Política sexual e ativismo de HIV/Aids: a experiência da Loka de Efavirenz

Pisci Bruja Garcia de Oliveira Júlio Assis Simões Sobre os autores

RESUMO

Este artigo descreve e analisa, de uma perspectiva etnográfica, como as pessoas participantes da Coletiva Loka de Efavirenz percebem, vivenciam e enfrentam os efeitos da Aids em seu cotidiano, com vistas a contribuir para o entendimento das novas formas de ativismo em HIV/Aids que emergiram na década de 2010 no Brasil e sua relação com processos de subjetivação e construção de redes informais de cuidado. Mostra-se como os membros da Loka se articulam como sujeitos atravessados pelo estigma de HIV/Aids, reivindicando o exercício de suas sexualidades e identidades marcadas por gênero, raça e classe. Desse modo, adentram a disputa por direitos por meio da produção de conhecimento e de ações que adquirem força na produção de uma rede de cuidado para além dos serviços de saúde. A análise das práticas e elaborações da Coletiva realça a Aids como lente privilegiada para situar desafios, lutas, discussões e debates que atravessam os modos de regulação das práticas erótico-sexuais e das expressões de gênero, refletindo tensões e transformações sociais mais amplas.

PALAVRAS-CHAVE
HIV; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Estigma social; Cuidado; Políticas

Introdução

A epidemia de Aids, desde seus primórdios, desencadeou uma epidemia de significações em relação ao corpo e à sexualidade, redefinindo identidades sexualizadas e tensionando processos de regulação moral e sexual. Deu lugar a muitas formas de perseguição, desmoralização e desumanização de bixas, travestis, profissionais do sexo, usuários de drogas, pessoas negras e imigrantes11 Perlongher N. O que é aids . São Paulo: Brasiliense; 1987.,22 Pollak M. Os homossexuais e a AIDS: sociologia de uma epidemia; tradução de Paula Rosas. São Paulo: Estação Liberdade; 1990.,33 Aggleton P, Parker R. Estigma, discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: ABIA; 2001.,44 Mott L. A transmissão dolosa do HIV-Aids: relatos na imprensa brasileira. Impul Rev Ciênc Soc Hum. 2002 [acesso em 2022 set 10]; 1(32):157-174. Disponível em: https://silo.tips/download/a-transmissao-dolosa-do-hiv-aids-relatos-na-imprensa-brasileira.
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,55 Barata FG. A primeira década da AIDS no Brasil: o Fantástico apresenta a doença ao público (1983 a 1992), 2005. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006. [acesso em 2019 maio 3]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07072006-124258/pt-br.php.
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,66 Cavalcanti C, Barbosa RB, Bicalho P. Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização. Psico Ciên Prof. 2018 [acesso em 2022 abr 29]; 38(2):175-191. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/MLLBpknvMfqdR66rvVGF3WD/?lang=pt.
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,77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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; como também a estratégias de sobrevivência e de luta das Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), que elaboraram ferramentas de mobilização cívica e política para compreender e enfrentar a economia política da estigmatização e da exclusão social33 Aggleton P, Parker R. Estigma, discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: ABIA; 2001.(12).

O movimento social brasileiro de Aids, composto por Organizações Não Governamentais (ONG), redes, fundações e coletivos, tem tido papel fundamental no fortalecimento dos grupos sociais mais atingidos pela epidemia desde os seus primeiros tempos88 Teodorescu LL, Teixeira PR. Histórias da AIDS no Brasil: a sociedade civil se organiza pela luta contra a aids. Brasília, DF: Departamento Nacional DST/Aids e Hepatites Virais; Unesco Brasil; 2015.. As ONG/Aids se consolidaram como espaços de debates políticos e de produção de bioidentidades99 Facchini R. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.,1010 Ortega F. Biopolíticas da Saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt. Interface. 2004 [acesso em 2022 abr 29]; 8(14):09-20. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/KRqrqqJGqK6vshf4KKrkCbw/?lang=pt.
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,1111 Valle CG. Identidades, Doença e Organização Social. Porto Alegre: Hor Antrop. 2002 [acesso em 2022 abr 29]; 8(17):179-210. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/HFxjkCBBsCnvHdN8Nfk7ncS/?lang=pt#.
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,1212 Perrusi A, Franch M. Carne com carne: gestão do risco e HIV/Aids em casais sorodiscordantes no Estado da Paraíba. Rev Ciênc Soc Pol Trab. 2012 [acesso em 2022 abr 29]; 2(37):179-200. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/14880/8440.
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, articulando-se com outros movimentos sociais1313 Silva CLC. Ativismo, ajuda-mútua e assistência: a atuação das organizações não governamentais na luta contra AIDS. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1999.,1414 Câmara C, Lima RM. Histórico das ONGs/Aids e sua contribuição no campo das lutas sociais. Direitos humanos, cidadania e AIDS. Cadernos ABONG. 2000 [acesso em 2022 abr 29]; 28:29-71. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/183/ABONG_DIREITOS%20HUMANOS%2C%20CIDADANIA%20E%20AIDS.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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,1515 Valle CG. Apropriações, conflitos e negociações de gênero, sexualidade e sorologia: etnografando situações e performances no mundo social do HIV/AIDS (Rio de Janeiro). Rev Antrop USP. 2008 [acesso em 2022 abr 29]; 51(2):200-236. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27292.
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em uma modalidade de prestação de serviços e de experiência de prevenção entre pares que conferiu status de referência internacional para o Brasil88 Teodorescu LL, Teixeira PR. Histórias da AIDS no Brasil: a sociedade civil se organiza pela luta contra a aids. Brasília, DF: Departamento Nacional DST/Aids e Hepatites Virais; Unesco Brasil; 2015.(16).

