Utopia interditada: APS como antídoto contra a desdemocratização e a necropolítica neoliberal

Interdicted utopia: PHC as an antidote against de-democratization and neoliberal necropolitics

Rafael Agostini Adriana Miranda de Castro Sobre os autores

RESUMO

Este ensaio reflete sobre o desmonte de uma Atenção Primária à Saúde (APS) abrangente como etapa fundamental à desdemocratização que avança a passos largos no Brasil e no mundo nos últimos anos, sendo condição de possibilidade da consolidação de uma necropolítica neoliberal que busca se institucionalizar e silenciar quaisquer potências de vida. Ao mesmo tempo, este texto reafirma também que é por meio mesmo da APS que se pode inflexionar o timão – alterando a rota da barbárie para a qual se navega – em direção à utopia inspiradora do Sistema Único de Saúde e ao seu projeto civilizatório solidário e cidadão. Considerados os atributos e as diretrizes que fundam e organizam a APS brasileira e a concertação de vozes que enseja, esta reflexão propõe, por fim, que seja ali uma trincheira estratégica na luta para investir em uma sociedade efetivamente democrática, em que todos se reconheçam e afirmem como sujeitos políticos e de direitos em defesa da vida.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à Saúde; Política; Capitalismo; Democracia; Participação da comunidade

ABSTRACT

This essay reflects on the dismantling of a comprehensive Primary Health Care (PHC) as a fundamental step in the de-democratization that has advanced in large steps both in Brazil and in the world in recent years. It asserts that this process is one of the conditions for the consolidation of a neoliberal necropolitics that seeks to institutionalize and silence any life potencies. At the same time, this text also reaffirms that it is through PHC itself that the helm can be inflected – altering the barbarism route to which we navigate – towards the inspiring utopia of the Unified Health System (SUS) and its solidary and citizen civilization project. Considering the attributes and guidelines that found and organize the Brazilian PHC and the concertation of voices that it entails, this reflection proposes, lastly, that PHC can be a strategic trench in the struggle to invest in an effectively democratic society, in which everyone recognizes and affirms themselves as political subjects, subjects who have rights, in defense of life.

KEYWORDS
Primary Health Care; Politics; Capitalism; Democracy; Community participation

Introdução

Apesar da associação à sua obra, Eduardo Galeano apenas reproduzia as palavras de Fernando Birri ao responder a um jovem sobre o valor da utopia, declarando ciência da impossibilidade de alcançá-la; para o cineasta argentino, não importa o quanto se caminhe, em justa proporção, a utopia se afasta. Antes de torná-la inútil, é exatamente este seu propósito: garantir que nunca cesse o caminhar rumo ao delírio. Afinal, como sustenta o próprio Galeano, não podemos antever o que virá, mas merecemos, na esteira dos direitos humanos, sonhar com outro mundo possível, no qual “cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro”11 Godoy G. O direito ao delírio – Eduardo Galeano. Blog Gilberto Godoy. Psicologia, Saúde & Cultura. [acesso em 2022 jan 10]. Disponível em: https://www.gilbertogodoy.com.br/ler-post/o-direito-ao-delirio---eduardo-galeano.
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Esse movimento fez com que, por exemplo, mesmo em um contexto internacional altamente desfavorável às mulheres e aos homens trabalhadores, no Brasil, tenhamos uma conquista civilizatória como o Sistema Único de Saúde (SUS). Operador da proteção social, o SUS foi responsável por garantir, nas últimas décadas, as políticas de fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) que, entre seus fluxos e refluxos, vem sendo espaço privilegiado para a implantação mais intensiva de seus princípios e diretrizes a partir da produção de inflexões importantes no modelo de atenção e de gestão do trabalho em saúde22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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A consolidação de um sistema universal de saúde público, gratuito, de qualidade e que seja parte do processo mais geral de desenvolvimento do povo brasileiro tem sido uma das grandes utopias do movimento sanitário. Como construção participativa que transtorna interesses neoliberais, o SUS é um eficaz contraveneno aos avanços da necropolítica neoliberal e à distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer implementados por suas agendas, representando perigo a ela44 Agostini R, Castro AM. O que pode o Sistema Único de Saúde em tempos de necropolítica neoliberal? Saúde debate. 2019 [acesso em 2022 jan 10]; 43(esp8):175-188. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/tKVjyyPy8rRHP8nqGhZGYhF/abstract/?lang=pt.
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Ecoando desde a Conferência de Alma-Ata, a função central que a APS precisa desempenhar nesse sistema de saúde tem feito caminhar nossa sociedade. Aponta-se aqui para sua versão abrangente, em que se constitui como o primeiro contato do cidadão com o SUS e a coordenadora de seus percursos de cuidado integral no ciclo vida, garantindo a promoção e a atenção à saúde em uma matriz familiar e comunitária; organizada a partir da atuação multiprofissional e em equipes, em que se destacam as Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), centrais nos processos de territorialização e incorporação da participação social e dos saberes tradicionais55 Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC et al., organizadoras. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 493-545.

Os avanços paulatinos – mas consistentes – em direção à reorientação do SUS a partir da APS, que ganharam fôlego desde meados dos anos de 1990, convivem com obstáculos importantes e crescentes na perspectiva da compreensão do cuidado integral e nos arranjos financeiro-organizacionais22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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,66 Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The door is open, but not everyone may enter: racial inequities in healthcare access across three Brazilian surveys. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(9):3981-3990. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/XDznRLq5hh8VNXmPrX4Y57r/abstract/?lang=en.
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,77 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(supl2):3781-3786. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YDNxWmxtzxsfhTgn9zjcrhC/.
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,88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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. Assim, persistem lacunas na integração efetiva entre prevenção, atenção e promoção, gargalos no acesso a procedimentos e profissionais especializados eventualmente necessários, dificuldades na qualificação dos trabalhadores da APS e fragilidades na organização de processos de trabalho mais democráticos e participativos. Isso tudo em um contexto no qual urge a regularização dos vínculos trabalhistas, o aprimoramento da gestão pública do trabalho e dos serviços e respostas a necessidades de saúde da população crescentemente complexas.

Não obstante, os resultados desses avanços foram tão alvissareiros que, inclusive, ampliaram sobremaneira o número de investigações nacionais e internacionais sobre serviços e modelos em saúde no Brasil, especialmente com ênfase na Estratégia Saúde da Família (ESF) e nos efeitos de sua adoção. Tal produção, como destaca a Associação Brasileira de Saúde Coletiva99 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota Abrasco sobre as propostas de mudança na PNAB em Saúde. [acesso em 2022 jan 10]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/nota-abrasco-sobre-as-propostas-de-mudanca-na-politica-nacional-de-atencao-basica-em-saude/43010/.
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, converge para o fato de que, organizada no País a partir da ESF, a APS vinha sendo investida do papel não apenas de reorganizadora do SUS e meio de expansão do acesso, mas também de elemento fundamental e indissociável da realização do próprio direito humano fundamental à saúde.

