Mulheres jovens que nasceram com HIV: comunicação da soropositividade aos parceiros

Clarissa Bohrer da Silva Maria da Graça Corso da Motta Renata Bellenzani Crhis Netto de Brum Aline Cammarano Ribeiro Sobre os autores

RESUMO

Objetivou-se compreender os aspectos envolvidos na comunicação da própria condição clínica aos parceiros por mulheres jovens que nasceram com HIV. Trata-se de pesquisa qualitativa, desenvolvida em Serviço de Assistência Especializada ao HIV na região sul do Brasil com dez jovens que nasceram com HIV, sendo empregada a entrevista individual, de junho de 2017 a março de 2018. Utilizou-se a análise psicossocial ancorada no Quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos. Evidenciaramse dois grupos: o primeiro, composto por jovens que optaram por comunicar sua condição clínica ao parceiro no início das relações afetivas; e o segundo, com as jovens que postergaram tal comunicação. Todas vivenciaram receios e medos da reação do parceiro, pensaram ou adotaram algumas estratégias para a comunicação e relataram situações de menor implicação nas condutas preventivas ao HIV pelos casais/parceiros. Conclui-se que são essenciais práticas de cuidado que dialoguem com as jovens sobre as dificuldades singulares em seus contextos intersubjetivos, atravessados por questões sociais estruturais a fim de apoiá-las na comunicação sobre a soropositividade aos parceiros em tempo mais oportuno possível, na adoção de estratégias preventivas e no acesso aos recursos que protejam a saúde sexual e reprodutiva delas e dos parceiros.

PALAVRAS-CHAVE
HIV; Saúde do adolescente; Parceiros sexuais; Comunicação

Introdução

As mulheres jovens que nasceram com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) possuem uma condição de saúde permeada por experiências singulares nos seus contextos de vida. Entre estas, por exemplo, a perda de familiares em decorrência da Aids, a possibilidade constante de adoecimento e/ou morte, os esforços em torno da adesão ao tratamento e da prática do sexo seguro e a comunicação da soropositividade aos parceiros e as pessoas do convívio social11 Sá AAM, Santos CVM. A Vivência da Sexualidade de Pessoas que Vivem com HIV/Aids. Psicol ciênc prof. 2018; 38(4):773-786.. Vivenciar os desafios da condição sorológica positiva ao HIV no contexto dos relacionamentos afetivo-sexuais implica consideráveis esforços para a constituição de seus projetos de futuro22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22.. Os múltiplos cenários, processos e desafios envolvendo o HIV incluem desde o momento da comunicação da sua condição clínica para o/a parceiro/a, a ‘sorodiferença’, o (não) uso das estratégias de prevenção durante as práticas sexuais, o papel dos parceiros na gestão da vida cotidiana até os desejos sexuais e planos reprodutivos33 Agostini R, Maksud I, Franco T. “Eu tenho que te contar um negócio”: gestão da soropositividade no contexto dos relacionamentos afetivo-sexuais de jovens vivendo com HIV. Sex Salud Soc. 2018; (30):201-223..

O exercício sexual seguro diz respeito à negociação e ao uso dos métodos contraceptivos entre os parceiros, em especial, os sorodiferentes. A comunicação desse assunto requer a abordagem de temas sensíveis, tais como: o conhecimento da situação sorológica do parceiro; a percepção acerca da fidelidade do parceiro; o entendimento sobre a transmissão do vírus; e as opiniões convergentes ou divergentes adiante da intenção de engravidar44 Matthews LT, Burns BF, Bajunirwe F, et al. Beyond HIV-serodiscordance: partnership communication dynamics that affect engagement in safer conception care. PLoS One. 2017; 12(9):1-17.. A isso, somam-se as constantes situações de estigma, preconceito e discriminações55 Cruz MLS, Darmont MQR, Monteiro SS. HIV-related stigma among young people living with HIV transitioning to an adult clinic in a public hospital in Rio de Janeiro, Brazil. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 dez 21]; 26(7):2653-2662. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232021267.07422021.
https://doi.org/10.1590/1413-81232021267...
nas relações sociais, que resultam em um cotidiano de cuidado à saúde permeado pelo receio de revelar o diagnóstico, geralmente compartilhado somente com pessoas mais próximas da família11 Sá AAM, Santos CVM. A Vivência da Sexualidade de Pessoas que Vivem com HIV/Aids. Psicol ciênc prof. 2018; 38(4):773-786.. Diante desses desafios, faz-se imprescindível aproximar-se da realidade de mulheres jovens que nasceram com HIV sobre seus relacionamentos sorodiferentes acerca da comunicação da soropositividade aos parceiros e de práticas sexuais preventivas.

Nessa perspectiva, objetiva-se compreender os aspectos envolvidos na comunicação da própria condição clínica aos parceiros por mulheres jovens que nasceram com HIV.

Material e métodos

Pesquisa qualitativa, desenvolvida em um Serviço de Assistência Especializada ao HIV na região sul do Brasil. Eram potenciais participantes do estudo: mulheres jovens de 15 a 24 anos de idade que nasceram com HIV e que engravidaram durante a juventude. A questão da gravidez justifica-se por ser o presente artigo um recorte de um estudo matricial que investigou o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos por essa população. Foram excluídas as jovens que não estavam mais em acompanhamento no cenário de estudo (óbito, abandono ou mudança de cidade). Participaram do estudo todas as jovens que contemplaram os critérios; não houve recusas.

