‘Se beber, não transe’: interrogando os discursos na oferta da Profilaxia Pós-Exposição (PEP)

Willian Nathanael Cartelli de Paula Gustavo Zambenedetti Sobre os autores

RESUMO

A Profilaxia Pós-Exposição (PEP) para o HIV constitui-se como uma tecnologia biomédica, ofertada em casos de violência sexual e acidente ocupacional desde o início dos anos 2000, tendo sua oferta ampliada para as situações de relações sexuais consentidas após 2010. Apesar de classificada como biomédica, sua oferta e sua execução são mediadas por tecnologias relacionais, perpassadas por sentidos socialmente construídos. Este trabalho teve como objetivo interrogar os discursos produzidos acerca da oferta da PEP sexual entre trabalhadoras de saúde. A pesquisa possui inspiração na perspectiva genealógica de Michel Foucault, com base na necessidade de problematizar as relações de poder a partir dos discursos e conhecimentos dos profissionais de saúde que atuam com a efetivação da PEP sexual em um município de médio porte da região central do Paraná. Foram realizadas 12 entrevistas com gestoras da política de HIV/Aids e trabalhadoras dos serviços que ofertam a PEP sexual. Discutem-se os discursos que permeiam a PEP sexual, colocando em evidência tanto o direito ao seu acesso e ampliação de possibilidades preventivas quanto os discursos prescritivos que perpassam e constrangem a sua oferta. Conclui-se que é necessário qualificar o acesso à PEP sexual, afirmando-a como uma prática de liberdade.

PALAVRAS-CHAVE
HIV; Profilaxia Pós-Exposição; Prevenção de doenças

Introdução

Na última década, o enfrentamento do HIV/ Aids tem ganhado novas características, especialmente com o surgimento de formas de cuidado e tecnologias. A prevenção combinada pode ser caracterizada como uma estratégia de prevenção e cuidado para HIV/Aids pautada na combinação de intervenções biomédicas, estruturais e comportamentais em nível individual e comunitário, levando em consideração contextos específicos11 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para organização do CTA no âmbito da prevenção combinada e nas redes de atenção à saúde. Brasília, DF: MS; 2017..

Compreende-se, assim, a importância da oferta de métodos de prevenção em larga escala e grande variedade. A prevenção combinada traz benefícios quando associada a intervenções estruturais, podendo essa combinação de métodos refletir na maneira como os indivíduos e os grupos lidam com os riscos e com a prevenção, uma vez que fortalece a autonomia diante da epidemia e, também, abrange maior número de pessoas22 Grangeiro A, Ferraz D, Calazans G, et al. O efeito dos métodos preventivos na redução do risco de infecção pelo HIV nas relações sexuais e seu potencial impacto em âmbito populacional: uma revisão da literatura. Rev Bras. Epidemiol. 2016 [acesso em 2019 abr 2]; 18(1):43-62. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/23025.
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,33 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-Exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais. Brasília, DF: MS; 2018.. Para além de todos os métodos de prevenção, sabendo-se que a infecção por HIV é mais provável de acontecer pela via sexual44 Filgueiras SL, Maskud I. Da política à prática da profilaxia pós-exposição sexual ao HIV no SUS: sobre risco, comportamentos e vulnerabilidades. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2018 [acesso em 2019 mar 31]; (30):282-304. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872018000300282&lng=pt&tlng=pt.
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, em 2010, o Ministério da Saúde acrescentou uma nova possibilidade de prevenção para o HIV: a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) sexual. Esse método é uma tecnologia biomédica existente desde 1999 no Sistema Único de Saúde (SUS) e que consiste na utilização de Antirretrovirais (ARV) durante 28 dias.

A princípio, a PEP destinava-se apenas a profissionais de saúde que tivessem sofrido acidentes com materiais biológicos. Em 2000, a tecnologia foi disponibilizada para vítimas de violência sexual, e somente a partir do ano de 2010, passou a ser ofertada em casos de relações sexuais consentidas55 Brasil. Ministério da Saúde. Suplemento III - tratamento e prevenção: recomendações para terapia antirretroviral em adultos infectados pelo HIV- 2008. Brasília, DF: MS; 2010. A disponibilização da PEP é considerada uma mudança significativa nas tecnologias de prevenção combinada e no reconhecimento, por parte do Ministério da Saúde, dos direitos sexuais das pessoas, especialmente aquelas pertencentes a populações vulnerabilizadas. Embora as políticas para enfrentamento do HIV tenham se envolvido com o campo da diversidade sexual desde o processo de redemocratização do País, buscando uma política pautada no respeito aos direitos humanos, incluindo-se direitos sexuais, existe grande dificuldade de transformar essa política em ação cotidiana dentro do SUS44 Filgueiras SL, Maskud I. Da política à prática da profilaxia pós-exposição sexual ao HIV no SUS: sobre risco, comportamentos e vulnerabilidades. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2018 [acesso em 2019 mar 31]; (30):282-304. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872018000300282&lng=pt&tlng=pt.
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,66 Grangeiro A, Silva LL, Teixeira PR. Resposta à aids no Brasil: Contribuições dos movimentos sociais e da reforma sanitária. Rev. Panam Salud Publica. 2016 [acesso em 2019 abr 2]; 26(1):87-94. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/is_digital/is_0409/pdfs/IS29(4)115.pdf.
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Além de levar em consideração a sexualidade no contexto das tecnologias biomédicas de prevenção, importa que se desvincule o risco ocasionado pela prática sexual e se vincule o direito. No primeiro Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para PEP, que vigorou até junho de 2015, a análise para recomendação ou não da Terapia Antirretroviral (Tarv) refere-se ao contexto da exposição. O profissional deveria verificar três principais aspectos sobre o paciente candidato à profilaxia: a sorologia do paciente fonte, o tipo de prática sexual e a prevalência de infecção por HIV no segmento populacional ao qual o parceiro pertence33 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-Exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais. Brasília, DF: MS; 2018..