O compromisso com um sistema universal, público e de qualidade desenhou um dos últimos avanços brasileiros no âmbito da APS. Durante as fatídicas jornadas de junho de 2013, a Presidenta Dilma Rousseff antecipou um projeto em elaboração, instituindo o Programa Mais Médicos e, entre outras coisas, levando 18 mil profissionais a quase 70 milhões de brasileiros alijados historicamente do direito de acessá-los1010 Brasil. Ministério da Saúde. Programa Mais Médicos. Resultado para o País. [acesso em 2022 jan 10] Disponível em: http://maismedicos.gov.br/resultados-para-o-pais.
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. Desde então, na esteira do golpe de 2016, há o aprofundamento da mercantilização da vida do povo brasileiro por meio da implementação da agenda derrotada nas eleições gerais de 2014 e que tem entre seus epítetos a Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016.

Ao registrar na Constituição, de modo explícito, a precedência do rentismo que se locupleta do Estado brasileiro em detrimento dos investimentos públicos em saúde, educação, habitação e assistência social, a ‘emenda do fim do mundo’ abriu a caixa de Pandora da erosão dos direitos sociais no País. No caso do SUS, que já padecia pelo subfinanciamento crônico, a EC 95 promoveu um franco desfinanciamento1111 Funcia F. Sistema Único de Saúde - 30 anos: Do Subfinanciamento Crônico para o Processo de Desfinanciamento Decorrente da Emenda Constitucional 95/2016. 30 anos da Seguridade Social - Avanços e Retrocessos. Brasília, DF: Fundação ANFIP de Estudos Tributários e da Seguridade Social; 2018., e o dirige para um cenário de terra arrasada em um futuro bem próximo caso não seja sustada pela soberania popular já nas próximas eleições gerais, em 2022.

No campo da saúde particularmente, a ‘nova’ Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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, publicada em 2017, revogou o compromisso prioritário com a expansão da ESF, lançando as bases para fertilizar o mercado privado de modo doloso, a partir do enxugamento e da perda de qualidade e potência de um SUS que vinha se aprimorando e aproximando da população na e pela consolidação da APS. Esse movimento acontece22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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pela flexibilização da cobertura universal e pela admissão e financiamento de uma APS seletiva, restrita e fragmentada que sabidamente entrega piores indicadores. Além disso, a descaracterização do trabalho das ACS e a fragilização do papel de indutor e regulador desempenhado pelo Ministério da Saúde (MS) ferem de morte os dois principais propulsores de avanços na superação de uma APS de matriz exclusivamente biomédica, curativa, centrada nos riscos individuais e ancorada no binômio queixa-conduta22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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Nesse sentido, o objetivo deste ensaio é refletir acerca do movimento de consolidação de uma necropolítica neoliberal despudorada que se institucionaliza na máquina estatal, promovendo no campo da saúde pública o desmonte ativo de uma APS abrangente e criando espaço para a desdemocratização, que avança a passos largos no Brasil nos últimos anos. Ao mesmo tempo, fugindo ao fatalismo esperado nesta conjuntura adoecedora e buscando (re)encontrar a utopia inspiradora do SUS, o texto se alinha àqueles que reclamam a APS como trincheira de uma democracia popular e solidária, na qual a concertação de vozes de trabalhadores, usuários e sociedade civil produz ações transformadoras, críticas e criativas que são potentes e debelam sinistros, atuando como antídoto aos venenos neoliberais e indicando caminhos para outros projetos civilizatórios.

Proteção social, cidadania e projeto civilizatório: a ESF como tática e estratégia

É consenso na saúde coletiva que uma APS abrangente, integral e resolutiva produz evolução dos indicadores sanitários, maior efetividade clínica, mais satisfação dos usuários e redução das iniquidades. Os países que nela fizeram investimentos robustos e planejados obtiveram melhor relação custo-efetividade em seus sistemas nacionais de saúde, logrando resultados auspiciosos com relação à expectativa e às condições de vida, também garantindo a redução da necessidade de recursos em saúde mais custosos, menos eficientes e muitas vezes iatrogênicos1212 Kringos D, Boerma W, Bourgueil Y, et al. The strength of primary care in Europe: an international comparative study. Br J Gen Pract. 2013 [acesso em 2022 jan 10]; 63(616):e742-50. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24267857/.
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,1313 Starfield B, Shi L, Macinko J. Contribution of Primary Care to Health Systems and Health. Milbank Q. 2005 [acesso em 2022 jan 10]; 83(3):457-502. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16202000/.
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,1414 Macinko J, Starfield B & Shi L. The contribution of primary care systems to health outcomes within Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) countries, 1970-1998. Health Serv Res. 2003 [acesso em 2022 jan 10]; 38(3):831-65 Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12822915/.
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,1515 Giovanella L, Mendonça MHM, Buss P, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 10]; 35(3):e00012219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/9rWTS9ZvcYxqdY8ZTJMmPMH/?format=pdf&lang=pt.
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Nessa direção, a Organização Pan-Americana da Saúde1616 Organização Pan-americana da Saúde. A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS. Brasília, DF: OPAS; 2011. tem reconhecido que a consolidação de Redes de Atenção à Saúde (RAS) coordenadas pela APS é condição sine qua non para aprimorar os sistemas nacionais de saúde. Em especial, considerado o complexo cenário contemporâneo das necessidades em saúde das populações que, apesar das particularidades locais, passam por um processo global de transição demográfica e epidemiológica.