As dez participantes foram captadas no serviço de saúde no dia em que tinham consulta, sendo empregada a entrevista individual semiestruturada em um local privativo no serviço. As entrevistas foram conduzidas por uma pesquisadora com experiência, ocorreram de junho de 2017 a março de 2018, e tiveram como tempo de duração entre 30 e 90 minutos, sendo audiogravadas e, posteriormente, transcritas. Os temas abordados nas entrevistas foram as experiências acerca das dimensões sobre as trajetórias de vida e o cuidado recebido nos serviços de saúde que envolvem a vivência da gravidez. O recorte deste artigo aborda especificamente os aspectos relacionados com a comunicação da sua soropositividade ao(s) parceiro(s), pai do seu(s) filho(s) e companheiro atual.

Utilizou-se a análise psicossocial ancorada no referencial do Quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos (QV&DH)22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22.. Foram identificados os temas mais expressivos e recorrentes sobre as trajetórias de comunicação das jovens, os quais foram interpretados, permitindo a compreensão da exposição às situações que produzem ou não condições à comunicação do HIV com consciência e acesso a recursos necessários. Realizou-se uma síntese das trajetórias das participantes, explorando os aspectos que possivelmente agem como fatores protetivos ou de aumento da exposição da comunicação do HIV no início das relações, o que contribuiu para entender como se produz o fenômeno da postergação ou não.

Evidenciaram-se dois grupos de mulheres jovens, correspondentes a duas diferentes situações de comunicação aos parceiros. O primeiro grupo é composto por seis jovens que optaram por comunicar no início das relações afetivas com seus parceiros e, posteriormente, pais dos seus filhos. O segundo grupo denota quatro participantes com maiores dificuldades de comunicar ao parceiro, havendo, consequentemente, sua postergação, em geral ocorrida após a exposição deles em relações sexuais sem uso regular de preservativos. Em três situações, as comunicações foram tão postergadas a ponto de ocorrerem após o nascimento dos filhos do casal. Destaca-se que todas afirmaram que os parceiros eram sorodiferentes, ou seja, não tinham diagnóstico de infecção pelo HIV, mesmo após as exposições nas relações sexuais sem proteção.

Essa divisão é importante para entender os elementos constituintes das dimensões individual, social e programática do QV&DH na reflexão sobre a trajetória das jovens, as quais serão detalhadas nos resultados desse estudo.

Foram respeitados os aspectos éticos previstos no desenvolvimento de pesquisas com seres humanos, sendo o estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob os números de pareceres 1.844.848 e 1.912.645. As participantes foram identificadas pela letra ‘P’, de participantes, enumeradas de acordo com o número de entrevista.

Resultados

As dez participantes encontravam-se na faixa etária dos 19 aos 23 anos, sendo que apenas duas tinham ensino médio completo. Duas jovens relataram que já haviam feito uso de drogas, decorrente do convívio com parceiros usuários.

A seguir, serão abordados os dois grupos de mulheres jovens a fim de explorar os elementos do QV&DH na trajetória das jovens de comunicação do HIV, os quais foram representados na figura 1. Ainda que apreendida em cada uma de suas três dimensões, fica clara a interdependência entre elas.

Figura 1
Dimensões do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos na trajetória de comunicação do HIV das mulheres jovens

Comunicação do HIV ao parceiro no início das relações afetivas

Esse grupo é composto por seis mulheres jovens, as quais estão caracterizadas no quadro 1. Acerca da escolaridade, duas deixaram de estudar devido à gestação em curso, e duas, por contexto de estigma social com relação à sua condição clínica. Todas viviam com o sustento do companheiro ou dos familiares. Quatro permaneciam em relação estável com o pai dos seus filhos, e duas estavam separadas do companheiro e encontravam-se solteiras no momento da entrevista.

Quadro 1
Perfil das jovens que compõem o primeiro grupo

Além de vivenciar as dificuldades cotidianas envolvendo a própria soropositividade ao HIV, as jovens necessitam comunicar a sua condição clínica aos seus parceiros. Por ser um assunto delicado, esse momento é marcado pelo medo da reação do parceiro – as mais temidas e geradoras de sofrimento são a rejeição e o término do relacionamento. Todas relataram que preferiram revelar logo no início do relacionamento, quando sentiram que esse ficaria mais ‘sério’ (namoro), na tentativa imaginária de evitar possíveis sofrimentos e decepções decorrentes.

Foi bem no começo do namoro [antes da relação sexual], já queria contar porque caso ele não ficasse comigo pra eu não ficar sofrendo. Imagina, tu contar depois e a pessoa não te querer mais por causa disso, tu vais ficar sofrendo mais ainda por causa da doença e por causa da perda, duas coisas horríveis. (P3).

Fiquei com medo da reação dele, vai que ele não queira mais, mas quem gosta realmente ama do jeito que a pessoa é. Porque quando a gente gosta de uma pessoa, não vai adivinhar que ela tem [HIV], não está ‘escrito’ na nossa cara. (P5).

Eu achei que a reação dele seria bem diferente, mas foi tranquilo. Claro, dá medo porque a gente não sabe a reação da pessoa, o que ela vai pensar. Mas eu falei antes de ter relação [sexual] e tudo pra não ter perigo depois. (P8).

