Brazil’s foreign policy and health (1995-2010): A policy analysis of the Brazilian health diplomacy – from AIDS to ‘Zero Hunger’

Celia Almeida Thaisa Santos Lima Rodrigo Pires de Campos About the authors

ABSTRACT

This article analyses, from a policy analysis approach, how health entered Brazilian foreign policy between 1995 and 2010 and supported the country’s international position, which is rarely explored in the literature on Brazilian health diplomacy. By drawing on literature review, document analysis and key-actor interviews, we examined policies triggered by far-reaching and complex historical change processes in Brazil. We find significant interrelationships between foreign policy and social policy, including health. The internationalization of Brazilian domestic policies, and South-South cooperation, played a central role during Lula governments (2003-2010). Health found its way into the foreign policy agenda to support Brazil’s growing international presence. These developments were made possible by the activism and engagement of several of State and non-State actors working on two levels: national and transnational advocacy, and coordinated activities of government representatives, including Brazilian diplomats, and civil society activists. The main argument of this study is that national and international policies are intertwined in this process and that domestic dynamics and societal engagement are essential but more is needed: governmental choices are also determinant. Institutional arrangements and policies shift in different conjunctures and are constantly prone to conflicts and change.

KEYWORDS
Health diplomacy; International cooperation; Brazil

Introdução

Na primeira década do século XXI, o Brasil conquistou um lugar de poder emergente no sistema mundial e era uma das maiores e mais promissoras economias no mundo. Foi também muito ativo na ‘diplomacia da saúde’ e desempenhou papel crescentemente relevante na arena internacional da saúde.

A já extensa literatura sobre a diplomacia da saúde brasileira raramente analisa a relação entre políticas externas e saúde, ou entre saúde e relações internacionais. Quando e por que a saúde entra na agenda da política externa e passa a ser um dos objetos da diplomacia, ou é descartada como tal, e quais as dinâmicas subjacentes a esse processo, não têm sido objeto de análises mais acuradas. Por outro lado, grande parte dessas publicações registram fatos e processos relevantes sobre o ativo protagonismo do Brasil na arena internacional nessa área, o que inegavelmente estabeleceu o tópico, e instiga o aprofundamento da análise. Embora relate dinâmicas em nível nacional que se projetam no nível global, essa literatura usualmente se dedica ao processo decisório nas arenas internacionais ou à atuação de movimentos sociais em torno de temas específicos (ex., HIV/Aids) e suas relações com o Estado (especialmente seu braço executivo) e as organizações internacionais.

Na perspectiva da análise de políticas, a articulação entre saúde e relações internacionais é relativamente nova11 Draibe S. Policy Analysis in Brazil: Emergence and Institutionalisation. Braz. Polit. Scienc. Review. 2014 [accessed on 2020 Apr 5]; 8(2):118-122. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/1981-38212014000100014.
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,22 Espiridião MA. Análise política em saúde: síntese das abordagens teórico-metodológicas. Saúde debate. 2018 [accessed on 2020 Apr 5]; 42(esp2):341-360. Available at: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S22.
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. Essas análises levam em consideração os elementos históricos, contextuais e a dinâmica do sistema político, assim como as diferentes conjunturas governamentais22 Espiridião MA. Análise política em saúde: síntese das abordagens teórico-metodológicas. Saúde debate. 2018 [accessed on 2020 Apr 5]; 42(esp2):341-360. Available at: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S22.
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A política externa é uma política pública que atua na intersecção das políticas domésticas e internacionais33 Milner H. Interest, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations. Princeton: Princeton University; 1997.,44 Lima MRS. Foreign Policy and Democracy: A Preliminary Analysis of the Brazilian Case. In: Annual convention of the International Sociological Association; 2002 mar 24 to 27 Orleans. [accessed on 2012 Sept 20]. Available at: https://www.isanet.org/noarchive/lima.html.
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,55 Ratón-Sanchez M, Silva ECG, Cardoso EL, et al. Política externa como política pública: uma análise pela regulamentação constitucional brasileira (1967-1988). Rev. Sociol. Polít. 2006 [accessed on 2008 Jan 5]; (27):125-143. Available at: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/gKCfZnzSZC7kjhJndL8YSmJ/?format=pdf&lang=pt.
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. Está condicionada pela ordem assimétrica em que está inserida, que articula o sistema de Estados e o capitalismo global66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,77 Nery T. Política Externa Brasileira, Modelo de Desenvolvimento e Coalizões Políticas (1930-2016). Cad. do CEAS. 2017; (241):418-444.. É gerada no interior do Estado e sua

formulação e implementação dependem da dinâmica das decisões governamentais, que, por sua vez, resultam de negociações nas coalizões, barganhas, disputas e acordos entre representantes de diferentes interesses88 Milani C, Pinheiro L. The Politics of Brazilian Foreign Policy and its Analytical Challenges. Foreig. Policy Anal. 2017 [accessed on 2008 Jan 5]; (13):278-296. Available at: https://doi.org/10.1093/fpa/orw027.
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(278).

Portanto, como qualquer política pública, a política externa não é apenas objeto de conflitos, mas pode mudar em cada governo.

Muitos autores (e atores) utilizam o termo diplomacia da saúde (ou diplomacia da saúde global) para designar atuações internacionais de atores, governamentais ou não, referidas à temas, políticas ou ações voltadas para a ‘saúde global’, sem necessariamente relacioná-las à política externa dos Estados nacionais ou à diplomacia de determinado país. A imprecisão conceitual desses termos permite que sejam utilizados com diferentes significados e distintos propósitos, dependendo do objeto de análise e da perspectiva teórica escolhida.

Consideramos que políticas nacionais voltadas para a ‘saúde global’ (outro termo impreciso) resultam de negociações que envolvem uma variedade de atores – da saúde, da economia, do desenvolvimento social e da diplomacia99 Berlan D, Buse K, Shiffman J. The bit in the middle: a synthesis of global health literature on policy formulation and adoption. Health Policy Plan. 2014 [accessed on 2008 Jan 5]; 29(supl3):23-34. Available at: https://doi.org/10.1093/heapol/czu060.
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,1010 Jones CM, Clavier W, Potvin L. Adapting public policy theory for public health research: A framework to understand the development of national policies on global health. Soc. Scienc. Med. 2017; (177):69-77.; e a ‘diplomacia da saúde’ é um processo de modelagem de políticas no qual vários atores negociam respostas a desafios à saúde ou usam a saúde nos processos decisórios para o alcance de outros objetivos estratégicos, políticos, econômicos ou sociais1111 Fidler DP. Health as Foreign Policy: Between Principle and Power. The Whitehead Journal of Diplomacy and International Relations. 2005 [accessed on 2008 Jan 5]; 6(179). Available at: https://www.repository.law.indiana.edu/facpub/525.
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,1212 Fidler DP. Health in foreign policy: An analytical overview. Canad. Foreign Policy J. 2011 [accessed on 2012 May 5]; 15(3):11-29. Available at: https://dx.doi.org/10.1080/11926422.2009.9673489.
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,1313 Fidler DP. Health diplomacy. In: Cooper AF, Heine J, Thakur R, editors. The Oxford handbook of modern diplomacy. Oxford: Oxford University Press; 2013.,1414 Lee K, Chagas LC, Novotny TE. Brazil and the framework convention on tobacco control: global health diplomacy as soft power. PLoS Med. 2010; 7(4):e1000232.,1515 Feldbaum H, Michaud J. Health diplomacy and the enduring relevance of foreign policy interests. PLoS Medicine. 2010; 7(4):e1000226.,1616 Lee K, Smith R. What is a “global health diplomacy”? A conceptual review. Glob. Health Gov. 2011 [accessed on 2012 May 5]; 5(1). Available at: https://blogs.shu.edu/ghg/files/2011/11/Lee-and-Smith_What-is-Global-Health-Diplomacy_Fall-2011.pdf.
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.

Este estudo examina como os temas de saúde entraram na política externa no Brasil, especialmente entre 1995-2010, e quais fatores possibilitaram que essas questões apoiassem a projeção internacional do País. O objetivo é capturar as especificidades da diplomacia da saúde brasileira e seu papel no País e no exterior, a partir de uma releitura de dados, eventos e políticas impulsionadas em diferentes momentos por processos de mudanças políticas no Brasil. Não se ignoram as diferenças entre as políticas públicas – externa e setoriais (neste caso as políticas sociais, incluída a de saúde). Porém, apontamos significativas inter-relações entre elas, para melhor entender a ‘diplomacia da saúde’ brasileira.

A pesquisa é um estudo de caso e utilizou dados empíricos qualitativos: revisão da literatura e análise documental, incluindo relatórios e websites de organizações governamentais ou não, e entrevistas com atores-chave – gestores e formuladores de políticas, da saúde e da diplomacia, e representantes da sociedade civil. A maioria das entrevistas foram realizadas em 2017 e 2018 e algumas poucas nos anos subsequentes (2019 e 2020). O projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) sob nº 1.717.292 e seguiu todas as recomendações da Resolução no 466.

O estudo cobre um raro período de democracia estável no Brasil, dos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), dois mandatos (1995 a 2002); e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), do Partido dos Trabalhadores (PT), dois mandatos (2003 a 2010). Ambos os governantes, cada um à sua maneira, promoveram mudanças nas relações internacionais do Brasil: por um lado, ao retomarem alguns parâmetros históricos da Política Externa Brasileira (PEB) adaptando-os aos respectivos contextos, e, por outro, ao promoverem a ascensão do País a um lugar de maior visibilidade e destaque no sistema internacional.

O principal argumento deste artigo é que as políticas nacionais e internacionais são articuladas e que a dinâmica doméstica e o engajamento societal foram de grande importância, mas não suficientes. Decisões governamentais baseadas em valores e princípios e apoiadas por coalizões políticas, que mudam a cada momento, modelam a percepção do ‘lugar’ do País na dinâmica do sistema global e determinam suas atividades nas arenas internacionais. Sendo assim, são fundamentais os componentes não-materiais da política externa (simbólicos e interpretativos) e sua inclusão nos processos decisórios. Esses fatores possibilitam a construção de diferentes cenários internacionais, dependendo de como os atores os percebem e como uma ‘herança’ particular é enfatizada nas negociações internacionais de acordo com práticas ou perspectivas ideológicas, como, por exemplo, no Brasil o estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o papel do Brasil na questão dos direitos de propriedade intelectual e acesso a medicamentos contra HIV/Aids.