A partir de junho de 2015, o protocolo foi simplificado. Passou-se a recomendar a profilaxia pela avaliação do risco da exposição, e não mais por categoria e contexto de exposição. Pensando-se na atenção integral à saúde das pessoas expostas a Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), as diretrizes vigentes atualmente recomendam que se analise a resposta para quatro perguntas, feitas a todas as pessoas potenciais usuárias de PEP: o tipo de material ao qual a pessoa se expôs; o tipo de exposição; o tempo decorrido entre a exposição e a consulta; e a sorologia do paciente33 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-Exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais. Brasília, DF: MS; 2018.. A partir das respostas, o profissional avalia a necessidade de prescrição da PEP.

Após a simplificação do PCDT, o Ministério da Saúde lançou as Diretrizes para a Organização da Rede de Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção pelo HIV – PEP77 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para a organização da Rede de Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção. Brasília, DF: MS; 2016. Esse documento visa à padronização de algumas ações para o fornecimento da PEP na rede pública de saúde, defendendo que, com a simplificação do PCDT, a figura do profissional especializado torna-se dispensável, sendo possível a diversificação de locais onde a profilaxia pode ser fornecida77 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para a organização da Rede de Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção. Brasília, DF: MS; 2016. Nesse sentido, destaca-se a experiência de municípios como Florianópolis (SC), que iniciou a descentralização da atenção em HIV/Aids, incluindo a disponibilização da PEP na atenção básica a partir de 201588 Pinto VM, Capeletti NM. Reorganização do modelo de atenção às pessoas vivendo com HIV: a experiência do município de Florianópolis/SC. Rev. Bras. Med. Família e Com. 2019 [acesso em 2022 jan 21]; 14(41):1710. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rb-mfc/article/view/1710/976.
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A PEP é uma tecnologia biomédica que consiste na utilização de medicamentos controlados, que pode ser apropriada de diversas maneiras, como recurso político com vistas a garantir ou depreciar direitos sexuais; o que está em jogo é o quanto ela é ou não compreendida como fruto de uma política pautada no respeito aos direitos humanos. Para evitar riscos à saúde e orientar a tomada de decisão, é necessária a análise da situação de exposição da/o usuária/o ao HIV, por meio de um relato detalhado da prática que a/o levou a procurar a PEP. Entretanto, percebe-se que trabalhadoras e trabalhadores da saúde têm dificuldade em abordar as práticas sexuais, assim como pacientes têm dificuldade em relatá-las, o que demonstra que o assunto sexo não é natural. Além disso, muitos profissionais da saúde, a despeito de atuarem em programas públicos voltados à sexualidade, acabam atuando com base em valores pessoais, mesclando saberes científicos, religiosos, morais etc.99 Paiva V. A Psicologia redescobrirá a sexualidade? Psicologia em Estudo. 2008 [acesso em 2019 abr 2]; 13(4):641-651. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n4/v13n4a02.pdf.
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. Outro aspecto a ser analisado é que, apesar de a PEP ser considerada uma tecnologia biomédica, o acesso a ela é perpassado por tecnologias relacionais e aspectos psicossociais diversos. Nesse sentido, a PEP pode ser lida não apenas como uma estratégia biomédica, mas como uma estratégia a serviço de diferentes forças, de acordo com os usos dela pelos profissionais envolvidos.