Se, por um lado, reconhecem que é necessário proteger o parceiro da possibilidade de infectar-se pelo vírus, por outro, revelar sua condição e ser discriminada apresenta-se como um acontecimento possível e que poderá lhe ocasionar sofrimento. Nesse processo, a tendência é contar quando tiverem uma confiança estabelecida na relação, condição fundamental para se expor a uma possível rejeição.

Acerca das estratégias de comunicação utilizadas por esse grupo, evidenciaram-se duas situações: a decisão de contar com certa preparação prévia e a espontaneidade do diálogo diante os sinais velados. Na primeira situação (três participantes), existiu uma preparação prévia das jovens para conduzir a conversa com o parceiro, geralmente pautadas na estabilidade do relacionamento amoroso e na necessidade de revelar antes da relação sexual. Ocorreu a tomada de decisão de a própria jovem contar ou com suporte de terceiros para auxiliar na comunicação diante das dificuldades encontradas.

Eu decidi contar por que eu não tava mais aguentando esconder, até porque se a gente tivesse uma relação, imagina, e depois ele descobrir [...] Daí eu contei. Tive que contar. (P3).

Contei antes da relação junto com a minha tia. Eu falei, expliquei tudo. (P5).

Ele foi no abrigo, as funcionárias me perguntaram se podiam contar pra ele que eu era soropositiva e eu falei que podia, porque eu não tenho vergonha de falar. Elas conversaram separado pra ver qual seria a reação dele e depois me chamaram. (P10).

Na segunda situação (três participantes), decorreram diálogos mais espontâneos na comunicação da soropositividade aos parceiros sorodiferentes. Esses diálogos se deram sem preparações prévias, entretanto, identificou-se que eram antecedidos por situações veladas, que envolviam omitir informações sobre a própria saúde (cotidiano de medicamentos e consultas médicas regulares, internações ou óbitos dos familiares), até se chegar à ocasião propriamente de comunicar a soropositividade.

A gente começou a se conhecer e namorar. Daí eu fiquei doente, internei, não estava tomando a medicação direito [...] não me preparei para falar, a gente estava conversando, ele começou a perguntar da minha mãe e do meu pai, porque eles morreram, daí eu falei, tinha que falar. Ele perguntou se provavelmente eu tinha, e eu respondi que sim. (P8).

Ele já via que eu tomava remédio, ele já sabia. Um dia ele chegou e perguntou: ‘por que tu toma esse remédio?’, daí eu falei que: ‘eu tenho HIV, eu sou soropositiva, eu nasci assim’. (P9).

As reações dos parceiros à comunicação de soropositividade nesse grupo de participantes foram acolhedoras, o que se revelou por não emitirem juízos condenatórios baseados em preconceitos, e, também, ao assumirem papel de incentivadores na adesão aos cuidados terapêuticos e clínicos, como o uso correto da medicação.

Ele aceitou numa boa. [...] Ele disse que não tinha nada a ver, é só a gente se cuidar. [...] Ele me ajuda com o remédio, me lembra. (P7).

Ele começou a vir nas consultas comigo, queria saber de tudo, queria cuidar dos meus remédios. (P8).

Ele me apoia e me acompanha no médico, ele que pega meus remédios. Ele não tem preconceito. Ele disse que me amava e que ia continuar comigo. (P10).

A partir da comunicação do HIV e do acolhimento solidário pelos parceiros, evidenciou-se o desenvolvimento de condutas sexuais preventivas pelos casais. Em sua maioria (quatro jovens), com a utilização regular do preservativo e alguma periodicidade da testagem anti-HIV por busca espontânea. Nesse sentido, percebe-se a preocupação da jovem de evitar a transmissão da infecção ao parceiro.

Ele não pegou [HIV], pois faz teste de 3 em 3 meses no postinho. (P5).

Eu falei, até para ele conversar, se ele tem alguma dúvida também. [...] ele fez [teste anti-HIV]. Deu negativo. (P3).

Eu achava bom [fazer o teste], assim eu ficava sabendo que a gente estava se cuidando, que eu não tinha passado pra ele. (P9).

Postergação da comunicação do HIV ao parceiro

Esse grupo é composto por quatro mulheres jovens, as quais estão caracterizadas no quadro 2. Notou-se uma tendência de menor escolaridade, com relatos de interrupção do estudo devido à gestação em curso e/ou necessidade de trabalhar, o que reflete na não formação/inserção profissional. A jovem que vivenciou duas gestações de parceiros diferentes relatou que o primeiro parceiro soube da sua soropositividade apenas após o nascimento do filho decorrente de um relacionamento de rápida duração. Já o segundo filho adveio da relação estável em que ela se encontrava no período da entrevista, e com comunicação prévia da sorologia ao HIV.

Quadro 2
Perfil das jovens que compõem o segundo grupo

As quatro jovens comunicaram sua condição clínica aos seus parceiros após a relação sexual e a constatação da gravidez, sendo que uma jovem compartilhou a condição soropositiva no curso da gestação, e três jovens, somente após o nascimento dos filhos. A dificuldade de comunicação da condição clínica de soropositividade ao HIV nesse grupo é substanciada pelo receio de situações de estigma, seja pelo parceiro, seja pela família dele, a partir do julgamento de ‘culpa’. Essa situação denota o sofrimento que tal situação ocasiona na vida dessas jovens, resultando no adiamento dessa revelação.