A primeira parte apresenta um resumo histórico da PEB e das relações internacionais do Brasil do final dos anos 1980 até às administrações de FHC e Lula. A seguir examinam-se os vínculos entre as políticas sociais domésticas e as políticas externas desses governos. Os comentários finais apresentam uma breve síntese analítica dos achados de pesquisa e sugestões.

Política Externa Brasileira e posicionamento internacional

A política externa tradicional no Brasil enfatizou o uso do ‘prestígio’ e não a ‘contestação’66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53. internacional, o que, historicamente, angariou apoio das elites nacionais, mas não significou aprovação incondicional ou permanente, ou ainda total concordância. De acordo com Lima66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53., as metas da diplomacia de prestígio incluem a demonstração ou reivindicação de poder e desempenho na perspectiva de impressionar outras nações, buscando forte presença multilateral, como um instrumento de soft power, ao invés do hard power, que o País não possui. Sob o regime autoritário militar (1964 a 1985), a postura internacional do Brasil foi defensiva e discreta, particularmente em relação aos direitos humanos e outros temas sensíveis. As mudanças políticas nacionais e globais de meados dos 1980, após o fim da Guerra Fria, alteraram gradualmente o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro, a dinâmica da sociedade e a formulação e implementação das políticas nacionais, incluindo a política externa, que tradicionalmente foi ‘insulada’ nas instituições diplomáticas1717 Faria CAP. Itamaraty e a Política Externa Brasileira: do insulamento à coordenação dos atores governamentais e de cooperação com agentes societários. Context. Inter. 2012 [accessed on 2012 May 5]; 34(1):311-355. Available at: https://www.scielo.br/j/cint/a/bcWcqfYFWhDWwxYDbqQsdbj/abstract/?lang=pt.
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(315–316).

Historicamente a PEB foi central na consolidação dos modelos de desenvolvimento econômico adotados pelos governos brasileiros em diferentes conjunturas, principalmente em conjunturas críticas, como nos meados dos 1960, nos 1990 e, de novo, em 2016. Nesses momentos, “padrões de desenvolvimento nacional e de presença internacional prevalentes se exauriram e uma nova coalizão sócio-política emergiu”1818 Lima MRS, Hisrt M. Brasil como poder intermediário e poder regional. In: Hurrell A, Lima MRS, et al., editors. Os BRICS e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV; 2009. p. 43-73.(46), transformando as políticas domésticas, inclusive a PEB. Entretanto, a permanência de um mesmo modelo de desenvolvimento não implica adoção da mesma linha de política externa; além disso, “a política externa pode ser alvo de uma revisão profunda sem que ocorra alteração do regime político”77 Nery T. Política Externa Brasileira, Modelo de Desenvolvimento e Coalizões Políticas (1930-2016). Cad. do CEAS. 2017; (241):418-444.(424–425).

A redemocratização do País demandou, entre outras coisas, um maior ativismo da diplomacia brasileira para a elaboração e implementação de uma agenda que angariasse legitimidade doméstica ao posicionamento e pretensões internacionais do Brasil, assim como possibilitasse a criação de coalizões nacionais favoráveis à mudança do status quo66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,1717 Faria CAP. Itamaraty e a Política Externa Brasileira: do insulamento à coordenação dos atores governamentais e de cooperação com agentes societários. Context. Inter. 2012 [accessed on 2012 May 5]; 34(1):311-355. Available at: https://www.scielo.br/j/cint/a/bcWcqfYFWhDWwxYDbqQsdbj/abstract/?lang=pt.
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,1818 Lima MRS, Hisrt M. Brasil como poder intermediário e poder regional. In: Hurrell A, Lima MRS, et al., editors. Os BRICS e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV; 2009. p. 43-73.,1919 Vigevani T, Oliveira MF. A política externa brasileira na era FHC: um exercício de autonomia pela integração. Tempo Soc. 2003; 15(2):31-61.. Essa dinâmica implicou na diminuição da anterior ‘autonomia decisória’ do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e no aumento da denominada ‘diplomacia presidencial’, com participação ativa dos presidentes no processo decisório da PEB. Paralelamente, as coalizões políticas tornaram-se crescentemente importantes, estabelecendo um sistema denominado, por alguns autores, ‘presidencialismo de coalizão’2020 Abranches S. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Rev. de Ciênc. Soc., 1988; 31(1):5-14.,2121 Abranches S. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.. Os arranjos político-partidários institucionalizados na Constituição de 1988, aliados ao presidencialismo, outorgam enorme poder ao presidente (tanto de agenda, quanto de barganha) e, ao mesmo tempo, lhe confere o dever de construir a governabilidade necessária para se manter no cargo, tanto nas relações com o Legislativo, quanto com as elites dominantes. Diante da multiplicidade de partidos, baixa fidelidade e grande fragmentação, e das práticas pouco ortodoxas dos parlamentares, característica do sistema político brasileiro, a capacidade da presidência de coordenar as relações Executivo/ Legislativo tornou-se fundamental.

A maior ‘politização da política externa’ auferiu grande importância à PEB, refletindo a crescente interrelação dos âmbitos nacional e internacional no contexto do mundo globalizado66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.. Todo esse processo evidenciou também as diferentes posições de distintos grupos dentro do próprio corpo diplomático (ou Itamaraty, que se refere ao Ministério das Relações Exteriores – MRE, uma organização altamente profissionalizada), considerado quase “monolítico” até então e que por muitos anos deteve o “monopólio virtual” dos negócios internacionais1717 Faria CAP. Itamaraty e a Política Externa Brasileira: do insulamento à coordenação dos atores governamentais e de cooperação com agentes societários. Context. Inter. 2012 [accessed on 2012 May 5]; 34(1):311-355. Available at: https://www.scielo.br/j/cint/a/bcWcqfYFWhDWwxYDbqQsdbj/abstract/?lang=pt.
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(316).

Outra característica marcante da PEB (presente durante o século XX e a primeira década do séc. XXI) é o reconhecimento da importância dos espaços multilaterais (instituições e arenas), locus privilegiado de atuação da diplomacia brasileira2222 Brown T, Cueto M, Fee E. A transição de saúde pública ‘internacional’ para ‘global’ e a Organização Mundial da Saúde. Hist. Ciênc. Saúde – Manguinhos. 2006; 13(3):623-647.,2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22., assim como o papel do País como mediador entre o Norte e o Sul, respeitando sempre o princípio da não-intervenção, o que pressupõe algumas concessões e o uso do poder brando (soft power)66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2424 Milani C, Pinheiro L, Lima MRS. Brazil’s foreign policy and the ‘graduation dilemma’. Intern. Affairs. 2017; 93(3):585-605.. Isto significa forjar seu poder político a partir de princípios, valores, cultura e políticas bem-sucedidas e da colaboração com amplo elenco de atores.

Pode-se afirmar ainda que a PEB sempre aspirou o reconhecimento internacional do País, considerado ‘naturalmente’ habilitado a um lugar de destaque no sistema internacional1818 Lima MRS, Hisrt M. Brasil como poder intermediário e poder regional. In: Hurrell A, Lima MRS, et al., editors. Os BRICS e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV; 2009. p. 43-73.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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. Contudo, ao longo dos anos, e em diferentes conjunturas, as estratégias formuladas e implementadas para o alcance daquele propósito variaram segundo diferentes governantes, assim como houve períodos de arrefecimento dessa ambição, mesmo de abandono de qualquer ideal de projeção internacional66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,1818 Lima MRS, Hisrt M. Brasil como poder intermediário e poder regional. In: Hurrell A, Lima MRS, et al., editors. Os BRICS e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV; 2009. p. 43-73.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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,2626 Farias HC, Alves PC. The decline in Brazil’s international influence: from an emerging country to an inward-looking state. Austral: Braz. J. Strat. Inter. Relat. 2020 [accessed on 2020 Nov 26]; 9(17):14-37. Available at: https://seer.ufrgs.br/austral/article/viewFile/100702/57551.
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,2727 Miranda SM. A Nova Política Externa Brasileira: de Temer para a América do Sul. Rev. Conjuntura Austral. 2019; 10(51):126-138.,2828 Maringoni G, Schutte GR, Berron G, organizers. 2003-2013: uma nova política externa. Tubarão: Ed. Copiart; 2014..

Em relação a ‘autonomia’, alguns autores problematizam a afirmação de que seja um traço perene da PEB66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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,2929 Pinheiro L, Lima MRS. Between Autonomy and Dependency: The Place of Agency in Brazilian Foreign Policy. Braz. Polit. Science Review. 2018 [accessed on 2020 Nov 26]; 12(3):e0003. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800030003.
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. Argumentam que ‘políticas de corte autonomista’ existiram na história da PEB, mas se configuraram como uma perspectiva estrita de autonomia, isto é, própria de “momentos de exceção e de quebra da trajetória dependente da política externa”, passíveis, portanto, “de serem interrompidas pelas forças conservadoras”66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.(42–43).