A partir dos anos 2010, o crescimento do enfoque biomedicalizante nas estratégias de Tratamento como Prevenção (TcP), apoiado no avanço e na crescente disponibilidade das Terapias Antirretrovirais (Tarv), combinado com mudanças nas fontes e formas de financiamento para ações comunitárias de prevenção, deslocou a centralidade das ONG/Aids na resposta brasileira à epidemia. Em contrapartida, coletivos informais, agrupando pessoas com ênfase na questão de viver com HIV, ganharam espaço na interlocução crítica com as políticas de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST/Aids) no Brasil. Nesse cenário de difusão da ideia de cronicidade da Aids1616 Borges RE, Silva M, Melo L. Mas não tive coragem de contar: a revelação da condição sorológica na experiência amorosa de pessoas que vivem com HIV. Saúde Soc. 2017 [acesso em 2022 jan 11]; 26(3):664-675. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902017000300664&lng=en&nrm=iso.
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,1717 Simões JA. Gerações, mudanças e continuidades na experiência social da homossexualidade masculina e da epidemia de HIV-Aids. Sex. Salud Soc. 2018 [acesso em 2022 jan 11]; 29:313-339. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872018000200313&lng=pt&nrm=iso.
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, quando a possibilidade de viver com HIV com qualidade de vida, desde que aderente à Tarv, pareceu se tornar a “resposta definitiva no campo da prevenção”1818 Cortez LCA. ‘Ou eu luto, ou eu morro’: ativismo em HIV/AIDS e processos de subjetivação na experiência da coletiva Loka de Efavirenz. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2019. 121 f.(56), ativismos como o da Coletiva Loka de Efavirenz emergiram como vozes dissidentes que tensionam a narrativa de que “a epidemia está controlada porque tem remédio”.

Este artigo visa compreender, de uma perspectiva etnográfica, como as pessoas participantes da Coletiva Loka de Efavirenz entendem, vivenciam e enfrentam o impacto das formas de gestão da Aids em seu cotidiano. Procuramos mostrar como as pessoas da Loka se articulam como sujeitos marcados pelo estigma de HIV/Aids, reivindicando o exercício de suas sexualidades e adentrando a disputa pelos direitos sexuais1919 Weeks J. Sex, politics and society : the regulation of sexuality since 1800. London: Longman; 1981.,2020 Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana. 2015 [acesso em 2022 jan 11]; 21(2):323-345. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/6D5zmtb3VK98rjtWTQhq8Gg/?lang=pt.
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por meio da produção de conhecimento e de ações que extrapolam o âmbito individual e compõem uma rede de cuidado para além dos serviços de saúde. Consideramos que as práticas da Coletiva contribuem para uma crítica intersetorial e interseccional da epidemia, abrangendo desde problemas de acesso aos serviços de saúde pelas pessoas negras, indígenas, trans e travestis até dificuldades quanto à própria adesão ao tratamento em contextos de violência estrutural e institucional1818 Cortez LCA. ‘Ou eu luto, ou eu morro’: ativismo em HIV/AIDS e processos de subjetivação na experiência da coletiva Loka de Efavirenz. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2019. 121 f..

O conceito de política sexual1919 Weeks J. Sex, politics and society : the regulation of sexuality since 1800. London: Longman; 1981.,2020 Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana. 2015 [acesso em 2022 jan 11]; 21(2):323-345. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/6D5zmtb3VK98rjtWTQhq8Gg/?lang=pt.
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, que subjaz à análise, põe em destaque o caráter complexo e heterogêneo dos modos de regulação da sexualidade, permitindo abordar em conjunto formas distintas de intervenção pública, inclusive dos diferentes ativismos e movimentos sociais. Para além de argumentos e conceitos de natureza técnica e científica, estão em jogo valores morais, princípios e posições políticas envolvendo enfrentamentos e coalizões de diferentes sujeitos e forças sociais. Desde sua irrupção, a Aids recolocou e reposicionou questões sobre comportamento pessoal, moralidade e política social, dramatizando tensões e ansiedades coletivas acumuladas em torno das práticas erótico-sexuais e das expressões de gênero. A experiência da Coletiva Loka de Efavirenz ajuda a capturar parte da dinâmica recente dos modos de regulação da epidemia, realçando a Aids como lente privilegiada para situar os desafios, lutas, discussões e debates que atravessam as políticas sexuais, refletindo tensões e mudanças sociais mais amplas.

Metodologia

A pesquisa de inspiração etnográfica que baseia este artigo faz parte da dissertação de mestrado de Pisci Bruja Garcia de Oliveira, orientada por Júlio Assis Simões77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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. Essa pesquisa explorou o recrudescimento da estigmatização das PVHA em associação à retomada das tentativas de criminalização da transmissão do HIV, em um cenário de aumento dos registros de infecção por HIV em populações jovens de pessoas trans e travestis, gays e outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH).