É bem difícil tu conseguir convencer uma pessoa que tu namoras, ou que tu cases com ela, tentar explicar para ela que tu não tens culpa daquilo, mesmo tu tendo, é uma coisa que as pessoas não veem, mas acontece. [...] [após a comunicação da soropositividade] eu continuei mostrando para ele que eu não queria que ele tivesse [HIV] também. (P1).

Diante da dificuldade acerca da comunicação da soropositividade do HIV ao parceiro, observa-se a postergação e a necessidade de terceiros (médico e sogra) para mediar/ delegar a comunicação ao companheiro (por duas dessas jovens). Destaca-se que uma dessas quatro participantes soube da própria condição sorológica positiva durante o pré-natal (apesar de ser transmissão vertical), e a médica auxiliou na comunicação dela ao parceiro. As demais eram cientes da sua condição sorológica previamente, sendo que todas estavam em relações estáveis (namoro) com os companheiros quando descobriram a gravidez. Duas jovens revelaram, elas mesmas, a sua condição clínica aos parceiros após o nascimento dos filhos, uma pela situação do companheiro em instituição prisional e outra por não estar mais com o pai do filho.

Eu pensei que a melhor forma de eu contar seria para mãe dele [...] a reação dela foi bem espontânea, ela chorou, ficou bem triste. [...] Aí ela falou com ele [comunicou o diagnóstico soropositivo da jovem]. (P1).

A doutora [...] perguntou se eu queria contar depois [...] ele [namorado] entrou e eu falei na hora [na consulta de pré-natal]. (P6).

Dessas quatro mulheres jovens, duas relataram que sofreram uma pressão/constrangimento dos profissionais de saúde para a comunicação aos parceiros, especialmente por estarem tendo relações sexuais sem proteção, que resultou em uma gravidez.

Eles [profissionais de saúde] não podem liberar um paciente sem o pai estar ciente daquilo que está acontecendo [HIV]. Porque eu posso sair dali e nunca mais contar pra ele. [...] eles começaram a me pressionar [...] e eu entrei em depressão pós-parto. (P1).

Elas [profissionais de saúde] começavam a botar pressão em mim sabe, e iam na minha casa. [...] Bem que eu errei mesmo fiquei sem vir aqui [no serviço de saúde], agora estou me incomodando [conselho tutelar]. (P2).

Nesse grupo, houve relatos pelas participantes de reações de surpresa, hostilidade e/ ou insegurança dos parceiros, devido à quebra de confiança e/ou por se sentirem ameaçados por uma possível infecção, implicando esforços pelas jovens que convivem com HIV para preservarem o relacionamento amoroso ou, por fim, encerrá-lo. Evidencia-se que a comunicação após a relação sexual e a consequente possibilidade de infecção pelo parceiro possuem um efeito que corrobora a dificuldade de aceitação e a continuidade da relação pelo casal sorodiferente. Essas três jovens que vivenciaram reações negativas dos parceiros só comunicaram sobre sua soropositividade a eles após a constatação de uma gravidez, mesmo cientes de sua infecção anteriormente. Dessas três, apenas uma manteve o relacionamento com o parceiro. As outras duas acabaram se separando dos parceiros, com os quais mantinham contato devido ao filho comum.

Ele ficou em estado de choque [...] Eu tinha muito medo da reação dele quando saísse daquilo. (P1).

Ele falou: ‘ah tu tinha que me falar, tinha que me avisar’, mas aceitou [...]. (P2).

Ele ficou apavorado, achou que tinha pego também. (P4).

Diante da postergação da comunicação, percebe-se que alguns foram mais propensos a adotarem, como casais, condutas sexuais preventivas. Entretanto, mesmo após a ciência dos parceiros, evidenciou-se nos relatos de algumas o abandono ou a inconsistência do uso do preservativo, bem como o reconhecimento da necessidade de buscar a testagem anti-HIV.

Durante o tempo que fiquei com ele, não usei [preservativos na relação sexual]. [...] Acho que esperei a iniciativa dele e ele não teve. (P1).

Ele até tem que vir fazer o teste [HIV] de novo, porque a gente só fez o teste quando descobriu a gravidez e depois não mais. (P4).

Além disso, segundo os relatos das jovens, em especial da P2, tem-se a impressão de um reconhecimento pessoal muito incipiente, da maioria dos parceiros, quanto ao risco real da infecção pelo HIV, por meio de relações desprotegidas e/ou uso de drogas. Percebe-se que não houve uma abordagem do parceiro para a realização da avaliação e possível diagnóstico.

Ele [parceiro] não vem em hospital, ele não quer saber de nada. [...] Aposto que o dia que ele fica mal, ele vai direto tomar meus remédios. Não está nem aí. Ele é bem sem vergonha. Se ele viesse aqui seria mais fácil, ele consultava, pegava os remédios dele, seria melhor. (P2).

