Construção e validação de instrumento para avaliação do cuidado a prisioneiros que vivem com HIV/Aids

Fernando Henrique Apolinario Silvia Justina Papini Wilza Carla Spiri Sobre os autores

RESUMO

Este artigo objetivou construir e validar indicadores para o cuidado à saúde dos privados de liberdade com HIV/Aids, sendo um estudo de desenvolvimento metodológico realizado em duas etapas. Na primeira, houve a construção dos indicadores por meio de revisão da literatura nas bases de dados nacionais e internacionais. Na segunda, realizaram-se a validação do conteúdo e a aparência utilizando o método da técnica Delphi; dez juízes especialistas no cuidado à pessoa que vive com HIV/Aids e atuação prática no ambiente prisional participaram dessa etapa, sendo a maioria enfermeiros atuando em unidades prisionais. Após, foi realizada a análise de consistência interna, desta feita, o instrumento foi aplicado a dez gestores de saúde de unidades prisionais e calculado do coeficiente alfa de Cronbach; a escolha dos gestores versou por meio de sorteio. O instrumento resultou em cinco dimensões: Estrutura Física; Recursos Humanos; Organização do Processo de Trabalho; Prontuários de Saúde; e Adesão ao Tratamento. O instrumento obteve 80% de concordância dos juízes com relação ao conteúdo e a aparência. O alfa de Cronbach geral foi de 0,90. O instrumento foi validado em aparência, conteúdo e consistência para avaliação do cuidado ao privado de liberdade com HIV/Aids.

PALAVRAS-CHAVE
Prisioneiros; Qualidade da assistência à saúde; Avaliação de programas e projetos de saúde; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Estudos de validação

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é a mais bem desenhada e bem-sucedida política pública brasileira das últimas décadas. Afirmação esta que se sustenta com base no compromisso do referido sistema com equidade, ideal de integralidade do cuidado, modelo de gestão participativa e resultados no desenvolvimento sanitário e na inclusão social, historicamente uma trajetória extremamente difícil e complexa. Na busca da consolidação desses preceitos, o SUS tem se defrontado com estruturas institucionais ainda dominadas por paradigmas ultrapassados de compreensão da saúde, do trabalho em saúde e da responsabilidade pública sobre a saúde1.

Dessa forma, na estruturação de políticas públicas de saúde com equidade, isto é, partindo do princípio de que a equidade se materializa onde todas as pessoas tenham oportunidades justas para atingir o seu potencial de saúde completo, depara-se com a população privada de liberdade que vive nos presídios em sistema de confinamento, ou seja, um aglomerado de pessoas que vivem e dividem o mesmo espaço. Ao longo dos anos, a saúde no sistema prisional como política pública tem sido construída, tendo recebido um grande impulso por meio das publicações das portarias interministeriais da pasta da saúde e da justiça, como a Portaria nº 668/2002 e a Portaria nº 1.777/2003, ambas já revogadas, que instituíram o Plano Nacional de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP). Atualmente, está vigente a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, publicada pelo Ministério da Saúde no ano de 2014, que assegura e regulamenta as ações de saúde dessa população no SUS2.

O Brasil concentra uma das maiores populações privadas de liberdade do mundo. São 702.881 privados de liberdade, contabilizando presos em regime fechado, regime semiaberto e presos provisórios. O estado de São Paulo custodia 218.909 pessoas privadas de liberdade, o que corresponde a 34% do total dessa população no Brasil3. Porém, o fato de as pessoas estarem privadas de liberdade não pode ser acompanhado da diminuição, ou pior, da negação dos direitos ao cuidado de saúde.

Estima-se, por meio de dados da Coordenadoria de Saúde da Secretaria da Administração Penitenciária, em relatório publicado em março de 2021, que 1.935 privados de liberdade vivam com HIV/Aids nas unidades prisionais paulistas4.

A reorganização do sistema de saúde promovida pelo Ministério da Saúde favoreceu a implantação de um novo modelo para o cuidado das pessoas que vivem com HIV/Aids no âmbito das Unidades Básicas de Saúde, que são a principal porta de entrada e o elemento central de toda a Rede de Atenção à Saúde. Considerando as profundas desigualdades da sociedade brasileira e a propagação da infecção pelo vírus no País, a infecção pelo HIV se revela como uma epidemia de múltiplas dimensões, atingindo, consequentemente, segmentos mais vulneráveis e discriminados da sociedade, notadamente a população privada de liberdade, que apresenta maior vulnerabilidade de exposição ao HIV5,6,7,8,9,10,11.