Os melhores métodos de prevenção sempre serão aqueles que se adéquam às necessidades dos usuários e que consideram os contextos nos quais estão inseridos, sendo ainda mais vantajosos por proverem os meios para intervenções estruturais e individuais33 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-Exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais. Brasília, DF: MS; 2018.. Ao estruturar uma Pedagogia da Prevenção1010 Gavigan K, Ramirez A, Milnor J, et al. Pedagogia da Prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Rio de Janeiro: ABIA; 2016. [acesso em 2022 jan 21]. Disponível em: https://abiaids.org.br/pedagogia-da-prevencao/28753.
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, pesquisadores da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) afirmam que, para que haja efetividade em oferecer múltiplas abordagens preventivas, há que se garantir acesso e informação sobre o que está disponível e a efetividade de cada método, proporcionando que os indivíduos em risco de exposição recebam mais do que comprimidos em seus corpos, mas que se sintam empoderados da decisão de prevenir-se da forma que mais fizer sentido1010 Gavigan K, Ramirez A, Milnor J, et al. Pedagogia da Prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Rio de Janeiro: ABIA; 2016. [acesso em 2022 jan 21]. Disponível em: https://abiaids.org.br/pedagogia-da-prevencao/28753.
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Cabe ressaltar que a sexualidade continua sendo abordada hegemonicamente na perspectiva do risco, e não do direito, entendendo-se as práticas e vivências sexuais como um problema que pode levar à Aids; nessa lógica, um comportamento classificado como desviante ou transgressor pode levar o sujeito a infectar-se por um vírus. Tais convicções influenciam o profissional de saúde a buscar o controle da vida sexual das pessoas, impossibilitando um trabalho pautado pela perspectiva de sexualidade como um direito44 Filgueiras SL, Maskud I. Da política à prática da profilaxia pós-exposição sexual ao HIV no SUS: sobre risco, comportamentos e vulnerabilidades. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2018 [acesso em 2019 mar 31]; (30):282-304. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872018000300282&lng=pt&tlng=pt.
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Lima, Almeida e Vieira1111 Lima R, Almeida C, Viana L. A pessoa medicada e o HIV/AIDS: subjetividade, adesão ao tratamento e biopolíticas. Rev. Subjet. 2015 [acesso em 2019 set 2]; 15(3):378-388. Disponível em: http://pepsic.bv-salud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000300006&lng=pt&nrm=iso.
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procuraram pensar sobre a medicação da Aids e a adesão à Tarv em uma perspectiva das biopolíticas, realizando uma crítica ao modelo brasileiro de assistência por não oferecer acolhimento nem considerar as singularidades dos pacientes, o que leva à prescrição de condutas gerais e distancia o paciente do protagonismo e do direito ao próprio corpo. Para os autores, com o surgimento da Aids, cresceu o desafio de pensar em políticas públicas de saúde que não ocasionem uma redução da subjetividade e da sexualidade humanas a discursos biomédicos1111 Lima R, Almeida C, Viana L. A pessoa medicada e o HIV/AIDS: subjetividade, adesão ao tratamento e biopolíticas. Rev. Subjet. 2015 [acesso em 2019 set 2]; 15(3):378-388. Disponível em: http://pepsic.bv-salud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000300006&lng=pt&nrm=iso.
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Diante disso, será utilizada a noção de dispostivo1212 Defert D, Ewald F, Legrange J. Le jeu de Michel Foucault: (entretien sur l’Histoire de la sexualité), n. 206. In: Defert D, Ewald F, Legrange J. Dits et écrits III: 1976-1979. 9. ed. Paris: Gallimard; 2018. p. 298-329. como um emaranhado de saber-poder estabelecido entre discursos, instituições, decisões, leis, pressupostos científicos, entre o dito e o não dito, sendo sua compreensão de fundamental importância para a análise que se pretende desenvolver neste artigo. O dispositivo é um conceito versátil, o qual será utilizado para entender a sexualidade e a Aids entrelaçadas nas relações de poder entre Estado como vigilante dos corpos das pessoas que (con)vivem ou potencialmente podem se expor ao HIV.

Em ‘A história da sexualidade: a vontade de saber’, Foucault1313 Foucault M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 7. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra; 2018. procura definir o Dispositivo da Sexualidade, que poderia ser descrito como algo que encadeia a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação do discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências a partir de grandes estratégias de poder e saber e procedimentos discursivos; parte de um esquema de transformação com necessidade de ser entendido como estratégia global que depende de relações precisas e tênues de suporte e de fixação, articuladas nos discursos que veiculam e produzem o poder, mas também o minam, e nos segredos e silêncios que, na mesma medida, dão guarida e interditam e afrouxam laços, dando margem a tolerâncias. Não há, de fato, censura sobre o sexo, mas incentivo à produção de discursos sobre ele, com ênfase na dualidade lícito-ilícito1313 Foucault M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 7. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra; 2018..

Além disso, Michel Foucault permite desnaturalizar o sexo, evidenciando que nenhuma relação seria – embora, geralmente, monogâmica – apenas entre duas pessoas. O Estado faz parte dessas relações, procurando controlar o sexo, definindo qual é bom e qual é mau, em busca de uma higienização de práticas consideradas arriscadas à vida.

Néstor Perlongher1414 Perlongher N. O que é Aids. São Paulo: Brasiliense; 1987., baseado nos estudos de Foucault, cunhou o termo dispositivo da Aids, que está relacionado com o que chama de ‘antiga confissão’, mas agora no consultório é que se deveria falar tudo sobre o sexo. Segundo o autor, esse dispositivo se refere

[...] não a doença em si, mas a moralização desencadeada em torno dela [...] exige como pré-requisito que tudo o que diz respeito à corporalidade possa ser dito, mostrado exibido, assumido; a partir disso é que se pode diagnosticar e regulamentar [...]1414 Perlongher N. O que é Aids. São Paulo: Brasiliense; 1987.(74).

Para que seja possível essa regulação, o dispositivo da Aids se exerce quando conselhos médicos procuram disciplinar as práticas sexuais, “especialmente as homossexuais”1414 Perlongher N. O que é Aids. São Paulo: Brasiliense; 1987.(70). O controle que o Estado opera, quando deposita atenção no uso dos corpos e prazeres, dá a entender que alguns gozos são mais legítimos que outros, atribuindo a acusação de irresponsabilidade aos indivíduos que fazem parte de um ‘grupo de risco’ instituído por convergências, afinidades e homogeneização de interesses, o qual consiste na causa da contaminação e precisa, portanto, ser higienizado. Diante disso, há que se problematizar essas práticas higienistas e estigmatizadoras que afetam não somente as pessoas vivendo com HIV como também todas as outras consideradas pelo Estado como parte de uma população mais vulnerável.

