RESUMO
A interação entre Atenção Primária à Saúde (APS) e especializada é tão relevante quanto crítica. O cuidado às Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), que era realizado em ambulatórios especializados, recentemente, passou a se dar também pela APS, considerando seu potencial de ampliar o acesso. A partir de estudo de caso realizado em uma região municipal do Rio de Janeiro entre 2018 e 2019, discutiu-se tal problemática, destacando como resultados: desconhecimento/hesitação dos profissionais da atenção especializada sobre a atenção básica quanto à sua capacidade de cuidar das PVHA; priorização de investimento material, simbólico e político na atenção básica; quase inexistência de canais de diálogo entre serviços; entre outros. Na experiência estudada, a interface entre APS e atenção especializada tem se dado mais em uma lógica binária e de isolamento que em uma perspectiva de interação e gestão (compartilhada) do cuidado, que seria esperada em uma conformação de rede de atenção. Apesar dos potenciais ganhos de acesso e ‘racionalização’ do uso do especialista (infectologista), tais resultados indicam a necessidade de fortalecer processos e mecanismos de comunicação e interação entre profissionais de diferentes tipos de serviços, além de dispositivos de coordenação dos cuidados, como apoio matricial e prontuário eletrônico integrado em rede.
PALAVRAS-CHAVE
Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Colaboração intersetorial; Atenção secundária à saúde; Atenção Primária à Saúde; Assistência integral à saúde
ABSTRACT
The interaction between Primary Health Care (PHC) and specialized care is as relevant as it is critical. The care for people living with HIV/AIDS (PLWHA), carried out in specialized outpatient clinics, was implemented in PHC for its potential to expand access. Based on a case study conducted in a municipal region of Rio de Janeiro between 2018 and 2019, we examine the issue and highlight the following results: lack of knowledge and/or doubts of specialty care professionals about the effective delivery of services to PLWHA in primary care; prioritization of material, symbolic, and political investment in primary care; limited channels for dialogue between services, among others. In this study, we found the interface between PHC and specialized care to emphasize a binary logic that favors isolation instead of interaction and shared management principles expected in an integrated healthcare system. Despite the potential gains in access and ‘rationalization’ justifying the use of the specialist (infectious disease specialist), these results indicate the need to strengthen processes of communication and interaction between professionals from different types of services, in addition to strategies to reinforce the coordination of care, such as matrix support and integrated electronic medical records.
KEYWORDS
Acquired Immunodeficiency Syndrome; Intersectoral collaboration; Secondary care; Primary Health Care; Comprehensive health care
Introdução
As Redes de Atenção à Saúde (RAS) têm sido propostas internacionalmente como estratégia de organização de sistemas de saúde, visando à produção de cuidados integrados e – simultaneamente – certa racionalização de suas ações11 Kuschnir R, Chorny AH. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc. Saúde Colet. 2010; 15(5):2307-2316.. A RAS tem sido formulada como estratégia privilegiada de busca pela integralidade22 Miranda Jr HM. Redes de Atenção à Saúde: Rumo à integralidade. Divulg. saúde debate. 2014 [acesso em 2022 fev 22]; (22):15-37. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-52.pdf.
http://cebes.org.br/site/wp-content/uplo... , de modo articulado com proposições de modelos de atenção à saúde prevendo um papel estratégico de coordenação do cuidado para a Atenção Primária à Saúde (APS)33 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2010 [acesso em 2022 fev 22]. 15(5):2297-2305. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5a05.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5... . No Brasil, as duas últimas décadas têm sido marcadas também pela ênfase nas linhas de cuidado e redes temáticas como traduções da noção de RAS aplicadas a determinados públicos, problemas de saúde e campos assistenciais22 Miranda Jr HM. Redes de Atenção à Saúde: Rumo à integralidade. Divulg. saúde debate. 2014 [acesso em 2022 fev 22]; (22):15-37. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-52.pdf.
http://cebes.org.br/site/wp-content/uplo... .
O componente de atenção especializada das RAS padece de diferentes problemas, como, por exemplo, o acesso, sua lógica de financiamento e organização e a heterogeneidade de serviços onde é ofertada. Diferentes autores vêm indicando a necessidade de sua revisão, tanto na formulação de políticas quanto nas experiências concretas, tendo como um dos pontos de preocupação cardeal sua interface com a APS44 Tesser CD, Poli Neto P. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2022 fev 22]; 22(3):941-951. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.18842016.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017223... ,55 Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Lobato LVC, Noronha JC, et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012 p. 547-576.,66 Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(2):399-407.. Nessa relação, manifestam-se problemas já históricos das RAS, como descontinuidades e falta de integração dos cuidados77 Hartz ZMA, Contandriopoulos A. Integralidade da atenção e integração de serviços de saúde: desafios para avaliar a implantação de um “sistema sem muros”. Cad. Saúde Pública. 2004; 20(2):S331-S336..