Para abordar aspectos da produção de conhecimento, articulação e ativismo da Coletiva Loka de Efavirenz (a partir daqui referida apenas como Loka), utilizamos dados obtidos em entrevistas e roda de conversa com participantes, bem como relatos de observação e registros em mídias sociais, além de anotações de campo referentes à participação de Pisci Bruja na XXII Conferência Internacional de Aids (AIDS 2018), em Amsterdam.

As entrevistas e a roda de conversa se inspiram na proposta metodológica da copesquisa2121 Roggero G. Breves notas sobre o método. Produção de saber e copesquisa. Lugar Comum. 2013 [acesso em 2022 jan 11]; 1(39):91-96. Disponível em: https://uninomade.net/wp-content/files_mf/111206131220ProvaFinal2_LugarComum39.pdf.
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, para realçar o caráter compartilhado, discutido e conjuntamente construído da leitura da Aids feita pela Loka, embora seus integrantes estejam hoje em lugares diferentes na academia (antropologia, saúde coletiva, psicologia, filosofia, geofísica, sociologia, artes, letras), na política institucional (uma participante é vereadora em um mandato coletivo) e na cena artística e cultural, atuando como performers, poetas, produtoras culturais, entre outras. A roda de conversa é uma forma de debate e construção de conhecimento compartilhado que faz parte do repertório de vários ativismos contemporâneos. Apoiada na memória despertada pelo diálogo, como momento privilegiado e singular de partilha e troca de experiências, de fala e escuta, em que cabem confraternização, desabafo, concordâncias, divergências e ponderações, a roda de conversa pode abrir caminho para formar, rever e mudar opiniões com mais profundidade e reflexão2222 Moura AF, Lima MG. A reinvenção da roda: roda de conversa, um instrumento metodológico possível. Rev Temas Educ. 2014 [acesso em 2022 abr 29]; 23(1):98-106. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rteo/article/view/18338.
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.

Pisci Bruja, coautora deste artigo, é também participante da Loka, o que empresta à pesquisa uma dimensão parcialmente autoetnográfica. Embora verse, em boa parte, sobre sua própria experiência com o viver com HIV/Aids, a autoetnógrafa parte disso para analisar questões sociais e políticas mais amplas, pois refere-se igualmente a experiências partilhadas e engajadas com outras narrativas de PVHA e que, salvo suas interseccionalidades, similarmente, são atravessadas pelas relações de poder constituídas pelas distintas compreensões da epidemia. Assim, as trocas geradas a partir das rodas de conversa produzem conhecimentos apreendidos através do próprio corpo que, em seus movimentos e encontros com diferentes ambientes, pessoas, objetos, experimenta diversas emoções2323 Gama F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. Anuário Antropológico. 2020 [acesso em 2022 abr 29]; 45(2):188-208. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/5872.
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, possibilitando a reelaboração dos inúmeros processos em torno do estigma e a formação de redes informais de cuidado.

Quem é a Loka de Efavirenz?

A Loka é uma coletiva de pessoas jovens (hoje entre 20 e 35 anos) vivendo e convivendo com HIV/Aids. A grande maioria se autointitula preta, embora a coletiva tenha sua ‘cota’ branca: Pisci Bruja, Ladyane Vieira e Beatriz. Inicialmente, a Loka era composta por pessoas cisgênero, mas esse quadro também se transformou quando ao menos três integrantes transicionaram e se tornaram travestis. A maioria nasceu e mora em São Paulo. Há também integrantes ou colaboradoras naturais do Maranhão e da Bahia, assim como paulistas que agora residem no Rio Grande do Norte e na Paraíba.

A Loka surgiu em 2016, a partir do curso ‘Participação Juvenil, Ativismo e Direitos Humanos em HIV/Aids no Estado de São Paulo’, organizado por Carolina Iara, Lili Nascimento e Renan Moser. Esse curso, promovido pela Rede de Jovens São Paulo Positivo, em parceria com a Coordenação Estadual de DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) e com apoio do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), reuniu jovens com o objetivo de construir mobilizações diante dos novos desafios da epidemia. Foi nesse espaço que a maioria dos integrantes atuais se conheceu e passou a construir coletivamente uma rede de apoio afetiva, de fortalecimento material e de reconstrução subjetiva.

No início, não era ‘só’ a Aids que as afetava, mas também a pobreza, a fome, os efeitos colaterais das medicações, entre outras vulnerabilidades. Morando ‘ilegalmente’ no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp), por muitas vezes, as que possuíam vínculo com a universidade dividiam seu ‘bandejão’ com as que não tinham o que comer. Ou, quando isso não era possível, iam até o Ceasa atrás de uma ‘xepa’, buscando e coletando legumes e frutas caídas no chão para alimentar o ‘bonde’. Assim, os laços foram sendo construídos, por meio da alimentação e do compartilhamento das dores e alegrias de vidas atravessadas por muita violência. A união foi necessária para que atravessassem vivas os momentos de maior dificuldade. As Lokas, em suas palavras, juntaram-se para sobreviver.

