Prevalência e fatores associados à violência no trabalho contra residentes multiprofissionais durante a pandemia

Eder Samuel Oliveira Dantas Carinne Magnago Juliano dos Santos João de Deus de Araújo Filho Karina Cardoso Meira Sobre os autores

RESUMO

Estudo transversal cujo objetivo foi identificar a prevalência e os fatores associados à violência no trabalho (física e/ou verbal) contra residentes multiprofissionais que atuam em um hospital universitário durante a pandemia da Covid-19. Foi desenvolvido um censo, em julho de 2020, com 67 residentes. Dados foram coletados por meio de questionário eletrônico, avaliando-se a violência física e verbal mediante autorrelato. Associações entre a ocorrência de violência vivida durante a pandemia e as variáveis independentes (sociodemográficas, psicoemocionais e atendimento ao paciente com Covid-19) foram analisadas mediante testes estatísticos e Regressão de Poisson (RP) com variância robusta. A prevalência de violência foi de 22,4%. Diferenças entre grupos foram observadas ao comparar as ocupações e o grau de satisfação com a residência, com maior proporção de fisioterapeutas e assistentes sociais, assim como de residentes insatisfeitos entre os que relataram violência (p≤0,005). Após análise de regressão, a violência esteve associada ao aumento da idade (RP=1,25; IC95% 1,12-1,40) e a níveis de ansiedade moderados/graves (RP =2,87; IC 95% 1,12-1,40). Os achados apontam para a necessidade de implementação de medidas institucionais de prevenção e controle da violência no trabalho, considerando os fatores associados durante a pandemia.

PALAVRAS-CHAVE
Violência no trabalho; Internato e residência; Pandemias; Covid-19; Prevalência

Introdução

A violência se desenvolve na vida e na sociedade e é influenciada por contextos históricos, culturais e políticos. Ela apresenta-se em relações constituídas por opressão, intimidação e medo, transformando diferenças em desigualdades11 Abdelnour S, Abu Moghli M. Researching violent contexts: A call for political reflexivity. Organization. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 135050842110306. Disponível em: https://doi.org/10.1177/13505084211030646.
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. Quando a violência está relacionada com o trabalho, pode haver privação de direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários, omissão em oferecer condições saudáveis de trabalho e naturalização de doenças decorrentes dele. Nesse sentido, manifesta-se por meio de violência física e/ou psicológica, assédio sexual, abuso, bullying e discriminação de gênero ou raça, impactando a saúde do trabalhador e a qualidade de seu desempenho22 International Labour Organization. Safe and healthy working environments free from violence and harassment. Geneva: International Labour Organization; 2020., 33 Fnais N, Soobiah C, Chen MH, et al. Harassment and discrimination in medical training: a systematic review and meta-analysis. Acad. Med. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 89(5):817-827. Disponível em: https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000200.
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, 44 Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saúde Soc. 2008 [acesso em 2022 mar 19]; 17(4):22-34. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000400004.
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A violência no trabalho na área da saúde constitui quase um quarto de todas as violências no trabalho notificadas, sendo um importante problema de saúde pública e um fator de preocupação em vários países55 Di Martino V. Workplace violence in the health sector. Relationship between work stress and workplace violence in the health sector. Geneva: International Labour Office; 2003.. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a incidência de lesões em trabalhadores da saúde relacionadas com a violência aumentou 67% entre 2011 e 2018. Eles têm cinco vezes mais chance de sofrer violência no local de trabalho do que todos os demais trabalhadores. Além disso, embora menos de 20% de todas as lesões no local de trabalho ocorram com profissionais de saúde, eles sofrem 50% de todas as agressões66 United States Bureau of Labor Statistics. Fact sheet: Workplace Violence in Healthcare, 2018. Washington, DC: Bureau of Labor Statistics; 2020..