Vale lembrar ainda que nos anos 1990 o ‘social’ foi amplamente discutido na arena internacional, especialmente na conferências das Nações Unidas (1990 a 1996), em uma perspectiva de ‘repensar o desenvolvimento’, seja pelos alarmantes níveis de pobreza e desigualdade no mundo, resultado dos ajustes econômicos dos anos 1980, seja pela necessidade de buscar alternativas para as políticas do welfare state, que não foram pensadas para dar conta da nova realidade econômica neoliberal pós-Guerra Fria. O ‘ciclo das conferências da ONU’ envolveu atores governamentais, da sociedade civil e outros agentes. E o Brasil atuou intensamente nos preparativos das conferências e nos seus desdobramentos3030 Rubarth EO. A diplomacia e as questões sociais: o caso da saúde. Brasília, DF: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão; Centro de Altos Estudos Estratégicos; 1999. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/al000203.pdf.
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
,3131 Mota RS. O combate à fome e à pobreza na política externa brasileira (2003-2010): do discurso à prática e a prática do discurso. [dissertation]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2015. [accessed on 2021 Sept 26]. Available at: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17903/1/2015_RodrigodosSantosMota.pdf.
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Essa dinâmica internacional espelha e projeta os movimentos domésticos, embora a luta pela reforma sanitária – articulada por profissionais da medicina preventiva e da saúde pública, com sindicatos profissionais e partidos políticos da oposição – remonte aos anos 19703232 Paim J, Travassos C, Almeida C, et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. The Lancet. 2011 [accessed on 2021 Sept 26]; 377(9779):1778-1797. Available at: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)60054-8.
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,3333 Souza LEPF, Paim J, Teixeira CF, et al. Os desafios atuais da luta pelo direito universal à saúde no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2019 [accessed on 2021 Sept 26]; 24(8):2783-2792. Available at: https://doi.org/10.1590/1413-81232018248.3446.
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, e o movimento para o controle da epidemia de HIV/Aids, centrada nos direitos humanos e na solidariedade, articulada em rede com outros movimentos sociais (feministas, defensores da ‘opção sexual’) que defendiam as mesma premissas, venha desde os anos 19802323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22.,3434 Parker RG. Civil Society, Political Mobilization, and the Impact of HIV Scaleup on Health Systems in Brazil. J. Acquir Immune Defic Syndr. 2009 [accessed on 2021 Sept 26]; 52(supl1):S49-S51. Available at: https://doi.org/10.1097/QAI.0b013e3181bbcb56.2009.
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,3535 Parker RG. Grassroots Activism, Civil Society Mobilization, and the Politics of the Global HIV/ AIDS Epidemic. Brown J. World Affairs. 2011; xvii(ii):21-37.,3636 Parker RG. Entrevista-Estigmas do HIV/aids: novas identidades e tratamentos em permanentes sistemas de exclusão. Reciis. 2019 [accessed on 2021 Sept 26]; 13(3):618-33. Available at: http://dx.doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1922.
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,3737 Parker RG. Brazil and the AIDS Crisis. 2020. [accessed on 2021 Sept 26]. Available at: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199366439.013.865.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199...
,3838 Barros SG, Vieira-De-Souza L. The genesis of the AIDS policy and AIDS Space in Brazil (1981-1989). Rev. Saúde Pública. 2016 [accessed on 2021 Sept 26]; 50(43):1-12. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/s1518-8787.2016050005801.
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.

Por fim, as escolhas dos governos, os interesses do conjunto das forças sociais e políticas que os sustentam e fatores sistêmicos – mudanças geopolíticas (fim da era bipolar) e geoeconômicas (crise da hegemonia norte americana e ascensão da China) – abriram espaço para os países da periferia na arena internacional, possivelmente pelo alívio dos ‘condicionantes estruturais’66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2929 Pinheiro L, Lima MRS. Between Autonomy and Dependency: The Place of Agency in Brazilian Foreign Policy. Braz. Polit. Science Review. 2018 [accessed on 2020 Nov 26]; 12(3):e0003. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/1981-3821201800030003.
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Na mesma dinâmica, processos de internacionalização da economia (globalização e liberalização/abertura econômica) e de democratização da sociedade (intensificação do debate entre distintos atores sociais sobre ideias e formas de institucionalização de demandas), que ocorreram simultaneamente no Brasil, estão entre os fatores que contribuíram para a ‘politização’ das políticas públicas, incluída a política externa77 Nery T. Política Externa Brasileira, Modelo de Desenvolvimento e Coalizões Políticas (1930-2016). Cad. do CEAS. 2017; (241):418-444.. A crescente complexidade do processo decisório que resulta dessas configurações estimula também a maior participação de outras agências governamentais e de instituições de diferentes setores da sociedade civil na formulação e implementação das políticas internas e externas.

A política externa de FHC e de Lula

O debate sobre continuísmo ou inovação nas políticas de FHC e Lula é intenso na literatura brasileira. Há consenso, porém, em relação a alguns pontos de continuidade assim como de mudanças.

Alguns autores consideram, em geral, processos contíguos entre os dois governos, com ajustes de metas e programas1919 Vigevani T, Oliveira MF. A política externa brasileira na era FHC: um exercício de autonomia pela integração. Tempo Soc. 2003; 15(2):31-61.,3939 Vigevani T, Cepaluni GA. Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação. Rev. Cont. Intern. 2007 [accessed on 2021 Mar 2]; 29(2):273-335. Available at: http://contextointernacional.iri.puc-rio.br/media/Vigevani_vol29n2.pdf.
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, inclusive em relação à priorização da saúde4040 Barboza TMT, Pinheiro L, Pires-Alves F. O diálogo entre saúde e política externa brasileira nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Rev. Carta Inter. 2017; 12(3):175-198.. Outros avaliam que mudanças na PEB ocorridas nos governos de FHC foram aprofundadas por Lula, que se beneficiou de uma conjuntura econômica (nacional e internacional) mais favorável66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,77 Nery T. Política Externa Brasileira, Modelo de Desenvolvimento e Coalizões Políticas (1930-2016). Cad. do CEAS. 2017; (241):418-444.,1818 Lima MRS, Hisrt M. Brasil como poder intermediário e poder regional. In: Hurrell A, Lima MRS, et al., editors. Os BRICS e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV; 2009. p. 43-73.. O principal argumento na literatura é que não houve ruptura significativa com paradigmas históricos da política externa, mas esses governos representaram distintas tradições diplomáticas brasileiras4141 Saraiva MG. Continuidade e mudança na política externa brasileira. As especificidades do comportamento externo brasileiro de 2003 a 2010. Relações Inter. 2013 [accessed on 2020 Sept 20]; (37):63-78. Available at: https://ipri.unl.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/ri37/n37a06.pdf.
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e moldaram suas políticas segundo a percepção de cada um dos governantes sobre a postura internacional que melhor se adaptava ao contexto internacional, a fim de atender as necessidades brasileiras. Ao mesmo tempo, levaram em conta a movimentação da sociedade e ambos teriam impulsionado a ideia de ‘autonomização do País’ na atuação internacional3939 Vigevani T, Cepaluni GA. Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação. Rev. Cont. Intern. 2007 [accessed on 2021 Mar 2]; 29(2):273-335. Available at: http://contextointernacional.iri.puc-rio.br/media/Vigevani_vol29n2.pdf.
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. Porém outras análises consideram que apenas nos governos de Lula a política externa teve características autonomista66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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A conjuntura crítica global dos anos 1990, marcada pelo fim da bipolaridade e pela difusão mundial dos processos de ajuste estrutural macroeconômico, e, no Brasil, pela nova ordem política constitucional e pela crise fiscal do Estado, resultou na adesão doméstica ao ‘neoliberalismo ortodoxo’, preconizado globalmente e assumido pelos governos de FHC, tendência que já vinha sendo gestada pela elite econômica brasileira. Duas agendas foram especialmente importantes no primeiro governo de FHC: a estabilização monetária (com o Plano Real) e as reformas constitucionais. Portanto, a PEB foi coerente com essas agendas (quadro 1).

Quadro 1
Política Externa dos governos FHC e Lula

A formulação dessa estratégia remonta ao início dos anos 1990, no governo de Itamar Franco, quando Cardoso foi chanceler (outubro de 1992 a maio de 1993) e ministro da economia (Maio 1993 a março de 1994).

Na avaliação do governo, promover ou colocar em discussão mudanças estruturais determinantes das desigualdades sociais seria ‘pouco realista’, devido ao ‘contexto político-econômico internacional’; seria mais produtivo mobilizar os países desenvolvidos para que apoiassem a agenda brasileira, isto é, ajudassem a resolver (financeiramente) os problemas nacionais, como contrapartida do suporte do Brasil às suas políticas3030 Rubarth EO. A diplomacia e as questões sociais: o caso da saúde. Brasília, DF: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão; Centro de Altos Estudos Estratégicos; 1999. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/al000203.pdf.
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Não é desprezível a projeção nacional e internacional de FHC e o presidente exerceu ativa ‘diplomacia presidencial’, i.e., crescente presença do presidente nas atividades diplomáticas. Porém, as estratégias econômicas e políticas de FHC não renderam os frutos desejados. Apesar da estabilização alcançada com o Plano Real (iniciado em 1994), seus governos terminaram, no início dos anos 2000, com piora da conjuntura doméstica econômica (ajuste fiscal sem crescimento econômico, aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades, crise cambial e monetária em 2002) e política (piora das condições de vida e trabalho da população), além de considerável descrédito internacional, resultando na eleição do candidato do PT em 200266 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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,3939 Vigevani T, Cepaluni GA. Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação. Rev. Cont. Intern. 2007 [accessed on 2021 Mar 2]; 29(2):273-335. Available at: http://contextointernacional.iri.puc-rio.br/media/Vigevani_vol29n2.pdf.
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Lula aprofundou a política macroeconômica de ajuste, implementando uma nova (terceira) etapa da estabilização fiscal e monetária baseada no paradigma neoliberal4242 Fagnani E. A política social do governo Lula (2003-2010): perspectiva histórica. SER Social. 2011 [accessed on 2012 Apr 3]; 13(28):41-80. Available at: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12682.
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. Entretanto, assumiu uma perspectiva ‘neodesenvolvimentista’66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,4343 Boito A, Berringer T. Social classes, neodevelopmentalism, and Brazilian foreign policy under presidents Lula and Dilma. Latin Amer. Perspec. 2014; 41(5):94-109., sobretudo a partir de 2006, com o fortalecimento do mercado interno e a pretensa complementação entre o econômico e o social – uma economia ‘orientada pelo gasto social’4242 Fagnani E. A política social do governo Lula (2003-2010): perspectiva histórica. SER Social. 2011 [accessed on 2012 Apr 3]; 13(28):41-80. Available at: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12682.
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,4444 Pochman M. Políticas sociais e padrão de mudanças no Brasil durante o governo Lula. Ser Soc. 2011 [accessed on 2012 Apr 3]; 13(28):12-40. Available at: https://doi.org/10.26512/ser_social.v13i28.12681.
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, traduzida na adoção de mecanismos complementares à perspectiva universal, introduzindo condicionalidades no desenho de políticas sociais específicas4545 Kerstenetzky CL. Políticas Sociais: focalização ou universalização? Rev Econ. Polít. 2006 [accessed on 2008 Aug 15]; 26(4):564-574. Available at: https://www.scielo.br/j/rep/a/4qDF8Yvm33v8bMPLHrbBK7P/?format=pdf&lang=pt.
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(quadro 1).