As equipes de saúde prisionais seguem as diretrizes técnicas do Ministério da Saúde no atendimento e no cuidado em saúde dentro das unidades prisionais. Para colaborar com esse novo modelo, o Ministério da Saúde participa com instruções por meio de manuais e protocolos clínicos, como o manual para a equipe multiprofissional ‘Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela Atenção Básica’ e o ‘Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos’, normas que devem ser seguidas pelas instituições de saúde de todo o País, sistematizando a assistência e a gestão em saúde12,13.

Esse novo modelo de atenção, em que as ações são estruturadas de acordo com a realidade local, favorece e promove o diagnóstico precoce, o acolhimento, o sigilo e o vínculo terapêutico, contribuindo para promoção de um estilo de vida saudável e colaborando, ainda, para avaliação dos fatores de risco para outros agravos crônico-degenerativos13. Porém, na unidade prisional, esse modelo assume contornos ainda maiores, mediando o resgate da condição de vida digna dessas pessoas, tanto do ponto de vista biológico quanto do social e psicológico, proporcionando conforto e bemestar, minimizando iniciativas que estimulem a discriminação ou o preconceito, respeitando os princípios éticos e legais, com vistas a resgatar o sentido da existência humana dentro da perspectiva do direito constitucional de cada indivíduo, resultando em uma assistência íntegra e com qualidade13.

Do ponto de vista legal, a atenção à saúde da população privada de liberdade está sendo consolidada, porém, o desafio é de operacionalização prática, de forma a abordar o conceito ampliado de saúde e a organização da atenção integral desses sujeitos, em função da diversidade e da complexidade dos problemas de saúde-doença e vulnerabilidade social dessa população14,15. Ainda, existe uma carência de estudos que forneçam subsídios relacionados com o tema em ambientes prisionais; e é extremamente relevante identificar os fatores facilitadores e as barreiras existentes dentro do universo prisional, a fim de formular um planejamento da assistência voltado para a realidade das unidades, bem como após a liberdade do indivíduo. Contudo, as muitas fragilidades verificadas na realização prática da organização do serviço de saúde prisional refletem na assistência.

No tocante à promoção de qualidade de vida aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids, a assistência à saúde é fundamental – e para conhecer essa realidade, é necessário que se realizem estudos que avaliem esses serviços. Para isso, faz-se necessário um instrumento capaz de avaliar a qualidade do serviço de saúde prisional prestado ao privado de liberdade que vive com HIV/Aids, baseado nas características da doença do privado de liberdade, bem como da especificidade do local a ser avaliado. Dessa forma, este trabalho se justifica pelo seu ineditismo na temática.

Considerando o exposto, este estudo teve por objetivo construir e validar indicadores para avaliação do cuidado à saúde das pessoas privadas de liberdade com HIV/Aids no contexto da prisão.

Material e métodos

De acordo com os Padrões de Excelência no Relato de Melhorias de Qualidade (Standards for Quality Improvement Reporting Excellence – SQUIRE), o presente estudo foi desenvolvido em fases sequenciais, de construção e validação de instrumento de avaliação do sistema de saúde prisional no cuidado à saúde dos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids no estado de São Paulo, Brasil. Para tal, foi adotado o referencial teórico proposto por Donabedian, que apresenta três categorias para avaliação: estrutura, processo e resultado. A partir dos trabalhos de Donabedian, as avaliações na área de saúde ganharam direcionamento no conceito de qualidade, imputando novos contornos teórico-metodológicos, tornando sistemática uma série de características relativas aos efeitos do cuidado (eficácia, efetividade, impacto), aos custos (eficiência), à disponibilidade e alocação dos recursos (acessibilidade, equidade) e à percepção dos usuários sobre a assistência recebida16.