Durante esse processo de quase três anos (entre 2016 e 2019), a Loka foi se construindo como grupo de partilha e intervenção, criando uma página no Facebook2424 FACEBOOK. Loka de Efavirenz. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/LokadeEfavirenz/.
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alimentada pelas reflexões coletivas. As discussões, na grande maioria sobre Aids, levavam horas – e aconteciam, sobretudo, no momento especial em que cozinhavam, que as impulsionava a ‘colocar a Aids na fogueira e transformar as dores em piada’. O deboche, característica que atravessa a Loka desde sempre, é um meio de ‘amenizar as dores’ e ajudar a ‘cicatrizar as feridas da vida’. Várias oportunidades de ações começaram a nascer além do Facebook: surgiram convites para debater sobre Aids e desenvolver atividades sobre sexo seguro, performances e outras intervenções em universidades, conferências nacionais e internacionais, em festas de sexo em São Paulo, assim como a escrever e refletir em diversas plataformas digitais. A Loka passou a compor outros espaços institucionais, como a própria Rede de Jovens São Paulo Positivo, e a construir articulações e intervenções políticas na Assembleia Legislativa (Alesp) e na SES-SP. Alguns membros retornaram à universidade, para terminar a graduação ou iniciar um mestrado. Ademais, chegaram até a angariar recursos de editais públicos, como VAI 2019, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em que desenvolveram o projeto ‘Avivamento do Corpo PositHIVo’, ao longo do primeiro ano da pandemia da Covid-19.

Boa parte dos integrantes da Loka nomearam esse processo de construção e fortificação coletiva como ‘aquilombamento’, uma estratégia ancestral de organização social e de produção de tecnologias que possibilitou pessoas negras e indígenas sobreviverem ao genocídio. Conforme Beatriz Nascimento2525 Nascimento B. Quilombos: mudança social ou conservantismo? 1976. In: Nascimento B. Quilombola e Intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Filhos da África; 2018., a palavra ‘quilombo’, significando ‘união’, remete a uma instituição social africana que permitia incorporar pessoas por meio de relações de ‘iniciação’ que cortavam transversalmente as estruturas de linhagem. No contexto da diáspora e da escravidão, o quilombo tornou-se símbolo da resistência negra à opressão e da projeção de uma forma autônoma de organização social. Assim, traduzindo vínculos criados por intermédio da ‘iniciação’ de viver com HIV/Aids em instrumento de afirmação e resistência, muitas das Lokas puderam se reerguer, alimentar sonhos e prospectar futuro.

Assim como em outras experiências registradas pela literatura sobre ativismos de HIV/Aids, o ato de compartilhar memórias e significados abriu novos horizontes e perspectivas para o que parecia ser um único trajeto. Com a construção de espaços seguros, de troca, de manutenção do cuidado e de produção de conhecimento, a Loka também transitou do ‘HIV-profecia’ para o ‘HIV-território’, da maldição para o acesso a cuidados em saúde, acolhimento e trocas2626 Melo LP, Mariana GP, Jared WMS, et al. Do HIV-profecia ao HIV-território: um estudo de caso sobre juventude, subjetividade e ativismo em HIV/aids. Physis. 2021 [acesso em 2022 abr 29]; 31(04):e310406. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/8PqhqfyLqTqPGkzXjMvzd7y/abstract/?lang=pt.
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. Em linhas gerais, portanto, a Loka se entende como espaço de produção de conhecimento, afeto e cura.

A Aids em questão: atravessamentos e percepções da Loka

Uma roda de conversa ofereceu a maior parte das questões discutidas nesta seção. Participaram da conversa Marcelo Jardim, Lili Nascimento, Carolina Iara, Ramon Soares, Ya Mattos, Cadiva (Carlos Eduardo), José Daniel, e Pisci Bruja. O assunto disparador foi puxado por Pisci Bruja, que trouxe os principais aspectos da criminalização da transmissão do HIV levantados em sua dissertação de mestrado. Debateu-se o processo de construção das categorias ‘aidético’ e ‘grupo de risco’, das ‘políticas de Aids’, do atual movimento LGBTQIA+ no Brasil e das disputas morais, políticas e religiosas motivadas por acusações de supostas transmissões intencionais do HIV.

Entre 2010 e 2018, a América Latina registrou uma expansão de 7% no número de infecções por HIV, segundo o relatório do Unaids de 20192727 Unaids. Portal de Notícias. [acesso em 2022 abril 29]. Disponível em: https://unaids.org.br/.
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. O Brasil, que entre 2010 e 2013 vinha apresentando queda no número de infecções, elevou os casos no continente no restante da década, com um crescimento individual de 21%. A epidemia voltou a se tornar mais concentrada, havendo um avanço no número de infecção por HIV especialmente na população mais jovem, entre 20 e 34 anos, na maioria pessoas pretas e pardas. No que diz respeito à mortalidade por Aids, entre os anos 2010 e 2020, houve um crescimento de 10,4% dos óbitos em negros, sendo que as mulheres cis negras apresentam uma proporção de óbitos de 62,9%2828 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico de HIV e Aids. Brasília, DF: MS; 2021.. Igualmente, quando se volta o olhar para os grupos populacionais mais vulneráveis para a infecção por HIV, identificou-se um crescimento da epidemia entre gays e outros HSH cis, com uma taxa de detecção de 18,4%2929 Kerr LMD, Kendall C, Guimarães MDC, et al. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil. Medicine (Baltimore). 2018 [acesso em 2022 abr 29]; 97(1):S9-S15. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29794604/.
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. A população de mulheres trans e travestis seguiu no topo da prevalência, com taxas estimadas acima de 30%3030 Unaids. Dia da visibilidade trans: reunião técnica discute saúde, direitos sexuais e reprodutivos, trabalho, inclusão social e direitos humanos. 2020. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://unaids.org.br/2020/01/dia-da-visibilidade-trans-reuniao-tecnica-discute-saude-direitos-sexuais-e-reprodutivos-trabalho-inclusao-social-e-direitos-humanos/.
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, enquanto sequer existem dados epidemiológicos em HIV/Aids para homens trans e pessoas transmasculinas.