Discussão

O processo de comunicação da condição soropositiva ao HIV para os parceiros afetivos e sexuais constitui-se um assunto delicado e permeado por dilemas para as jovens que nasceram com HIV. Ao decidir revelar o diagnóstico, as jovens livram-se do peso do silenciamento, mas convivem amedrontadas pelo preconceito e estigma. Lidar com o ímpeto de perder o parceiro no contexto de uma relação afetiva envolve lidar psicologicamente com a representação de muitos riscos, inseguranças e, em alguns contextos, de ameaças, não só da transmissão potencial do HIV, mas especialmente da possibilidade de rejeição66 Fernet M, Wong K, Richard ME, et al. Romantic relationships and sexual activities of the first generation of youth living with HIV since birth. AIDS Care. 2011; (23):393-400..

Uma análise de vulnerabilidade mais acurada22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22. – para compreender em profundidade o contexto das dificuldades nessas parcerias de efetivar o sexo protegido com maior regularidade e, assim, ofertar o cuidado – deve levar em conta o contexto específico de uma relação estável entre jovens, com planos de futuro, afetos e anseios ligados à esfera reprodutiva e à constituição familiar – além dos medos mais típicos de realização da testagem e da possibilidade de saber-se infectado pelo HIV. É importante que os serviços acolham as jovens e seus parceiros quando, ao reconhecer a suscetibilidade da infecção atravessando os planos reprodutivos, busquem orientações e recursos para a suspensão segura do uso do preservativo e a adoção de medidas preventivas apropriadas que garantam os direitos reprodutivos.

Na intersubjetividade das jovens, nas cenas cotidianas relatadas, percebem-se valores, desejos e crenças em conflito, perpassado por um cenário cultural de estigmatização e discriminação sistemáticas22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22., por vezes associadas ao não acesso a outros direitos sociais. Se, por um lado, as jovens reconhecem que é necessário proteger os parceiros da possibilidade de infectarem-se pelo vírus, sobretudo quando esses desconhecem a condição soropositiva delas, por outro, o medo de serem discriminadas e rejeitadas afetivamente ao revelar sua condição antecipa sofrimento e dificulta a comunicação com o parceiro. Estudo desenvolvido na África do Sul teve como resultado que a não revelação da condição clínica do HIV entre parceiros sexuais está associada ao estigma e à discriminação de ter o vírus, e está diretamente relacionada com os comportamentos de risco de transmissão do HIV77 Simbayi LC, Kalichman SC, Strebel A, et al. Disclosure of HIV status to sex partners and sexual risk behaviours among HIV-positive men and women, Cape Town, South Africa. A Sexually transmitted infections. 2007; 83(1):29-34.. O temor do abandono advindo do preconceito e da convicção de que o segredo, quando confiado ao outro, poderá não ser mantido resulta na tendência de contar apenas quando tiverem uma confiança estabelecida no relacionamento. Saber o melhor momento e decidir em quem confiar são questionamentos acompanhados por angústias e inquietações88 Galano E, Turato ER, Delmas P, et al. Vivências dos adolescentes soropositivos para HIV/Aids: estudo qualitativo. Rev paul pediatr. 2016; 34(2):171-7..

Dessa forma, as jovens transitam entre o desejo de compartilhar o segredo, o medo da rejeição e a culpa por esconderem a verdade. Seja por decisão consciente, seja em uma conduta pouco refletida de manter o silenciamento acerca da soropositividade, o que se evidenciam são situações de dificuldade e tensão com relação a revelar o seu diagnóstico, pois fazê-lo tem o sentido de revelar-se, e isso não é simples99 Castellani MMX, Moretto MLT. A experiência da revelação diagnóstica de HIV: o discurso dos profissionais de saúde e a escuta do psicanalista. Rev SBPH. 2016; 19(2):24-43.. Dos relatos das jovens deste estudo sobre o medo da rejeição iminente, pode-se aventar uma metáfora: a de que, na visão delas, poderá haver um ‘efeito dominó’ após a comunicação da soropositividade ao HIV, com várias perdas subsequentes. Assim, a adaptação positiva perante um contexto de dificuldade, pode proporcionar uma qualidade de vida melhor em relação à vivência do estigma e da exclusão social diante da infecção pelo HIV1010 Araújo LF, Leal BS, Santos JVO, et al. Análise da Resiliência entre Pessoas que Vivem com HIV/AIDS: Um Estudo Psicossocial. Psicol. Teoria Pesq. 2019; (35):e35416..

O grupo de mulheres jovens que postergaram a comunicação, expondo o parceiro ao risco de infecção nas relações sexuais sem preservativo, denota uma transgressão, tendo em vista que o parceiro tem o direito de saber. Assim, a não revelação é percebida como atitude prejudicial ao outro11 Sá AAM, Santos CVM. A Vivência da Sexualidade de Pessoas que Vivem com HIV/Aids. Psicol ciênc prof. 2018; 38(4):773-786.. Dentre as jovens que postergaram a comunicação ao parceiro, evidenciam-se menor escolaridade e nível de conhecimento para atitudes preventivas, tendo em vista que aquelas, cientes da sua condição clínica, não efetivaram essas atitudes.

O conhecimento, como constructo psicossocial, é um importante preditor da vulnerabilidade à infecção pelo HIV, visto que pessoas com menos conhecimento sobre os meios de transmissão do vírus tendem a exercer práticas sexuais que apresentam maior risco1010 Araújo LF, Leal BS, Santos JVO, et al. Análise da Resiliência entre Pessoas que Vivem com HIV/AIDS: Um Estudo Psicossocial. Psicol. Teoria Pesq. 2019; (35):e35416..