Posto isso, salienta-se que as políticas públicas sobre HIV são avanços, do ponto de vista da afirmação do direito e acesso à cidadania, mas devem ser problematizadas, especialmente pelas forças de sujeição que podem produzir: se, por um lado empreendem-se esforços para a positivação das identidades soropositivas, por outro, o dispositivo da Aids traz em sua memória processos de estigmatização ainda fortes, adquirindo traços confessionais1313 Foucault M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 7. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra; 2018. e, de alguma forma, instrumentos disciplinadores dos quais o Estado se apropria.

Diante disso, esta pesquisa tem como objetivo interrogar os discursos produzidos acerca da oferta da PEP sexual entre trabalhadoras da saúde em um município da região central do Paraná.

Material e métodos

Este estudo utiliza dados de uma pesquisa maior intitulada ‘Reagindo ao HIV: o atendimento de emergência pós-exposição sexual nos serviços de um município da região central do Paraná’, vinculada à dissertação de mestrado defendida e orientada respectivamente pelo primeiro e segundo autores deste artigo. A pesquisa teve um viés qualitativo, com inspiração na perspectiva genealógica de Michel Foucault: “Fala-se de um período genealógico de Foucault para fazer referência àquelas obras dedicadas à análise das formas de exercício do poder”1515 Castro E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009.(184). A escolha justificou-se na necessidade de problematizar as relações de poder a partir dos discursos e conhecimentos dos profissionais que atuam com a efetivação da PEP sexual.

A pesquisa teve seus dados produzidos entre julho de 2019 e novembro de 2020 em um município de médio porte, na faixa entre 150 e 200 mil habitantes, da região central do estado do Paraná. As participantes foram duas profissionais representando a gestão do Departamento de Atenção Especializada, que realiza a gestão da política de HIV no município, a gestora e as profissionais de saúde que atuam no Serviço de Atendimento Especializado/Centro de Orientação e Apoio Sorológico (SAE/Coas) e as enfermeiras e a médica que atuam como plantonistas nas unidades de urgência e emergência municipais e nos atendimentos de urgência relacionados à exposição sexual ao HIV. Para este artigo, o recorte foi feito conforme o quadro 1:

Quadro 1
Entrevistas realizadas

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus Irati, sob número do parecer 3.417.298, de 26/06/2019. A participação na entrevista somente ocorreu após assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Como método de análise, o estudo apoiou-se na Análise de Discurso Foucaultiana. Nunca tendo sido um projeto de Foucault que houvesse uma teoria de análise de discurso, o autor apenas considerou que seu trabalho devesse ser tratado como uma caixa de ferramentas: nessa caixa, o discurso é um conceito fundante de seu pensamento, articulando todo um sistema conceitual que perpassa pela, mas não se resume à linguagem. Isso significa que o discurso se materializa em forma de texto, de imagem, de línguas verbais e não verbais, sempre sob determinações históricas1616 Ferreira R, Rajagopalan K. Michel Foucault: Uma teoria crítica que entrelaça o discurso, a verdade e a subjetividade. In: Ferreira R, Rajagopalan K. Um mapa da crítica nos estudos da linguagem e do discurso. Campinas: Pontes; 2016. p. 117-132..

Para chegar a essa linha de análise, realizou-se a leitura das entrevistas, primeiro na ordem em que aconteceram, o que fez com que alguns discursos se destacassem, e, conforme esses iam se relacionando com o objetivo da pesquisa, passou-se a tratá-los como linha de análise; em um segundo momento, à medida que se realizou a análise e se integraram os discursos das entrevistas com a teoria, voltou-se à leitura das entrevistas, de modo que as ações se complementaram.

A produção discursiva sobre aids e a sexualidade como dispositivo de gestão dos corpos

Segundo relato da Gestora 1, historicamente, o SAE constitui-se como referência centralizada para a oferta da PEP no município. De acordo com a profissional, sempre que havia alguma situação de exposição, o SAE era acionado para atender a/o paciente. Para cobrir os finais de semana, havia um plantão, no qual os profissionais eram chamados e realizavam todos os atendimentos relacionados com a PEP, independentemente da motivação: se ocupacional, por violência sexual ou por via sexual consentida.

Ainda, segundo a Gestora 1, esse sistema de plantão deixou de ser utilizado por volta de 2014. Na sequência, em 2015, ocorreu a simplificação do PCDT da PEP. Essa mesma participante relata a percepção de que, a partir de 2016/2017, a procura pela PEP aumentou, coincidindo como a expansão de seu acesso para os serviços de urgência municipais, culminando na configuração assistencial atual.