Nesse cenário, tem sido bastante comum deparar com discursos afirmando que as infecções por HIV estariam avançando em pessoas jovens porque estas teriam perdido o ‘medo’ da Aids, ou porque, por haver tratamento, não haveria mais perigo de morte. São afirmações amplamente questionadas no movimento social de Aids e, também, contraditórias com as experiências dos membros da Loka, que recordavam, por exemplo, as ocasiões em que foram se testar, quando há sempre uma tensão no ar. Como comentou Ramon: “acho curioso esse momento do exame, em que tá todo mundo lá esperando. Você sente a tensão na pele… o ar é tenso”.

A retirada dos medicamentos nos postos de dispensa de antirretrovirais é, da mesma forma, um momento de aflição e desconforto. Como relatou Cadiva:

eu sempre sinto, e pode ser que vocês percebam de outra forma, que mesmo ali na parte, na farmácia, onde você vai retirar a medicação, rola uma tensão de olhares, não sei se medo de julgamento… Se é uma tensão sexual…

As dificuldades e as emoções envolvidas nas ocasiões de testar ou de retirar a medicação tornam-se incômodos cotidianos para pessoas que viviam a assombração de um dia contrair o HIV, como um ‘HIV-profecia’ (como nos trouxe Ramon: “na minha cabeça é uma coisa… é quase uma equação: isso igual a isso”); ou para as PVHA, para quem retirar a medicação ou simplesmente estar em um serviço especializado em HIV/Aids representavam constrangimentos dos quais queriam se poupar, como desabafou Pisci:

por mais de um ano, era a minha mãe quem retirava minhas medicações lá em Santo Amaro. Morria de vergonha… pra mim era como se estivesse escrito Aids na minha testa.

Muitas PVHA sofrem inúmeros processos de adoecimento mental e baixa autoestima por serem atravessadas pela vergonha e pela culpa de sua condição. Por isso, tem sido comum também esse autoestigma – isto é, essa “capacidade limitada de determinada pessoa em resistir ao aparato simbólico que legitima as desigualdades de poder”33 Aggleton P, Parker R. Estigma, discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: ABIA; 2001.(16) – tornar-se determinante para reconfigurar as relações sociais3131 Corrigan PW. The Impact of Stigma on Severe Mental Illness. Cognitive behavioral practice. 1998 [acesso em 2022 abr 29]; 5(2):201-222. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1077722998800060.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
.

Além disso, muitas relações trabalhistas também são impactadas pelo estigma de HIV/Aids. Segundo informações divulgadas em reunião interministerial de 2016 entre os Ministérios da Saúde, do Trabalho e da Previdência Social3232 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Inserção de pessoas vivendo com HIV é tema de reunião interministerial. Brasília, DF: MS; 2016. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://telelab.aids.gov.br/index.php/2013-11-14-17-44-09/item/373-insercao-de-pessoas-vivendo-com-hiv-aids-no-mercado-de-trabalho-e-tema-de-reuniao-interministerial.
https://telelab.aids.gov.br/index.php/20...
, entre 60% e 70% das PVHA estão fora do mercado formal de trabalho3333 Oliveira CI, Ricoldi A. Sem Loas na juventude e aposentadoria em risco: uma autoetnografia sobre o ativismo por direitos em HIV/aids. Saúde soc. 2022 [acesso em 2022 abr 28]; 31(1):e200460. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/gim/resource/zh/biblio-1352218.
https://pesquisa.bvsalud.org/gim/resourc...
. De acordo com o relato de Carolina Iara – para quem a Aids se tornou um ‘pressuposto da travestilidade’ em decorrência da forma como foi construída e a considerar o grau de marginalização de pessoas trans e travestis –, há outras preocupações em jogo:

[...] Eu percebi isso no cinemão, no Largo do Arouche. Há uma hierarquização: as bonitas, as não bonitas, xuxuzentas [com presença de barba ou pêlos na face] ou não, e a Aids também entra nessa hierarquização. Então fica uma alfinetando a outra, falando ‘oh, aquela ali é doceira, aquela dali tem doce, tem a tia, e tal’ [‘doce’ e ‘tia’ referem-se a HIV]. E disso vira hierarquização, de quem cobra mais e quem cobra menos… E, também, de tentar queimar a outra com os clientes. Isso também rola.

De acordo com o Índice de Estigma em relação às Pessoas Vivendo com HIV/AIDS no Brasil, dos 1.492 participantes da pesquisa, cerca de 379 (25,4%) alegaram já ter evitado a testagem em decorrência do temor ao estigma da Aids3434 Unaids. Sumário Executivo: Índice de Estigma em relação às Pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil. [s. l.]: [s. n.]; 2019. [acesso em 2022 abr 28]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2019/12/2019_12_06_Exec_sum_Stigma_Index-2.pdf.
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. Nesse sentido, a própria construção de uma rede afetivo-política da Loka incide sobre a transformação desse medo e dessa culpa: “o trampo da Loka me faz entender que a culpa não é minha, que eu tenho como me relacionar sem medo do HIV”, contou Cadiva.