No caso brasileiro, apesar das heterogeneidades entre os municípios, os estudos apontam que a consolidação da ESF produziu mais impactos na melhora da atenção às pessoas vivendo com doenças crônicas que o modelo anterior, fazendo com que o SUS tenha resultados semelhantes ao setor privado e aos países ricos1717 Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):18-37. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Kr7jdgRFHmdqnMcP3GG8JTB/abstract/?lang=pt.
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. Nesse sentido, o aumento da cobertura da ESF é proporcional à redução da mortalidade por várias causas, tais como doenças infecciosas, cardiovasculares e diabetes, especialmente entre populações não brancas1818 Hone T, Rasella D, Barreto ML, et al. Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: A national longitudinal analysis. PLoS Med. 2017 [acesso em 2022 jan 10]; 14(5):e1002306. Disponível em: https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1002306.
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. Além disso, contribui para a redução da necessidade de internações e da mortalidade por acidente vascular cerebral, ocasionando, ainda, melhora nos indicadores de reabilitação após esses agravos1919 Rasella D, Harhay MO, Pamponet M, et al. Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data. BMJ 2014. [acesso em 2022 jan 10]; (349):g4014. Disponível em: https://www.bmj.com/content/349/bmj.g4014.
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,2020 Cabral NL, Franco S, Longo A, et al. The Brazilian Family Health Program and Secondary Stroke and Myocardial Infarction Prevention: A 6-Year Cohort Study. Am J Public Health. 2012 [acesso em 2022 jan 10]; 102(12):e90-e95. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23078478/.
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Há informações também que permitem sustentar o seu papel na redução da mortalidade infantil no Brasil na última década, sobretudo quando associado a políticas de transferência de renda, das quais a ESF é uma das artífices2121 Bastos ML, Menzies D, Hone T, et al. Correction: The impact of the Brazilian family health on selected primary care sensitive conditions: A systematic review. PLoS One. 2017 [acesso em 2022 jan 10]; 12(12):e0189557. Disponível me: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0182336.
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. Outros estudos apontam a franca associação entre a expansão da ESF e a maior redução das internações por causas sensíveis à atenção primária em relação às internações em geral2222 Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciênc. saúde coletiva. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 23(6):1903-1913. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/dXV7f6FDmRnj7BWPJFt6LFk/abstract/?lang=pt.
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. Percebe-se que, apesar de desafios no acesso e coordenação do cuidado em uma RAS ainda incipiente, são crescentes a atuação e o reconhecimento da ESF como porta de entrada do SUS, dando conta de toda sorte de demandas e organizando o acesso à atenção especializada2323 Fausto MCR, Giovanella L, Mendonça MHM, et al. A posição da Estratégia Saúde da Família na rede de atenção à saúde na perspectiva das equipes e usuários participantes do PMAQ-AB. Saúde debate. 2014 [acesso em 2022 jan 10]; 38(esp):13-33. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xyFtnVSD4MgBWXfV8NDYXSS/abstract/?lang=pt.
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Não é possível desconhecer, por fim, toda uma literatura acerca do papel da APS na resposta brasileira aos processos contemporâneos de vulnerabilização que se impõem às populações específicas, como, por exemplo, pessoas em situação de rua, refugiadas ou vivendo com HIV2424 D’Avila OR, Chisini LA, Costa FS, et al. Use of Health Services and Family Health Strategy Households Population Coverage in Brazil. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(9):3955-3964. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zHhjY3PSRTWRLJBPp4BwhQy/?lang=en.
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,2525 Agostini R. E Aids lá é coisa de família?: (re)configurações da assistência às pessoas vivendo com HIV a partir da Estratégia de Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2020. 427 p.,2626 Maia ACS. Saúde em trânsito: o fluxo de assistência aos refugiados na atenção primária em saúde no município do Rio de Janeiro. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018. 100 p.,2727 Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saúde debate. 2015 [acesso em 2022 jan 10]; 39(esp): 246-256. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/PBqqKT9JyjgJndzcTcjxRMh/abstract/?lang=pt.
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. Todas as pesquisas citadas jogam luz ao fato de que o Estado brasileiro vinha – mormente no contexto dos governos pós-neoliberais – investindo em garantir a mitigação dos efeitos deletérios das iniquidades estruturais por meio da capilarização da ESF nos mais diversos territórios do País, com alcance a quem mais precisa. Portanto, a despeito dos desafios e das fragilidades que se perpetuavam, eram visíveis o avanço no número de equipes, a melhora na ambiência das unidades, o aumento dos investimentos na formação de profissionais e, consequentemente, a melhora nos indicadores.

À luz do acúmulo de conhecimento, a desconstituição atual da APS abrangente que vinha se constituindo no Brasil é, portanto, um completo desvario até para aqueles que insistem na cantilena do enxugamento de gastos com políticas públicas. Mesmo no contexto da ‘privataria tucana’2828 Ribeiro Jr A. A privataria Tucana. São Paulo: Geração; 2001., houve gestos, ainda que modestos, em direção à sua consolidação. Contudo, diante das sucessivas derrotas eleitorais para as forças populares que o domesticaram na América Latina na primeira quinzena do século XXI, o capitalismo neoliberal decidiu renunciar ao seu antigo simulacro, patrocinando abertamente a desdemocratização e a necropolítica a fim de manter a homeostase de seu sistema de exploração77 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(supl2):3781-3786. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YDNxWmxtzxsfhTgn9zjcrhC/.
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,88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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,2929 Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2022 jan 10]; 38(2):e00164621. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/RzCN3QfmZthv6GBQQfNQHsQ/abstract/?lang=pt.
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No meio desse caminho, no entanto, eclodiu uma pandemia que recolocou o SUS e a APS no centro do debate e da cena social, provando mais uma vez sua necessidade, importância e efetividade na defesa da vida. No cenário pandêmico, ficaram óbvios os desafios do SUS e os ataques político-econômicos que sofre, ao mesmo tempo que se impôs o seu reconhecimento como essencial à garantia do direito à saúde e ao próprio funcionamento social e econômico da sociedade3030 Massuda A, Malik AM, Vecina Neto G, et al. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad. EBAPE.BR. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 19(esp):735-744 Disponível em: https://www.scielo.br/j/cebape/a/PfnQv8mykrVxTDjVgD8Sfgs/?lang=pt&format=pdf.
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,3131 Bastos LSL, Aguilar S, Rache B, et al. Primary healthcare protects vulnerable populations from inequity in COVID-19 vaccination: An ecological analysis of nationwide data from Brazil. The Lancet. 2022. [acesso em 2022 jan 28]; (14):e100335. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(22)00152-1/fulltext
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,3232 Giovanella L, Martufi V, Mendoza, DCR, et al. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 jan 28]; 44(esp4):161-176 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/LTxtLz5prtrLwWLzNJZfQRy/?lang=pt.
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. A Covid-19 também ratificou que qualquer crise, sanitária e humanitária, exige uma produção de saúde articulada entre a atenção individual e o cuidado comunitário, o que faz sobressair que a APS integral, intersetorial, territorializada e de qualidade é imprescindível3232 Giovanella L, Martufi V, Mendoza, DCR, et al. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 jan 28]; 44(esp4):161-176 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/LTxtLz5prtrLwWLzNJZfQRy/?lang=pt.
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O Sars-CoV-2 teria sido mais mortífero no Brasil se não fossem a organização federativa do SUS e a força de conceitos e práticas da APS e sua capilaridade3333 Bousquat A, Akerman M, Mendes A, et al. Pandemia de covid-19: o SUS mais necessário do que nunca. Revista USP. 2021 [acesso em 2022 jan 28]; (128):13-26. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/185393.
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, o que majora a necessidade de mobilização das forças sociais e políticas para resistir ao seu desmonte e financeirização privatista que segue de modo sub-reptício. Além disso, torna-se compulsório enfrentar especialmente o desencanto e a apatia que ainda parecem hegemônicos na população brasileira ante a (não)garantia de direitos que lhe é (ou deveria ser) assegurada constitucionalmente.