Existem, portanto, dois tipos de serviço no município onde o usuário pode procurar a PEP: o SAE/Coas e as Unidades Municipais de Urgência. O atendimento do SAE é de segunda a sexta-feira, em horário comercial; duas das unidades de urgência funcionam 24 horas por dia e 7 dias por semana, e a terceira, das 7 da manhã à meia-noite, de segunda-feira a sábado. Caso a exposição aconteça em dias úteis, o paciente sempre é orientado a procurar o SAE/Coas – mesmo que a exposição tenha ocorrido durante a noite ou de madrugada –, em vez de receber o atendimento nas unidades de urgência. Frisa-se que as diretrizes do Ministério da Saúde para a PEP preconizam que a primeira tomada do medicamento deve ocorrer preferencialmente duas horas após a exposição, não podendo ultrapassar 72 horas.

O fluxo para a PEP, quando o paciente a procura no SAE/Coas, foi descrito pela Gestora 1 (2019): quando o usuário não traz o parceiro ou a parceira, é realizado o teste de HIV e, quando o resultado é ‘não reagente’, o paciente passa pelo médico, que receita a profilaxia. Quando as pessoas vêm juntas, todas são testadas, e se busca evitar a prescrição da profilaxia em virtude de possíveis efeitos colaterais.

A partir dessa contextualização acerca da oferta da PEP nesse município, passa-se à análise de alguns trechos das entrevistas, em que se pôde observar os relatos de experiência das trabalhadoras da saúde mesclados com o que elas ouviram dos usuários que atenderam. Sendo assim, pretende-se analisar a produção discursiva do cuidado e do controle dos corpos pelo filtro do olhar das participantes da pesquisa. O recorte a seguir trata de um atendimento que resultou em utilização de PEP sexual e foi uma experiência relatada por uma enfermeira plantonista na unidade de urgência:

Na verdade, a gente nunca sabe ‘a real’ da situação, algumas vezes eles falam a verdade, mas nem sempre. Mas a moça falou para mim que havia saído, não conhecia a pessoa, foi pra balada e teve relação com a pessoa sem usar preservativo. Disse que na hora não pensou, mas depois ficou com medo porque ela percebeu que o cara teve a relação com ela e logo em seguida largou dela e foi com outra guria. Aí ela pensou ‘Bom... ele já deve ter tido muitas outras relações antes de mim!’. Então, ela ficou com medo e procurou a urgência, a gente fez só o de HIV, graças a Deus deu negativo, a gente fez o aconselhamento e orientamos para que ela buscasse o SAE para fazer os outros testes também. A moça estava bem preocupada e com medo, e assim, a gente orienta e tal. (Enfermeira 2, 2019).

Esses são os fatos narrados sob o ponto de vista da enfermeira; é possível verificar que a paciente sentiu necessidade de justificar que “na hora não pensou”. Outro detalhe importante do enunciado está logo no início, quando a enfermeira diz “a gente nunca sabe ‘a real’ da situação”, referindo-se à impossibilidade de saber se os pacientes estão falando a verdade. Importa, porém, frisar a dificuldade, em uma relação rápida como é um atendimento de urgência, de fazer esse tipo de inferência, uma vez que não há, ainda, vínculo entre paciente e trabalhador, devendo a relação de confiança ser construída. Cabe destacar a presença de parâmetros objetivos: o PCDT da PEP estabelece que, quando o resultado do teste rápido de HIV é inconclusivo, a PEP deve ser prescrita e fornecida ao paciente. Trazendo isso para o caso narrado pela Enfermeira 2, percebe-se a necessidade de uma escuta atenta da história do paciente, que estabelecerá – juntamente aos critérios constantes no PCDT da PEP – as bases para a decisão sobre a prescrição.

A Enfermeira 2 encerra o relato analisado anteriormente dizendo:

Mas parece que não existe o medo antes, existe o medo depois, medo depois da relação e de ter se contaminado e tal. Ela deu sorte! Porque se der um positivo aí já é tarde. (Enfermeira 2, 2019).

Essa segunda parte da fala da trabalhadora pode ser analisada sob dois aspectos: o primeiro diz respeito ao medo, e o segundo, à sorte. Retomando a pesquisa realizada por Paiva99 Paiva V. A Psicologia redescobrirá a sexualidade? Psicologia em Estudo. 2008 [acesso em 2019 abr 2]; 13(4):641-651. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n4/v13n4a02.pdf.
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, a pessoa entrevistada, L. (1987) diz:

O momento em que eu peguei o vírus da AIDS, eu não estava ali me contaminando… era muita paixão! Foi um momento de alegria, de prazer, tanto tempo desejado… Prazer corporal, mas espiritual também. Queria viver aquele meu amor, repetir outros momentos iguais àquele99 Paiva V. A Psicologia redescobrirá a sexualidade? Psicologia em Estudo. 2008 [acesso em 2019 abr 2]; 13(4):641-651. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n4/v13n4a02.pdf.
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(642).