A política externa dos governos Lula caracterizou-se pelo esforço de ‘autonomia política’, que supõe

[...] ambição de protagonismo internacional, mas com alguma intenção de contestação às regras globais vigentes; orientação mais de ruler-maker que de ruler-taker; visão geopolítica de mais longo prazo em relação às clivagens Norte-Sul; e uma perspectiva de solidariedade ativa com países semelhantes do Sul e de integração com vizinhos da região66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.(42).

O diagnóstico predominante era de uma ordem mundial em processo de transição, com tendências multipolares66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53., o que exigiria diversidade nas alianças, seja na região da América do Sul seja com outros países emergentes ou em desenvolvimento.

Enfatizaram-se as “parcerias estratégicas” ou coalizões de “geometria variável”, ou seja, o estreitamento de relações com países emergentes para alcançar maior representatividade do País e fortalecer os países com menor poder, dos quais o Brasil seria o “porta-voz”4646 Silva ALR. Geometria variável e parcerias estratégicas: a diplomacia multidimensional do governo Lula (2003-2010). Contexto Int. 2015 [accessed on 2012 Apr 3]; 37(1):143-184. Available at: https://doi.org/10.1590/S0102-8529201500010000.
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(178). Para isso, a PEB estimulou a atuação em foros mais exclusivos a partir da criação de novas instituições (IBAS em 2003; BRICS em 2006; e Unasul em 2008) e reforço das já existentes (Mercosul).

A diplomacia presidencial se intensificou e estreitou a aproximação entre o Presidente e o seu Chanceler (Celso Amorim, reconhecido e respeitado diplomata), nos dois governos. Registra-se grande aumento no número de viagens internacionais e périplos regionais (por ex., na América do Sul e na África), tanto do presidente quanto do chanceler, acompanhados de profissionais de outras áreas do governo e de representantes dos empresários, a instalação de novas embaixadas (principalmente em países/regiões não favorecidos anteriormente) e o evidente maior protagonismo do presidente em diferentes fóruns globais. Da mesma forma, houve significativo incremento do número de vagas para formação de diplomatas no Instituto Rio Branco (a instituição do Itamaraty responsável pela formação e início de carreira dos diplomatas no Brasil, em nível de pós-graduação), e a introdução de disciplinas que tratavam de questões sociais em geral e de saúde em particular (entrevista com ator-chave, do MRE). Simultaneamente, projetaram-se externamente os interesses comerciais de grandes empresas e conglomerados nacionais4747 Garcia AS, Kato KYM. A história da caça ou do caçador? Reflexões sobre a inserção do Brasil na África. Tensões Mundiais. 2014 [accessed on 2016 Mar 7]; 10(18):145-171. Available at: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/download/476/373/1517.
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,4848 Milani C. Brazil’s South-South Co-operation Strategies: From Foreign Policy to Public Policy. Occasional Paper 179, Global Powers and Africa Programme. Johannesburg, South Africa: South African Institute of International Affairs; 2014..

A participação do Brasil em negociações e decisões consideradas da ‘alta política’ (temas referidos, por ex., à segurança internacional, como as missões de paz da ONU, que resultou na MINUSTHA, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, sigla derivada do nome em francês – Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti, provocou muitas críticas, sobretudo daqueles que defendiam uma política externa mais conservadora. O pleito do Brasil para ser aceito como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU permaneceu. O mesmo aconteceu com a internacionalização de grandes empresas brasileiras. Esta meta potencialmente contraditória foi recebida tanto criticamente como defensivamente – ou no mínimo de forma desconfiada – por alguns países na região e fora dela (por ex., na África)4747 Garcia AS, Kato KYM. A história da caça ou do caçador? Reflexões sobre a inserção do Brasil na África. Tensões Mundiais. 2014 [accessed on 2016 Mar 7]; 10(18):145-171. Available at: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/download/476/373/1517.
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No segundo governo de Lula, o orçamento da Agência Brasileira de Cooperação Internacional (ABC) aumentou. Ao recusar a etiqueta de ‘doador’, segundo os parâmetros da OECD, a PEB vinculou a Cooperação Sul- Sul (CSS) à perspectiva de solidariedade e compromisso de ajuda mútua entre países do Sul global (principalmente América do Sul, Caribe e África)4848 Milani C. Brazil’s South-South Co-operation Strategies: From Foreign Policy to Public Policy. Occasional Paper 179, Global Powers and Africa Programme. Johannesburg, South Africa: South African Institute of International Affairs; 2014..

Renovou-se substancialmente o debate sobre política externa no País e outros agentes da estrutura federal e da sociedade organizada adquiriram relevância nos temas internacionais4949 Draibe S. A política social no período FHC e o sistema de proteção social. Tempo Soc. 2003 [accessed on 2020 Jul 6]; 15(2):64-101. Available at: https://doi.org/10.1590/S0103-20702003000200004.
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. A posição internacional do Brasil mudou significativamente66 Lima MRS. A agência da política externa brasileira: uma análise preliminar. In: Desiderá Neto WA, Florencio SAL, Ramanzini Junior H, et al., organizers. Política Externa Brasileira: dimensões e estratégias de inserção internacional no pós-2008. Brasília, DF: Funag; IPEA; 2018. p. 39-53.,2525 Milani C, Nery T. The sketch of Brazil’s grand strategy under the Workers’ Party (2003–2016): Domestic and international constraints. South African J. Inter. Affairs. 2019 [accessed on 2020 Nov 26]; 26(1):73-92. Available at: https://doi.org/10.1080/10220461.2019.1584583.
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A projeção externa de estratégias das políticas nacionais de inclusão social merece atenção neste debate.

Questões sociais e política externa nos governos de FHC e Lula

É relativamente consensual na literatura que nos dois governos de FHC foram formuladas e implementadas inovações nas políticas sociais, mantidas nos governos de Lula com diferentes matizes e ênfases. Afirma-se também que nenhum dos governantes desse período alterou os princípios universais e o arcabouço institucional do sistema de proteção social brasileiro.

As diretrizes da política social de FHC combinaram reestruturação dos serviços sociais universais e mitigação da pobreza e das desigualdades com medidas redistributivas especiais, onde se destacaram os programas compensatórios focalizados – Programa Comunidade Solidária (1995)5050 Marques RM, Ximenes CB, Ugino CK. Governos Lula e Dilma em matéria de seguridade social e acesso à educação superior. Rev. de Econ. Pol. 2018 [accessed on 2020 Sept 15]; 38(3-152):526-547. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/0101-35172018-2784.
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,5151 Skocpol T. Targeting within Universalism: politically viable policies to combat poverty in the United States. In: Jencks CP, Paul E, editors. The urban underclass. Washington, DC: The Brookings Institution; 1991. p. 411-36.. Essa opção se inspirou na perspectiva de ‘focalização no universalismo’5050 Marques RM, Ximenes CB, Ugino CK. Governos Lula e Dilma em matéria de seguridade social e acesso à educação superior. Rev. de Econ. Pol. 2018 [accessed on 2020 Sept 15]; 38(3-152):526-547. Available at: http://dx.doi.org/10.1590/0101-35172018-2784.
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,5252 Almeida C. Parcerias público-privadas (PPP) no setor saúde: processos globais e dinâmicas nacionais. Cad. Saúde Pública. 2017 [accessed on 2020 Feb 2]; 33(supl2):e00197316. Available at: https://doi.org/10.1590/0102-311X00197316.
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. Na área da saúde, a implementação do SUS continuou, com a expansão da atenção básica e a busca por novas fontes de financiamento, depois de mudanças no Orçamento da Seguridade Social, que perdeu sua principal fonte, a contribuição do empregado e do empregador5151 Skocpol T. Targeting within Universalism: politically viable policies to combat poverty in the United States. In: Jencks CP, Paul E, editors. The urban underclass. Washington, DC: The Brookings Institution; 1991. p. 411-36.. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), proposta pelo então ministro da saúde Adib Jatene, foi aprovada em 1996 (quadro 2).

Quadro 2
Principais políticas sociais dos governos FHC e Lula

Essas medidas tiveram função parcialmente compensatória pela subordinação às premissas do ajuste fiscal; e algumas inovações introduzidas fragmentaram o ‘combate à pobreza’, em nível federal e municipal, e se transformaram no germe de ‘privatizações indiretas’5353 Amorim C. Acting Globally, Memoirs of Brazil’s Assertive Foreign Policy. New York: Rowman & Littlefield; 2017., consolidadas nas décadas seguintes, como por exemplo as parcerias público-privadas para a provisão de serviços de saúde no SUS. Porém, os novos programas não foram capazes de contrabalançar as perdas.

As articulações domésticas com os movimentos sociais – sobretudo relacionados à Aids –, se projetaram no exterior, fomentando o ativismo transnacional, que cresceu muito nesse momento, impulsionando mudanças expressivas nas políticas globais de controle da epidemia de Aids2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22.,3434 Parker RG. Civil Society, Political Mobilization, and the Impact of HIV Scaleup on Health Systems in Brazil. J. Acquir Immune Defic Syndr. 2009 [accessed on 2021 Sept 26]; 52(supl1):S49-S51. Available at: https://doi.org/10.1097/QAI.0b013e3181bbcb56.2009.
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,3535 Parker RG. Grassroots Activism, Civil Society Mobilization, and the Politics of the Global HIV/ AIDS Epidemic. Brown J. World Affairs. 2011; xvii(ii):21-37.,3737 Parker RG. Brazil and the AIDS Crisis. 2020. [accessed on 2021 Sept 26]. Available at: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199366439.013.865.
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. Observa-se grande ‘militância’ de agentes da burocracia federal nos foros multilaterais (OMS, PNUD e Unaids), juntamente com outros atores não-governamentais, ambas atuações sustentavam as demandas pela HAART (Highly Active Triple Drug Antiretroviral Therapy) nas arenas nacionais e internacionais, cuja efetividade, comprovada por estudos científicos, foi anunciada pela primeira vez na XI Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, Canadá, em 1996.

Vitórias anteriores da diplomacia brasileira foram importantes para os desdobramentos desse processo5454 Oliveira MF. Multilateralismo, Democracia e Política Externa no Brasil: Contenciosos das Patentes e do Algodão na Organização Mundial do Comércio (OMC). Context. Inter. 2007; 29(1):7-38., mas não eram vinculadas diretamente à saúde. Desde 1986, os diplomatas brasileiros desempenharam papel relevante na elaboração e aprovação do Acordo Trips (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), em 1994, advogando em nome dos países em desenvolvimento, formando coalizões de apoio e contrapondo-se às pretensões unilaterais dos EUA. Essa aprovação encerrou a Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Trocas (General Agreement on Tariffs and Trade, GATT) e fundou a OMC no mesmo ano5454 Oliveira MF. Multilateralismo, Democracia e Política Externa no Brasil: Contenciosos das Patentes e do Algodão na Organização Mundial do Comércio (OMC). Context. Inter. 2007; 29(1):7-38..