Nessa direção, a ESF e as suas ACS são absolutamente decisivas uma vez que sua capacidade de associação orgânica e dialógica às comunidades e seus movimentos organizados possibilitam – a partir dos equipamentos intersetoriais existentes nos territórios – inovar nos processos de trabalho e produção de saúde, seja no acompanhamento longitudinal de situações de cronicidade, seja na vigilância popular em saúde3232 Giovanella L, Martufi V, Mendoza, DCR, et al. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 jan 28]; 44(esp4):161-176 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/LTxtLz5prtrLwWLzNJZfQRy/?lang=pt.
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,3434 Arjona FBS. O espaço da/na vigilância popular em saúde: construção teórica inicial. Revista Eletr. História, Nat. Esp. 2017 [acesso em 2022 jan 28]; 6(2):1-15. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/niesbf/article/view/35702.
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. Ademais, considerando que a efetiva conquista da saúde em sua concepção ampliada implica o vínculo e a mobilização comunitária em prol de políticas garantidoras de cidadania3535 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, et al. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface. 2021 [acesso em 2022 jan 28]; 25(supl1):e210306 Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/F8wfx8yHPyYnQYfcG69zKxf/.
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, seu trabalho envolve processos de educação em saúde que sejam menos prescritivos e mais propiciadores de reflexão desejante e ação política. Portanto, ambas são tático-estratégicas para subverter os movimentos necropolíticos e de desdemocratização; não à toa, observa-se a “disputa do existir ou não existir ACS no SUS, que se insere em uma tensão de interesses do Estado, mercado e sociedade”3535 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC, et al. Agentes comunitárias de saúde: práticas, legitimidade e formação profissional em tempos de pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface. 2021 [acesso em 2022 jan 28]; 25(supl1):e210306 Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/F8wfx8yHPyYnQYfcG69zKxf/.
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(3).

Desdemocratização, necropolítica e conservadorismo: distopia à brasileira

Boaventura de Souza Santos3636 Souza Santos B. Des-democratização. [acesso em 2022 fev 10]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2007/09/18/artigo-des-democratizacao/.
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caracteriza as democracias como “regimes em movimento” entre processos de (re)democratização e (des) democratização, a depender dos vínculos políticos que unem os cidadãos ao Estado e entre si. Nessa direção, ele insta a sociedade a se organizar sob pena de a democracia perecer em favor não de uma ditadura, mas de “uma ditamole ou uma democradura”. Em sua interpretação, a desdemocratização no Estado é imbricada naquela que verte na sociedade, em que as redes de confiança e solidariedade se tornam rarefeitas.

Olhando especificamente para o caso brasileiro, Ballestrin3737 Ballestrin L. O Debate Pós-democrático no Século XXI. Revista Sul-americana de Ciência Política. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 4(2):149-164. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp/article/view/14824.
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enfatiza como o golpe de 2016 é a expressão máxima da desdemocratização que já se anunciava há um par de anos, sendo um dos mais significativos pontos de inflexão nos regimes pós-neoliberais do Sul global. Perante o esgotamento dos métodos sorrateiros, atualizou-se o enredo clássico de golpear a democracia sempre que forem gestadas condições para o seu aprofundamento. A autora lembra ainda que a condição pós-colonial na América Latina e nos demais países da periferia do capitalismo evidencia a autofagia entre os princípios liberais na política e na economia de modo que, por muito tempo, o liberalismo adotou como par indispensável não a democracia, mas o autoritarismo.

Entende-se, pois, que o aumento do protagonismo internacional brasileiro fez recrudescer o modus operandi do capital colonialista, no qual o poder político nacional se associa aos interesses do capital internacional, patrocinando o apagamento da ideia de povo e desconstituindo a soberania popular sem que sejam formalmente extintos os mecanismos democráticos. Tal processo envolve movimentos simultâneos, entre os quais, a “radicalização do anti-humanismo contra a vida dos outros”3737 Ballestrin L. O Debate Pós-democrático no Século XXI. Revista Sul-americana de Ciência Política. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 4(2):149-164. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp/article/view/14824.
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(160) e a equiparação necessária entre política e corrupção, o que enseja uma transfiguração na qual “a aversão discursiva à corrupção tem se transformado em aversão à política e à própria democracia”3737 Ballestrin L. O Debate Pós-democrático no Século XXI. Revista Sul-americana de Ciência Política. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 4(2):149-164. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp/article/view/14824.
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(160).

Na mesma direção, Miguel3838 Miguel LF, Vitullo GE. Democracia, dominação política e emancipação social. Crít. Marxista. 2020 [acesso em 2022 fev 10]; (1):11-35. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo2021_06_22_17_37_15.pdf.
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lembra que a estoicidade da democracia liberal no centro do capitalismo é produto do fato de que, na periferia dele, ela é um luxo facilmente descartável já que traz imprevisibilidades ao mercado internacional. Sua versão restrita é, portanto, condição para que a economia capitalista prospere à custa da contração dos gastos públicos e do encolhimento dos sistemas de seguridade social dos trabalhadores. Nesse enquadre, diante da crise de financiamento do nascente Estado de bem-estar social tupiniquim, emergem vocalizações que investem na soberania do mercado em detrimento daquela da nação, não abandonando o rótulo da democracia, mas, como diz o autor, deixando de pé apenas uma caricatura degenerada dela.

Com similaridades em outras partes do Ocidente, a desdemocratização à brasileira aciona forças do reacionarismo moral e da leniência com o autoritarismo que rejeita o pluralismo cultural, os pactos civilizatórios mínimos e aquiesce à proliferação das expressões de violência que esfarela os vínculos solidários entre os trabalhadores. Tal processo implica operar um revisionismo histórico e moral, cujo intento é a manutenção do status quo ameaçado pela garantia de direitos e o protagonismo das populações vulnerabilizadas no período pré-golpe.

Nessa direção, não é nada contraditório que as universidades se tornem alvos prediletos de ataques, uma vez que suas políticas de ações afirmativas e sua produção de conhecimento crítico subsidiaram sujeitos e grupos marcados pela desigualdade social e pela violência do Estado a romper com mecanismos de silenciamento e a ampliar sua luta por cidadania3939 Di Carlo J, Kamradt J. Bolsonaro e a cultura do politicamente incorreto na política brasileira. Teoria e Cult. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 13(2):55-72. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12431.
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. Acerca dos saberes científicos, pois, produz-se uma narrativa de descrédito, como no caso das vacinas, ou de moralmente inadequado, quando da defesa de direitos das mulheres e das populações negras ou LGBTQIA+.