O estudo consistiu em duas fases. Para a primeira fase e fundamentação e análise teórica do instrumento, foi realizada revisão da literatura científica a partir da questão norteadora ‘Quais são as estratégias de cuidado ao privado de liberdade com HIV/Aids desenvolvidas no âmbito prisional?’. Os descritores utilizados, de acordo com a base de dados Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), foram: Prisons, Prisoners, HIV Infections, HIV, Acquired Immunodeficiency Syndrome, AIDS-Related Opportunistic Infections, Comprehensive Health Care, Health Services, combinados entre si por operadores booleanos AND e OR. Foram consultadas as bases de dados Web of Science, PubMed, Lilacs, Scopus, Embase e Cinahl. A seleção dos artigos foi realizada a partir da leitura dos resumos, considerando os critérios de inclusão, as publicações disponíveis completas, nos idiomas inglês, português e espanhol, com delimitação do período de publicação de 2000 a 2018. Foram excluídas as publicações que se repetiram nas bases de dados e as que não se relacionavam com o objeto de estudo descrito na questão norteadora. Para complemento dessa fase, buscaram-se informações nos manuais técnicos sobre o processo organizacional de trabalho do serviço de saúde e do serviço de saúde prisional nos protocolos clínicos do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde.

A construção do questionário ocorreu de julho de 2018 a novembro de 2018, sendo que, para tal procedimento e operacionalização, foram considerados: conceito, objetivos, equação, população/amostra, tipo e fonte de informação e cenário. Os indicadores foram construídos com base em: produções científicas nacionais e internacionais sobre a temática; protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos17; manual de cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela Atenção Básica18; manual de estrutura física das Unidades Básicas de Saúde19; caderno de boas práticas para organização de serviços de atenção básica20; recomendações de boas práticas da assistência ambulatorial em Aids no SUS21; Política Nacional de Atenção Integral a Saúde no Sistema Prisional22.

O instrumento foi constituído por cinco dimensões – Estrutura Física do Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional (Efinasp): 9 perguntas compostas por 54 itens denominados padrões; Recursos Humanos do Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional (RHNASP): 26 perguntas compostas por 109 itens denominados padrões; Organização do Processo Assistencial no Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional (Opanasp): 12 perguntas compostas por 128 itens denominados padrões; Prontuários do Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional (Prontnasp): 3 perguntas compostas por 9 itens denominados padrões; Adesão ao Tratamento com Antirretroviral (Atarv): 7 perguntas compostas por 34 itens denominados padrões.

As perguntas do instrumento compostas pelos itens padrão que formaram cada dimensão foram descritas no instrumento de forma interrogativa, e as respostas foram do tipo ‘sim’ ou ‘não’. Outras 17 perguntas com respostas abertas compuseram o instrumento a fim de caracterizar o serviço, sendo essa forma mais fácil para análise e compreensão do estudo.

A segunda fase consistiu na validação do conteúdo, na aparência e na consistência do instrumento, utilizando dois métodos: análise e julgamento dos juízes e análise psicométrica. Para análise dos juízes, foi utilizado como referencial metodológico o método Delphi23, que se propõe a buscar e a conseguir consensos de especialistas sobre determinado tema por meio de validações articuladas em fases ou ciclos, sendo obtidos na coletividade de opiniões de especialistas que podem também ser chamados de peritos ou juízes. Essa técnica pode ser utilizada em estudos qualitativos e quantitativos, constituindo-se como uma estratégia apropriada para estabelecer validade de conteúdo e aparência de instrumentos, sendo muito utilizada nas ciências da saúde23. Para a análise de consistência e confiabilidade do instrumento, foi calculado o coeficiente de alpha de Cronbach, que é um dos mais importantes testes difundidos em pesquisas que envolvem a construção de testes e sua aplicação e que permitem verificar a correlação entre respostas de um questionário24.