A atenção em HIV/Aids no Brasil, por sua vez, deu-se, desde a década de 1980, com centralidade de Serviços de Atenção Especializada (SAE), ofertando diferentes recursos de cuidado e com reconhecida contribuição nas condições de vida das Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA)88 Melchior R, Nemes MIB, Basso CR, et al. Avaliação da estrutura organizacional da assistência ambulatorial em HIV/Aids no Brasil. Rev de Saúde Pública. 2006; 40(1):143-51.. No entanto, diante da capilarização da APS no Brasil, da chamada cronificação do HIV, dos gargalos para o atendimento das PVHA, da incorporação de inovações no âmbito da prevenção [combinada], do uso descentralizado de testes rápidos para a APS e do tratamento (terapia combinada e universalização da recomendação do antirretroviral), esse cenário se alterou. Gradativamente, surgiram recomendações nacionais e experiências locais de acompanhamento de PVHA na APS99 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Caderno de Boas Práticas em HIV/AIDS na Atenção Básica. Brasília: DF; Ministério da Saúde; 2014.,1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. 5 passos para a implementação do Manejo da Infecção pelo HIV na Atenção Básica. Brasília: DF; Ministério da Saúde; 2014., ensejando tanto apostas referentes às suas potencialidades – como a ampliação do acesso – quanto aquelas que apontam desafios, como a garantia de sigilo e de retaguarda especializada, entre outros1111 Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam de Salud Pública 2018; (42):151..
Na cidade do Rio de Janeiro, desde 2013, ocorreu um processo de descentralização do acompanhamento das PVHA na APS, a partir de uma estratificação de riscos, com parte importante da assistência ficando sob sua responsabilidade, ainda que gestantes, pessoas com coinfecções ou aquelas que apresentarem contraindicação para as drogas de primeira linha de tratamento devam ser encaminhadas aos SAE, processo realizado por meio do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg)1212 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Programa das Doenças Infecciosas Sexualmente Transmissíveis. Protocolo para introdução do atendimento ao HIV/Aids na Rede Primária de Saúde do Município do Rio de Janeiro; Rio de Janeiro; 2013.. Atualmente, o usuário pode optar por realizar o acompanhamento no SAE ou em qualquer unidade de APS da cidade1313 Rio de Janeiro. Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Saúde, Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde. Nota Técnica 04. Acesso aos Serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) por Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA). Ofício Circular S/SUBPAV/SAP 09/2019..
Partindo dessa recente experiência da descentralização do cuidado em HIV/Aids na cidade do Rio de Janeiro, o artigo propõe compreender as interfaces entre a APS e o SAE jogando luz aos desafios para o cuidado compartilhado.
Metodologia
Os resultados deste artigo foram produzidos no âmbito da pesquisa ‘O cuidado às pessoas com HIV/Aids na rede de atenção à saúde’, com coleta de dados realizada no período de abril de 2018 a outubro de 2019, no contexto da rede municipal de saúde do Rio de Janeiro. O método utilizado foi o estudo de caso1414 Becker HS. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1997. da rede de cuidado em HIV/Aids entre a atenção especializada e a APS, cujo cenário foi a Área Programática (AP) 1.0, localizada na região central da cidade com aproximadamente 300 mil habitantes distribuídos por 16 bairros. Essa área possui importante aparato público de saúde instalado no município sob gestão das três esferas da federação. Na temática do HIV, destacam-se os serviços sob gestão municipal, a saber: 17 unidades básicas, algumas com infectologistas; 2 equipes de consultório na rua; 2 equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ); e 1 Policlínica Especializada1515 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Coordenadoria da Área Programática 1.0, 2017. Relatório de Gestão A Rede de Atenção Psicossocial da AP 1.0. Rio de Janeiro: SMS RJ; 2017..
O universo da investigação foi delimitado a um dos SAE e a duas unidades da APS nas quais havia, à época, 13 das 75 Equipes de Saúde da Família (EqSF). A área selecionada possui o maior número de infectologistas da cidade no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram realizadas: observação participante nas unidades, entrevistas formais e informais com profissionais de saúde e gestores dos serviços, bem como grupo focal que reuniu Médicos de Família e Comunidade (MFC) e infectologistas. A pesquisa produziu cerca de 80 entrevistas, entre as individuais e as grupais, que foram gravadas e transcritas. A análise foi pautada por referenciais teóricos sobre redes, gestão do cuidado e integralidade. Os dados produzidos foram organizados segundo as seguintes dimensões: a) os significados dos pontos da RAS sob diferentes perspectivas; e b) a (contra) referência como quimera: vazio de interação no cuidado às PVHA.
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da instituição proponente e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro sob pareceres de número 2.309.404 e 2.559.884 respectivamente.