Dessa forma, não é um pressuposto universal que uma pessoa pense em HIV, Aids ou outras IST na hora do sexo; então, de fato, é compreensível que o medo só venha depois, sendo o papel da profissional de saúde abordar os acontecimentos da vida cotidiana, incluindo o sexo. O discurso expresso na fala da profissional está ligado a uma pressuposição normativa: ao fazer sexo, as pessoas deveriam pensar em doença e, portanto, prevenirem-se. O que está ‘fora’ dessa normatividade parece surpreender. A PEP sexual, entretanto, incorpora justamente a possibilidade de que esse ‘dar-se por conta depois’ seja acolhido por ações em saúde que possibilitem também uma forma de prevenção. A política brasileira de prevenção ao HIV foi centrada, ao longo de sua história, na oferta do preservativo masculino como principal ferramenta de prevenção1717 Pinheiro TF, Calazans GJ, Ayres JR. Uso de Camisinha no Brasil: um olhar sobre a produção acadêmica acerca da prevenção de HIV/Aids (2007-2011). Temas em Psicol. 2013 [acesso em 2022 abr 20]; (21):815-836. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v21n3/v21n3a09.pdf.
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, moldando uma cultura preventiva. Entretanto, na década de 2010, houve um incremento do leque de opções preventivas, representado na imagem da mandala da prevenção combinada1818 Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada. Brasília, DF: O Ministério; [2010]., que se constitui por um conjunto de estratégias com diferentes possibilidades de combinação, visando à ampliação da autonomia e ao protagonismo dos sujeitos na construção da prevenção. Elas exigem uma reconfiguração da cultura preventiva: enquanto o preservativo envolve um ‘chegar antes da relação’ (é necessário ter o preservativo e inseri-lo antes da penetração) para efetivar a prevenção, a PEP compreende ‘chegar depois da relação’, mas antes de ocorrer o processo de infecção. Assim, exige uma torção do sentido tradicionalmente atribuído à prevenção. Talvez por esse motivo, muitos profissionais se esqueçam da PEP e considerem que não há mais o que fazer quando alguém relata uma relação sexual desprotegida.

O segundo aspecto discursivo é a ‘sorte’ de a paciente não ter se infectado com HIV, o que não é apenas uma suposição possível de saber, já que ela fez o teste rápido no dia da exposição na unidade de urgência e, pelo protocolo informado, não foi acompanhada pela unidade de urgência, e sim pelo SAE ou pela Unidade Básica de Saúde. Existem diversas motivações para pessoas terem sexo sem preservativo, sendo uma delas a iminência da possibilidade de ser infectado com HIV1919 Almeida Junior WN. Escolhas conscientes pedem métodos pertinentes: barebacking e a prevenção do HIV. In: Leite V, Terto Junior V, Parker R. Dimensões Sociais e Políticas da Prevenção. Rio de Janeiro: ABIA; 2018. p. 71-75. [acesso em 2020 out 1]. Disponível em: http://abiaids.org.br/dimensoes-sociais-e-politicas-da-prevencao/32257.
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.

Outro aspecto abordado com as participantes da pesquisa foi com o objetivo de compreender a abordagem aos possíveis usuários de PEP. Segundo uma das participantes:

É… A gente pergunta qual é o comportamento sexual, se ela costuma ter vários parceiros, se naquela noite ela esteve com outros também, né? E aí ela acabou falando que não foi só ele naquela noite, que ele esteve com outro rapaz também, por conta de ter bebido e tal. Aí a gente já fica um pouco mais preocupado e até aconselhamos e orientamos mais incisivamente a procurar o SAE. Agora se a pessoa foi até lá, aí a gente já não sabe, né? Mas a gente orienta que vá. (Enfermeira 2, 2019).

A fala da médica sobre como realizar o atendimento de uma pessoa que se expôs ao HIV e que poderia utilizar a PEP ilustra isso:

Eu não lembro mais a metade disso, mas eu sei mais ou menos como é. Mas a gente faz nossas consultas, temos nossas ferramentas e aplicativos médicos para consultar. Porque ter tudo assim na primeira prateleira da cabeça… são coisas que a gente não mexe todo o dia. A gente não é pego tão desprevenido assim caso for preciso fazer. (Médica, 2019).

A trabalhadora cita uma ferramenta até então não abordada por outros profissionais: aplicativo para celular. O Ministério da Saúde77 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para a organização da Rede de Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção. Brasília, DF: MS; 2016 se refere à simplificação do protocolo da PEP como a instituição de um algoritmo único para todos os tipos de PEP; tanto o excerto da fala da médica quanto o documento do Ministério da Saúde denotam uma implicação racional/ administrativa, com ênfase na utilização de ferramentas que possibilitem a objetividade do atendimento, configurando esse tema como apenas mais um assunto a ser abordado, como qualquer outro, de modo asséptico.

Essa assepsia vai sendo contraposta por outras falas, como a seguinte:

E a gente sabe que daí eles puseram outras pessoas pra fazer a entrega da medicação, as enfermeiras das unidades de urgência precisaram fazer treinamento pra fazer o teste; o médico, a gente levou os protocolos, deixou em cima da mesa do médico pra que ele soubesse que isso é uma urgência médica. Só que, às vezes, o paciente ainda vem aqui na segunda-feira e fala que não foi atendido [no pronto atendimento]. (Gestora 1, 2020).

É importante considerar que, diferentemente da equipe do serviço especializado em HIV/Aids, a equipe dos serviços de pronto atendimento tem como característica uma maior diversidade de profissionais, em escalas de plantões, configurando maior rotatividade e dificuldade de efetivação de processos de educação permanente.

Ainda, destaca-se a fala da profissional acerca das resistências iniciais de alguns profissionais em relação à implantação da PEP nos serviços de urgência:

A gente teve muita resistência em relação aos médicos, porque eles não queriam admitir que isso era uma urgência médica até a gente mostrar ‘tá escrito aqui, ó’ . (Gestora 1, 2020).