A comunicação do HIV já no início das relações, como ocorreu com a maioria das participantes, corrobora estudo com adolescentes canadenses, que aponta que as mulheres são mais preocupadas, entendem que as relações sexuais não são concebíveis a menos que seus parceiros sejam informados sobre o estado sorológico delas66 Fernet M, Wong K, Richard ME, et al. Romantic relationships and sexual activities of the first generation of youth living with HIV since birth. AIDS Care. 2011; (23):393-400.. Estudo realizado na Etiópia mostrou que saber que o parceiro sexual tem o vírus resulta em maior uso do preservativo, maior apoio social e ter um bom relacionamento com o parceiro1111 Dessalegn NG, Hailemichael RG, Shewa-Amare A, et al. HIV Disclosure: HIV-positive status disclosure to sexual partners among individuals receiving HIV care in Addis Ababa, Ethiopia. PLoS One. 2019; 14(2):e0211967.. Considera-se, assim, que o diagnóstico compartilhado pode resultar em melhorias na vida do casal.

Para tanto, a preocupação por parte das mulheres também é decorrente, em parte, das relações afetivo-sexuais marcadas pelas normas regulatórias de gênero e pelos processos de estigmatização ao HIV/Aids que demonstram violação de direitos humanos22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22.. As mulheres, aprisionadas em uma sociedade de controle, enredadas em relações de poder desiguais pela ideologia machista que incide sobre suas mentes e corpos1212 Ceccon RF, Meneghel SN. Iniquidades de gênero: mulheres com HIV/Aids em situação de violência. Physis. 2017; 27(04):1087-1103., necessitam de apoio para sua melhor adesão às medidas preventivas necessárias para evitar a transmissão do HIV.

Para prevenir a transmissão viral, é essencial que exista o acolhimento das jovens, especialmente por parte dos serviços de saúde, e a construção de uma noção de corresponsabilização entre os envolvidos. Isso pode ocorrer por meio de espaços de reflexão, elaboração, e planejamento, considerando, além dos aspectos clínicos, as histórias e os planos de vidas, os sentidos dos relacionamentos em cursos, ou seja, a subjetividade22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22. envolvida na comunicação do diagnóstico, bem como os impactos sociais e psicológicos associados a estigmas e preconceitos que ainda permeiam o HIV.

Entende-se que o processo de comunicação é um caminho construído, no qual a jovem vai se tornando mais inventiva e apta a improvisar soluções99 Castellani MMX, Moretto MLT. A experiência da revelação diagnóstica de HIV: o discurso dos profissionais de saúde e a escuta do psicanalista. Rev SBPH. 2016; 19(2):24-43.. Nas estratégias de comunicação da soropositividade do HIV ao parceiro relatadas pelas participantes, foi possível perceber iniciativas que demonstram veladamente esforços, por meio de comunicação verbal/não verbal ou com o apoio de terceiros (familiares ou de profissionais da saúde). Para auxiliar nesse processo, estudo aponta que os profissionais geralmente elegem ações centradas no próprio paciente, sendo as mais comuns: a ameaça (tentativa de coerção, anunciando possíveis sanções e implicações legais e judiciais da não revelação); a campanha (investimento em discursos para dissuadir e convencer); o conselho (interação para o esforço interpessoal); a cumplicidade (oferecimento para participar/realizar o processo de comunicação); e o grupo de discussão (enriquecer o repertório argumentativo por meio da explicitação de experiências de terceiros)1313 Silva NEK, Ayres JRCM. Estratégias para comunicação de diagnóstico de HIV a parceiros sexuais e práticas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(8):1797-806..

O processo de comunicação não é tão simples, implica, geralmente, fase prévia em que, em termos de processo psicológico, ocorre uma significativa mobilização emocional-cognitiva sobre como e quando revelar a soropositividade, demandando uma certa preparação e uma tomada pessoal de decisão11 Sá AAM, Santos CVM. A Vivência da Sexualidade de Pessoas que Vivem com HIV/Aids. Psicol ciênc prof. 2018; 38(4):773-786.. A proposta de uso das estratégias que investem na construção (e reconstrução) de repertórios argumentativos amplia as possibilidades de diálogo acerca da comunicação aos parceiros1313 Silva NEK, Ayres JRCM. Estratégias para comunicação de diagnóstico de HIV a parceiros sexuais e práticas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(8):1797-806.. Nesse aspecto, a noção de cuidado22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22. remete à importância de conciliar o compromisso de êxito técnico em saúde com o horizonte existencial do paciente, levando em conta as subjetividades e os contextos sociais, assim como as experiências prévias de rejeição e desamparo99 Castellani MMX, Moretto MLT. A experiência da revelação diagnóstica de HIV: o discurso dos profissionais de saúde e a escuta do psicanalista. Rev SBPH. 2016; 19(2):24-43., a fim de alcançar práticas efetivas de saúde. O estigma e a discriminação relacionados com o HIV, como constructos psicossociais, estão associados à não divulgação do estado de HIV aos parceiros sexuais; e a não divulgação está intimamente associada a comportamentos de risco de transmissão do HIV.