Quando Cadiva fala em ‘se relacionar sem medo do HIV’, refere-se a tudo aquilo que permeia as relações e vivências cotidianas, sexuais e afetivas das PVHA. A questão do estigma e de sua consequente produção de assimetrias de poder gera uma pressão maior em torno da responsabilidade pela prevenção do outro, assim como organiza uma nova ‘gestão do risco’ em PVHA. Isso tem se desenvolvido de diferentes maneiras: quando ‘posithivas’, passam a se relacionar apenas com outras ‘posithivas’3535 Silva LAV, Iriart JAB. Práticas e sentidos do barebacking entre homens que vivem com HIV e fazem sexo com homens. Interface. 2010 [acesso em 2022 abr 29]; 14(35):739-752. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/nMhxxm3Rx44MvLV9StFGXmN/?lang=pt.
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; transformam seus comportamentos em um processo de ‘automodelação pessoal’3636 Vale CG. Crime e castigo: sexualidade, moral e criminalização da transmissão do HIV/Aids. 35. Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu: ANPOCS; 2011.; aplicam à sua vida uma espécie de ‘altruísmo preventivo’3737 Godoi AMM. Criminalização da transmissão sexual do HIV: uma abordagem bioética. [tese]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2013.; manejam as possibilidades de cuidado e de corresponsabilidade por meio de uma ‘ética da transmissão’3838 Franch M. Do clube do carimbo à ética das relações: a criminalização da transmissão do HIV na mídia e nas experiências de pessoas vivendo com HIV/AIDS. In: Teixeira CC, Valle CG, Neves RC, organizadores. Saúde, mediações e mediadores. Brasília, DF: ABA Publicações; Natal: EDUFRN; 2017. p. 365-405.; e criam estratégias para expor ou não a própria sorologia para o parceiro1616 Borges RE, Silva M, Melo L. Mas não tive coragem de contar: a revelação da condição sorológica na experiência amorosa de pessoas que vivem com HIV. Saúde Soc. 2017 [acesso em 2022 jan 11]; 26(3):664-675. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902017000300664&lng=en&nrm=iso.
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A questão da responsabilidade preventiva é cobrada desproporcionalmente das PVHA, o que fica evidente no avanço nos processos de criminalização da transmissão do HIV no Brasil. Entre 2013 e início de 2020, observou-se um aumento proporcional três vezes maior no número de processos criminais por supostas transmissões intencionais do HIV do que nos primeiros 30 anos de epidemia77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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Esse processo de avanço da judicialização da saúde, acompanhado da crescente constitucionalização dos direitos sociais, torna-se uma faca de dois gumes, pois, enquanto permite assegurar direitos, também contribui para que tais direitos fiquem cada vez mais submetidos ao crivo das instituições jurídicas. Assim, se há, por um lado, uma potência no sentido de reivindicar direitos à saúde, pode haver, por outro, uma série de desafios, contradições e até mesmo um ‘sufocamento’ dos mecanismos participativos3939 Asensi FD. Judicialização pode salvar o SUS. In: Pinheiro R, Müller Neto J, Ticianel FA, et al., organizadores. Construção social da demanda por cuidado: revisitando o direito à saúde, o trabalho em equipe, os espaços públicos e a participação. Rio de Janeiro: Uerj; Abrasco; 2013. p. 55-66., a depender de como o judiciário é operacionalizado.

Nesse sentido, a criminalização da transmissão do HIV investe contra os direitos das PVHA ao exigir somente delas que revelem sua sorologia aos parceiros caso queiram manter relações sexuais sem o preservativo, ignorando o estigma e a própria ‘indetectabilidade’ proporcionada pela adesão aos antirretrovirais – isto é, quando se zera a carga viral na corrente sanguínea por meio do uso regular dos medicamentos e se evita o quadro de Aids e a própria transmissão do vírus. São processos que se valem do estigma para controlar condutas sexuais e sociais das PVHA em nome da ‘ordem social’77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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,3737 Godoi AMM. Criminalização da transmissão sexual do HIV: uma abordagem bioética. [tese]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2013.. A intersecção entre transfobia, aidsfobia e racismo faz com que as experiências sociais, sexuais e afetivas de Carolina Iara sejam permeadas por essas tensões:

[...] depois que transicionei, acho que aumentou o medo de ser criminalizada. Houve uma perda de liberdade sexual, de algumas coisas que eu fazia no âmbito da sexualidade que não faço mais. E isso por puro e simples medo de ser estuprada, medo de uma série de questões. A transfobia tem um papel nisso.

Nos processos criminais de transmissão do HIV julgados em segunda instância em quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul) e no Distrito Federal, analisados desde o início da epidemia até o final de 2019, em nenhum desses casos, o uso do discurso biomédico pelo judiciário conseguiu avançar além do preservativo como prevenção e da falsa ideia de que não se morre mais de Aids77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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. A indetectabilidade e a intransmissibilidade adquiridas pelo uso dos antirretrovirais não foram consideradas para absolver quaisquer casos de supostas transmissões do HIV até a referida data77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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Ainda sobre a esfera jurídica e seus entendimentos da epidemia, Carolina Iara contou que iniciou um processo na justiça para obter afastamento do trabalho (em hospital) durante a pandemia da Covid-19, e acredita que este só lhe foi concedido devido à forma como o judiciário ainda compreende a vivência com HIV/Aids.