Os poucos estudos realizados no Brasil também revelaram índices significativos de violência contra profissionais da área. Um deles, produzido com 267 trabalhadores da enfermagem, revelou que 61,6% relataram ter sido vítimas de abuso verbal, assédio sexual ou violência física no trabalho nos últimos 12 meses77 Bordignon M, Monteiro MI. Analysis of workplace violence against nursing professionals and possibilities for prevention. Rev. Gaúcha Enferm. 2021 [acesso em 2022 mar 16]; (42):e20190406. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20190406.
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. Em outro, cuja amostra foi composta por 269 profissionais, a prevalência de violência física e psicológica foi de 15,2% e 48,7% respectivamente88 Pai DD, Sturbele ICS, Santos C, et al. Physical and psychological violence in the workplace of healthcare professionals. Texto Contexto – Enferm. 2018 [acesso em 2022 mar 16]; 27(1):e2420016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-07072018002420016.
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O caráter multifacetado e social da violência apresenta novos desafios hoje, quando o mundo vive uma pandemia de difícil controle. No Brasil, os residentes multiprofissionais de saúde tiveram um papel muito importante no enfrentamento dessa emergência sanitária, lutando pelo bom funcionamento dos serviços públicos de saúde ao lado dos profissionais em exercício, os quais, muitas vezes, reconhecem os residentes como profissionais com autonomia para realizar condutas individuais sem limitações ou supervisão, capazes de suprir a carência imediata de recursos humanos33 Fnais N, Soobiah C, Chen MH, et al. Harassment and discrimination in medical training: a systematic review and meta-analysis. Acad. Med. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 89(5):817-827. Disponível em: https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000200.
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, 99 Rodrigues TF. Residências Multiprofissionais em Saúde: Formação ou trabalho? Serv. Soc. Saúde. 2016 [acesso em 2022 mar 15]; 15(1):71-82. Disponível em: https://doi.org/10.20396/sss.v15i1.8647309.
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Durante a pandemia, os residentes precisaram agir sob maiores níveis de pressão; relações interpessoais enfraquecidas; demandas de profissionais e supervisores; e medo da falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), de não ter acesso igualitário às vacinas em relação aos demais profissionais de saúde e de se infectar e morrer. Assim, a pandemia da Covid-19 pode ter tornado essa população mais vulnerável à violência em seus locais de trabalho1010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
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, 1111 Dantas ESO, Araújo Filho JD, Silva GWS, et al. Factors associated with anxiety in multiprofessional health care residents during the COVID-19 pandemic. Rev. Bras. Enferm. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 74(supl1):e20200961. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0961.
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O contexto de violência no trabalho de residentes pode ser desencadeado e agravado por inúmeros fatores: estresse ocupacional devido à alta carga de trabalho semanal, ocorrência da síndrome de burnout e suas características (exaustão emocional, despersonalização e desrealização) e a falta de experiência profissional anterior1212 Silva RMB, Moreira SNT. Estresse e Residência Multiprofissional em Saúde: compreendendo significados no processo de formação. Rev. Bras. Educ. Med. 2019 [acesso em 2022 mar 15]; 43(4):157-166. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n4RB20190031.
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. Esta última dificulta o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e/ou a naturalização da violência quando apresentada de forma mais sutil1313 Abreu-Reis P, Oldoni C, de-Souza GAL, et al. Psychological aspects and quality of life in Medical Residency. Rev. Col. Bras. Cir. 2019 [acesso em 2022 mar 15]; 46(1):e2050. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0100-6991e-20192050.
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Diante dessa realidade e da escassez de estudos que analisem a ocorrência de violência no trabalho na área da saúde1010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
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, principalmente entre estudantes e residentes, e dada a importância de verificar esse fenômeno em um cenário de pandemia, este estudo teve como objetivo: identificar a prevalência da violência (física e/ou verbal) e seus fatores associados em residentes multiprofissionais que atuam em um hospital de grande porte brasileiro durante a primeira onda da pandemia da Covid-19.

Material e métodos

Trata-se de estudo transversal realizado em um hospital universitário de grande porte localizado no estado do Rio Grande do Norte, que possui 242 leitos hospitalares. Foi conduzido de acordo com os aspectos éticos a serem observados nas disposições da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, sobre ética nas pesquisas com seres humanos, sendo, portanto, submetido e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Certificado nº 28003720.7.0000.5292).

A coleta de dados foi realizada entre os dias 12 e 24 de julho de 2020, período em que o hospital já prestava assistência direta aos casos suspeitos e confirmados da Covid-19. O recrutamento dos residentes participantes ocorreu por meio de contato telefônico e abordagem em serviço, e a coleta de dados ocorreu on-line, na plataforma Google Forms®. O link do formulário foi enviado por meio do aplicativo WhatsApp® ou por e-mail, a critério do participante. Após esclarecimento e conhecimento da participação voluntária, métodos e procedimentos, todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O estudo consistiu em um censo. Isto é, todos os residentes dos programas multiprofissionais de saúde do hospital (Terapia Intensiva Adulto, Saúde da Criança, Cardiologia e Atenção Psicossocial) foram convidados a participar do estudo. Não havendo recusa, a amostra foi composta por todos os convidados (n=67).

Os residentes foram questionados sobre o seu perfil sociodemográfico (idade, sexo, raça/cor da pele, estado civil, profissão, renda familiar); atuação profissional na residência (programa, ano de residência) e o seu grau de satisfação com o programa; histórico de acompanhamento psicológico e psiquiátrico e uso de psicofármacos; enfrentamento da Covid-19 (atuação no setor da Covid-19, treinamento, segurança, uso de EPI e estratégias de enfrentamento psicossocial); e violência no trabalho (física e/ou verbal sofrida durante a pandemia, independentemente do perpetrador). A variável raça/cor da pele foi discriminada nas seguintes categorias: negra (parda e preta) e não negra (branca).

A ocorrência de violência foi avaliada a partir da pergunta: ‘Você já sofreu agressão física e/ou verbal no trabalho hospitalar durante a pandemia de Covid-19?’, podendo haver resposta dicotômica (sim ou não). A agressão física foi considerada como o uso da força que resulta em dano físico ou psicológico; e a agressão verbal, como o uso de palavras em atitudes ofensivas com o objetivo de humilhar, caluniar ou envergonhar um indivíduo ou um grupo44 Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saúde Soc. 2008 [acesso em 2022 mar 19]; 17(4):22-34. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000400004.
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, 1414 Santos J, Meira KC, Coelho JC, et al. Work-related violences and associated variables in oncology nursing professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 26(12):5955-5966. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14942021.
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Aos residentes, também foi solicitado o preenchimento do Inventário de Ansiedade de Beck (BAI)1515 Beck AT, Epstein N, Brown G, et al. An inventory for measuring clinical anxiety. J Consult Clin Psychol. 1988 [acesso em 2020 mar 26];56(6):893-7. Disponível em: https://doi.org/10.1037//0022-006x.56.6.893.
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e o do Inventário de Depressão de Beck (BDI)1616 Beck AT, Ward CH, Mendelson M, et al. An inventory for measuring depression. Arch Gen Psychiatry. 1961 [acesso em 2020 mar 26]; (4):561-71. Disponível em: https://doi.org/10.1001/archpsyc.1961.01710120031004.
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, validados para uso no Brasil e com alta eficácia e confiabilidade. Ambos consistem em uma escala de autoavaliação de 21 itens que identifica a intensidade dos sintomas de ansiedade e depressão em populações psiquiátricas e não psiquiátricas sem intenção psicodiagnóstica. Cada item é avaliado em quatro opções de resposta (0 a 3), e a pontuação total pode variar de 0 a 63. As pontuações de corte para o BAI são 0-7 (ansiedade mínima), 8-15 (ansiedade leve), 16-25 (ansiedade moderada) e 26-63 (ansiedade severa); e para o BDI, são 0-9 (depressão mínima), 10-16 (depressão leve), 17-29 (depressão moderada) e 30-63 (depressão grave)1717 Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016..