Resultados e discussão
Para compreender o modelo atual de atenção em HIV/Aids no município do Rio de Janeiro e os imbricamentos da área especializada com a APS, vale contextualizar que o cuidado às PVHA foi centralizado inicialmente nos centros de referência dos hospitais universitários, cujo principal desafio era a ampliação da oferta de internação aos pacientes. A especialidade de infectologia, tradicional nessas unidades de saúde, assumiu predominantemente a clínica desses usuários. Nos anos de 1990, os antigos Centros Municipais de Saúde (CMS) passaram a ofertar consultas às PVHA em um modelo de ação programática com médicos infectologistas nos SAE. Na cidade do Rio de Janeiro, como em outras regiões do estado, a rede de saúde sempre foi bastante heterogênea, os SAE tiveram capacidade de resolutividade distintas e com diversas modelagens e as especialidades médicas contavam, em alguns territórios, com infectologistas para provimento desse cuidado.
Na segunda década do ano 2000, a APS, orientada pela proposta da Estratégia Saúde da Família (ESF), apresentou-se como lócus de referência para implantação desse processo a partir da capilaridade de suas ações e proximidade com os territórios. A rede se reorganizou tendo a APS como sua coordenadora e como a porta de entrada do cuidado à saúde das PVHA. Cada Coordenação de Área Programática possui como referência um centro especializado em HIV/Aids1616 Uesono J. Tempo de início de tratamento de pessoas vivendo com HIV por nível de complexidade no município do Rio de Janeiro, 2014-2016. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2018. 67 p., e as unidades de APS estão preparadas para o diagnóstico e o monitoramento dos casos assintomáticos, com a dispensação de medicamentos e a coleta de exames específicos para o HIV – notadamente a carga viral e a contagem de CD4 – podendo ser feitos nas próprias unidades de APS ou em serviços próximos1717 Silva G. Situação da linha de cuidado à pessoa vivendo com HIV/AIDS na cidade do Rio de Janeiro. In: Maksud I, Melo EA, Rocha F, et al., organizadores. Anais do Seminário Coro de Vozes numa Teia de Significados sobre o cuidado às pessoas vivendo com HIV-Aids na rede de atenção à saúde. Rio de Janeiro; 2020 fev 11-12; Rio de Janeiro: Fiocruz; UFF; FCRB; 2020. p. 13-9..
Com a priorização da APS na década anterior, as unidades especializadas, que já vinham de experiências de estagnação e esvaziamento histórico1818 Campos CEA, Cohn A, Brandão AL. Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. Cem anos de inovações e conquistas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1351-1364., mantiveram seu ciclo de baixos investimentos. Durante o trabalho de campo, observou-se que, na contramão do movimento de expansão da APS, no âmbito do SAE, os serviços atravessaram processo de desvalorização, como infraestrutura precária e diminuição de profissionais.
Conforme dados da gerência do programa municipal de HIV/Aids do Rio de Janeiro, 50% das PVHA do município eram acompanhadas na APS. Com efeito, mesmo diante da diminuição dos especialistas do SAE, o tempo de espera para a infectologia vem sendo reduzido; e, com frequência, os profissionais da APS relatam a facilidade para a realização do agendamento para infectologia, por vezes, para a mesma semana. A demora para conseguir uma marcação de consulta com infectologista que imperava antes da descentralização – e que foi apresentada pela gestão municipal como uma das principais razões que a ensejaram – parece ter sido superada.
No entanto, se o acesso ao infectologista parece ser bastante trivial quando se faz necessário, o acesso a algumas especialidades e a exames complementares, como, por exemplo, oftalmologia e endoscopia digestiva, constituem gargalos importantes na rede de saúde. Isso vale também para as internações, como destaca uma das MFC:
falta muito na questão hospitalar, sempre que eu tenho um paciente que está com debilidade [...] – já tá fazendo não só HIV, mas Aids mesmo – e eu preciso de uma internação, eu tenho dificuldade.
O arranjo institucional para garantir esses encaminhamentos passa pela regulação do acesso em sistema informatizado, operada a partir da APS. Em termos formais, na atenção especializada, pode-se apenas solicitar consultas de retornos.
Os significados da RAS sob diferentes perspectivas
A concepção de rede tem sido abordada por autores a partir de diferentes sentidos. Cecílio1919 Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad. Saúde Pública: Rio de Janeiro. 1997; 13(3):469-478. propõe que a imagem de uma pirâmide para representar os níveis de atenção da rede de saúde seja substituída pela imagem de um círculo, que comporte múltiplas portas de entrada e centre sua governança nas necessidades dos usuários. Mendes33 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2010 [acesso em 2022 fev 22]. 15(5):2297-2305. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5a05.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5... aponta para uma noção de redes como sistemas menos centralizados, tendo na APS o centro de comunicação privilegiado e a ampla participação social. Merhy2020 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, et al. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg. saúde debate. 2014; (52):153-164. oferta a noção de ‘redes vivas’, tendo como centro a perspectiva dos usuários nos seus movimentos de produção de vida e colocando em xeque qualquer lógica de redes pensada em perspectivas racionalizadoras. Em maior ou menor grau, tais ideias ainda não se refletem nos olhares e nas experiências dos trabalhadores entrevistados, evidenciando barreiras significativas à interface entre os serviços de APS e SAE no que tange ao cuidado das PVHA.