O pânico moral, assim, é fomentado como reação às transformações sociais tidas como ameaçadoras à ordem vigente e sustenta o espraiamento de discursos e práticas que negam a possibilidade de existência de novas composições culturais individuais e coletivas. Nesse arranjo neoconservador, no Brasil, o capital neoliberal, por meio de seus sicários ideológicos, atribui toda ruína social à diversidade de modos de existir, ao mesmo tempo que dedilha ode ao individualismo meritocrático4040 Alencar G. Evangélicos e a Nova Direita no Brasil: os Discursos Conservadores do “Neocalvinismo” e as Interlocuções com a Política. Teoria e Cult. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 13(2):101-117. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12428.
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. É, aliás, a partir dessa amálgama que se investe em discursos que mobilizam os grupos que se perceberam perdendo privilégios, notadamente as classes médias brancas do centro-sul do País, com acento especial entre os homens3939 Di Carlo J, Kamradt J. Bolsonaro e a cultura do politicamente incorreto na política brasileira. Teoria e Cult. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 13(2):55-72. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12431.
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Esse movimento se amplifica para os estratos majoritários da classe trabalhadora por meio do fundamentalismo religioso4141 Miguel LF. Da ‘doutrinação marxista’ à ‘ideologia de gênero’: Escola Sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Revista Direito e Práxis. 2016 [acesso em 2022 fev 10]; 7(1):590-621. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163.
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, cujos atores ocupam posições em todos os setores da sociedade e disseminam referências, inclusive estéticas, como, por exemplo, os famosos ‘abençoado’ e ‘livramento’4040 Alencar G. Evangélicos e a Nova Direita no Brasil: os Discursos Conservadores do “Neocalvinismo” e as Interlocuções com a Política. Teoria e Cult. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 13(2):101-117. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12428.
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,4242 Cunha CV. Cultura pentecostal em periferias cariocas: grafites e agenciamentos políticos nacionais. Rev Plural. 2022 [acesso em 2022 fev 10]; 28(1):80-108. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/188462.
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. Tal fenômeno ganha limpidez na emergência orgulhosa de sua agenda fortemente reacionária no campo da moralidade durante os discursos proferidos na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a admissibilidade do golpe de 20164343 Duarte LFD. Valores cívicos e morais em jogo na Câmara dos Deputados: a votação sobre o pedido de impeachment da Presidente da República. Relig. Soc. 2017 [acesso em 2022 fev 10]; 37(1):145-166. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rs/a/mJXPSHcPLY3Qk8wxpWJxh6J/abstract/?lang=pt.
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Vale lembrar que, da redemocratização à segunda década deste século – inclusa a constituinte –, os neoliberais compunham no Brasil uma “direita envergonhada”4444 Quadros MPR, Madeira RM. Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opin. Pública. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 24(3):486-522. Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/fb7t4KkpVsJfvHwgLnf3wxS/abstract/?lang=pt.
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(486), que não ousava dizer seu nome nem mesmo em seus próprios governos na década de 1990. Entretanto, os seus sucessivos fracassos eleitorais, o tensionamento dos privilégios históricos das classes médias, a afirmação da pluralidade da vida social e a violência urbana constituíram um cenário propício à sua (re)emergência, especialmente com discursos acerca das questões morais no âmbito dos costumes e daquelas relativas à segurança pública pelo incremento da militarização da sociedade. Não por acaso, há relações quase simbióticas entre as bancadas evangélicas e da bala, cada qual com a sua própria retórica bélica em expansão4444 Quadros MPR, Madeira RM. Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opin. Pública. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 24(3):486-522. Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/fb7t4KkpVsJfvHwgLnf3wxS/abstract/?lang=pt.
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,4545 Medeiros E, Fonseca B. As bancadas da Câmara. Portal Publica. 2016. [acesso em 2022 fev 10]. Disponível em: https://apublica.org/2016/02/truco-as-bancadas-da-camara.
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Tal aposta vem tendo bastante sucesso de modo que esse espectro político, que vinha perdendo assentos no parlamento de forma sustentada no contexto do avanço do pós-neoliberalismo, experimenta uma reversão do quadro mediante sua conversão em uma direita confessional, que escamoteia o seu projeto econômico ou pelo menos o coloca em segundo plano. O resultado são as maiores porcentagens eleitorais da série histórica desde a redemocratização4646 Codato A, Berkatto F, Bolognesi B. Tipologia dos políticos de direita no Brasil. Análise Soc. 2018 [acesso em 2022 fev 10]; 3(229):870-897. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n229_a02.pdf.
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Embora não seja um fenômeno brasileiro, a politização pentecostal no País se destaca no cenário latino-americano com crescente atuação direta dos membros de suas mais diversas correntes em todos os níveis da cena político-partidária4747 Machado MDC, Burity J. A Ascensão Política dos Pentecostais no Brasil na Avaliação de Líderes Religiosos. DADOS – Rev. Ciências Soc. 2014 [acesso em 2022 fev 10]; 7(3):601-631. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/9RpfDdGjSSGgtPHjGW97rPQ/abstract/?lang=pt.
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. Esse movimento, impulsionado em muito por neopentecostais, “adotou um modelo corporativo de representação política”4747 Machado MDC, Burity J. A Ascensão Política dos Pentecostais no Brasil na Avaliação de Líderes Religiosos. DADOS – Rev. Ciências Soc. 2014 [acesso em 2022 fev 10]; 7(3):601-631. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/9RpfDdGjSSGgtPHjGW97rPQ/abstract/?lang=pt.
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(606) com lançamento de candidaturas próprias e fiéis às denominações religiosas de origem. Machado e Burity4747 Machado MDC, Burity J. A Ascensão Política dos Pentecostais no Brasil na Avaliação de Líderes Religiosos. DADOS – Rev. Ciências Soc. 2014 [acesso em 2022 fev 10]; 7(3):601-631. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/9RpfDdGjSSGgtPHjGW97rPQ/abstract/?lang=pt.
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afirmam, a partir de entrevistas com lideranças pentecostais, que o projeto que sustenta a sua incidência política envolve a contenção do secularismo, expresso por políticas públicas de educação e saúde baseadas em reivindicações de direitos dos movimentos feministas e de diversidade sexual e de gênero, e a articulação com o neoliberalismo por meio da defesa e da valorização do empreendedorismo individual e das ideias de ‘responsabilidade’, ao invés de ‘direito’, e de prosperidade como benção divina.