A fala de outra profissional evidencia que os fluxos e as compreensões em torno da PEP nos serviços de urgência ainda não estão sedimentados no cotidiano das unidades de urgência:

Eu já tive muito paciente que não pegou a PEP, voltou aqui e falou assim: ‘eu não vou pegar porque eu não vou ficar 3, 4 horas sentado lá esperando’. Então, sobre esse assunto a gente foi várias vezes falar com os médicos e com as enfermeiras, então parece que agora já tá quase que um pouco melhor, a gente não tem mais tanta reclamação; mas quando eu voltei do afastamento da pandemia, eu lembro que a farmacêutica me comentou: ‘nós temos que conversar de novo com o pessoal da UPA, porque tem muita gente voltando, dizendo que não tá sendo atendida ou que não recebeu a medicação, e a medicação estava lá’. (Gestora 2, 2020).

De modo complementar, nas entrevistas com profissionais da enfermagem, observou-se que não há um consenso acerca da classificação do tempo de espera das pessoas que acessam as unidades em busca da PEP. Isso evidencia que, mesmo com a existência de protocolos e orientações, a garantia do acesso à PEP em tempo adequado e a abordagem do aconselhamento nem sempre ocorrem, resultando na chegada de pacientes ao SAE após findado o prazo possível de prescrição da PEP.

Em algumas entrevistas, ouviu-se mais sobre como as profissionais realizam a abordagem:

É tranquilo. Vai muito da questão de você ter experiência, mesmo, de rotina. Eu falo sempre pras pessoas que a gente tá formando que o primeiro aconselhamento, o primeiro teste positivo a gente nunca esquece, porque a gente vai… deixa em casa, deixa guardadinho os nossos preconceitos pra ouvir coisas que, de repente, pra você é uma coisa absurda, mas para o paciente é uma coisa normal. Então a gente tem que tentar… às vezes o pessoal fala de cara o que aconteceu, como foi a relação, estourou camisinha, não estourou, não usou, como é que foi, o tipo de relação, e outras a gente tem que ir pelas beiradas p tentar chegar no objetivo, então varia de cada pessoa. Com o tempo, com a experiência que a gente vai tendo, a gente vai percebendo como você consegue atingir o objetivo da melhor maneira. (Enfermeira 4, 2020).

Essa fala tem um potencial instituinte em relação aos processos de educação permanente em saúde, tanto por remeter às tecnologias leves envolvidas na assistência quanto pela necessidade de os profissionais identificarem seus preconceitos ou outros aspectos que interferem nos atendimentos. Se o aconselhamento é uma relação intersubjetiva, as reações e o modo de abordagem do profissional agirão também sobre o usuário, possibilitando maior ou menor abertura para o diálogo. Dessa forma, torna-se premente incluir esse aspecto na formação dos profissionais de saúde. Importa ressaltar que essa fala contrasta com a assepsia denotada na fala da médica e da Gestora 1 anteriormente expostas, as quais ressaltavam as dimensões mais protocolares do processo.

É necessário considerar que, apesar de a PEP ser configurada como uma tecnologia biomédica, o acesso e a abordagem a ela caracterizam-se como uma tecnologia leve2020 Merhy EE. Ver a si no ato de cuidar: educação permanente na saúde. In: Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, et al. Caderno de Textos do VER-SUS/Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2013. p. 58-71. [acesso em 2020 nov 4]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/.pluginfile.php/4447985/mod_resource/content/1/FINANCIAMENTO%201_VERSUS.pdf.
https://edisciplinas.usp.br/.pluginfile....
, relacional. Assim, o aplicativo pode indicar a perspectiva biomédica, mas a relação deve ser produzida no encontro, de modo singular, levando-se em consideração a complexidade em torno de questões envolvendo a sexualidade e seus múltiplos sentidos.

Seguindo na análise e na compreensão dos aspectos que perpassam a oferta da PEP, observa-se que várias profissionais relataram uma atitude comum entre os pacientes: a solicitação de privacidade já no momento do acolhimento. Conforme a Enfermeira 2 (2019),

Não é um hábito nosso de fecharmos a porta durante a classificação [de risco], aí quando o paciente pede, você já subentende que é alguma coisa diferenciada que ele quer te falar.

A Enfermeira 1 também mostra preocupação em expor o paciente:

Só que na classificação de risco, muitas vezes o paciente fica muito exposto, porque fica o enfermeiro, os técnicos. Então, quando é um caso assim, a gente já procura ir pra uma sala, reservada, a gente com o paciente e tal… pra não expor o paciente, né? (Enfermeira 1, 2019).

Essas situações e solicitações expressam um discurso que relaciona o sexo e a sexualidade com intimidade e privacidade. Por isso, precisam ser faladas a portas fechadas, ou em tom de voz mais baixo. Compreende-se, assim, que não se fala disso como de qualquer outro assunto, constituindo formas de expressão do dispositivo da sexualidade.