Na atenção especializada, observou-se, inicialmente, uma certa nostalgia sobre o passado desse serviço em termos do protagonismo desempenhado no início da epidemia de HIV. Sobre o presente, há um isolamento em relação aos outros serviços de saúde e um descontentamento elaborado em termos de certo abandono da gestão municipal nos últimos anos e, também, da perda de autonomia – inclusive sobre a própria agenda e sobre acesso a recursos assistenciais – e pouca valorização, quando comparado à APS, que agora, similarmente, passou a ‘ficar com os pacientes’ que antes seriam apenas da atenção especializada. Tendem a duvidar, da mesma forma, da capacidade da APS, vista como ‘o postinho’ que lida com distintos públicos e problemas de saúde e, agora, também com HIV.
A necessidade dos infectologistas de orientar os usuários a buscarem a APS para ter acesso a exames e aos demais especialistas solicitados é vista como burocratização e certo desrespeito ao seu saber. Uma das entrevistadas no SAE formula a ideia de que o cuidado no serviço especializado é mais integral do que na APS:
[...] sei lá, acho que a gente, aqui [SAE], tem uma compreensão maior do que é saúde integral. Penso isso. E, lá [na APS], eu acho que fica uma coisa bem mais fragmentada.
Esse olhar encontra eco em algumas análises que ressaltam que a inflexão do modelo de atenção às PVHA para a APS pode ter limites importantes no cuidado integral com dificuldades na articulação técnica do trabalho, diferentemente do SAE que foi concebido para atuar na lógica da clínica ampliada em termos do HIV2121 Gianna MC, Alencar R. Linhas de Cuidado e desafios à assistência de pessoas vivendo com HIV/Aids. In: Leite V, Terto Junior V, Parker R, organizadores. Respostas à Aids no Brasil: Aprimorando o Debate III. Rio de Janeiro: ABIA; 2020. p. 158-165.,2222 Ferraz DAS, Nemes MIB. Avaliação da implantação de atividades de prevenção das DST/AIDS na atenção básica: um estudo de caso na Região Metropolitana de São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25 (2):S240-S250..
Apesar do processo de precarização do SAE, a equipe multiprofissional permanece no serviço, com ofertas de cuidado além das consultas médicas, porém com diminuição da integração entre os profissionais. Outro dado é que a maioria dos profissionais da atenção especializada entrevistados não conhecia pessoalmente as unidades de APS da região.
Por sua vez, a fala de uma profissional na função de gestão expressa o poder dos infectologistas: “o HIV [diferentemente de outras doenças]... é um agravo [deles]”. Não menos importante foi a menção que ela faz a uma rede específica de infectologistas, atuando em diferentes serviços e com forte articulação entre si:
...] eles são quase que sempre os mesmos, são muitos, que você sempre ouve falar... são pessoas que tem o saber consistente com relação ao HIV, que acompanharam a epidemia desde o seu começo.
Historicamente, os infectologistas contribuíram para o direito ao acesso à saúde com padrão de qualidade como um bem inalienável das PVHA e com o reconhecimento do serviço simbolizado pela marca de respeito, escuta e experiência para com as populações vulnerabilizadas que o acessam mais. Nesse processo, legitimaram-se e tentam assegurar para si o domínio do cuidado no campo ao HIV/Aids.
Cabe, no entanto, observar a ausência de arranjos institucionais que pudessem articular os pontos de atenção2323 Mendes EV. A construção social da atenção primária à saúde. Brasília, DF: CONASS; 2015. na busca de um cuidado integral às PVHA. Além disso, como já observado, o contato entre os SAE e a APS fica mais concentrado no processo de regulação, o que faz com que a APS – responsável por inserir solicitações no Sisreg – acabe sendo vista como mera transcritora de exames, ainda que fluxos informais para acesso a exame ou especialista por fora do sistema, às vezes facilitados por relações de proximidade, tenham sido mencionados pelos interlocutores.