As origens dessa marcha retomam as décadas de 1980/1990, quando o movimento neopentecostal incrementou sua presença em presídios e espalhou templos em regiões periféricas e altamente vulnerabilizadas de todo o País. Diante dos hiatos no acesso efetivo às políticas públicas e usando da retórica da profissão de fé, esse grupo passou a ter protagonismo na oferta de proteção às famílias das agruras mais imediatas, incluindo a criminalidade, e a disponibilizar a pertença a redes de sociabilidade seguras, irmanada pela solidariedade cristã4242 Cunha CV. Cultura pentecostal em periferias cariocas: grafites e agenciamentos políticos nacionais. Rev Plural. 2022 [acesso em 2022 fev 10]; 28(1):80-108. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/188462.
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,4848 Lobo ES. Católicos e Evangélicos em prisões do Rio de Janeiro. Comum. ISER. 2012 [acesso em 2022 fev 10]; (61):22-29. Disponível em: https://www.iser.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Comunicacoes_ISER_n61.pdf.
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Em um primeiro momento, as lideranças eram oriundas dos mesmos contextos de vulnerabilização dos fiéis, estavam pessoalmente ligadas às suas experiências na lida e as tinham como estandarte. A partir dos anos 2000, todavia, houve um deslocamento cada vez maior dessas figuras para os setores médios, conformando uma hegemonia de homens com maior escolaridade, muitos deles brancos, que ocuparam pequenos partidos políticos de direita e o universo das telecomunicações4747 Machado MDC, Burity J. A Ascensão Política dos Pentecostais no Brasil na Avaliação de Líderes Religiosos. DADOS – Rev. Ciências Soc. 2014 [acesso em 2022 fev 10]; 7(3):601-631. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/9RpfDdGjSSGgtPHjGW97rPQ/abstract/?lang=pt.
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,4949 Cassotta PL, Cerqueira C, Lacerda F. Religião e Política Balanço das Temáticas e Pesquisas Recentes no Brasil (2016-2021). Agenda Política. 2022 [acesso em 2022 fev 10]; 9(2):4-16. Disponível em: https://www.sumarios.org/artigo/religi%C3%A3o-e-pol%C3%ADtica-balan%C3%A7o-das-tem%C3%A1ticas-e-pesquisas-recentes-no-brasil-2016-2021.
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,5050 Gerardi DA. Parlamentares evangélicos no Brasil: perfil de candidatos e eleitos a deputado federal. Newsletter. 2016 [acesso em 2022 fev 10]; 3(14):1-18 Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/2569.
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. Apesar disso, a agenda econômica acabou estrategicamente subsumida à mobilização do pânico moral no âmbito dos costumes e da segurança pública. Construiu-se, pois, uma mecânica para ‘democraticamente’ ocupar cargos públicos em nome das ‘famílias de bem’, começando pelo legislativo5151 Trevisan J. A Frente Parlamentar Evangélica: Força política no estado laico brasileiro. Numen: Rev. Estud. Pesq. Religião. 2013 [acesso em 2022 fev 10]; 16(1):581-609. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/21884.
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e, na sequência, alcançando o executivo5252 Gomes EC, Leite MST. A religião no poder executivo: controvérsias sobre “cultura” no mandato de Crivella no Rio de Janeiro. Religare. 2019 [acesso em 2022 fev 10]; 16(1):85-116. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/religare/article/view/42192.
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,5353 Trivellato PRF, Ventura DFL. The decline of Brazil in the global health field: Rupture, loss, and reversal of leadership in the international health agenda. Latin Ame Policy. 2022 [acesso em 2022 out 27]; 13(2):484-497 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/lamp.12274.
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e o judiciário5454 El Pais. André Mendonça, o nome “terrivelmente evangélico” para o STF de Bolsonaro. [acesso em 2022 out 28]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-12/andre-mendonca-o-nome-terrivelmente-evangelico-para-o-stf-de-bolsonaro.html.
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Repercussões desestruturantes na saúde pública

A compreensão de que o SUS nunca foi plenamente implementado e que sua consolidação é marcada por permanente disputa entre um projeto da reforma sanitária e um projeto privatista é quase consenso no campo da saúde brasileiro5555 Guimarães SEM. Expressões conservadoras no trabalho em saúde: a abordagem familiar e comunitária em questão. Serv. Soc. Soc. 2017 [acesso em 2022 out 29]; (130):564-582. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3M8B67GBFspYdZRZMNdZtCk/?lang=pt.
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,5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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; bem como de que nunca se esteve sob uma crise tão grave quanto inédita5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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Desde 2016, investe-se na intensificação dos ataques à saúde pública, os quais operam a articulação distópica anteriormente enunciada. Assim, à época, o MS, sob comando de Ricardo Barros, teve por objetivo ‘eficiência econômica’; para tanto, não só contingenciou e suprimiu o orçamento como também afirmou ser urgente rever o direito constitucional de acesso universal à saúde5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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. O ministro do governo Temer afirmou que a solução para o cuidado em saúde dos brasileiros deveria ser a criação de “planos de saúde populares”5353 Trivellato PRF, Ventura DFL. The decline of Brazil in the global health field: Rupture, loss, and reversal of leadership in the international health agenda. Latin Ame Policy. 2022 [acesso em 2022 out 27]; 13(2):484-497 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/lamp.12274.
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(6).

O primeiro ministro do governo Bolsonaro, Mandetta, somou à lógica do corte de custos a afirmação de que o problema do SUS era a má gestão financeira de estados e municípios5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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. Não à toa, o Previne Brasil altera o financiamento da APS com foco na transferência de recursos por população cadastrada e por desempenho dos municípios, induzindo a competição por recursos e comprometendo ainda mais a universalidade de acesso à saúde no mundo real77 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(supl2):3781-3786. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YDNxWmxtzxsfhTgn9zjcrhC/.
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,88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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,5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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.