A escolha dos juízes ocorreu de forma intencional, de novembro de 2018 a fevereiro de 2019, utilizando dois métodos não probabilísticos – o primeiro a partir da análise de currículos existentes na base de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e o segundo sendo o método bola de neve, em que os especialistas selecionados para compor o estudo indicam novos participantes que possuam características comuns ao interesse da investigação25. A literatura indica um número mínimo de cinco juízes especialistas designados para a etapa de validação26. Para o estudo, foram inicialmente convidados, por e-mail, 20 juízes. Os critérios para o convite foram: especialista de referência no cuidado à pessoa que vive com HIV/Aids e na avaliação de serviço, com publicação relacionada com as temáticas e atuação prática com pessoas privadas de liberdade com HIV/Aids. Para a operacionalização dessa etapa de validação, pelo método Delphi, formulou-se o instrumento em formato eletrônico utilizando o software de código aberto LimeSurvey, em que os próprios participantes acessavam uma página na web para preencher o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao acessar a página na web por qualquer computador ou aparelho eletrônico com acesso à internet, o juiz criava um login e uma senha, sendo necessário para poder acessar o instrumento em qualquer momento conforme a disponibilidade de tempo, permitindo a saída e posterior retorno, bastando somente salvar todos as contribuições, comentários e análises realizadas. Dessa forma, garantiram-se a essa etapa a segurança dos dados e a agilidade para as etapas do método Delphi, bem como a comodidade aos juízes convidados. Ao acessarem o link, os juízes emitiam seu julgamento, avaliando ‘Clareza e Objetividade’, ‘Pertinência’, ‘Aparência’ e ‘Precisão’ do instrumento. As respostas dos juízes foram organizadas em escala tipo likert, com três pontos: ‘Concordo’, ‘Não concordo nem discordo’ e ‘Discordo’; e ao final de cada dimensão, constava uma caixa de texto para a emissão de sugestões e alterações emitidas de forma descritiva pelos juízes. A figura 1 descreve as etapas metodológicas na construção do instrumento.

Figura 1
Etapas metodológicas da construção e validação do instrumento de avaliação

Para análise do alpha de Cronbach, o instrumento foi aplicado aos gestores do Núcleo de Atendimento à Saúde das Unidades Prisionais. As unidades prisionais no estado de São Paulo são organizadas e divididas em cinco coordenadorias; para a escolha das unidades prisionais e seus respectivos gestores do núcleo de saúde participantes deste estudo, foi realizado sorteio eletrônico de duas unidades prisionais de cada coordenadoria, totalizando dez gestores de saúde das unidades prisionais sorteadas. Realizou-se o contato telefônico com os respectivos gestores e feito o convite para participar do estudo; em seguida, o instrumento em formato eletrônico de link foi enviado por e-mail. Os participantes acessavam o link por uma página na web, preenchiam o TCLE e criavam um login e uma senha. Após o TCLE devidamente preenchido, o participante tinha acesso ao questionário, podendo entrar por qualquer computador ou aparelho eletrônico conectado à internet. O acesso poderia ocorrer conforme a disponibilidade de tempo, permitindo a saída e posterior retorno, bastando somente salvar as respostas realizadas. Todos os gestores convidados participaram do estudo.

Para o tratamento dos dados, foi realizada a análise quantitativa por meio do nível de consenso dos peritos ou juízes. O nível de consenso é estabelecido por um índice de validação de conteúdo mínimo, também conhecido como Índice de Consenso (IC) ou de Favorabilidade. Estudos adotam o IC entre 70% e 80%26,27. Adotou-se, neste estudo, o IC maior ou igual a 80%. Para análise do alpha de Cronbach, adotou-se o valor ≥ 0,70, que é considerado aceitável para estudos exploratórios e fornece evidências de uma escala internamente consistente2828 Rubio DM, Berg-Weger M, Tebb SS, et al. Objectifying content validity: Conducting a content validity study in social work research. Soc Work Res. 2003 [acesso em 2022 jan 2]; 27(2):94-104. Disponível em: https://academic.oup.com/swr/article-lookup/doi/10.1093/swr/27.2.94.
https://academic.oup.com/swr/article-loo...
.

O estudo foi desenvolvido após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista – Unesp de Botucatu, mediante o parecer nº 2.937.404, e a aprovação pelo Comitê de Ética da Secretaria da Administração Penitenciaria do estado de São Paulo, por meio do parecer nº 2.995.757. Foram garantidos o anonimato e o esclarecimento de todas as etapas da pesquisa aos juízes. Aos que aceitaram participar, foi solicitada a assinatura do TCLE.