Na APS, por sua vez, especialmente na unidade com mais especialistas em MFC e onde há uma residência médica nessa área, observou-se que, para a maioria dos MFC, ‘dar conta’ dos usuários com HIV é quase uma questão de honra, pois a Medicina de Família de Comunidade praticada na APS é considerada por eles como tendo alta capacidade resolutiva e abordagem integral, centrada na pessoa. Em alguns casos, ponderaram que seria uma quebra de vínculo encaminhar para o especialista. Até mesmo situações com indicação clara para encaminhamento continuaram sob cuidados do MFC, seja pela fragmentação do manejo na atenção especializada, seja por considerar que o encaminhamento para outro serviço comprometeria a continuidade do cuidado: “a gente segurou na mão na hora que estava chorando, a gente vai mandar pro especialista esse cara? ah, nossa. Eu sou meio possessivo com os meus pacientes”, como expressa um MFC.
Alguns MFC se referem aos especialistas, incluindo os infectologistas, como ‘especialistas focais’, identificados como
[...] um profissional, que eu considero super capacitado, tinha resposta técnicas pra todas as minhas dúvidas técnicas, que é o que a gente espera de um especialista focal.
Essa denominação é usada para diferenciá-los de si, os ‘especialistas em gente’, praticando uma medicina integral e a quem cabe, por isso, a coordenação do cuidado2424 Bonet OA. Os médicos da pessoa: Um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2014.. Se tal expressão pode, é verdade, ter uma conotação pejorativa que desqualifica, a priori, os especialistas e ilustra um entendimento instrumental da relação, é preciso reconhecer também que isso se dá na esteira de uma busca dos MFC por legitimação e reconhecimento perante uma concepção dominante entre os demais especialistas de que estes seriam ‘apenas’ médicos generalistas, os ‘médicos do postinho’.
Por outro lado, um dos MFC enfrenta a dicotomia e afirma que: “a gente usa o termo especialista focal, mas a gente [médicos] é especialista em construir o vínculo, [mas] não quer dizer que todo mundo vai conseguir”. Assim como os MFC por vezes observam os infectologistas com certa suspeição, o trabalho dos médicos de família parece ser desconhecido por alguns especialistas que atuam na atenção especializada:
Eu não fui formada na época de clínica da família, eu não tenho muita noção da abrangência de vocês. Em vez do que você falou de ficar encaminhando para cardiologista, vou encaminhar direto para a clínica da família.
É interessante notar que atores de ambos os tipos de serviços dizem fazer uma atenção mais integral do que o outro. Sobre isso, em que pese haver diferenças de ofertas e de práticas de cuidado entre esses serviços, nenhum deles (primário e especializado) é capaz de garantir atenção integral sozinho; não se a integralidade for pensada a partir das diferentes necessidades de saúde, como ter boas condições de vida, acesso a tecnologias, vínculo com profissionais, autonomia e direito à diferença2525 Cecílio LC, Merhy EE. A integralidade do cuidado como eixo da gestão hospitalar. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Instituto de Medicina Social; Abrasco; 2007. p. 199-212. ou, ainda, a partir de dimensões como práticas profissionais, organização dos serviços e políticas públicas2626 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Instituto de Medicina Social; ABRASCO; 2006, p. 43-68.; ao passo que ambos – SAE e APS – podem ser fundamentais para construir uma atenção o mais abrangente possível se articulados em rede2727 Kalichman A, Ayres JR. Integralidade e tecnologias de atenção à saúde: uma narrativa sobre contribuições conceituais à construção do princípio da integralidade no SUS. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8)..
De fato, pareceu que o SAE, pela história e experiência, tem, além da competência clínica especializada, mais ofertas grupais relativas ao viver com HIV e maior capacidade de ‘manejo’ com a diversidade sexual enquanto a APS parece ter na facilidade de acesso (pela proximidade geográfica) e na maior compreensão minuciosa das condições de vida das pessoas (pela inserção territorial) uma grande potência. A própria noção de linha de cuidado tem sido pensada justamente como caminho percorrido pelo usuário para a satisfação de necessidades, ‘consumindo’ diferentes tipos de ofertas (da prevenção à reabilitação) e transversalizando diferentes serviços se necessário2828 Franco TB, Magalhães JHM. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. In: Merhy EE, Magalhães JHM, Romoli R, et al., organizadores. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 125-133.,2929 Freire RC. As ações programáticas no Projeto Saúde Todo Dia: uma das tecnologias para a organização do cuidado. [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2005. 165 p..
Assim, parece haver, na experiência estudada, importante fragilidade nesse sentido, predominando uma lógica dicotômica, concorrencial e distanciada ao invés de uma lógica colaborativa e de aproximação3030 D’amour D, Oandansan I. Interprofessionality as the field of interprofessional practice and interprofessional education: an emerging concept. J Interprof Care. 2005; 19(supl1):8-20.. A mudança desse quadro, se for desejada, parece requerer atenção aos seus condicionantes, bem como iniciativas capazes de produzir conhecimento mútuo, alteridade e novos pactos, tanto entre trabalhadores quanto entre gestores dos serviços, operando em dimensões subjetivas, simbólicas, operacionais e nas relações de poder e saber. A colocação do usuário ‘no centro’ pode ser, nesse sentido, uma boa direção.