Duas leis sancionadas em 1996 por FHC atestam a ambiguidade de seu governo: a lei de acesso universal a HAART no SUS e a nova lei de patentes2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22.,5555 Lena L. Os 10 anos da licença compulsória do Efavirenz: caminhos para garantir acesso aos medicamentos. Rio de Janeiro: ABIA; 2019. [accessed on 2023 Jan 29]. Available at: https://deolhonaspatentes.org/wp-content/uploads/2019/10/Os-_10_anos_do_Licenciamento-pdf.
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. Se a primeira institucionalizava o tratamento precoce dos doentes e portadores do vírus, colocando o problema da efetiva cobertura nacional e dos recursos para tal e atendia a demanda do ativismo da sociedade e da tecnocracia, a segunda favorecia os países e empresas detentoras das patentes, dificultando a produção nacional de genéricos, embora previsse a utilização da licença compulsória. Contudo, essa dualidade é coerente com a atuação internacional adotada pelos governos de FHC.

De fato, as vitórias da diplomacia brasileira na OMC contra os EUA, no contencioso das patentes (2001) e na disputa dos subsídios agrícolas (2003)5454 Oliveira MF. Multilateralismo, Democracia e Política Externa no Brasil: Contenciosos das Patentes e do Algodão na Organização Mundial do Comércio (OMC). Context. Inter. 2007; 29(1):7-38.,5555 Lena L. Os 10 anos da licença compulsória do Efavirenz: caminhos para garantir acesso aos medicamentos. Rio de Janeiro: ABIA; 2019. [accessed on 2023 Jan 29]. Available at: https://deolhonaspatentes.org/wp-content/uploads/2019/10/Os-_10_anos_do_Licenciamento-pdf.
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, negociações estas vinculadas entre si, sugerem aquela interpretação. Nos dois processos, a articulação entre diferentes atores do MRE e outros ministérios nacionais, assim como o apoio da sociedade civil doméstica e transnacional foram fundamentais5656 Almeida C, Braveman P, Gold MR, et al. Methodological concerns and recommendations on policy consequences of the World Health Report 2000. The Lancet. 2001 [accessed on 2023 Jan 29]; 357(9269):1692-7. Available at: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(00)04825-x.
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. Porém, havia dúvida sobre a efetividade do Acordo Trips: “quando o acordo Trips foi assinado, muitos de nós achávamos que tinha sido uma derrota, mas [pelo menos] tínhamos conseguido manter algumas ambiguidades”. (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

Para os atores brasileiros da diplomacia, a formulação e assinatura do Trips não tinha como foco a saúde e a importância da licença compulsória para produção de medicamentos genéricos só foi percebida posteriormente, com a mudança na conjuntura e, principalmente pela questão de acesso a medicamentos para a Aids:

Questões de saúde eram assuntos técnicos [...] eram acompanhados quando existia alguma interface com a diplomacia, mas circunstancialmente, sem muito relevo diplomático [...] não eram centrais para a perspectiva diplomática. (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

Essa percepção mudou nas discussões para a Quarta Conferência Ministerial (Qatar, 2001) que aprovou a Declaração de Doha autorizando a licença compulsória para medicamentos em caso de emergência de saúde pública.

No lançamento da Rodada de Doha [2001] o mundo havia mudado, principalmente em função da Aids […] tudo coincidiu e inspirou a tática na Rodada de Doha […] as ambiguidades viraram flexibilidades e foram consagradas na Declaração. (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

Várias iniciativas internacionais, em distintos fóruns e organizações, favoreciam a proposta do tratamento precoce na Aids2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22.,3737 Parker RG. Brazil and the AIDS Crisis. 2020. [accessed on 2021 Sept 26]. Available at: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199366439.013.865.
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. A adesão das organizações internacionais e dos países em desenvolvimento à política de tratamento universal foi crescente, pari passu à advocacia transnacional. Mesmo as grandes farmacêuticas produtoras dos ARVs pareciam ter-se dobrado às demandas e pressões por menor preço e licenciamento voluntário em alguns produtos e países específicos2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22., principalmente pela “ameaça de licenciamento compulsório e de produção de genéricos, utilizada competentemente pela diplomacia brasileira nas negociações da OMC” (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

A gestão de José Serra no Ministério da Saúde (1998-2002) teve aspectos positivos, para além da estabilidade da pasta: dos anos 1980 até 1998 a pasta da saúde teve grande rotatividade – na segunda metade dos anos 1980 o Brasil teve quatro ministros da saúde; e a instabilidade da pasta continuou no período seguinte – quatro ministros de 1990-1994 e três de 1995 a 1998. Assumir esse ministério não era sua demanda, mas aceitou o cargo com pretensões eleitorais. Seu desempenho como ministro se pautou pelo aproveitamento das oportunidades técnicas da área para se promover politicamente. Foi assim, por exemplo, no questionamento do relatório anual WHO 2000, que estabeleceu um ranking de performance dos sistemas de saúde dos países membros a partir de um índice composto, muito questionado metodologicamente, onde o Brasil (e outros países) estava bastante mal posicionado5757 Ugá A, Almeida C, Szwarcwald C, et al. Consideraciones Sobre el Informe de la OMS – 2000. Rev. de Salud Publ. 2001; 1(3):1-12.,5858 Oliveira MA, Bermudez JZ, Chaves GC, et al. Has the implementation of the TRIPS Agreement in Latin America and the Caribbean produced in intellectual property legislation that favours public health? Bulletin WHO. 2004; 82(11):815-821., e também nas discussões do contencioso das patentes e do acesso aos medicamentos para a Aids5959 Flynn M. Brazilian pharmaceutical diplomacy: social democratic principles versus soft power interests. Inter. J. Health Serv. 2013 [accessed on 2023 Jan 29]; 43(1):67-89. Available at: http://dx.doi.org/10.2190/HS.43.1.f.
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,6060 Santos Lima TGFM. Cooperação internacional do Brasil em HIV/Aids: institucionalização e especificidades nos contextos nacional e internacional. [thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2017. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/31151.
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.

Entrevistas com atores-chave confirmam as ‘batalhas pessoais’ do ministro, para angariar visibilidade e apoio nas suas pretensões eleitorais. Contudo, é reconhecida a importância de sua participação nos fóruns internacionais, mesmo defendendo posições diferentes das do presidente, somando-se aos demais esforços da diplomacia e contribuindo para a projeção e prestígio do Brasil na arena internacional, impulsionada pelos eventos da Aids.

Houve uma coincidência importante: Serra no Ministério da Saúde e Celso Amorim em Genebra […] Amorim tinha experiência prévia, tinha trabalhado no Ministério de Ciência e Tecnologia [1977-1989], acompanhado a discussão sobre patentes, participado da resistência à lei de patentes que os americanos forçaram para que fizéssemos mudanças, desde a época do Governo Sarney [meados dos anos 1980], pressões aprofundadas no Governo Collor [anos 1990] [...] e voltou a tratar desses assuntos em 1999-2000, quando retornou para Genebra e houve o ‘re-lançamento’ do tema.” (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

Não quero dizer que, nesta época, o Itamaraty era contra ou não apoiava a produção local de medicamentos, mas, naquele momento, não tinha a firmeza necessária para levar isso adiante. (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

A cooperação técnica internacional em HIV/Aids teve papel importante na diplomacia da saúde brasileira. Era um dos objetivos do programa nacional e foi institucionalizada como parte da estratégia de projeção internacional da experiência doméstica. Essa visibilidade foi possibilitada pelos empréstimos do Banco Mundial (Aids I, 1994-1998; e Aids II, 1999-2003) e impulsionada pela criação do Joint United Nations Programme on HIV/ AIDS (Unaids, em 1994)6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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. Pensada inicialmente para receber cooperação técnica, intermediada pelo Banco, possibilitou não apenas a institucionalização do programa nacional, mas também a implementação de arranjos triangulares para oferta de cooperação, ou seja, a cooperação recebida foi aproveitada para o fortalecimento da cooperação prestada, modelo tradicional de conformação do sistema brasileiro de cooperação internacional6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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,6262 Cervo AL. Socializando o desenvolvimento: uma história da Cooperação Técnica Internacional do Brasil. RBPI – Rev. Bras. Pol. Int. 1994 [accessed on 2022 Mar 2]; (1):37-63. Available at: https://www.academia.edu/4778231/Socializando_o_desenvolvimento_uma_história_da_cooperação_técnica_internacional_do_Brasil.
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,6363 Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. XII International – AIDS Conference – South Africa, 2000, 9-14 july. [accessed on 2020 Aug 20]. Available at: http://abiaids.org.br/_img/media/boletim45.pdf.
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.

A formalização da cooperação em Aids se deu primeiro com a criação do Grupo de Cooperação Técnica Horizontal em HIV/ AIDS (GCTH), em 1996, que congregava coordenadores dos programas nacionais de Aids de diferentes países, majoritariamente da América do Sul, sob a liderança do Brasil, e trabalhava junto com Unaids6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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. O GCTH estabelecia conexões diretas com os diretores dos programas nacionais em diferentes países, sem passar pelos caminhos oficiais do Ministério da Saúde (como por exemplo, pela Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde – AISA, formalizada em 1998, vinculada ao gabinete do Ministro da Saúde). Os contatos com a ABC/MRE eram apenas administrativos. Por outro lado, iniciam-se com esses arranjos as discussões sobre os princípios e valores ‘horizontais’ (Sul-Sul) que configurariam a cooperação brasileira posteriormente.