Os dados foram analisados estatisticamente. A análise descritiva foi realizada por meio de frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas, e médias e Desvios-Padrão (DP) para variáveis quantitativas. Em seguida, avaliou-se a existência de diferenças estatísticas entre grupos em função da ocorrência de violência (residentes que sofreram violência e residentes que não sofreram violência) e as variáveis nominais e ordinais por meio do teste Qui-quadrado de Pearson, razão de verossimilhança ou teste exato de Fisher. O teste U de Mann-Whitney e o teste t de Student foram utilizados para variáveis contínuas, dependendo da distribuição da variável em estudo. Valores de p≤0,05 foram considerados significativos.

Foi aplicada a análise múltipla por meio da biblioteca sanduíche do pacote estatístico R versão 4.1.0, utilizando o modelo de regressão de Poisson com variância robusta. Vários modelos foram ajustados usando como preditor os fatores potenciais apontados nas análises univariadas. Variáveis com valor de p≤0,20 foram as candidatas iniciais para compor o modelo final usando um método stepwise-forward não otimizado.

Após inclusão e exclusão das variáveis adicionadas na ordem do mais para o menos significativo com o desfecho, testou-se a significância das interações entre as variáveis que permaneceram ao longo do processo. A comparação do ajuste dos modelos foi realizada por meio do Critério de Informação de Akaike. A escolha do modelo final considerou plausibilidade epidemiológica e biológica, além de significância estatística ao nível de 5%, com estimativas de associações baseadas em Razão de Prevalência (RP) e Índice de Confiança (IC) ajustados.

Resultados

As características sociodemográficas e profissionais dos residentes está apresentada na tabela 1. Destaca-se que a maioria era do sexo feminino (76,1%), solteira (84,4%), não negra (58,2%), residente de 1º ano (52,2%) e vinculada ao programa de Terapia Intensiva Adulto (38,8%). A média de idade foi de 25,1 anos, e 85% relataram grau de satisfação razoável, bom ou excelente com o programa de residência.

Tabela 1
Distribuição dos residentes multiprofissionais segundo características sociodemográficas e variáveis relacionadas com o programa de residência e significância estatística das diferenças entre os residentes que sofreram e os que não sofreram violência verbal ou física durante a pandemia da Covid-19. Rio Grande do Norte, 2020

Maior proporção de residentes relatou não estar em atendimento psicológico ou psiquiátrico antes ou após o início da residência e não fazer uso de medicação psicotrópica (gráfico 1).

Gráfico 1
Distribuição dos residentes multiprofissionais segundo variáveis relacionadas com o histórico de saúde e significância estatística das diferenças entre os que sofreram e os que não sofreram violência verbal ou física durante a pandemia da Covid-19. Rio Grande do Norte, 2020

Sintomas moderados/graves de depressão e ansiedade foram identificados em 7,5% e 31,3% dos residentes respectivamente, a partir da aplicação do BAI e BDI, cujas confiabilidades testadas pelo alfa de Cronbach resultaram em 0,93 e 0,91 (gráfico 2).

Gráfico 2
Distribuição dos residentes multiprofissionais de saúde segundo a classificação dos Inventários de Beck e significância estatística das diferenças entre os que sofreram e os que não sofreram violência verbal ou física durante a pandemia da Covid-19. Rio Grande do Norte, 2020

Durante a coleta de dados, 59,7% dos residentes estavam em rodízio não programado em setores hospitalares com atendimento a pacientes suspeitos ou confirmados da Covid-19, mas 67,2% já haviam atendido esse tipo de paciente em algum momento da residência. Mais de um terço relatou acesso inadequado aos EPI fornecidos pelo setor de trabalho. Além disso, 40,3% relataram não sentir segurança técnica e científica para atender pacientes acometidos por Covid-19 e seus familiares (tabela 2).

Tabela 2
Distribuição dos residentes multiprofissionais de saúde segundo variáveis de trabalho e significância estatística das diferenças entre os que sofreram e os que não sofreram violência verbal ou física durante a pandemia da Covid-19. Rio Grande do Norte, 2020

Na primeira onda da pandemia da Covid-19, 22,4% dos residentes relataram exposição à violência verbal ou física. Embora sem significância estatística, a violência foi mais relatada por mulheres, solteiros, residentes de 1º ano e residentes vinculados ao programa de Terapia Intensiva Adulto. Além disso, apresentaram média de idade superior quando comparados aos que não sofreram violência. Diferenças entre os grupos foram observadas ao comparar as ocupações e o grau de satisfação com o programa de residência, com maior proporção de fisioterapeutas e assistentes sociais (p=0,014), bem como de residentes insatisfeitos entre os que relataram violência (p=0,038) (tabela 1).