A (contra)referência como quimera: vazio de interação no cuidado às PVHA
A integração e a continuidade dos cuidados entre serviços e profissionais de saúde têm sido pensadas na literatura em diferentes âmbitos, como, por exemplo, o trabalho interprofissional3131 Freire Filho Jr, Silva CBG, Costa MV, et al. Educação Interprofissional nas políticas de reorientação da formação profissional em saúde no Brasil. Saúde debate. 2019; 43(esp1):86-96., o compartilhamento de informações clínicas por meio de instrumentos eletrônicos3232 Organização Pan-Americana da Saúde. Organização Mundial da Saúde. O Prontuário Eletrônico do paciente na assistência, informação e conhecimento médico. Washington, DC: OPAS; OMS; 2003., a protocolização de condutas e fluxos3333 Bernardino Junior SV, Medeiros CRG, Souza CF, et al. Processos de encaminhamento a serviços especializados em cardiologia e endocrinologia pela Atenção Primária à Saúde. Saúde debate. 2020; 44(126):694-707., as práticas matriciais de interação entre responsáveis pelo cuidado direto e especialistas ou consultores66 Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(2):399-407. e as práticas colaborativas3434 Furtado JP. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface - Comunic. Saúde, Educ. 2007; 11(22):239-5.. Ao explorar tais tópicos no curso da pesquisa, constatou-se que, na esteira da descentralização, cada um deles é atravessado por tensões, ainda que de modo heterogêneo.
Do ponto de vista da composição do trabalho em equipe, as duas unidades de APS estudadas atuavam com médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Nenhuma das duas, todavia, contava com suporte de Nasf, embora ambas tenham desenvolvido estratégias para lidar com isso. Em uma delas, que funciona como APS tradicional, a gerente organizou com os especialistas do serviço o que chamou de um ‘Nasf improvisado’ para dar retaguarda às EqSF; a outra, que se configura como saúde da família modelo A – apenas com a equipe da ESF –, funcionava como campo de estágio da graduação e da residência em MFC por meio de parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que garantia matriciamento em algumas especialidades oferecidas pela universidade.
Em ambas, perceberam-se também descontentamentos de profissionais de diferentes categorias com os raros casos de especialistas – infectologistas ou não – que devolvem a chamada guia de ‘referência e contrarreferência’ respondida para a APS. É frequente, como afirmou um entrevistado, o envio de
carta pedindo algumas considerações, algumas ideias, tentar vincular com esse médico e criar um link para conversar e expondo quais são as dúvidas, o que está gerando angústia, [o] porquê eu estou encaminhando essa pessoa, [o] porquê quero que ele avalie [e] o que eu preciso de ajuda.
Apesar disso, é recorrente (com variações de acordo com a especialidade, o serviço e o próprio profissional) que recebam apenas um papel em branco de modo que fique a cargo do próprio usuário relatar como foi a consulta, o que foi realizado nela e, principalmente, quais os próximos passos na visão do especialista.
Além das falas que apontam tal problema, observou-se que o prontuário eletrônico utilizado na APS não era acessado pelos especialistas (estes sequer dispunham de computador nos consultórios), e que os prontuários escritos dos especialistas não eram vistos pelos MFC. Teve-se a impressão de que o Sisreg se constituiu na única interface de informações clínicas utilizada, mas apenas nos casos encaminhados para a atenção especializada e, mesmo assim, sem a possibilidade de troca de informações entre os profissionais dos diferentes serviços por meio dessa ferramenta.
Historicamente, é necessário reconhecer que o SUS produziu e produz uma
tensão constitutiva entre atenção básica e especializada, já que, por um lado, a atenção básica requer do apoio da especializada, mas, por outro, não precisa necessariamente transferir os cuidados para lá3535 Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Freire MP, et al. Arranjos regulatórios como dispositivos para o cuidado compartilhado em saúde. In: Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde. Surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 354-356. [acesso em 2022 dez 16]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5798651/mod_resource/content/1/Avaliacao%20compartilhada%20do%20cuidado%20em%20saude%20vol2.pdf.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p... (356).
Problemas como qualidade das referências e não envio de contrarreferências, entre APS e atenção especializada, têm sido frequentes no Brasil3636 Fausto MCR, Giovanella L, Mendonça MHM, et al. A posição da Estratégia Saúde da Família na rede de atenção à saúde na perspectiva das equipes e usuários participantes do PMAQ-AB. Saúde debate. 2014; 38(esp):13-33.,3737 Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018; 42(esp1):244-260., com alguns autores colocando em dúvida essas noções, seja pelo desgaste do termo, seja pela própria natureza desse procedimento, fazendo dele uma evocação que quase nunca se realiza1919 Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad. Saúde Pública: Rio de Janeiro. 1997; 13(3):469-478.,3838 Onocko-Campos RT, Campos GWS, Ferrer AL, et al. Avaliação de estratégias inovadoras na organização da Atenção Primária à Saúde. Rev Saúde Pública 2012; 46(1):43-50..