Além do Previne Brasil, o pacote de medidas que aprofundava as alterações enunciadas na PNAB 2017 também trouxe a criação da Agência para Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), instituição de direito privado, e a proposição da Carteira de Serviços para a APS (CaSAPS)88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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. Sem que o papel do Conselho Nacional de Saúde fosse respeitado e com protagonismo da Comissão Intergestores Tripartite, as regulamentações aprovadas transformaram a composição das equipes e a organização dos serviços, investindo na focalização e ampliando as possibilidades de privatização da saúde88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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,5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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O modelo gerencialista de gestão dos serviços, preocupado com a eficiência do uso dos recursos e a resolutividade mensurável, afeta diretamente os modos de produção da saúde nos territórios e o modelo de cuidado posto em prática pelas equipes, às quais é negado, na maioria das situações, um vínculo seguro e estável de trabalho, restringindo sua autonomia de atuação profissional e dificultando o investimento em processos mais dialógicos88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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,5555 Guimarães SEM. Expressões conservadoras no trabalho em saúde: a abordagem familiar e comunitária em questão. Serv. Soc. Soc. 2017 [acesso em 2022 out 29]; (130):564-582. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3M8B67GBFspYdZRZMNdZtCk/?lang=pt.
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Por um lado, há uma ‘cruzada’ gerencialista e, por outro, aciona-se uma retórica conservadora e messiânica. Em seu discurso de posse, Mandetta disse que se qualificava para o cargo de ministro da saúde por seu compromisso ‘com a família, com a fé’ e por seu alinhamento a um projeto de Estado calcado em valores, princípios e condutas que “calam muito fundo na alma do homem brasileiro”5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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(79). Tal discurso fez emergir a articulação política e religião, que, embora não seja uma novidade, ganhou outros contornos no período, pois buscou mobilizar a população com base em um modus operandi mais vinculado aos evangélicos, no qual há centralidade da construção de valores, índices maiores de confiança em lideranças religiosas do que seculares e certa endogenia dos laços sociais5151 Trevisan J. A Frente Parlamentar Evangélica: Força política no estado laico brasileiro. Numen: Rev. Estud. Pesq. Religião. 2013 [acesso em 2022 fev 10]; 16(1):581-609. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/21884.
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No entanto, a presença da racionalidade neopentecostal na máquina estatal não se restringiu ao discurso. Ao contrário, significou muitas mudanças em políticas de saúde que seriam operadas nas RAS e, em especial, na APS5353 Trivellato PRF, Ventura DFL. The decline of Brazil in the global health field: Rupture, loss, and reversal of leadership in the international health agenda. Latin Ame Policy. 2022 [acesso em 2022 out 27]; 13(2):484-497 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/lamp.12274.
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,5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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. A ‘nova saúde mental’ trouxe de volta um modelo de atenção que privilegia a internação, seja nos leitos psiquiátricos, seja em comunidades terapêuticas (muitas delas religiosas), em detrimento do cuidado nos territórios5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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. A Política Nacional de Álcool e outras Drogas abandonou a perspectiva de redução de danos e passou a orientar a abstinência e a proibição do consumo de substâncias5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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O Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), AIDS e Hepatites Virais foi rebaixado no organograma do MS, perdendo autonomia e recursos financeiros; e, sob forte ataque religioso-moral, viu a suspensão de ações de educação em saúde e prevenção5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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. Simultaneamente, no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, construiu-se a proposta de oferta ‘racional’ de implantes de contraceptivos de longa duração para mulheres cisgênero encarceradas, moradoras de rua e usuárias de drogas, que, em sua maioria, são negras e pobres, reproduzindo o ideário racista, sexista e moralista punitivo5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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Colocou-se em curso uma necropolítica neoliberal e conservadora na medida quem que se estabeleceu uma teia de ações e omissões sistemáticas e planejadas do Estado no campo da saúde pública5757 Matta GC, Rego S, Souto EP, et al., organizadores. Os impactos sociais da covid-19 no brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. que faz “morrer determinados grupos sociais de um modo legalmente justificado e, de certa forma, silencioso”5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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(77), implicando, inclusive, a perda de liderança do Brasil na saúde global5353 Trivellato PRF, Ventura DFL. The decline of Brazil in the global health field: Rupture, loss, and reversal of leadership in the international health agenda. Latin Ame Policy. 2022 [acesso em 2022 out 27]; 13(2):484-497 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/lamp.12274.
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Trivellato e Ventura5353 Trivellato PRF, Ventura DFL. The decline of Brazil in the global health field: Rupture, loss, and reversal of leadership in the international health agenda. Latin Ame Policy. 2022 [acesso em 2022 out 27]; 13(2):484-497 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/lamp.12274.
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mostram que a participação de quadros ligados à promoção de projetos com concepções tradicionais e religiosas de família nas comitivas brasileiras em reuniões da Organização Mundial da Saúde e na Assembleia Mundial de Saúde e a postura do governo federal durante a pandemia – contra medidas preventivas de proteção coletiva e individual e antivacinas – comprometeram a credibilidade e afastaram o País das negociações multilaterais.

(R)existindo a partir da atenção primária: Bacurau é aqui

Bacurau é um distrito sertanejo situado no nordeste brasileiro de um futuro próximo e distópico5858 Bacurau [Filme]. Direção: Mendonça Filho K, Dorneles J. Rio de Janeiro: Cinema Scópio Produções SBS Films; Símio Filmes; arte France Cinéma; 2019., no qual os milicianos privatizam a água com aquiescência estatal, há execuções públicas televisionadas em São Paulo e o racismo colonial promove um safari humano em que o assassinato latino é entretenimento vendido ao norte global. Com participação de dirigentes políticos locais e conluio de civis – crentes em uma inexistente semelhança com os algozes de seus concidadãos –, a necropolítica, que intenta abater o vilarejo, espolia até mesmo o seu direito de estar no mapa; uma espécie radical da desdemocratização que erode a soberania de um povo.

Não obstante, o povoado recusa o canto da sereia do fascismo aniquilador das diferenças, que embora não sejam esquecidas tampouco constituem óbices para a vida em sociedade. Ao contrário, teima em (r)existir a partir da solidariedade, do respeito às liberdades individuais e coletivas e da importância dada à memória e ao conhecimento das lutas populares, que fazem com que o museu histórico, e não a capela, seja o orgulho da comunidade liderada por dois negros, um professor e uma enfermeira. O sucesso da empreitada surpreende os assassinos incautos, sendo tributária também do manejo meticuloso do território, dos saberes tradicionais, do torpor sincrético e de uma verve antropofágico-tropicalista idiossincrática que, antes de alimentar as entranhas da cidade com o inimigo, oferece a ele um guisado com suco de caju5959 Gomes AR, Trovão FVB. O Voo do bacurau: cinema, necropolítica e [contraviolência]. Fênix – Rev. Hist. Estud. Cult. 2020 [acesso em 2022 out 29]; 17(2):231-261. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/951.
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Os moradores de Bacurau trazem em seus corpos as marcas da miscigenação forçada entre sujeitos e suas culturas. São justamente os ‘zés-ninguém’ dos quais nos fala Darcy Ribeiro6060 Ribeiro D. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2006., descendentes da bárbara violência da escravidão, que já não sendo mais indígenas ou africanos, tampouco são europeus; encarnam, portanto, a “ninguendade”6060 Ribeiro D. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2006.(131) de onde “nasceu um novo povo único sem precedentes no mundo” e que traz no corpo e na alma uma plasticidade criativa e insólita para responder à aridez imposta pela classe dominante absolutamente infecunda, visceralmente vira-lata, cruelmente pervertida e que cultua ‘o pendor e o calejamento do senhor de escravo’.