A apresentação da experiência brasileira na 13º Conferência Mundial de Aids, realizada em Durban (9-14 julho, 2000), questionando as posições defendidas pelas agências internacionais e propondo um novo consenso mundial, assim como argumentando que o aumento da produção de antirretrovirais genéricos era viável, estimulava a concorrência e a diminuição dos preços desses medicamentos6464 Berkman A, Garcia J, Muñoz-Labov, et al. A Critical Analysis of the Brazilian Response to HIV/AIDS: Lessons Learned for Controlling and Mitigating the Epidemic in Developing Countries. American J. of Public Health. 2005 [accessed on 2020 Aug 20]; 95(7):1162-1172. Available at: https://doi.org/10.2105/AJPH.2004.054593.
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,6565 Chaves GC. Interfaces entre a produção local e o acesso a medicamentos no contexto do Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio. [thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2016. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/20934.
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,6666 Marques RM. Permanência e ruptura na proteção social brasileira no período recente. Argumentum. 2019 [accessed on 2022 Mar 2]; 11(1):130-145. Available at: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/23131.
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, chamou a atenção do ministro da saúde. No mesmo evento, os técnicos brasileiros ofereceram ao mundo a cooperação técnica do Brasil em Aids como alternativa à cooperação técnica tradicional prestada pelos organismos e agências internacionais6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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O relato brasileiro na conferência exerceu grande apelo (nacional e internacional) e impulsionou uma maior articulação doméstica – entre o MS e o MRE –, com a participação de outras agências nacionais, para a preparação da posição brasileira na Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre Aids (Ungass-Aids), em 2001, Nova York. Ampliou-se assim o trabalho que o GCTH vinha desenvolvendo desde 1996. Essas articulações foram instrumentalizadas para construir posicionamentos e intervenções coordenadas dos países do Sul na Ungass, que consagrou, finalmente, o acesso universal aos antirretrovirais. Um dos resultados dessa dinâmica foi a incorporação de técnicos brasileiros às equipes do Unaids2323 Cueto M, Lopes G. Aids, Antirretrovirals, Brazil and International Politics of Global Health. Soc. Hist. Med. 2020; 34(1):1-22.,6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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A cooperação técnica brasileira em HIV/ Aids começou a se consolidar com o lançamento, em 2002, pelo Ministério da Saúde e o MRE, do Programa de Cooperação Internacional para Ações de Controle e Prevenção do HIV para países em desenvolvimento (PCI), que funcionava junto ao programa nacional.

Nos governos de Lula houve continuidade das políticas anteriores, mas com substantivas inflexões. Na área social, promoveram-se avanços nas condições de vida das faixas mais pobres da população, angariando apoio político-eleitoral de uma fração populacional diferente dos movimentos sociais e sindicatos, base política usual do partido6767 Singer A. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos Cebrap. 2009 [accessed on 2010 Oct 30]; (85). Available at: https://doi.org/10.1590/S010133002009000300004.
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,6868 Marques RM, Mendes A. O Social no Governo Lula: a construção de um novo populismo em tempos de aplicação de uma agenda neoliberal. Rev Econ. Polít. 2006 [accessed on 2020 Oct 9]; 26(1-101):58-74. Available at: https://www.scielo.br/j/rep/a/f4cK8XCb9sK7b5RjPLQ6zdy/?format=pdf&lang=pt.
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. Entretanto, foi iniciada a reforma da previdência social: novos critérios e contribuição adicional para aposentados. A tendência de aumento da presença do setor privado no campo social (educação superior e saúde) continuou6767 Singer A. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos Cebrap. 2009 [accessed on 2010 Oct 30]; (85). Available at: https://doi.org/10.1590/S010133002009000300004.
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,6969 Economic Commission for Latin America and Caribbean-ECLAC. Social Panorama of Latin America 2009. 2010. [accessed on 2018 Jul 6]. Available at: https://www.cepal.org/en/publications/1249-social-panorama-latin-america-2009.
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Em termos muito sintéticos, a política social dos governos petistas teve como lastro a transferência de renda condicionada, com o programa Bolsa Família (BF) – aprovado em 2003 –, que unificou todos os programas existentes até então, com o objetivo declarado de superar a pobreza absoluta e relativa de milhões de brasileiros, articulando com a saúde e a educação (quadro 2).

Porém, o BF não modificou os fatores estruturais e determinantes da pobreza e das desigualdades e não constituiu um direito, podendo ser facilmente descontinuado ou interrompido5151 Skocpol T. Targeting within Universalism: politically viable policies to combat poverty in the United States. In: Jencks CP, Paul E, editors. The urban underclass. Washington, DC: The Brookings Institution; 1991. p. 411-36.,6767 Singer A. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos Cebrap. 2009 [accessed on 2010 Oct 30]; (85). Available at: https://doi.org/10.1590/S010133002009000300004.
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,6969 Economic Commission for Latin America and Caribbean-ECLAC. Social Panorama of Latin America 2009. 2010. [accessed on 2018 Jul 6]. Available at: https://www.cepal.org/en/publications/1249-social-panorama-latin-america-2009.
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O BF interagia com a Política Nacional de Assistência Social, formulada com intensas discussões e processos de mobilização social na sociedade civil, desde os anos 1990 (como a ‘Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida’, programa da ONG Ação da Cidadania, criada por Herbert Daniel de Souza, o Betinho, que teve enorme repercussão no Brasil). Segundo a Cepal (2009)7070 Afonso JRR. Descentralização fiscal, políticas sociais, e transferência de renda no Brasil. Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificación Económica y Social-ILPES-Cepal/GTZ. 2007. [accessed on 2021 Aug 27]. Available at: https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/7319-descentralizacao-fiscal-politicas-sociais-transferencia-renda-brasil.
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, programas como o BF são parte de uma ‘segunda geração’ de políticas sociais na América Latina, consideradas necessárias frente aos escassos avanços em matéria de redução da pobreza durante os anos 1990. O programa atendia (em 2016) cerca de 58% da população e era altamente focalizado, de modo a assegurar a redução da pobreza e da extrema pobreza7171 Couto CG. Hacia el centro: el PT y el gobierno de Lula en Brasil. Rev Temas debates. 2010; 14(20):125-139.. A valorização do salário mínimo, por outro lado, foi uma segunda estratégia bem-sucedida e complementar ao BF, pois promoveu a elevação dos benefícios previdenciários, vinculados ao salário mínimo: o aumento do salário mínimo foi de 54%, em termos reais, entre dezembro de 2002 e dezembro de 20105151 Skocpol T. Targeting within Universalism: politically viable policies to combat poverty in the United States. In: Jencks CP, Paul E, editors. The urban underclass. Washington, DC: The Brookings Institution; 1991. p. 411-36..

Em síntese, as políticas de renda de Lula, associadas à estabilidade monetária e à retomada do crescimento econômico (no segundo governo), fomentaram o aumento da formalização do trabalho6767 Singer A. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos Cebrap. 2009 [accessed on 2010 Oct 30]; (85). Available at: https://doi.org/10.1590/S010133002009000300004.
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,6969 Economic Commission for Latin America and Caribbean-ECLAC. Social Panorama of Latin America 2009. 2010. [accessed on 2018 Jul 6]. Available at: https://www.cepal.org/en/publications/1249-social-panorama-latin-america-2009.
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,7272 Pereira JMM. O Banco Mundial e a construção político-intelectual do combate à pobreza. Topoi (Rio J.). 2010 [accessed on 2021 Aug 27]; 11(21):260-282. Available at: https://doi.org/10.1590/2237-101X011021014.
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Na saúde, a implementação do SUS continuou com apoio político retórico do Presidente e o subfinanciamento se agravou com o término dos recursos da CPMF, suspensa em 2007. Mesmo assim, os princípios de um sistema público e universal de saúde e a licença compulsória para produção do antirretroviral Efavirenz, em 2008, conduzida pelo então ministro José Gomes Temporão, apoiado por intensa mobilização da sociedade civil5656 Almeida C, Braveman P, Gold MR, et al. Methodological concerns and recommendations on policy consequences of the World Health Report 2000. The Lancet. 2001 [accessed on 2023 Jan 29]; 357(9269):1692-7. Available at: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(00)04825-x.
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, alavancaram e potencializaram o alcance internacional do Brasil.

Embora a transição de governo não tenha alterado o desenho e a estratégia da cooperação internacional em Aids, sua implementação foi ampliada e diversificada com a decisiva participação do MRE e suas agências, e a cooperação internacional Sul-Sul adquiriu crescente importância na PEB a partir de então.

A execução do terceiro empréstimo do Banco Mundial (Aids III, 2004-2007) possibilitou a criação de assessorias na direção do programa nacional, ampliou as parcerias com agências internacionais e com novos financiadores que atuavam de forma triangulada em projetos de cooperação6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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. A atuação mais efetiva do MRE foi formalizada com a assinatura, em 2005, de um Memorando de Entendimento entre os dois ministérios – da Saúde e das Relações Exteriores6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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para apoiar a cooperação técnica em HIV/Aids [especialmente em 2005-2006], de forma coordenada, e que incluía o diálogo com outros setores do governo e com outros países para a difusão da política brasileira. (Entrevista ator-chave, Ministério da Saúde).

A aplicação bem-sucedida do programa nacional de Aids à convocatória de Unaids, para ser um Technical Support Facilities, possibilitou a criação do Centro Internacional de Cooperação Técnica em HIV/Aids (Cict) em 2005. O Cict congregava várias instituições e organizações, nacionais e internacionais, bem como agências da ONU, e funcionava como uma ‘rede colaborativa com governança compartilhada’6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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. A execução da cooperação era responsabilidade do programa nacional, ampliando as parcerias e os financiamentos, o que demandou grande esforço de coordenação6161 Puente CAIA. Cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento da política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD – no período 1995-2005. Brasília, DF: FUNAG; 2010. [accessed on 2022 Mar 2]. Available at: http://funag.gov.br/loja/download/715-Cooperacao_Tecnica_Horizontal_Brasileira_como_Instrumento_da_PolItica_Externa_A.pdf.
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O tema central era a produção e distribuição de medicamentos e a discussão mundial da questão das patentes. A coordenação era excelente, porque quando a agenda nacional chegava no âmbito internacional, estava bem estruturada e alinhada com os dois setores [saúde e diplomacia]. [...] havia reuniões regulares com o MRE sobre questões de saúde e atividades conjuntas para decisões adequadas que não pudessem ser questionadas na justiça [como por ex., a licença compulsória do Efavirenz]. (Entrevista com ator-chave, Ministério da Saúde)

A institucionalização do Cict possibilitou a contratação de consultores melhor remunerados, com perfis técnicos específicos, a fim de atender a demanda de cooperação dos diferentes países. Porém, os parceiros internacionais passaram a interferir no processo de cooperação brasileiro, o que produziu desgaste com alguns financiadores.