Eu acho que no judiciário, a noção ainda é do ‘aidético’. Eu vejo pelo processo que tô tendo com a prefeitura. Em todo momento, eu não sou tratada como pessoa vivendo com HIV, eu sou tratada como ‘portadora de Aids’. Inclusive é essa noção que me mantém afastada do trabalho neste momento, porque se entrasse a noção de indetectabilidade e de vivendo com HIV, muito provavelmente eu já tinha voltado a trabalhar.

Ao compreender que a Aids não pode ser resolvida apenas com remédios, mas com políticas de reparação social e combate ao estigma, a Loka criticou sistematicamente o enfoque biomedicalizante da epidemia presente na última década, que alimentou a ideia do ‘fim da Aids’ como estratégia possível até 20304040 Unaids. Podemos erradicar a AIDS até 2030, mostra relatório do UNAIDS. 2021. [acesso em 2022 abr 4]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/129994-podemos-erradicar-aids-ate-2030-mostra-relatorio-do-unaids#:~:text=O%20pr%C3%B3ximo%20passo%20seria%20a,resultados%20na%20resposta%20ao%20HIV.
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,4141 Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. 19º ENONG: Especialistas criticam a biomedicalização da epidemia de AIDS. 2017. [acesso em 2022 abr 27]. Disponível em: https://abiaids.org.br/19o-enong-especialistas-criticam-biomedicalizacao-da-epidemia-de-aids/30792.
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,4242 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface. 2016 [acesso em 2022 ago 10]; 20(57):293-304. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/MTZ5T7N97xXVjcGX5qxWsPh/?lang=pt#.
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. O próprio nome da Coletiva questiona esse direcionamento e busca retomar o debate interrompido em torno dos efeitos colaterais dos fármacos4343 Teixeira P, Paiva V, Shimma E. Tá Difícil de Engolir? Experiências de adesão ao tratamento antirretroviral em São Paulo. São Paulo: Nepaids; 2000., simbolizados no Efavirenz, antirretroviral muito utilizado no Brasil na forma de dose tripla combinada em uma só pílula. De forma debochada, a Loka se apresentou, por muito tempo, por meio de sua foto de avatar nas redes sociais com pílulas enfiadas no nariz e na boca, problematizando o conselho médico rotineiro de que ‘é só tomar um remedinho’.

Todavia, isso não significa que a Loka não reconheça a grande importância que o uso dos antirretrovirais teve na própria reconstrução de suas subjetividades e na possibilidade de recomeçar a pensar um futuro. Lili Nascimento, pessoa que nasceu com HIV, trouxe para a conversa a questão das diferenças que sente em relação a quem soroconverteu em algum momento da vida. Ela pontua que “quem descobre depois fica muito tempo nisso de ‘nossa, vou lá buscar remédio’, ‘nossa, a aids…’, ‘nossa, não consigo nem falar disso…’”, e contrapõe com o que tem sentido como pessoa sempre viveu com HIV:

Eu acho que a transmissão vertical tá vindo num outro movimento... Acho que a gente consegue celebrar as revoluções, tá ligado? Acho que por ter passado pelo AZT, a gente chega nesse momento agora, é muito mais concreto pra gente… o viver com HIV, essa mudança do ‘aidético’ para o viver com HIV. A gente sentiu historicamente, a gente cresceu com isso, né?! Acho que é aí que mora a principal diferença de um grupo para outro.

Inicialmente, o termo ‘aidético’ esteve muito presente nos discursos públicos, que produziram uma subjetividade moldada por risco, perigo, culpa, vergonha e medo da morte, cuja compreensão ainda é atualizada em algumas instâncias e instituições. Como reação ao processo punitivo de subjetivação como bioidentidade de risco77 Oliveira PBG. HIV não é crime: processos de subjetivação de pessoas vivendo com HIV/AIDS, disputas políticas contemporâneas e estratégias de sobrevivência. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2021. [acesso em 2022 abr 29]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-07062022-150556/pt-br.php.
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, como o exemplo do que não se deve ser ou fazer, houve uma caminhada histórica rumo à humanização das PVHA4444 Silva CLC. Ativismo, ajuda-mútua e assistência: a atuação das organizações não governamentais na luta contra AIDS. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1999., construída, em grande parte, pelos movimentos sociais.

Ademais, a evidência de que indetectável é igual intransmissível também tem despontado como aspecto revolucionário no sentido de transformar as subjetividades ‘posithivas’. Essa bioidentidade recente, tornada possível a partir do uso e da adesão aos antirretrovirais, está começando a criar corpo no Brasil, trazida por ativistas, pesquisadores e instituições por meio da campanha ‘Indetectável = Intransmissível’ (I=I), que adquiriu status global a partir da XXII Conferência Internacional de AIDS realizada em Amsterdam em 2018.

Segundo os estudos de Kane Race4545 Race K. ‘Party and Play’: Online hook-up devices and the emergence of PNP practices among gay men. Sexualities. 2015 [acesso em 2022 abr 29]; 18(3):253-275. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1363460714550913.
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acerca das práticas sexuais de PVHA que não usam preservativo, em Sidney, na Austrália, ‘indetectável’ tem sido uma categoria mobilizada entre esses grupos, inclusive no lugar de ‘posithivo’ desde 2015. Da mesma forma, conforme observado em campo durante a participação na AIDS 2018 e na IV Conferência Internacional em Ciências Humanas e HIV, Pisci Bruja pode notar, ao circular em espaços de sociabilidade gay em Amsterdam, que a grande maioria dos homens cis gays vivendo com HIV/Aids não se identificavam mais como ‘soropositivos’, ‘HIV positivos’ ou ‘pessoas vivendo com HIV’ – ‘indetectável’ era a forma predominante para se referirem a si mesmos, que soava quase como um novo status ontológico: ‘sou indetectável’.