Dentro dos aspectos discutidos até o momento, pode-se afirmar que as práticas em saúde fazem parte de um jogo de capturas e resistências. Ao problematizar esses discursos a partir das formas que foram observadas até o momento, busca-se fazer uma afirmação sobre a necessidade de criar ou ampliar condições de resistência, ensejos para que identidades e comportamentos possam ser legitimados, e não julgados. Poder-se-ia pensar que os trabalhadores da saúde prescrevem, além de preservativo e ARV, uma dietética sexual, mas retoma-se que a existência de uma relação de poder é indissociável da possibilidade de resistência. Uma fala que chamou atenção expressa-se como ilustrativa do que se coloca como esse discurso prescritivo:

A gente sempre orienta e sempre fala, né? O que eu sempre falo pra todos, homens ou mulheres: se for sair beber, não tenha relação. Quando for sair com a vontade de ter uma relação sexual, só saia pra isso. Bebida e relação sexual não combina, não dá certo. Porque às vezes vai lá… a maioria das relações acaba não dando muito certo, que os preservativos rompem, que acontece isso, é que misturou bebida e sexo e não dá certo. (Téc. Enfermagem 1, 2020).

Essa fala é atravessada por uma perspectiva prescritiva e normativa: ‘se beber, não transe’. Parte-se de prescrições, mais do que de tentativas de compreender ou de buscar construir, com o sujeito, o que é o melhor e/ou possível para ele, entendendo que o referido discurso prescritivo poderia estar inscrito:

[...] nos modelos clássicos de explicação do processo saúde-doença, pressupostos que sustentam a prescrição de comportamentos tecnicamente justificados como únicas escolhas possíveis para o alcance do bem-estar de todos os indivíduos, independentemente de sua inserção sócio-histórica e cultural. Por esse caminho, foi incorporada à nossa cultura sanitária a suposição de que comportamentos ‘não educados’ por esses padrões são insuficientes, insalubres e inadequados (tanto do ponto de vista técnico-sanitário quanto do moral), constituindo o que vem sendo nomeado, contemporaneamente, como ‘comportamentos de risco’2121 Meyer DEE, Mello DF, Valadão MM, et al. “Você aprende. A gente ensina?”: interrogando relações entre educação e saúde desde a perspectiva da vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública. 2006 [acesso em 2020 nov 17]; 22(6):1335-1342. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000600022.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
(1336).

Assim, entende-se que

[...] o apoio e a resposta social que se busca alcançar envolvem a comunicação entre diferentes, que não objetiva a homogeneização de formas de pensar e levar a vida, mas a construção e o fortalecimento de cumplicidades na busca de proteção2121 Meyer DEE, Mello DF, Valadão MM, et al. “Você aprende. A gente ensina?”: interrogando relações entre educação e saúde desde a perspectiva da vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública. 2006 [acesso em 2020 nov 17]; 22(6):1335-1342. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000600022.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
(1336).

Seria possível, então, associar isso ao enunciado da liberdade para Foucault, que só existe com base nas relações de poder. Castro1515 Castro E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009. compila e explica como funciona a liberdade para Foucault:

Qualificadas como livres aquelas formas de relação entre sujeitos que, negativamente, não estão bloqueadas e, positivamente, aquelas em que se dispõe de um campo aberto de possibilidades; isto é, relações que são suscetíveis de modificação1515 Castro E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009.(246).

O discurso prescritivo, presente na orientação da trabalhadora, pode ser ouvido por diversos sujeitos, que têm a liberdade de seguir ou não, podem ser capturados ou resistir. É importante ressaltar que, nas relações que são concebidas por processos de liberdade, coloca-se ao lado do outro, não no lugar nem sobre o outro, buscando construir relações de diálogo, que auxiliem a pensar sobre si mesmo (não prescrever ao outro), reconhecendo o protagonismo na produção da saúde. Essa perspectiva dialoga com a redução de danos e riscos, prevista como uma das abordagens expressas na mandala da prevenção1818 Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada. Brasília, DF: O Ministério; [2010].. Sob essa perspectiva, é possível ampliar possibilidades que protejam o sujeito, a partir daquilo que está ao seu alcance, de suas condições e necessidades.

Considerações finais

O estudo constatou que a PEP foi implantada no município, ampliando as possibilidades de estratégias preventivas ao HIV para a população. Apesar disso, há ainda aspectos que constrangem a oferta da PEP, destacando-se controvérsias em torno de sua classificação dentro dos critérios de classificação de risco e situações em que usuários não obtiveram atendimento nos serviços de urgência, recorrendo ao SAE/Coas após encerrado o prazo para prescrição de PEP.

As políticas públicas são atravessadas por um jogo de forças e discursos construídos socialmente. Assim como muitos desses discursos veiculam acolhimento, não julgamento, viés participativo, há também discursos prescritivos: ‘se beber, não transe’, forjando uma dietética sexual e insinuando-se sobre os corpos dos profissionais da saúde e dos usuários dos serviços de saúde, abrindo um campo de experiências possíveis nesse jogo de forças.

Indica-se a necessidade de uma reconfiguração da cultura preventiva, incorporando a noção de prevenção combinada, na qual o preservativo é só mais uma das estratégias de prevenção entre diversas disponíveis, destacando-se a PEP. Defende-se que ela seja ofertada como um modo de ampliar as relações de liberdade, permitindo aos sujeitos maximizar seus graus de autonomia e protagonismo na efetivação do exercício da prevenção.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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