Felizmente, para algumas das jovens, em suas parcerias, a revelação produziu sentidos de afeto, solidariedade e renovação das concepções do viver e conviver. Estudo aponta que essa experiência positiva fortalece os arranjos conjugais com mais cumplicidade na relação1414 Fernandes NM, Hennington EA, Bernardes JS, et al. Vulnerabilidade à infecção do HIV entre casais sorodiscordantes no Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(4):e00053415., tornando-se a soropositividade ao HIV um ‘segredo conjugal’ na tentativa de proteger o(a) parceiro(a) de retaliações sociais e reforçar o vínculo entre o casal.

Entretanto, a culpa de ter HIV era vivenciada por boa parte das participantes, especialmente quando as jovens pressupunham que existia um culpado pela sua infecção via transmissão vertical. Além disso, o receio de um processo judicial por causa da infecção revela a magnitude do significado social fortemente disseminado: de que, de fato, há um culpado, mesmo que em potencial, no caso do risco de transmissão do HIV para o parceiro. No Brasil, tanto a transmissão como a exposição ao HIV são crimes que podem ser enquadrados nos arts. 130 e 131 do Código Penal1515 Budemberg Filho AJ. A contaminação dolosa do vírus HIV e o direito penal brasileiro. Cad. Jur. Faculdade de Direito de Sorocaba. 2020; 2(1):413-30..

Estudo que analisou a criminalização da transmissão do HIV no Brasil aponta que houve avanços, expressos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, acerca da transmissão do vírus como transmissão de moléstia grave, e não como tentativa de homicídio; e pela definição da doença como agravo crônico, e não como ‘sentença de morte’. Depreende-se que, juridicamente, a comunicação da soropositividade ao(à) parceiro(a) sexual é central no julgamento acerca da responsabilidade pela transmissão do HIV. Todavia, o mesmo estudo aponta alguns retrocessos, como a tentativa de implementar leis que criminalizam a transmissão do vírus com penas severas que desconsideram as atuais tecnologias de prevenção e tratamento e reforçam a estigmatização, reiterando o medo1616 Pereira CR, Monteiro SS. A criminalização da transmissão do HIV no Brasil: avanços, retrocessos e lacunas. Physis. 2015; 25(4):1185-1205..

Dessa forma, a condenação moral das pessoas que vivem com HIV persiste. Ainda há necessidade de fomentar o debate na sociedade sobre os efeitos da criminalização da transmissão do HIV à luz do atual cenário da epidemia no Brasil e no mundo, os quais tendem a afastar a população da testagem e, consequentemente, do tratamento, afetando a saúde pública1616 Pereira CR, Monteiro SS. A criminalização da transmissão do HIV no Brasil: avanços, retrocessos e lacunas. Physis. 2015; 25(4):1185-1205..

Do ponto de vista da prevenção ao HIV, o diagnóstico em tempo oportuno, em tese, aumentaria a responsabilidade e os cuidados com o uso de preservativo para proteger os parceiros88 Galano E, Turato ER, Delmas P, et al. Vivências dos adolescentes soropositivos para HIV/Aids: estudo qualitativo. Rev paul pediatr. 2016; 34(2):171-7.. Porém, isso não é colocado em prática, com facilidade, pelas jovens participantes, em decorrência da postergação da comunicação ao parceiro ou por não a compreender como uma exposição ao HIV. Estudo aponta que casais tendem a abandonar o preservativo, mesmo cientes do status sorológico de seus companheiros1616 Pereira CR, Monteiro SS. A criminalização da transmissão do HIV no Brasil: avanços, retrocessos e lacunas. Physis. 2015; 25(4):1185-1205., por um pacto de assumir os riscos ou por passividade à vontade do parceiro33 Agostini R, Maksud I, Franco T. “Eu tenho que te contar um negócio”: gestão da soropositividade no contexto dos relacionamentos afetivo-sexuais de jovens vivendo com HIV. Sex Salud Soc. 2018; (30):201-223..

Assim, denota-se também a dimensão programática22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22. nos elementos que compõem o contexto dessas jovens, no que se refere à importância de acompanhamento continuado da saúde também desses parceiros, para a promoção de orientações de condutas preventivas e a oferta do teste anti-HIV, visando ao diagnóstico precoce para o início do tratamento em caso de infecção. Reforça-se a necessidade da divulgação da oferta de testagem na atenção básica e nos serviços especializados, de modo menos genérico e impessoal, minimizando percepções discriminatórias e banalizadoras, mas sim pautadas em aconselhamentos pré e pós-teste que contribuam para a manutenção dos cuidados pessoais1717 Barbosa TLA, Gomes LMX, Holzmann APF, et al. Prática de aconselhamento em infecções sexualmente transmissíveis, HIV e aids, realizada por profissionais da atenção primária à saúde de Montes Claros, Minas Gerais, 2015-2016. Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(1):e2018478..

É preconizado o aconselhamento evidenciando conceitos de janela imunológica e necessidade de repetição do teste devido à exposição, o que parece não ter sido discutido com as jovens participantes, tampouco juntamente com seus parceiros. Isso sugere ampliação da vulnerabilidade ao sexo sem uso do preservativo, que, em seu plano individual, revela-se como ‘esquiva deliberada’ ou ‘evitação ingênua’ de pensar realisticamente, por parte dos parceiros, nas possíveis implicações prejudiciais à sua saúde em caso de infecção – talvez como modo de lidar com o medo excessivo de um resultado positivo ao HIV1818 Borges REA, Silva MFS, Melo LP. “Mas não tive coragem de contar”: a revelação da condição sorológica na experiência amorosa de pessoas que vivem com HIV. Saúde Soc. 2017; 26(3):664-75.,1919 Said AP, Seidl EMF. Sorodiscordância e prevenção do HIV: percepções de pessoas em relacionamentos estáveis e não estáveis. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):467-78..