Em 2009 houve uma reestruturação interna no Ministério da Saúde. Foi criado o Departamento Nacional de DST/Aids e Hepatites Virais, subordinado à Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde (SVS), e ocorreram mudanças nas ações financiadas pelo Banco Mundial (Aids-SUS). As alterações estavam voltadas para o planejamento da horizontalidade e integração das atividades entre níveis de governo e, paulatinamente, alteraram a condução institucional do controle da Aids. Começam aí, no âmbito desse departamento, alguns conflitos na tecnoburocracia ministerial (entrevista com ator-chave, Ministério da Saúde). A mudança não alterou a condução do programa e o departamento continuou a trabalhar de forma conjunta com os movimentos sociais e a sociedade.

O programa nacional financiava eventos voltados para a diminuição do estigma e da discriminação (por ex, as paradas gays) através do PAM [Programa de Ações e Metas], cujos recursos eram transferidos para estados e municípios. (Entrevista com ator-chave, Ministério da Saúde).

Os esforços para alinhar a cooperação em Aids às práticas da ABC/MRE, aproveitando a experiência, capacidade de interlocução e de liderança do programa nacional, interna e externamente, não foram bem recebidos pelos atores internacionais que pretendiam interferir na autonomia decisória nacional. A ruptura com esse modelo foi decidida pelo governo brasileiro em 2010, quando finalizou o segundo Memorando de Entendimento com Unaids. A partir de então, o Cict deveria ser totalmente gerenciado pela ABC e o governo brasileiro passou a ser o principal financiador da cooperação. Em pouco tempo o Cict foi extinto.

Evidencia-se o paulatino destaque que a cooperação Sul-Sul em saúde foi adquirindo nos documentos oficiais do MoH (tais como o ‘Plano Nacional de Saúde 2004-2007: um pacto pela saúde no Brasil’; e o ‘Mais Saúde: Direito de Todos 2008-2011’, e suas sucessivas versões até 2015), vinculada à ‘internacionalização do Ministério da Saúde’, às boas experiências do SUS (HIV/Aids, câncer, controle do consumo de tabaco etc.) ou à política nacional de saúde, sempre explicitamente articulada com a política externa e o MRE.

Além da questão da Aids, a estratégia de Lula de vincular ‘pobreza (como causa da fome) e desenvolvimento’, também tem origem nas demandas da sociedade. A proposta ‘Fome Zero’, carro-chefe de seus governos, retomou uma discussão política e econômica de décadas passadas. Porém, ‘a construção político-intelectual do combate à pobreza’ foi obra do Banco Mundial, na gestão de McNamara (1968-1981), cujo principal objetivo era transformar o banco em uma ‘agência de desenvolvimento’7373 Pereira JM.M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.,7474 Almeida C. O Banco Mundial e as reformas contemporâneas do setor saúde. In: Pereira JMM, Pronko M, organizers. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz; 2015. p. 183-232. [accessed on 2020 Feb 2]. Available at: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Material&Tipo=8&Num=240.
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. No mesmo período o Banco Mundial aumentou seu interesse e protagonismo na saúde, com crescente influência na área7575 United Nations. Meetings Coverage and Press Release. Transcript of joint press conference by secretary-general and presidents of France, Brazil and Chile at Palais des Nations, Geneva, 30 January, 2004. Geneva: UN. [accessed on 2021 Jan 25]. Available at: https://press.un.org/en/2004/sgsm9142.doc.htm.
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. Portanto, a questão da saúde e da pobreza no mundo já havia sido capturada por essa outra instituição.

No plano internacional, a discussão do tema foi retomada em uma Joint Press Conference da ONU com o secretário geral e os presidentes da França, do Brasil e do Chile, no Palais de Nations em Genebra (30 de Janeiro, 2004)7676 Centro Colaborador em Vigilância Sanitária-CECOVISA. Unitaid: uma junção de esforços para controlar o HIV/Aids, a Tuberculose e a Malária – Entrevistando Jorge Bermudez. 2012. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. [accessed on 2021 Jan 25]. Available at: http://www6.ensp.fiocruz.br/visa/?q=node/2084.
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e, posteriormente, em uma reunião que discutiu a ‘Ação contra a fome e a pobreza’, uma iniciativa de chefes de Estado convocada pelos presidentes do Brasil, França, Chile e Espanha, realizada paralelamente à AGNU, na sede da ONU, em Nova Iorque-EUA (20 de setembro de 2004). A proposta era ‘somar os esforços em torno de um objetivo comum’ e buscar soluções para o seu enfrentamento.

Lutar contra a fome e a pobreza não é um ideal utópico; consiste em lutar contra a exclusão e a desigualdade e a favor da justiça social e do crescimento econômico sustentável […] O desafio hoje é combinar estabilidade econômica e inclusão social. […] Nós concordamos com fazer um apelo conjunto para o estabelecimento de uma […] aliança global contra a fome e a pobreza [… tal aliança] deve possibilitar que os países em desenvolvimento recebam apoio contínuo a partir do livre comércio internacional, alívio da dívida externa, investimentos estrangeiros, maior ajuda internacional e mecanismos financeiros alternativos. [Discurso do presidente Lula na Joint Press Conference, 2004]7676 Centro Colaborador em Vigilância Sanitária-CECOVISA. Unitaid: uma junção de esforços para controlar o HIV/Aids, a Tuberculose e a Malária – Entrevistando Jorge Bermudez. 2012. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. [accessed on 2021 Jan 25]. Available at: http://www6.ensp.fiocruz.br/visa/?q=node/2084.
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.

No relatório técnico elaborado pelos quatro países são discutidos mecanismos financeiros inovadores. A mesma retórica foi difundida em outras reuniões mundiais e cúpulas posteriores sobre o desenvolvimento (por exemplo, a Declaração de Nova York de Fontes Inovadoras de Financiamento para o Desenvolvimento, de 2005).

Contudo, o Brasil não conseguia emplacar o Fome Zero como uma política internacional:

Mostrou-se muito difícil implementar o que o presidente queria em matéria de combate à fome [...] isso fez levar o esforço para a questão do acesso a medicamentos [...] Era uma oportunidade muito concreta que envolvia muitos países e teria impacto também na luta contra a fome e a pobreza. […] desde então [2004] ficamos mais atentos sobre a importância da saúde. […] esses esforços levaram ainda à criação da Unitaid [2006]. (Entrevista com ator-chave, Itamaraty).

A criação da UNITAID foi um desdobramento desse processo, lançada em setembro de 2006 durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, apoiada por Chile, França, Brasil, Noruega e Reino Unido. Trabalha em parceria com vários atores – governamentais, multilaterais, não-governamentais, PPPs e fundações privadas (por exemplo, a FBMG), como explicita Jorge Bermudez, brasileiro e ex-diretor da Unitaid:

A UNITAID é uma organização inovadora no financiamento que utiliza mecanismos centrados na dinâmica do mercado para expandir o acesso a tratamentos e diagnósticos para a HIV/Aids, tuberculose e malária, onde se tenta balancear preços mais baixos, qualidade, rapidez na disponibilidade e escala7777 Fazal TM. Health Diplomacy in Pandemical Times. International Organization. 2020 [accessed on 2021 Jan 25]; 74(supl):E78-E97. Available at: https://doi.org/10.1017/S0020818320000326.
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(s/p).

Em síntese, o BF, os princípios do SUS, o controle da Aids, as relações entre fome/ pobreza e questões estruturais, produziram princípios que foram amplamente difundidos e internacionalizados nos discursos do presidente Lula e da diplomacia, assim como nos projetos de CSS em saúde.

Considerações finais

A ‘diplomacia da saúde brasileira’ pode ser melhor entendida considerando a PEB como uma política pública e examinando o papel da política social (incluída a de saúde) na formação e implementação da política externa em dado período, assim como o papel político dessa discussão7878 Pêgo RA, Almeida C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cad. Saúde Pública. 2002 [accessed on 2021 Jan 25]; 18(4):971-989. Available at: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2002000400006.
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. Foi crucial a prioridade dada ao ‘social’ na agenda internacional do Brasil, um processo que emana da sociedade civil.

As mudanças que ocorreram no Brasil com o fim da ditadura militar e a redemocratização se refletiram em todas as políticas públicas, inclusive na política externa. Por um lado, passou-se a operar com grande pluralidade de atores e agendas nas diferentes áreas, tanto os tradicionais quanto os não-governamentais. As transformações da ordem internacional e a globalização articuladas com a ordem doméstica impulsionaram debates sobre múltiplos temas e diversificaram as ações internacionais do Brasil, abrindo espaço para ampla mobilização e advocacia políticas, a despeito das desigualdades estruturais e diferenças entre os países no sistema mundial.

Na saúde havia antecedentes. Desde os anos 1960, iniciativas brasileiras foram posteriormente retomadas no plano internacional. Essas experiências foram levadas por profissionais brasileiros para a Opas e, posteriormente, para a OMS – por exemplo, uma série de ideias sobre a atenção primária foram consideradas no Brasil 12 anos antes de Alma-Ata. O mesmo é verdade para a questão dos recursos humanos, determinantes sociais da saúde e outros temas. Pode-se dizer que a ‘saúde coletiva’ (conceito criado nos anos 1970, no Brasil)7979 Loyola MA. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saúde Soc. 2012 [accessed on 2013 Jul 5]; 21(1). Available at: https://doi.org/10.1590/S010412902012000100002.
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nasceu internacionalizada8080 Buss P, Ferreira JR. Diplomacia da saúde e cooperação Sul-Sul: as experiências da Unasul saúde e o Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). RECISS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. 2010 [accessed on 2012 Mar 2]; 4(1):106-118. Available at: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/712.
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. Todos os principais movimentos pela saúde no Brasil e na região latino-americana (pelo menos os mais relevantes – da medicina social, do planejamento setorial e estratégico e da reforma do setor saúde), tiveram vínculos e trocas com instituições, atores e ideias internacionais, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

A criação do SUS – como um sistema público e universal, a defesa dos serviços e atividades de saúde como um bem público e da saúde como parte fundamental do desenvolvimento, há décadas são bandeiras de expressiva parcela dos profissionais da saúde no Brasil, assim como de instituições de renome na área (Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer – Inca, Instituto Butantã, entre outras). O fortalecimento dos sistemas públicos de saúde é uma consigna importante dos representantes brasileiros nos fóruns da OMS.