Resultados

Completando a avaliação do instrumento, participaram deste estudo dez juízes. A caracterização dos juízes participantes quanto ao sexo foram: 9 femininos e 1 masculino; em relação a formação foram: 5 enfermeiros, 1 médico, 1 assistente social, 1 psicólogo, 1 farmacêutico e 1 geografo; grau de formação foram: 6 mestres e 3 doutorados; área de atuação foram: 4 na assistência, 4 na gestão e 2 na pesquisa e ensino; tempo de formação e tempo de tempo de atuação a maioria dos juízes apresentaram 10 anos ou mais e a natureza jurídica da instituição foi 100% instituição pública.

O procedimento de validação de conteúdo e aparência possibilitou captar o parecer dos especialistas em relação aos indicadores apresentados em cada dimensão e subsidiou a reformulação dos itens e dos indicadores propostos. A análise quantitativa do IC das dimensões segue descrito nas tabelas 1 e 2.

Tabela 1
Análise de concordância das dimensões do instrumento de avaliação – Núcleo de Saúde Prisional. Botucatu, São Paulo, Brasil, 2022
Tabela 2
Análise de concordância das dimensões do instrumento de avaliação – Núcleo de Saúde Prisional. Botucatu, São Paulo, Brasil, 2022

Na análise da primeira dimensão, Efinasp, foi verificada a existência de concordância entre os juízes, representada pelo valor do IC de 90%. Entretanto, houve proposta feita pelos especialistas, em relação a Clareza e Objetividade, Aparência, Pertinência e Precisão do instrumento. Foi apontada a necessidade de reformulação em algumas perguntas, e as sugestões foram acatadas. A segunda dimensão, RHNASP, obteve o IC entre os juízes de 90%. Houve discordância de um juiz nos itens Clareza e Objetividade, Pertinência, Aparência e Precisão. Na análise da dimensão Opanasp, o IC foi de 80% nos itens Clareza e Objetividade, Pertinência e Aparência. No item Precisão, o IC foi de 100%, destacando a discordância de dois juízes para os itens Clareza e Objetividade, e Pertinência. Todas as análises estão demonstradas no quadro 1.

Quadro 1
Estrutura física do Núcleo, Recursos Humanos e Organização do processo assistencial no Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional. Botucatu, São Paulo, Brasil, 2022

A quarta dimensão, Prontnasp, obteve a concordância entre os juízes de 90% nos itens Clareza e Objetividade, e Pertinência. Nos itens Aparência e Precisão, atingiu os 100%. Finalmente, na quinta dimensão, Atarv no Núcleo de Atendimento à Saúde Prisional, nos itens Clareza e Objetividade, o IC foi de 80%; o item Aparência alcançou 90%; e Pertinência, 100%.

Com relação à análise de alpha de Cronbach, o instrumento foi aplicado a dez gestores do Núcleo de Atendimento à Saúde das unidades prisionais do estado de São Paulo sorteadas. Para avaliar a consistência e a coerência do questionário, os resultados de alpha são apresentados na tabela 3.

Tabela 3
Valores de alfa de Cronbach para o questionário proposto no geral e por domínios. Botucatu, Brasil, 2022

Os resultados da tabela 3 apresentam a fidedignidade dos construtos, que foram testados por meio do cálculo de alpha de Cronbach. Considerando-se todos os itens das perguntas, retirando aqueles com a mesma resposta, ou seja, itens redundantes, obteve-se um valor alto de Cronbach. Tendo em conta cada domínio, nota-se que, no domínio Estrutura Física e Organização do Processo de Trabalho, obtiveram-se valores altos ou quase perfeitos. Contudo, RHNASP não obteve valores de alpha de Cronbach que pudessem avaliar a consistência e coerência. Para tanto, nos domínios Prontnasp e Atarv, os valores foram baixos em relação ao valor aceitável para este estudo.

Discussão

Após a análise dos dados, verificou-se que o instrumento construído foi considerado válido para utilização no processo de avaliação do serviço de saúde no cuidado aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids. O processo de avaliação da atenção à saúde pauta-se no compromisso das instituições e dos profissionais de atuarem com base nas diretrizes das políticas públicas de saúde preconizadas pelo Ministério da Saúde, respeitando as particularidades locais do cenário prisional e exercendo ações que priorizem a promoção da saúde e a prevenção de doenças, bem como ofertando um atendimento eficaz e de qualidade. Assim, a validação é uma etapa importante e essencial no desenvolvimento de um instrumento destinado à avaliação, porquanto permite verificar o quanto os itens incluídos correspondem à construção teórica que fundamenta o instrumento, a fim de tornar possível avaliar o fenômeno de interesse29.