O histórico de acompanhamento psicológico/psiquiátrico, o uso de psicofármacos e os níveis de depressão e ansiedade não produziram diferenças significativas entre os grupos de indivíduos. No entanto, observou-se maior proporção de residentes em acompanhamento psicoterápico e psicofármaco e que apresentavam sintomas moderados/graves de depressão e de ansiedade no grupo de indivíduos que relataram violência (gráficos 1e2).

A proporção de residentes que trabalhavam em rodízio não programado em setores hospitalares que atenderam casos suspeitos e confirmados da Covid-19 foi maior no grupo de indivíduos que relataram violência verbal/física (93,3% versus 50%, p=0,002). Nesse grupo, a proporção de residentes que não recebeu treinamento para lidar com casos da Covid-19 também foi maior (40% versus 17,3%), embora não tenha sido observada diferença estatística entre grupos (tabela 2).

Após ajuste do modelo múltiplo, as variáveis ‘idade’ (RP=1,25, p<0,001) e ‘ansiedade moderada/grave’ (RP=2,87, p=0,002) foram associadas ao aumento da prevalência de violência (verbal/física) durante a pandemia da Covid-19 (tabela 3).

Tabela 3
Fatores associados à violência verbal/física durante a pandemia da Covid-19 em residentes multiprofissionais que trabalham em um hospital brasileiro (n=67). Rio Grande do Norte, 2020

Discussão

As pessoas que trabalham na área da saúde apresentam alto risco de sofrer agressões no local de trabalho e podem estar expostas a outras condições ocupacionais que aumentam esse risco. A relevância social da violência no trabalho no setor saúde está em sua trajetória ascendente e nas graves repercussões para trabalhadores, estudantes, pacientes, organizações e sistemas de saúde. Embora tenha se tornado objeto de estudos e intervenções políticas nos últimos anos, é um problema sub-notificado, generalizado, persistente, tolerado e amplamente ignorado por muitos países1818 Geoffrion S, Hills DJ, Ross HM, et al. Education and training for preventing and minimizing workplace aggression directed toward healthcare workers. Cochrane Database Syst. Rev. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; 9(9):CD011860. Disponível em: https://doi.org/10.1002/14651858.CD011860.pub2.
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, 1919 Palma A, Ansoleaga E, Ahumada M. Workplace violence among health care workers. Rev. Méd. Chile. 2018 [acesso em 2022 mar 15]; 146(2):213-222. Disponível em: https://dx.doi.org/10.4067/s0034-98872018000200213.
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.

A maioria dos estudos sobre o tema tem se concentrado em médicos e enfermeiros, com menor corpo de evidências sobre populações mistas de trabalhadores de saúde e residentes1818 Geoffrion S, Hills DJ, Ross HM, et al. Education and training for preventing and minimizing workplace aggression directed toward healthcare workers. Cochrane Database Syst. Rev. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; 9(9):CD011860. Disponível em: https://doi.org/10.1002/14651858.CD011860.pub2.
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, 1919 Palma A, Ansoleaga E, Ahumada M. Workplace violence among health care workers. Rev. Méd. Chile. 2018 [acesso em 2022 mar 15]; 146(2):213-222. Disponível em: https://dx.doi.org/10.4067/s0034-98872018000200213.
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. Portanto, com este estudo, buscou-se dar visibilidade a esse fenômeno na população de residentes multiprofissionais que, no Brasil, muitas vezes, são incorporados pelos serviços de saúde para atuar como ‘mão de obra barata’, principalmente no contexto pandêmico. A atuação do residente possui particularidades pelo fato de estes serem estudantes. Contudo, estas não alteram sua condição de trabalhador.

Na população de residentes deste estudo, a prevalência de violência física e/ou verbal durante a primeira onda da pandemia da Covid-19 foi de 22,4%. Valores semelhantes foram encontrados entre profissionais de saúde ingleses que relataram bullying ou assédio por parte de outros profissionais2020 Carter M, Thompson N, Crampton P, et al. Workplace bullying in the UK NHS: a questionnaire and interview study on prevalence, impact and barriers to reporting. BMJ Open. 2013 [acesso em 2022 mar 15]; 3(6):e002628. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2013-002628.
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e entre enfermeiros de hospitais que sofreram violência física2121 Gacki-Smith J, Juarez AM, Boyett L, et al. Violence against nurses working in US emergency departments. J. Nurs. Adm. 2009 [acesso em 2022 mar 15]; 39(7/8):340-349. Disponível em: https://doi.org/10.1097/nna.0b013e3181ae97db.
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. Taxa comparável também foi identificada por autores brasileiros que realizaram estudo com profissionais de saúde para investigar a prevalência de cinco tipos de violência (física, verbal, assédio sexual, discriminação e danos materiais)2222 Silva IV, Pinto EML, Matos IC. Violência no trabalho em saúde: a experiência de servidores estaduais da saúde no Estado da Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 30(10):2112-2122. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00146713.
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Estudos de revisão apontam prevalências que variam de 7% a 85%, dependendo do país, categoria profissional, setor de trabalho, tipo de violência, entre outros fatores1919 Palma A, Ansoleaga E, Ahumada M. Workplace violence among health care workers. Rev. Méd. Chile. 2018 [acesso em 2022 mar 15]; 146(2):213-222. Disponível em: https://dx.doi.org/10.4067/s0034-98872018000200213.
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, 2323 Piquero NL, Piquero AR, Craig JM, et al. Assessing research on workplace violence, 2000–2012. Aggress. Violent. Behav. 2013 [acesso em 2022 mar 15]; 18(3):383-394. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.avb.2013.03.001.
https://doi.org/10.1016/j.avb.2013.03.00...
. Em estudo nacional, por exemplo, foi encontrada prevalência de 62% entre os profissionais de enfermagem que atuam na oncologia1414 Santos J, Meira KC, Coelho JC, et al. Work-related violences and associated variables in oncology nursing professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 26(12):5955-5966. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14942021.
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. Na China2424 Sun X, Qiao M, Deng J, et al. Mediating Effect of Work Stress on the Associations Between Psychological Job Demands, Social Approval, and Workplace Violence Among Health Care Workers in Sichuan Province of China. Front. Public Health. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; (9):743626. Disponível em: https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.743626.
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e na Nigéria2525 Ogbonnaya GU, Ukegbu AU, Aguwa EN, et al. A study on workplace violence against health workers in a Nigerian tertiary hospital. Niger. J. Med. 2012 [acesso em 2022 mar 15]; 21(2):174-179. Disponível em: https://www.ajol.info/index.php/njm/article/view/98998.
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, as taxas em amostras multiprofissionais foram de 77% e 88% respectivamente; e na Bósnia-Herzegovina2626 Jatic Z, Erkocevic H, Trifunovic N, et al. Frequency and Forms of Workplace Violence in Primary Health Care. Med Arch. 2019 [acesso em 2022 mar 15]; 73(1):6-10. Disponível em: https://doi.org/10.5455/medarh.2019.73.6-10.
https://doi.org/10.5455/medarh.2019.73.6...
, foi de 90% entre médicos e enfermeiros da atenção primária.