O manejo clínico de PVHA tem especificidades, inclusive no que se refere a medicamentos, que podem gerar dúvida nos médicos da APS, apesar da existência de protocolos clínicos que são frequentemente acessados por eles. Isso gera insegurança ou mesmo condutas inapropriadas nos profissionais não habituados a manejar determinados tipos de antirretrovirais ou comorbidades em uma PVHA. Até mesmo os usuários acompanhados pelo infectologista podem precisar da APS para tratar de outros problemas de saúde. Na descentralização do acompanhamento, portanto, é muito relevante a existência de canais por meio dos quais os profissionais tenham a possibilidade de discutir dúvidas, casos, condutas.
Uma MFC narra que encaminha, com felicidade, as PVHA que atende para a infectologia, já que considera reconfortante ter a retaguarda do especialista em casos que “não obteve resposta, não melhorou carga viral, [...] de repente não se adapta à medicação, eu não vou fazer esquemas alternativos”. A médica relata também que, muitas vezes, o encaminhamento é uma demanda do paciente.
Isto torna ainda mais delicada a situação que se encontra no campo, pois, em entrevistas com profissionais de ambos os tipos de serviços, essa interação parecia não existir. Ademais, sequer a possibilidade de contato telefônico ou por e-mail foi mencionada. Percebeu-se haver apenas capacitações eventuais sobre HIV para a APS, mesmo assim sem a presença dos infectologistas dos serviços de referência, mas somente daqueles ligados ao programa ou área técnica de HIV/Aids da Secretaria Municipal de Saúde.
Um dos MFC, no entanto, relatou uma experiência de interação com infectologista considerada positiva, mas em outra região da cidade, onde trabalhava anteriormente. No caso relatado, pareceu haver um importante suporte ao MFC, dentro de um arranjo que previu a inserção do ‘especialista focal’ no apoio ao cuidado, transitando entre as unidades de APS e, inclusive, dialogando com os médicos de família por telefone. Tais interações com infectologista, por telefone e WhatsApp, em um formato de apoio matricial, lembra, em parte, aquele feito pelo Nasf3939 Melo E, Miranda L. Apoio Matricial na Atenção Básica e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família: das concepções e políticas aos desafios do cotidiano em Atenção Primária à Saúde no Brasil. In: Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, et al., organizadores. Atenção Primária à Saúde no Brasil. Conceitos, Práticas e Pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 425-449..
O apoio matricial é reivindicado tanto por alguns infectologistas quanto pela APS que expressam, de diferentes formas, a necessidade de superar o isolamento existente entre as duas áreas de atenção. Um especialista faz um contraponto: “tem a questão da referência, contrarreferência, mas não tem o matriciamento. Eu não digo nem só do médico, assim, de enfermeiro, de outros profissionais”. Já na condução clínica, o MFC sinaliza:
[...] a experiência vai te tirando os receios, medicações sem ter necessidade, a medicação não tá sendo suficiente para zerar a carga viral, você tem que trocar a medicação, o infectologista vê isso, trabalha isso com mais frequência.
Isso foi corroborado pelo especialista que sinalizou “o HIV não é um agravo simples de se cuidar”.
O papel do apoio matricial pode qualificar a rede, sendo também um dispositivo importante de educação permanente, atendendo, dessa forma, a crítica de uma MFC sobre as capacitações pontuais oferecidas normalmente para o responsável técnico, e com baixa disseminação para o conjunto das equipes, que atuam de forma protocolar para o cumprimento das diretrizes estabelecidas.
O grupo focal ratificou a escassez de canais de interação entre esses profissionais e trouxe mais um dado à tona: nenhum deles se conhecia pessoalmente, mesmo atuando, em sua maioria, há alguns anos nessa região da cidade.
O processo de regulação do acesso às consultas também se constitui como um problema na perspectiva dos entrevistados:
[...] eu acho que a dificuldade muitas vezes é justamente disso, da gente não empurrar paciente e de ele não ser empurrado de volta... E, muitas vezes dessa sensação de que eu cumpri meu papel.
A realidade identificada ao longo do estudo vai ao encontro do conceito da regulação como um processo, disposto em um campo de conflitos e disputas, a partir dos diferentes objetivos, interesses e visões dos atores em cena, sejam eles gestores, profissionais, usuários etc.4040 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad. Saúde Pública. 2014; 30(7):1502-1514.; e ainda longe do papel preconizado de promoção da equidade do acesso aos serviços de saúde e como garantia da integralidade da assistência e (re)ordenador da oferta assistencial disponível às necessidades imediatas do cidadão, de forma equânime, ordenada, oportuna e racional4141 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.559, de 1º de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde – SUS. Diário Oficial da União. 2 Ago 2008..