A utilização de indicadores relativos à assistência à saúde tem sido considerada imprescindível para avaliação de serviços de saúde. Para tanto, utiliza-se desse princípio para avaliação do serviço de saúde prisional aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids, de modo que a avaliação e a análise constantes desses indicadores resultem em informações utilizadas para garantir a priorização da promoção e da prevenção de doenças e agravos. Os itens incluídos no instrumento são representativos e relevantes para abranger o fenômeno e o cenário de saúde no sistema prisional.

Os juízes que compuseram este estudo apresentaram grande conhecimento e expertise sobre o assunto, relativos à prática, gestão, ensino e pesquisa, contribuindo com sugestões de alterações, tornando o instrumento mais sensível e compreensível ao fenômeno e ao cenário a que se propõe.

A construção dos indicadores do instrumento de avaliação da assistência ao privado de liberdade que vive com HIV/Aids, em suas dimensões Efinasp e RHNASP, tem como propósito fazer a avaliação das condições e características da estrutura predial, equipamentos, insumos e recursos humanos. A indisponibilidade de insumos e equipamentos, a falta de recursos humanos e de capacitações para a oferta de atenção à saúde do privado de liberdade resultam em um comprometimento da qualidade da assistência. Uma estrutura física comprometida ou inadequada pode inviabilizar a efetivação da integralidade, princípio este assegurado na criação do SUS. Esse princípio implica o desenvolvimento de ações e serviços voltados para a garantia da promoção, proteção e reabilitação, e é compreensível que a estrutura física interfira de forma direta na continuidade do cuidado à saúde.

A organização do trabalho em saúde na atenção primária é essencial para as equipes de saúde de modo geral, sendo a ordenadora do cuidado e integração aos demais níveis de atendimento. Assim, a dimensão Opanasp foi constituída na perspectiva de avaliar a integração da atenção entre o Núcleo de Atendimento Prisional e as Redes de Assistências, bem como avaliar o processo de trabalho em relação a ações de promoção e prevenção de saúde e às políticas públicas do cuidado à pessoa com HIV/Aids, com o objetivo de melhoria da assistência. Um processo de trabalho mal estruturado pode resultar em baixa resolubilidade na atenção primária29,30.

Os registros das informações relativas à assistência no prontuário do paciente consolidam, de forma escrita, as informações necessárias à continuidade do cuidado, de forma que expressam condições observadas e/ou mensuradas do processo assistencial capazes de fornecer dados para o seguimento da assistência, para ensino, pesquisa, auditorias e planejamento dos serviços de saúde, além de constituírem instrumento de defesa legal. Contribuem, ainda, para detecção de novos problemas, uma vez que a avaliação da qualidade da assistência das informações registradas no prontuário de saúde do privado de liberdade possibilita a comparação das respostas do usuário aos cuidados prestados pela equipe de saúde31.

O acesso ao tratamento com antirretroviral, garantido pelo SUS, possibilitou a redução da mortalidade, a diminuição das internações hospitalares e a redução da incidência de infecções oportunistas e da transmissão vertical do HIV, acarretando o aumento da qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/Aids. Entretanto, é possível que ocorra uma importante diminuição desses indicadores à medida que a pessoa que vive com HIV abandona o tratamento medicamentoso ou o faz de modo incorreto, tornando-a mais vulnerável às infecções oportunistas. Assim, a adesão ao tratamento acaba assumindo contornos sociais e políticos muito evidentes. Cumpre salientar que diversos fatores podem influenciar, de modo favorável ou desfavorável, a Atarv. Dessa forma, é importante combinar métodos diferentes para alcançar a adesão e seu monitoramento satisfatório. Portanto, a dimensão Avaliação da Atarv objetivou analisar a adesão ao tratamento dos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids, bem como os métodos utilizados para o respectivo monitoramento32,33.