Estudos realizados durante a pandemia também identificaram diferentes taxas de prevalência. No primeiro semestre de 2020, foram registradas taxas de 20,4% na China e de 11,4% em uma amostra global2727 Dye TD, Alcantara L, Siddiqi S, et al. Risk of COVID-19-related bullying, harassment and stigma among healthcare workers: an analytical cross-sectional global study. BMJ Open. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; 10(12):e046620. Disponível em: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-046620.
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, 2828 Wang W, Lu L, Kelifa MM, et al. Mental health problems in Chinese healthcare workers exposed to workplace violence during the COVID-19 outbreak: a cross-sectional study using propensity score matching analysis. Risk Manag. Healthc. Policy. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; (13):2827-2833. Disponível em: https://doi.org/10.2147/RMHP.S279170.
https://doi.org/10.2147/RMHP.S279170...
. Em 2021, as taxas variaram de 42,6% (Egito) a 65,5% (Jordânia)2929 Arafa A, Shehata A, Youssef M, et al. Violence against healthcare workers during the COVID-19 pandemic: a cross-sectional study from Egypt. Arch. Environ. Occup. Health. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 28(5). Disponível em: https://doi.org/10.1080/19338244.2021.1982854.
https://doi.org/10.1080/19338244.2021.19...
, 3030 Ghareeb NS, El-Shafei DA, Eladl AM. Workplace violence among healthcare workers during COVID-19 pandemic in a Jordanian governmental hospital: the tip of the iceberg. Environ. Sci. Pollut. Res. Int. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; (28):61441-61449. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11356-021-15112-w.
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. No Brasil, estudo pioneiro de abrangência nacional também encontrou alta prevalência (47,6%), cujos fatores de risco associados foram: ser profissional de enfermagem, ter menos de 20 anos na atividade laboral, trabalhar mais de 36 horas semanais, ter sido infectado pelo vírus e atuar diretamente na assistência aos pacientes infectados pela Covid-191010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
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.

Ao contrário de outros estudos que apontam a enfermagem como a categoria mais acometida pela violência no setor saúde88 Pai DD, Sturbele ICS, Santos C, et al. Physical and psychological violence in the workplace of healthcare professionals. Texto Contexto – Enferm. 2018 [acesso em 2022 mar 16]; 27(1):e2420016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-07072018002420016.
https://doi.org/10.1590/0104-07072018002...
, 1010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
, 1111 Dantas ESO, Araújo Filho JD, Silva GWS, et al. Factors associated with anxiety in multiprofessional health care residents during the COVID-19 pandemic. Rev. Bras. Enferm. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 74(supl1):e20200961. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0961.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0...
, 2222 Silva IV, Pinto EML, Matos IC. Violência no trabalho em saúde: a experiência de servidores estaduais da saúde no Estado da Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 30(10):2112-2122. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00146713.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0014671...
, 3131 Freitas RJM, Pereira MFA, Lima CHP, et al. Violence against nursing professionals in the embracement sector with risk classification. Rev. Gaúcha Enferm. 2017 [acesso em 2022 mar 15]; 38(3):e62119. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.62119.
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, nesta investigação, nenhum dos enfermeiros residentes relatou ter sido vítima. Esse achado deve ser analisado com cautela, pois pode estar relacionado com a naturalização da violência nas experiências acadêmico-profissionais de enfermagem, ou seja, quando já é vista como parte do processo de trabalho1414 Santos J, Meira KC, Coelho JC, et al. Work-related violences and associated variables in oncology nursing professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 26(12):5955-5966. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14942021.
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, 3232 Cezar ES, Marziale MHP. Problemas de violência ocupacional em um serviço de urgência hospitalar da Cidade de Londrina, Paraná, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2006 [acesso em 2022 mar 15]; 22(1):217-221. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102--311X2006000100024.
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. Outros fatores que podem estar relacionados com esse resultado e com a prevalência encontrada são a inexperiência profissional, que pode ter dificultado a identificação da violência durante a prática profissional, principalmente a psicológica; e o fato de este estudo não ter utilizado um instrumento de avaliação que permitisse aos residentes identificar o tipo de violência sofrida.