A referência à integralidade e maior comunicação entre os atores que constroem essa rede estiveram presentes também no grupo focal. A maioria dos participantes argumentava com exemplos consistentes a necessidade de maior contato entre eles, a ponto, inclusive, de aproveitarem o espaço do grupo para tratar de assuntos de interesse, como algumas dúvidas, quase um processo de gestão de casos reais sem isso estar previsto no roteiro utilizado pelos pesquisadores; parte deles sobre aspectos do sigilo da sorologia, cuja experiência da área especializada foi demandada para o manejo correto dessas situações.
Essa atividade evidenciou tanto o grau com que a interação entre médicos de família e infectologistas se faz necessária para o cuidado às PVHA na APS quanto o efeito mobilizador que o dispositivo grupo focal veio a provocar. Nesse encontro, evidencia-se também a potência do espaço da micropolítica (processos de trabalho, suas experiências no cotidiano dos serviços, relações entre os trabalhadores, usuários) como vital para a construção de novas possibilidades, incluindo o próprio processo de regulação como indicado por Giannotti4242 Giannotti EM. A organização de processos regulatórios na gestão municipal de saúde e suas implicações no acesso aos serviços: um estudo de caso do município de Guarulhos. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2013. 132 p., transpondo o contato tradicional das referências e contrarreferências para um processo promotor de cuidado singular a partir de múltiplos olhares e de uma interface viva. Essa perspectiva dos encontros na rede de atenção e o necessário cuidado compartilhado ficou registrado na fala de uma MFC:
[...] e a dificuldade que eu vejo em alguns momentos é de o paciente desaparecer, chega num determinado momento que era complexo demais para eu cuidar, eu preciso do apoio, e aí eu preciso do apoio.
Considerações finais
No caso estudado, a interface entre serviços básicos e especializados se expressou precariamente por artifícios materiais, tais como os protocolos clínicos e o sistema eletrônico de regulação do acesso, o Sisreg, operando como referência de conduta técnica e meio por onde são encaminhados os usuários ao especialista. A descentralização do cuidado às PVHA para a APS e a sua interface com a atenção especializada, na experiência estudada, têm se dado mais em uma lógica binária (entre alguns profissionais de diferentes serviços) do que em uma perspectiva de interação e gestão compartilhada do cuidado.
As relações entre os diferentes pontos de atenção à saúde (especializada e APS) são marcadamente hierarquizadas, com valorações distintas de saberes e poderes, produzindo fraturas, isolamento e solidão no cuidado gerado nos serviços de saúde. Os critérios técnicos definidos para o cuidado à saúde das PVHA na APS foram centrados na lógica biomédica, em que os infectologistas ficam responsáveis pelos casos mais graves. Apesar de potenciais ganhos de acesso e ‘racionalização’ do uso do especialista (infectologista neste caso), há necessidade de construir e facilitar processos e mecanismos formais e informais de comunicação e interação entre profissionais desses diferentes serviços. É preciso também alargar a compreensão dos trabalhadores sobre o cuidado à saúde que produzem na rede e a potência de um trabalho horizontal entre os diversos pontos de atenção; e, sobretudo, que a gestão do cuidado em rede estabeleça arranjos institucionais que promovam sua integralidade.
Superar a fragmentação sistêmica histórica em uma rede imensa como a da cidade do Rio de Janeiro exige um enfrentamento importante, e a regulação de sistema tão complexo demanda uma forte coordenação e integração entre as diferentes esferas para que a equidade de acesso seja perene. Nesse cenário, o cuidado compartilhado em HIV entre as diversas instâncias não é simples, necessitando de sintonia entre elas. Entre a intenção e o gesto de ampliar o acesso à rede de saúde para as PVHA pela APS, é preciso investir no acolhimento adaptado às suas demandas e necessidades que fez parte do cuidado dentro do SAE. Por sua vez, é esperado que as áreas especializadas atuem como canal efetivo de apoio à atenção primária, com papel mais bem definido da sua responsabilidade sanitária.
Como se verifica, são muitos os desafios colocados para a efetivação do cuidado compartilhado. As fragilidades descritas na rede de atenção ao HIV/Aids convocam ao fortalecimento de uma política pública de saúde resolutiva e responsiva. A reconstrução das práticas de saúde para um cuidado efetivamente integral depende, portanto, da participação dos trabalhadores e dos usuários no processo de construção de um sistema que se aproxime do território da vida dos sujeitos.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
21 Abr 2022 - Aceito
10 Set 2022