Estudo identificou fatores individuais, relacionais e sistêmicos que afetam a decisão dos homens de acatar ao teste, como a falta de envolvimento no acompanhamento do cuidado à saúde, os horários dos agendamentos e o receio de estigma2020 Yeganeh N, Simon M, Mindry D, et al. Barriers and facilitator s for men to attend prenatal care and obtain HIV voluntary counseling and testing in Brazil. PLoS One. 2017; 12(4):e0175505.. Denota-se a falta de orientação por parte dos serviços de saúde e de corresponsabilização por parte desses jovens, evidenciando dimensões individuais e programáticas da produção da vulnerabilidade22 Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Ayres JR, Paiva V, Buchalla CM, coordenadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá Editora; 2012. p. 9-22., com consequências no âmbito do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.

A lógica de prevenção racional e prescritiva, baseada apenas na recomendação do uso do preservativo, precisa ser transformada, incorporando-se um diálogo horizontal entre profissionais de saúde e usuários, abarcando estratégias que combinem tipos diferentes de práticas de prevenção, diminuindo a vulnerabilidade à potencial exposição ao HIV, mesmo para aqueles que têm dificuldades em utilizar preservativos. Assim, poderiam ser configurados contextos intersubjetivos e sociais geradores de atitudes e comportamentos mais assertivos e efetivos nas escolhas das estratégias preventivas pessoais1313 Silva NEK, Ayres JRCM. Estratégias para comunicação de diagnóstico de HIV a parceiros sexuais e práticas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(8):1797-806.,2121 Silva TCF, Sousa LRM, Jesus GJ, et al. Factors associated with the consistent use of the male condom among women living with HIV/AIDS. Texto Contexto Enferm. 2019; (28):e20180124..

Considerações finais

Este estudo permitiu compreender uma das dificuldades centrais nas trajetórias de vida de mulheres jovens que convivem com HIV: a comunicação da sua condição clínica aos parceiros, considerando o que isso representa em termos de significados sociais e pessoais ligados ao campo afetivo-conjugal. Percebeuse que essa comunicação é fortemente permeada pelo medo das reações do parceiro, em geral, imaginadas como hostis e discriminatórias, o que resulta, em alguns casos, em postergação da conversa. Há a crença de que haverá um momento em que a relação estará mais amadurecida, e os vínculos, mais sólidos, o que diminui a sensação de ameaça de rejeição e do término dela. Nesse cenário, esses receios, medos e ocultamentos de informações concorrem com a construção de vivências protegidas dos riscos, ou seja, contribui para o aumento das vulnerabilidades em saúde sexual e reprodutiva, mesmo estando presente a preocupação de algumas jovens em não transmitir o vírus.

Como estratégias de comunicação, revelaram-se tanto a decisão de contar com certa preparação prévia quanto a espontaneidade do diálogo. Outras jovens sentiram-se mais seguras para comunicar com o auxílio de terceiros (seja familiares ou profissionais). As reações dos parceiros, em sua maioria, foram de aceitação/ acolhimento, inclusive, constituindo o incentivo para seu empenho no cuidado à saúde. Isso aponta para a importância de trabalhar, nos encontros de cuidado, os sentimentos e os pensamentos de cunho fatalista em torno das ameaças de rejeição e separação. Entretanto, aquelas que postergaram em demasia a comunicação, ocorrendo após a relação sexual e a gravidez, mesmo em relações estáveis, tiveram mais dificuldades na manutenção, em longo prazo, do relacionamento, após a ‘quebra de confiança’, ao omitirem sua condição.

Nesse ínterim das vivências desafiadoras e potencialmente estressantes do viver com HIV encontram-se também as dificuldades de assunção mais assertiva das condutas preventivas por parte do casal, bem como da realização da testagem anti-HIV pelos parceiros, evidenciando-se, assim, os ‘pontos cegos’ nas orientações e aconselhamentos aos casais pelos serviços de saúde.

Ao transcender a abordagem da conduta individual, é possível incorporar e articular, de modo dinâmico e integrado, as dimensões do QV&DH que concorrem para conformar a comunicação em relação ao HIV no contexto das mulheres jovens em contraposição aos discursos que ameaçam preceitos de direitos humanos e princípios éticos. Assim, denota-se que é preciso investir em apoio psicoeducativo no cuidado em HIV dirigido especialmente aos jovens, para seu desenvolvimento pessoal na direção de práticas e repertórios em saúde capazes de superar desafios colocados em determinados contextos intersubjetivos e sociais que ampliam riscos e vulnerabilidades em saúde. Esse apoio pelos serviços pode incrementar atitudes e comportamentos de maior autonomia, assertividade, sustentados em domínio de conhecimento e informações, principalmente se ocorrer em tempo oportuno, valorizando a subjetividade, a escuta ativa de modo sensível, solidário, e continuamente no trabalho das equipes de saúde.

  • Suporte financeiro: o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
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