Apesar disso, neste estudo, a categoria profissional produziu diferenças entre os grupos de indivíduos, com maior proporção de assistentes sociais entre aqueles que relataram violência. Sobre isso, conjectura-se que os assistentes sociais identificam mais facilmente as situações de violência porque seu trabalho profissional se concentra nas desigualdades sociais e econômicas e, portanto, no enfrentamento e prevenção de situações de violência, abandono, negligência e outras necessidades materiais e existenciais3333 Silva JFS. Violência e Serviço Social: notas críticas. Rev. Katálysis 2008 [acesso em 2022 mar 15]; 11(2):265-273. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-49802008000200012.
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.

No presente estudo, as variáveis sexo e raça/cor da pele não se apresentaram estatisticamente associadas a maior prevalência de violência. No entanto, é importante destacar que estudos têm evidenciado maior prevalência de violência relacionada com o trabalho em mulheres e trabalhadores negros, realidade relativa ao machismo e ao racismo estrutural22 International Labour Organization. Safe and healthy working environments free from violence and harassment. Geneva: International Labour Organization; 2020., 33 Fnais N, Soobiah C, Chen MH, et al. Harassment and discrimination in medical training: a systematic review and meta-analysis. Acad. Med. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 89(5):817-827. Disponível em: https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000200.
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, 44 Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saúde Soc. 2008 [acesso em 2022 mar 19]; 17(4):22-34. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000400004.
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.

O grau de satisfação com o programa de residência também produziu diferenças entre os grupos, com maior proporção de insatisfeitos entre os que relataram violência, destacando outro elemento importante, a insatisfação com o trabalho. Embora não se pretenda inferir uma relação de causa e efeito, sabe-se que o fato de o trabalhador sofrer violência, principalmente se for um ato frequente, causa insatisfação no trabalho, o que é quase inevitável e abre caminho para diversos problemas de ordem física e mental, como dores no corpo, ansiedade, insônia e medo. Parece haver uma concordância sobre o fato de que as vítimas de violência no trabalho apresentam níveis mais baixos de satisfação no trabalho em comparação com as não vítimas3434 Lanctôt N, Guay S. The aftermath of workplace violence among healthcare workers: A systematic literature review of the consequences. Agress Violent Behav. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 19(5):492-501. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.avb.2014.07.010.
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, 3535 Rai R, El-Zaemey S, Dorji N, et al. Exposure to Occupational Hazards among Health Care Workers in Low- and Middle-Income Countries: A Scoping Review. Int. J. Environ. Res. Public Health. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 18(5):2603. Disponível em: https://doi.org/10.3390/ijerph18052603.
https://doi.org/10.3390/ijerph18052603...
.

Além da insatisfação com o local de trabalho e/ou com o programa de residência, a violência no trabalho gera um sentimento de desvalorização profissional que pode aumentar a irritabilidade dos trabalhadores. Assim, pode haver comprometimento da qualidade do aprendizado e da prestação de cuidados de saúde aos pacientes e familiares, aumentando ainda mais o risco de os residentes sofrerem agressão, retroalimentando o ciclo de violência no trabalho3434 Lanctôt N, Guay S. The aftermath of workplace violence among healthcare workers: A systematic literature review of the consequences. Agress Violent Behav. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 19(5):492-501. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.avb.2014.07.010.
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.

Também foi observada maior prevalência de violência autorreferida entre trabalhadores que realizaram rodízio não programado em setores hospitalares nos quais são atendidos casos suspeitos e confirmados da Covid-19, tal como relatado por outros autores1010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
, 2727 Dye TD, Alcantara L, Siddiqi S, et al. Risk of COVID-19-related bullying, harassment and stigma among healthcare workers: an analytical cross-sectional global study. BMJ Open. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; 10(12):e046620. Disponível em: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-046620.
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, 2929 Arafa A, Shehata A, Youssef M, et al. Violence against healthcare workers during the COVID-19 pandemic: a cross-sectional study from Egypt. Arch. Environ. Occup. Health. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 28(5). Disponível em: https://doi.org/10.1080/19338244.2021.1982854.
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. A disseminação avassaladora de casos da Covid-19 desencadeou uma onda de violência contra os profissionais de saúde, acrescentando um fardo adicional ao ambiente de trabalho em saúde já estressante. Assim, a alta prevalência entre os residentes multiprofissionais da linha de frente revela maior estresse ambiental nos setores hospitalares que lutaram para acompanhar a intensificação das necessidades de cuidado3636 Said RM, El-Shafei DA. Occupational stress, job satisfaction, and intent to leave: nurses working on front lines during COVID-19 pandemic in Zagazig City, Egypt. Environ. Sci. Pollut. Res. Int. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 28(7):8791-8801. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11356-020-11235-8.
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.