A análise de alpha de Cronbach possibilitou verificar a consistência e a confiabilidade do instrumento, uma vez que esse método propõe a análise do quão bem um conjunto de itens mede unidimensionalmente o construto. Foram verificados índices altos para o alpha quando analisados os itens que compõem o instrumento, de maneira geral e/ou retirando os itens com a mesma resposta. Na análise realizada por domínios, isto é, em relação a Estrutura Física e Organização do Processo de Trabalho, no que tange à coerência interna do instrumento, e em relação aos domínios Prontnasp e Atarv, os valores foram abaixo do valor mínimo para este estudo, porém, os valores obtidos por alfa são substanciais para validação de confiabilidade – esse valor pode variar sem que isso altere a confiabilidade34. Entretanto, a análise do domínio RHNASP não obteve valores de alpha de Cronbach que pudessem avaliar a consistência e coerência. Acredita-se que esse resultado se deu por limitação do método estatístico, quando aplicado a um número pequeno de respondentes, e, também, pela retirada de perguntas com a mesma resposta de domínios diferentes. Além disso, o ineditismo do estudo dificulta a comparação dos resultados com outros estudos na mesma temática.

Assim, mesmo com os valores do coeficiente alfa de Cronbach abaixo do desejado, é importante compreender que é necessária a aplicação do instrumento de forma ampliada para que outras análises de consistência interna possam ser realizadas e, assim, propiciar uma constante avaliação do instrumento34.

Limitações do estudo

A limitação do estudo decorre da escassez de referências teóricas pelo pequeno número de publicações na área de saúde e cuidados a indivíduos privados de liberdade. Outro aspecto identificado foram as dificuldades na etapa de validação relativa à técnica Delphi, que se configuram em uma ferramenta de coleta de dados que não permite o contato presencial com os especialistas, pois requer dedicação e tempo para avaliar os indicadores. O estudo também apresenta limitações em relação à análise estatística de alpha de Cronbach e sua aplicação a um número pequeno de respondentes do instrumento.

Contribuições para a área de políticas públicas

No sistema penitenciário brasileiro, em decorrência da superpopulação carcerária, péssimas condições físicas, escassez de recursos humanos e incapacidade de implementação de políticas públicas de qualidade, os profissionais de saúde das unidades prisionais constituem um eixo de suma importância para a garantia de acesso ao direito constitucional ao cuidado em saúde. Dessa forma, o estudo apresenta contribuições para as áreas da enfermagem, saúde e políticas públicas, uma vez que o instrumento construído e validado pode auxiliar como uma ferramenta capaz de direcionar o pensar e o fazer acerca dos cuidados em saúde ao privado de liberdade que vive com HIV/Aids, resultando em qualidade na assistência, contribuindo para fenômenos sociais de reintegração social por meio do custeamento do direito constitucional à saúde e da manutenção da dignidade humana dentro do cárcere, além de colaborar no que se refere à realização de pesquisas futuras e à criação de protocolos sobre a temática.

Considerações finais

A metodologia proporcionada pela técnica Delphi, aplicada no processo de validação do instrumento, foi relevante para a construção dos indicadores especificamente no cenário prisional.

A contribuição e as experiências dos juízes, a partir do seu respectivo campo de atuação assistencial, gestão, pesquisa e docência, tornaram o processo ainda mais completo e assertivo, uma vez que este reuniu consenso teórico-prático em relação ao universo estudado. A análise de alpha de Cronbach assegurou a confiabilidade do instrumento. Os dois métodos associados proporcionaram a construção e a validação do instrumento, composto por cinco dimensões, com a finalidade de avaliar o serviço de saúde prisional no cuidado em saúde aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids, contudo, é importante compreender que é necessária a aplicação de forma ampliada para que outras análises de consistência interna possam ser realizadas para constante atualização e aperfeiçoamento do instrumento.

Dessa forma, o instrumento poderá ser utilizado para avaliar o cuidado prestado aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids nas unidades prisionais, contribuindo para a sua melhoria, ao mesmo tempo que funcionará como uma forma de compreender a qualidade do cuidado a essa população e subsidiar ações de políticas públicas de saúde para o sistema prisional.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br