos para trabalhar juntos”22 World Health Organization. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2022 set 28]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70185/WHO_HRH_HPN_10.3_eng.pdf;jsessionid=F3A135CF72ADCA28D077D6C57F2D1256?sequence=1.
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl... , os atores do PET-Saúde/Interprofissionalidade, nos cenários do SUS, valem-se de dispositivos de gestão e produção do cuidado para promover o aprendizado interativo, compartilhado e colaborativo entre estudantes e trabalhadores. Funcionam, portanto, como recursos pedagógicos inclusivos aos usuários e contextualizados às suas demandas de saúde. Nessa ótica, as ações estruturadas e desempenhadas coletivamente demonstram ser possível ensinar e aprender a partir da realidade cotidiana do SUS.
As conquistas alcançadas mediante as iniciativas interprofissionais demonstram disponibilidade dos atores do ensino e serviço para romper com processos de ensino e trabalho baseadas na hierarquização dos núcleos de saber e das relações de poder e autoridade2222 Ogata MN, Silva JAM, Peduzzi M, et al. Interfaces between permanent education and interprofessional education in health. Rev. Esc. Enferm. USP. 2021 [acesso em 2021 dez 14]; 55:e03733. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghvK3WgSN3pzcdKsZgR/?lang=en.
https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghv... . Contudo, a dinâmica do PET-Saúde e a abordagem da EIP ainda não se manifestam como políticas estruturantes dos cursos de graduação, cujos empecilhos para a sua institucionalização ainda persistem. Atenção especial deve ser dada aos processos avaliativos, ainda muito incipientes, que não oportunizam a sistematização das evidências sobre os impactos da iniciativa na formação, atuação profissional e nos resultados de saúde.
Outro desafio é a sustentabilidade dos avanços alcançados, o que requer investimento em recursos, métodos pedagógicos, estratégias para a qualificação de docentes e preceptores; assim como maior suporte político às instituições de ensino para que possam aprofundar e garantir a perenidade e a legitimidade da EIP nas políticas de reorientação da formação.
Mesmo que este estudo tenha analisado o PET-Saúde/Interprofissionalidade a partir de experiências circunscritas em uma unidade federativa, está comprovado que este tem contribuído progressivamente para as transformações no ensino e para a disseminação dos conceitos e pressupostos que orientam a EIP entre estudantes, docentes, profissionais e gestores.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2023 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
31 Out 2021 - Aceito
27 Jul 2022