Após o ajuste do modelo múltiplo, que permitiu controlar o efeito de possíveis variáveis de confusão, a ocorrência de violência física e/ou verbal associou-se ao aumento da idade e aos sintomas de ansiedade (moderada/grave), estes últimos identificados por meio da aplicação de inventários que, neste e em outros estudos1111 Dantas ESO, Araújo Filho JD, Silva GWS, et al. Factors associated with anxiety in multiprofessional health care residents during the COVID-19 pandemic. Rev. Bras. Enferm. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 74(supl1):e20200961. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0961.
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, 1515 Beck AT, Epstein N, Brown G, et al. An inventory for measuring clinical anxiety. J Consult Clin Psychol. 1988 [acesso em 2020 mar 26];56(6):893-7. Disponível em: https://doi.org/10.1037//0022-006x.56.6.893.
https://doi.org/10.1037//0022-006x.56.6....
, 1616 Beck AT, Ward CH, Mendelson M, et al. An inventory for measuring depression. Arch Gen Psychiatry. 1961 [acesso em 2020 mar 26]; (4):561-71. Disponível em: https://doi.org/10.1001/archpsyc.1961.01710120031004.
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, apresentaram alta consistência interna. A associação com a idade já havia sido relatada em estudos anteriores1010 Bitencourt MR, Alarcão ACJ, Silva LL, et al. Predictors of violence against health professionals during the COVID-19 pandemic in Brazil: a cross-sectional study. Plos One. 2021 [acesso em 2022 mar 18]; 16(6):e0253398. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253398.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
, 1414 Santos J, Meira KC, Coelho JC, et al. Work-related violences and associated variables in oncology nursing professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 26(12):5955-5966. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14942021.
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. É possível que indivíduos mais velhos, por terem mais experiência profissional, tenham maior capacidade de identificar situações de violência, principalmente tipos menos perceptíveis, como violência verbal e bullying. Por outro lado, há evidências que indicam que os trabalhadores de saúde mais jovens são mais frequentemente vítimas de eventos violentos3737 Gillespie GL, Gates DM, Miller M, et al. Workplace violence in healthcare settings: risk factors and protective strategies. Rehabil. Nurs. 2010 [acesso em 2022 mar 15]; 35(5):177-184. Disponível em: https://doi.org/10.1002/j.2048-7940.2010.tb00045.x.
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.

Em relação à associação entre violência e sintomas de ansiedade, o desenho metodológico deste estudo (transversal) não permitiu identificar se esses sintomas resultaram de episódios de violência ou se o risco de sofrer violência foi aumentado pela existência prévia desses sintomas. Evidências anteriores já determinaram que esses fatores de risco se alimentam mutuamente2929 Arafa A, Shehata A, Youssef M, et al. Violence against healthcare workers during the COVID-19 pandemic: a cross-sectional study from Egypt. Arch. Environ. Occup. Health. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 28(5). Disponível em: https://doi.org/10.1080/19338244.2021.1982854.
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, 3838 Zhao S, Xie F, Wang J, et al. Prevalence of Workplace Violence Against Chinese Nurses and Its Association with Mental Health: A Cross-sectional Survey. Arch. Psychiatr. Nurs. 2018 [acesso em 2022 mar 15]; 32(2):242-247. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.apnu.2017.11.009.
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. O fato é que aqueles que sofrem violência no trabalho podem sofrer traumas tão graves em sua saúde mental, bem-estar e autoestima que podem nunca se recuperar. As vítimas podem sentir tristeza, vergonha, culpa, ansiedade e depressão, podendo também sofrer de Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT)22 International Labour Organization. Safe and healthy working environments free from violence and harassment. Geneva: International Labour Organization; 2020., 1818 Geoffrion S, Hills DJ, Ross HM, et al. Education and training for preventing and minimizing workplace aggression directed toward healthcare workers. Cochrane Database Syst. Rev. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; 9(9):CD011860. Disponível em: https://doi.org/10.1002/14651858.CD011860.pub2.
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, 3939 Dement JM, Lipscomb HJ, Schoenfisch AL, et al. Impact of hospital type II violent events: use of psychotropic drugs and mental health services. Am. J. Ind. Med. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 57(6):627-639. Disponível em: https://doi.org/10.1002/ajim.22306.
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.

Outras respostas à violência incluem reações como raiva, impotência, problemas de sono, fadiga crônica e aumento do risco de suicídio4040 Leach LS, Poyser C, Butterworth P. Workplace bullying and the association with suicidal ideation/thoughts and behaviour: a systematic review. Occup Environ Med. 2017 [acesso em 2022 jun 5]; 74(1):72-79. Disponível em: https://doi.org/10.1136/oemed-2016-103726.
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, 4141 Parker KA. The workplace bully: the ultimate silencer. J. Organiz. Cult. Communic. Conflict. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 18(1):169-185., 4242 Sachdeva S, Jamshed N, Aggarwal P, et al. Perception of Workplace Violence in the Emergency Department. J. Emerg. Trauma Shock. 2019 [acesso em 2022 mar 15]; 12(3):179-184. Disponível em: https://doi.org/10.4103/JETS.JETS_81_18.
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. Simultaneamente, no caso dos estudantes, afeta o aprendizado e o planejamento de carreira futura, negando a finalidade dos programas de residência, conforme apontado por estudo transversal4343 Fang H, Wei L, Mao J, et al. Extent and risk factors of psychological violence towards physicians and Standardised Residency Training physicians: a Northern China experience. Health Qual. Life Outcomes. 2020 [acesso em 2022 mar 15]; (18):330. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12955-020-01574-y.
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realizado no norte da China com médicos residentes, que identificou uma taxa de prevalência de violência psicológica de 24,8%. Do total de vítimas, 51,9% apresentaram maiores sintomas de ansiedade e 22% consideraram mudar de local de estudo. Em outra pesquisa, estudantes de enfermagem vítimas de violência no trabalho relataram consequências relevantes, incluindo medo, ansiedade, decepção e desamparo. Nesta amostra, a vivência de abuso verbal foi associada a um maior escore de problemas psicológicos, maiores níveis de estresse e menores níveis de suporte4444 Magnavita N, Heponiemi T. Workplace violence against nursing students and nurses: an Italian experience. J. Nurs. Scholarsh. 2011 [acesso em 2022 mar 15]; 43(2):203-210. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1547-5069.2011.01392.x.
https://doi.org/10.1111/j.1547-5069.2011...
.