No espaço-tempo do vilarejo, esses sujeitos racializados e a sua comunidade ‘fora do mapa’, conectados a um mundo globalizado e, ao mesmo tempo, excluídos por ele, organizam-se para resistir à violência estrangeira. Marcham ombro a ombro profissionais da saúde, professores, motoristas, violeiros, agricultores e DJs sob a liderança daqueles marginalizados: mulheres, travestis, andrógenos, gays, lésbicas, cafetinas e prostitutas, libertinos, cidadãos fora da lei. Quem nasce em Bacurau é gente, orgulhosa de si, disposta a reafirmar a existência que o norte do mundo insiste em negar e a fazer valer a máxima que demarca as terras de sua despretensiosa cidadela: ‘se for, vá na paz’.

Tal como no filme, só há dois caminhos possíveis ao povo brasileiro: lutar para retomar os trilhos que apontam à utopia ou se resignar à condenação perpétua da distopia necropolítica neoliberal. Dessa forma, como acontece na película, o campo da saúde tem centralidade na guerra para repelir nossos algozes, mas só alterará seu rumo se estivermos, como nossos compatriotas de Bacurau, ‘sob o efeito de um poderoso psicotrópico’: a esperança solidária.

Entende-se que é a APS, organizada pela ESF, que melhor guarda os predicados para gerar ondas de esperança solidária55 Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC et al., organizadoras. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 493-545,1515 Giovanella L, Mendonça MHM, Buss P, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 10]; 35(3):e00012219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/9rWTS9ZvcYxqdY8ZTJMmPMH/?format=pdf&lang=pt.
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,3232 Giovanella L, Martufi V, Mendoza, DCR, et al. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Saúde debate. 2020 [acesso em 2022 jan 28]; 44(esp4):161-176 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/LTxtLz5prtrLwWLzNJZfQRy/?lang=pt.
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, justamente por suas múltiplas analogias ao resiliente povoado. É o caso, por exemplo, da atuação multiprofissional cooperativa e das relações mais horizontalizadas com os usuários. Ademais, sendo as ACS filhas das comunidades em que atuam e os demais profissionais vinculados a elas de forma longitudinal2525 Agostini R. E Aids lá é coisa de família?: (re)configurações da assistência às pessoas vivendo com HIV a partir da Estratégia de Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2020. 427 p., são garantidas a compreensão acurada da gramática social, a capilaridade territorial e a aproximação cuidadosa da história dos sujeitos, suas famílias e comunidades. Tais características extrapolam a mera prestação de serviços em saúde e oportunizam as relações solidárias necessárias à resistência.

Outro traço da APS que rememora o triunfo sertanejo é sua vocação não apenas à biomedicina, mas também aos saberes e práticas que a sobrexcedem e são muitas vezes desprezados por ela, como outras racionalidades médicas, as ciências sociais, os saberes sobre as subjetividades e os conhecimentos populares, provenientes ou não de confissão espiritual. Assim, a abrangência do seu escopo não se restringe a intervenções médicas, prevendo também a mediação social dos sujeitos entre si e nas instituições. No longa-metragem, se o protagonismo é dos que estão à margem, reafirmando seu direito de existir, na APS, são os mais vulnerabilizados, geralmente invisíveis, que ganham centralidade5656 Freire L, Castro R. Apresentação do Dossiê Entre “precariedades”, “crises” e o “colapso”: perspectivas antropológicas sobre o “desmonte” do SUS. Anuário Antropológico. 2022 [acesso em 2022 out 29]; 47(2):75-92. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/9695.
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É na práxis do cuidado integral à saúde produzido pela APS que se abrem possibilidades de respeito, acolhimento e escuta à diversidade dos modos de viver, características que permitem que, nos territórios em que as equipes de ESF se inserem, as políticas públicas sejam efetivamente de todos, respondam às necessidades de saúde e produzam cidadania.

Por certo, sabemos que há enormes desafios para a consecução sustentável dessa APS emancipatória considerando o cenário atual marcado pela necropolítica neoliberal22 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(116):11-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/7PPB5Bj8W46G3s95GFctzJx/?lang=pt.
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,33 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018 [acesso em 2022 jan 10]; 42(esp1):38-51 Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p/abstract/?lang=pt.
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,77 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jan 10]; 26(supl2):3781-3786. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YDNxWmxtzxsfhTgn9zjcrhC/.
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,88 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2022 jan 10]; 36(9):e00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/abstract/?lang=pt.
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. Entretanto, seguimos apostando que sua capilaridade e seu modus operandi a tornam um campo por excelência de mobilização da sociedade para as lutas populares e a defesa das liberdades individuais e coletivas44 Agostini R, Castro AM. O que pode o Sistema Único de Saúde em tempos de necropolítica neoliberal? Saúde debate. 2019 [acesso em 2022 jan 10]; 43(esp8):175-188. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/tKVjyyPy8rRHP8nqGhZGYhF/abstract/?lang=pt.
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,1313 Starfield B, Shi L, Macinko J. Contribution of Primary Care to Health Systems and Health. Milbank Q. 2005 [acesso em 2022 jan 10]; 83(3):457-502. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16202000/.
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,1515 Giovanella L, Mendonça MHM, Buss P, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 10]; 35(3):e00012219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/9rWTS9ZvcYxqdY8ZTJMmPMH/?format=pdf&lang=pt.
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,6161 Eclinical Medicine. Editorial: Reframing primary health care: a 21st century challenge. Eclinical Med. 2021 [acesso em 2022 out 30]; (40):101177. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/eclinm/article/PIIS2589-5370(21)00457-0/fulltext#articleInformation.
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Tudo isso faz com que seja ali, na APS, que haja, mais que em qualquer espaço, possibilidade – e exigência! – do uso crítico e criativo da plasticidade, por vezes jocosa, que é insígnia diferencial da nossa gente e que assegurou a vitória de Bacurau em sua peleja por sobrevivência. Por isso, para não concluir longe das referências pernambucanas, se é verdade que “um galo sozinho não tece uma manhã, [e] ele precisará sempre de outros galos”6262 Melo Neto JC. A educação pela pedra. São Paulo: Companhia das Letras; 2008.(219), não temos melhor alternativa para resistir adiante da conjuntura a não ser nos entrincheirarmos na APS sob a máxima materna: “é só teimar, levanta a cabeça, olha pra frente e teima”6363 Lula. Teimosia e persistência voltarão a dar resultado. [acesso em 2022 out 2]. Disponível em: https://lula.com.br/previsoes-do-horoscopo-para-dois-mil-e-lula.
https://lula.com.br/previsoes-do-horosco...
(sp).

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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