A expansão da presença de atores da sociedade civil nessas discussões foi construída paulatinamente, desde o início da transição política (1985-1990), e se intensificou nos anos 1990. Este foi um dos desdobramentos importantes do processo de redemocratização da sociedade brasileira, onde movimentos sociais cresceram – também a partir de motivações setoriais (pela reforma do setor saúde) e temáticas (pelo controle da epidemia de HIV/ Aids) – passaram a reivindicar direitos (sociais, humanos, de voz e voto) e políticas públicas universais e solidárias que qualificaram a luta contra a ditadura e a transição política. Essa prática foi reforçada pela incorporação de profissionais militantes no aparelho de Estado. Em outras palavras, pode-se dizer que o Brasil já exercia algum tipo de ‘diplomacia da saúde’ antes mesmo do termo existir.

Entretanto, somente nos dois governos de Lula a saúde entrou de fato na agenda da PEB como um significativo elemento de apoio à projeção internacional do Brasil. A diplomacia da saúde, fortalecida e estimulada nesse período, adquiriu certa ‘autonomia’ como área de prática setorial, possibilitada pelo ativismo e comprometimento de diferentes atores, estatais e não estatais, vinculados aos movimentos sociais e ao aparelho de Estado. A ‘internacionalização de políticas domésticas’ promovida pelo Brasil nesse mesmo período estava apoiada nesses desenvolvimentos domésticos e se vinculava às estratégias brasileiras para a ascensão do País no sistema internacional, à qual se articulou também à Cooperação Sul-Sul (CSS), uma estratégia importante da política externa, principalmente no período 2003-2010, atualizando as discussões históricas que influenciaram a atuação dos governos brasileiros após a transição democrática.

A CSS em saúde foi particularmente importante nesse momento2424 Milani C, Pinheiro L, Lima MRS. Brazil’s foreign policy and the ‘graduation dilemma’. Intern. Affairs. 2017; 93(3):585-605.,4848 Milani C. Brazil’s South-South Co-operation Strategies: From Foreign Policy to Public Policy. Occasional Paper 179, Global Powers and Africa Programme. Johannesburg, South Africa: South African Institute of International Affairs; 2014.,8181 Carillo-Roa AC, Santana JP. Regional integration and South-South cooperation in health in Latin America and the Caribbean. Rev. Panam. Salud Publica. 2012 [accessed on 2013 May 18]; 32(5):368-375. Available at: https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2012.v32n5/368-375.
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,8282 Andrade SZD. Análise Histórica do Processo de Criação e Desenvolvimento da Rede de Institutos Nacionais de Câncer–RINC, da UNASUL/Saúde. [dissertation]. Rio de Janeiro: Ensp, Fiocruz; 2014. [accessed on 2021 Jan 25]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/14411/ve_Soraya_Zacarias_ENSP_2014?sequence=1&isAllowed=y.
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ha...
, alavancou e sustentou a diplomacia da saúde, implementada por demanda (demand-driven)4848 Milani C. Brazil’s South-South Co-operation Strategies: From Foreign Policy to Public Policy. Occasional Paper 179, Global Powers and Africa Programme. Johannesburg, South Africa: South African Institute of International Affairs; 2014., ou seja, não se tratava, em tese, de simples exportação nem de imposição de práticas de políticas públicas, mas de atender demandas de países e regiões (África e América Latina). Não por acaso, foram criados na Unasul dois conselhos de ministros – um de saúde e outro de defesa. Em 15 de maio de 2009, foi aprovado o Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (Pecs/CPLP), com prioridade para os países membros da África8181 Carillo-Roa AC, Santana JP. Regional integration and South-South cooperation in health in Latin America and the Caribbean. Rev. Panam. Salud Publica. 2012 [accessed on 2013 May 18]; 32(5):368-375. Available at: https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2012.v32n5/368-375.
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. Em 2007 foi criada a Aliança da América Latina e Caribe para o Controle do Câncer, iniciativa do Inca, que também a coordenou; em 2010, a Aliança foi transformada na Rede de Institutos Nacionais do Câncer, no âmbito da cooperação internacional da Unasul/saúde, também coordenada pelo Inca8383 Almeida C. Global Health Diplomacy: A Theoretical and Analytical Review. Oxford Research Encyclopedia, Public Health Policy and Governance. Oxford: Oxford University Press; 2020. [accessed on 2021 Jan 25]. Available at: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190632366.013.25.
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. A PEB assumiu, naquele período, uma anunciada “ética de solidariedade entre os países em desenvolvimento”, com uma dimensão política explícita,

que possibilitou uma plataforma para cooperação entre países que queriam fortalecer suas coalizões bilaterais e multilaterais para aumentar seu poder de barganha na agenda global4848 Milani C. Brazil’s South-South Co-operation Strategies: From Foreign Policy to Public Policy. Occasional Paper 179, Global Powers and Africa Programme. Johannesburg, South Africa: South African Institute of International Affairs; 2014.(7).

O ativismo diplomático brasileiro na saúde – entendido tanto como ação de determinadas ‘comunidades de políticas’ no espaço sócio-político nacional e global8484 Porte LH, Machado CV, Turci SRB, et al. Tobacco Control Policies in Brazil: a 30-year assessment. Ciênc. saúde coletiva. 2018 [accessed on 2021 Jan 25]; 23(6):1837-1848. Available at: https://10.1590/1413-81232018236.05202018.
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, quanto pela atividade de diplomatas em períodos específicos – tem pelo menos duas vertentes: uma centrada na advocacia nacional e transnacional, e outra na atuação coordenada dos representantes brasileiros (diplomatas ou de outras agências) nas arenas internacionais, articulados com ativistas da sociedade civil e do aparelho de Estado. A articulação de variáveis internas e externas na formulação e implementação dessas políticas é crucial nessa dinâmica. Semelhante inter-relação (interno/externo) se observa em outros momentos, como no protagonismo brasileiro na elaboração da Convenção Quadro de Controle do Tabaco desde os anos 19801414 Lee K, Chagas LC, Novotny TE. Brazil and the framework convention on tobacco control: global health diplomacy as soft power. PLoS Med. 2010; 7(4):e1000232.,8484 Porte LH, Machado CV, Turci SRB, et al. Tobacco Control Policies in Brazil: a 30-year assessment. Ciênc. saúde coletiva. 2018 [accessed on 2021 Jan 25]; 23(6):1837-1848. Available at: https://10.1590/1413-81232018236.05202018.
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,8585 Araujo Neto LA, Teixeira LA, Turci SRB, et al., organizers. Luta contra o Tabaco no Brasil – 40 anos de história. Rio de Janeiro: Outras Letras; 2022., combinando a expertise da política brasileira de controle do tabagismo (iniciativa do Inca) com a competente atuação da diplomacia brasileira nas arenas internacionais. Entretanto, nestes casos o ativismo não envolvia a política externa propriamente dita.

Apesar da importância desses desdobramentos, eles não significam, por si só, que diferentes atores têm o mesmo peso doméstico e internacional, tampouco que o ativismo societário se traduz de imediato em política externa de um determinado país, ainda que tenha promovido a formulação e implementação de políticas domésticas bem-sucedidas, delimitadas no tempo, e projetado suas lutas internacionalmente. Da mesma forma, a internacionalização de valores e princípios não se traduz a priori na mimetização de políticas alhures ou na reprodução de processos desencadeados por contexto nacional específico.

Embora a advocacia da sociedade seja extremamente relevante, sua efetividade depende das escolhas governamentais, da contrapartida de outros atores e da institucionalização das políticas públicas domésticas e internacionais. Estas, por sua vez, podem ser desestruturadas ou até destruídas, dependendo das coalizões políticas que as sustentam, uma vez que ‘as instituições são mais permeáveis aos processos’ (process-oriented), como analisado por Jönsson & Hall, citado por Almeida8484 Porte LH, Machado CV, Turci SRB, et al. Tobacco Control Policies in Brazil: a 30-year assessment. Ciênc. saúde coletiva. 2018 [accessed on 2021 Jan 25]; 23(6):1837-1848. Available at: https://10.1590/1413-81232018236.05202018.
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, isto é, são dependentes de regras formais e informais que prescrevem comportamentos, constrangimentos, atividades e modelam expectativas. De fato, arranjos institucionais mudam e se adaptam às relações entre atores em diferentes contextos e conjunturas, em um processo constantemente inclinado a conflitos, voltas e reviravoltas.

Nessa perspectiva, a permanência somente da advocacia não é suficiente para promover mudanças nas políticas nacionais e internacionais: as escolhas governamentais também são determinantes. Porém, são essenciais para manter viva a luta pelos direitos humanos, em geral e na saúde, e pela solidariedade entre os povos, além da vigilância (e pressão) sobre as ações governamentais. Enfatiza-se, assim, a importância de estudos mais sistemáticos e rigorosos sobre as possibilidades e limitações dos nexos entre saúde e relações internacionais, assim como da denominada diplomacia da saúde.

Agradecimentos

Este artigo é o Estudo de Caso do Brasil, integra o projeto ‘Global Health Diplomacy: An explanatory multi-case study of the integration of health into foreign policy – Canada, Brazil, Mexico, and Chile’, desenvolvido em parceria com a Universidade de Ottawa. Agradecemos a Ronald Labonté (coordenador geral do projeto) e Arne Rückert (coordenador adjunto), ambos da Universidade de Ottawa, Canadá, pelas discussões e troca de ideias; e também aos assistentes da pesquisa do caso brasileiro, que apoiaram o trabalho de campo em diferentes momentos: Thaisa Santos Lima, Alexandre Alvarenga, André Saboya, Ana Marcela da Silva Terra, Carolina Fontes dos Santos e Rosiane Martins dos Santos. Obviamente todas as análises e eventuais erros são de total responsabilidade dos autores.

  • Financial support: The project ‘Global Health Diplomacy: An explanatory multi-case study of the integration of health into foreign policy – Canada, Brazil, Mexico and Chile’, was supported by the Canadian Institutes of Health Research [grant number 136927]; and the Brazilian Case Study was also supported by the National School of Public Health (ENSP), Oswaldo Cruz Foundation, Rio de Janeiro, Brazil (ENSP, Call for Research 2016/2018)
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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Publication Dates

  • Publication in this collection
    03 Apr 2023
  • Date of issue
    Jan-Mar 2023

History

  • Received
    09 Sept 2022
  • Accepted
    09 Feb 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br