Os residentes brasileiros não são exatamente iguais aos residentes de outros países, até porque o modelo de residência multipro-fissional e o sistema nacional de saúde têm suas particularidades. Logo, as similaridades e as discrepâncias entre os resultados deste e de outros estudos internacionais, como os que aqui foram citados, devem ser vistas com cautela. Sob outro ponto de vista, a escassez de estudos nacionais sobre o tema limitou a discussão dos dados encontrados. Fato é que a violência no trabalho não pode ser considerada um evento isolado ou um infortúnio, mas um fenômeno estruturalmente vinculado a questões socioeconômicas, culturais e ambientais associadas a fatores institucionais.

No caso do Brasil, o notório aumento do número de eventos de violência contra profissionais de saúde durante a pandemia pode estar relacionado com a resistência às medidas protetivas da Covid-19 e à desconfiança em relação aos serviços de saúde devido a teorias conspiratórias generalizadas, instigadas pelo próprio Presidente da República, que chegou a convocar a população a invadir hospitais para averiguar se as taxas de internação divulgadas pelas autoridades locais de saúde refletiam a realidade4545 Ferrante L, Duczmal L, Steinmetz WA, et al. How Brazil’s President turned the country into a global epicenter of COVID-19. J. Public Health Policy. 2021 [acesso em 2022 mar 15]; 42(3):439-451. Disponível em: https://doi.org/10.1057/s41271-021-00302-0.
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.

O presente estudo tem caráter situacional e apresenta limitações, como a ausência do uso de uma escala padronizada para avaliação da violência e o fato de não discriminar os agressores e os tipos de violência sofrida, cujas classificações e conceitos podem divergir entre diferentes autores, contextos e países44 Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saúde Soc. 2008 [acesso em 2022 mar 19]; 17(4):22-34. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000400004.
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, 4646 International Labour Organization, International Council of Nurses, World Health Organization, Public Services International. Framework Guidelines for Addressing Workplace Violence in the Health Sector. Geneva: World Health Organization; 2005.. Considerado isso, autores deste manuscrito estão desenvolvendo um estudo com o propósito de mapear diferentes instrumentos e conceitos relacionados com o fenômeno para, posteriormente, propor um conceito central e um instrumento robusto para a sua avaliação.

A importância deste trabalho está voltada para dar visibilidade à violência vivenciada por residentes multiprofissionais, destacando a alta prevalência desse complexo fenômeno. Nessa seara, importa ressaltar que os residentes brasileiros não têm um papel social bem definido e aprovado, uma remuneração digna e um vínculo estável. Por essa razão, a violência no trabalho pode facilmente minar sua autoestima e moral e afetar a maneira como abordarão seu trabalho no futuro. Além disso, a violência repercute nas condutas profissionais e nas relações interpessoais, tornando o trabalhador mais propenso a prestar uma assistência em saúde insegura e a cometer erros3434 Lanctôt N, Guay S. The aftermath of workplace violence among healthcare workers: A systematic literature review of the consequences. Agress Violent Behav. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 19(5):492-501. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.avb.2014.07.010.
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, 4747 Busnello GF, Trindade LL, Dal Pai D, et al. Violence against nursing workers: repercussions on patient access and safety. Rev Bras Enferm. 2022 [acesso em 2022 nov 7]; 75(4):e20210765. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0765.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
, o que pode levar a consequências potencialmente catastróficas para estudantes, trabalhadores, pacientes e seus familiares.

Relatos de pesquisa apontam associação entre a violência no local de trabalho em saúde e o aumento de eventos adversos, como erros de medicação e quedas4848 Roche M, Diers D, Duffield C, et al. Violence toward nurses, the work environment, and patient outcomes. J Nurs Scholarsh. 2010 [acesso em 2022 nov 7]; 42(1):13-22. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1547-5069.2009.01321.x.
https://doi.org/10.1111/j.1547-5069.2009...
; redução na quantidade de tempo com os pacientes e na execução de tarefas, bem como piora na qualidade do atendimento prestado3434 Lanctôt N, Guay S. The aftermath of workplace violence among healthcare workers: A systematic literature review of the consequences. Agress Violent Behav. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 19(5):492-501. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.avb.2014.07.010.
https://doi.org/10.1016/j.avb.2014.07.01...
. A violência também muda as condutas individuais em situações de erros e incidentes: as vítimas consideram que suas falhas durante o cuidado podem ser usadas contra elas e, por isso, tendem a não as notificar4747 Busnello GF, Trindade LL, Dal Pai D, et al. Violence against nursing workers: repercussions on patient access and safety. Rev Bras Enferm. 2022 [acesso em 2022 nov 7]; 75(4):e20210765. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0765.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0...
.

Conclusões

Este estudo identificou uma alta prevalência de violência relacionada com o trabalho autorreferida em residentes multidisciplinares que trabalharam durante a primeira onda da pandemia da Covid-19. As análises revelaram associação entre o aumento da idade e os sintomas de ansiedade (moderada/grave) à ocorrência de violência nessa população.

Os achados deste estudo apontam para a urgência de estratégias institucionais voltadas à proteção de residentes, e mais extensivamente aos profissionais de saúde, nos ambientes de trabalho. Para isso, a violência nos ambientes de saúde deve ser abordada de forma proativa e precisa ser altamente valorizada pelos gestores relevantes, principalmente no atual contexto de pandemia, ainda que essa tarefa seja espinhosa e crítica.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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