Assim, essa nova bioidentidade tenta ressignificar as noções de risco e de transmissibilidade do vírus, e se conecta com os atuais discursos biomédicos e estatais (como no caso brasileiro) de TcP, enfoque que, paradoxalmente, tende a minimizar a dimensão estrutural da vulnerabilidade ao HIV e a participação das PVHA como produtoras autônomas de práticas de prevenção e cuidado4646 Calazans GJ, Pinheiro TF, Ayres JRCM. Vulnerabilidade programática e cuidado público: Panorama das políticas de prevenção do HIV e da Aids voltadas para gays e outros HSH no Brasil. Sexualidad salud sociedade. 2018 [acesso em 2022 abr 29]; 29:263-293. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/bfYWcm96qhvs45Rby64xzgh/?lang=pt#a.
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,4747 Monteiro S, Brigeiro M, Vilella WV, et al. Desafios do tratamento como prevenção no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Ciênc. Saúde Colet. 2019 [acesso em 2022 abr 29]; 24(5):1793-1807. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/RNkwKrgv4Lqs7DB4QvGKmKH/?lang=pt.
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. As evidências de indetectabilidade e de intransmissibilidade estão sendo crescentemente familiarizadas e apropriadas no cotidiano de muitas PVHA, em suas práticas sexuais e relações afetivas, como uma nova força para o enfrentamento do estigma4848 Figueredo PR. I=I (indetectável=intransmissível): novos sentidos da infecção para quem vive com HIV/aids, novos desafios para a resposta à epidemia. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019. [acesso em 2022 abr 29]; Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-09072020131940/pt-br.php.
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. Há uma recalibragem do risco, que agora parece se mover também para a esfera da ‘ausência de risco’, transformando a socialidade do viver com HIV/Aids.

Conclusões

Este artigo buscou contribuir para o entendimento das novas formas de ativismo de HIV/Aids que emergiram na década de 2010 no Brasil, focalizando a experiência da Coletiva Loka de Efavirenz. Nesse esforço, fizemos também um breve percurso pelas dinâmicas sociais, e políticas associadas à vivência com HIV/Aids.

A presença do ‘dispositivo da Aids’11 Perlongher N. O que é aids . São Paulo: Brasiliense; 1987. já na quarta década de epidemia pode ser entendida como parte integrante das novas guerras culturais e sexuais que se acirraram recentemente com o avanço de várias modalidades de conservadorismo moral e religioso no Brasil e no mundo. As atuais investidas de setores conservadores e fundamentalistas religiosos, em sua retomada dos discursos culpabilizantes, equivocadamente respaldados no recrudescimento nas infecções por HIV de forma concentrada, têm perturbado os processos de ‘cidadanização de sujeitos sexuais’2020 Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana. 2015 [acesso em 2022 jan 11]; 21(2):323-345. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/6D5zmtb3VK98rjtWTQhq8Gg/?lang=pt.
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, visando desmantelar as noções de direitos humanos, principalmente em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Paralelamente à hegemonia do discurso biomédico sobre a Aids, vivemos no Brasil contraditoriamente sob constantes disputas pela manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas de Aids, prejudicando seriamente o tratamento e a prevenção por falta ou fracionamento da medicação, falta de exames de carga viral e de CD4.

Nesse cenário, persiste uma dimensão cotidiana da criminalização das PVHA, que transformam situações aparentemente simples em grandes problemas, constrangimentos e aflições, tais como realizar os testes para HIV, retirar medicamentos, relacionar-se sexual e afetivamente, ir à escola, trabalhar, frequentar banheiros, dividir objetos, e até mesmo falar sobre Aids. A persistência do estigma em relação às PVHA nas relações sociais e no trato institucional, a despeito de todo avanço biotecnológico e de produção de saber do movimento social de Aids, apresenta-se fortemente aliada à produção e ao cultivo do ódio contra alguns grupos e populações, marcados especialmente por suas expressões sexuais e de gênero, na defesa de uma moralidade específica que não barra o avanço da criminalização, mas a produz e dela se retroalimenta. A epidemia de Aids não está em recrudescimento porque jovens perderam o medo da Aids, mas porque não são reconhecidos como sujeitos de sua sexualidade nem têm seus direitos à saúde integral garantidos.

É nesse cenário de disputas morais e políticas que surgiu a Loka de Efavirenz. A partir de vidas precarizadas, formou-se uma rede afetivo-política, de produção de conhecimento e de elaboração de estratégias de enfrentamento das múltiplas formas de segregação, desmoralização e desumanização das vivências com HIV/Aids. Desde meados da década passada, a Loka tem se articulado e desenvolvido estratégias de fortalecimento coletivo, hoje consideradas referência no ativismo juvenil em HIV/Aids. Ao se apoiarem cotidianamente em múltiplas esferas, construíram uma rede de cuidado a partir da construção de relações seguras e de espaços de compartilhamento voltados a forjar novas possibilidades de vida.

  • Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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